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Liberalismo: um confronto entre Nietzsche e Schmitt

Liberalism: a confrontation between Nietzsche and Schmitt

Resumo:

O presente artigo pretende analisar e comparar a posição de Nietzsche e Schmitt a respeito do liberalismo. Assim, procura esclarecer e contrastar o que cada um compreendeu com esse conceito, como ele se relaciona com o quadro mais amplo da avaliação dos autores acerca da modernidade, qual a postura crítica que tomaram perante ele e quais alternativas vislumbraram. O artigo se concentra, sobretudo, nos escritos da fase madura do pensamento de Nietzsche e nos escritos de Schmitt do período de Weimar. Em conclusão, argumenta-se que, apesar de os autores partirem de caracterizações distintas de sua situação histórica, para ambos o liberalismo é parte de um processo mais amplo, cujo resultado tende a uma forma política fundada em uma concepção de indivíduo e de boa vida que é danosa para a vida política e cultural. Sobressai, de igual modo, em análise última, as discordâncias no que tange ao caminho filosófico de Nietzsche e ao caminho teológico-político de Schmitt.

Palavras-chave:
democracia; filosofia; teologia-política; niilismo; neutralização

Abstract:

This article aims to analyze and compare the positions of Nietzsche and Schmitt regarding liberalism. Thus, it seeks to clarify and contrast how each author understood this concept, how that understanding relates to their broader assessments and critical views about modernity as well as the alternatives they envisioned. The article focuses on Nietzsche’s mature writings and on Schmitt’s work during the Weimar period. It concludes that, although the authors start from different characterizations of their historical situation, for both, liberalism is part of a broader process, the result of which tends to a political form based on a conception of the individual and of the good life which is harmful to political and cultural life. However, in the final analysis, the authors diverge with respect to Nietzsche’s philosophical path and Schmitt’s theological-political path.

Keywords:
democracy; philosophy; political-theology; nihilism; neutralization

Introdução

Muito se fala hoje sobre a crise da democracia liberal. A bibliografia sobre o tema é imensa e não dá sinais de estagnação. Alguns veem os acontecimentos políticos recentes tais como a ascensão do populismo em democracias consolidadas, o crescimento de movimentos nacionalistas e o consequente questionamento de instituições internacionais como sintomas senão da morte da democracia, ao menos de uma profunda crise. No âmbito teórico, de igual modo, os princípios do liberalismo sofrem tentativas de desestabilização. A despeito da revitalização da filosofia política liberal nos anos 70, o liberalismo como ensinamento político fundado nos preceitos do direito natural e do contrato entre indivíduos racionais é atacado por parte de marxistas e pós-marxistas, de pós-modernos, de conservadores, de historicistas e de coletivistas. Ora pretendemos investigar as ideias de dois pensadores alemães que contribuíram para a crise prática e teórica da democracia liberal. Não exatamente na atual crise, mas naquela, mais especificamente, da república alemã de Weimar. Friedrich Nietzsche e Carl Schmitt tiveram sua cota de responsabilidade2 2 É necessário lembrar, contudo, que Nietzsche foi grande crítico dos princípios centrais que caracterizaram a ideologia nazista. Basta recordarmos que o filósofo considerou o nacionalismo como um tipo de “neurose nacional” (névrose nationale) (1889a, o caso Wagner, 2) e advogou, como um “bom europeu”, tal qual, segundo ele, fizera Goethe (1967b, aforismo 1888, 16[68]) em favor da uma unidade da cultura europeia e da causa política paneuropeista (1886b, aforismo 208), além disso considerou o antissemitismo como uma “absurda” e “injustificada” (absurden; unberechtigten) opinião alemã contra a qual travava uma “guerra brutal” (schonungslosen Krieg) (1967b, aforismo 1888, 24 [11]). Logo, Nietzsche muito possivelmente teria abominado tal regime. na corrosão da frágil república de Weimar, Nietzsche como filósofo que postumamente impactou o ambiente intelectual do “conservadorismo revolucionário” alemão e Schmitt como integrante e defensor do movimento nacional socialista.3 3 O cientista e historiador político, Armin Mohler aponta que o pensamento de Nietzsche serviu de “modelo no qual se fundou” o movimento conhecido como “revolução conservadora”, que viria a inspirar o nazismo (1990, p 101), além de apontar Schmitt, ao lado de Spengler e Blüher, como figuras proeminentes de tal movimento (1990, p. 76). Além de Mohler, Maus (1986), Herf (1993), e Breuer (1996) seguem a tese da aliança entre Schmitt e a revolução conservadora. Por sua vez, Bendersky (1983) e Galli (1996) relativizam essa ligação. Para balanço e análise dessa discussão, ver Bercovici (2009, p. 80-83). Logo, buscando compreensão a respeito da anatomia do niilismo alemão, ganharemos clareza sobre uma das mais fortes tendências críticas ao regime liberal democrático. E estaremos mais capacitados a articular uma defesa contra ela.

Diversos teóricos se inspiram no projeto crítico dos autores e se apropriam de suas tendências desconstrutivistas com os mais variados propósitos. Fato é que Nietzsche e Schmitt desferiram ataques poderosos à razão moderna e tornaram suspeitas as reivindicações de fundação das doutrinas políticas modernas nos preceitos de legitimação racional no qual se amparavam. Os pressupostos de legitimação típicos do Iluminismo, como a racionalidade histórica, o universalismo, o direito natural, foram problematizados por meio de um historicismo radical e, justamente por conta disso, os autores atraem interesse em um ambiente intelectual pós-moderno. Pretendemos investigar não apenas a parte negativa do projeto teórico dos autores, como também localizar o centro de suas posições e o ponto a partir do qual elevam suas críticas morais à moral moderna. Isto é, visamos conhecer não apenas os instrumentos de dissecação da moral, mas o propósito pelo qual os instrumentos são mobilizados dentro de um maior escopo do pensamento de Nietzsche e Schmitt. Dentro disso, notaremos as afinidades e distanciamentos que os caracterizam.

Ambos aplicam o método histórico para avaliar os princípios fundamentais da modernidade. Não por acaso alguns concedem o título de genealogista à Schmitt, termo de linhagem nietzschiana. Esse procedimento desvela os valores e a moral que fundamentam os ideais políticos modernos. Nessa esfera, os autores desenvolvem suas críticas e se opõem ao liberalismo, que lhes parece sintoma de decadência e causa de rebaixamento político e moral que ameaçam a humanidade. Contudo, a semelhança na crítica não esconde a diferença maior: Nietzsche e Schmitt são como caminhos que se bifurcam, pois um representa o caminho político-filosófico e o outro, o político-teológico. A fim de realizar os objetivos propostos, analisaremos o diagnóstico pelo qual os autores atestam a modernidade, ou seja, o modo como tal aparece em Nietzsche como o anúncio da morte de Deus e a realização do último homem e o modo como Schmitt o faz com sua genealogia da normatividade no processo de neutralização e despolitização. Para tanto, nos concentramos em diversas obras de Nietzsche, mas, sobretudo, em dois livros complementares de sua maturidade, Assim falou Zaratustra e Além do bem e do mal.4 4 A despeito da diferença estilística astronômica entre os livros, Zaratustra com sua forma poética, sublime, e Além do bem e do mal, com sua prosa afiada e polêmica, segundo Nietzsche, o último “diz a mesma coisa que meu Zaratustra, mas de modo diferente, muito diferente” (1967a). A diferença, segundo observou o autor em sua autobiografia, reside no fato de que Além do bem e do mal volta o olhar para o que é “o próximo, o tempo, o derredor” (das Nächste, die Zeit, das Um), enquanto Zaratustra visa o infinito atemporal (1889a, além do bem e do mal, aforismo 2). No caso de Schmitt, o foco incidiu sobre O conceito do político e seu apêndice A era das neutralizações e despolitizações, nos quais Schmitt acirra sua análise crítica da modernidade e do liberalismo.

Muitos filósofos, cientistas e teóricos políticos se dedicaram a decifrar a relação entre os dois pensadores e analisar suas afinidades eletivas sob diversos ângulos de análise. Alguns focaram no conceito de amizade/inimizade e política (GRAHAM, 2011GRAHAM, Smith. Friendship and the political: Kierkegaard, Nietzsche, Schmitt. Exeter: Imprint Academic, 2011.; AYDIN, 2008AYDIN, Ciano. The struggle between ideals: Nietzsche, Schmitt and Lefort on the politics of the future. In: SIEMENS, Herman; ROODT, Vasti (eds.). Nietzsche, power and politics: rethinking Nietzsche’s legacy for political thought. Berlin: Walter se Gruyter, 2008. p. 801-817.), outros compararam a noção de niilismo (GALLI, 2014GALLI, Carlo. Nichilismi a confronto: Nietzsche e Schmitt. Filosofia Politica, n.1, p. 99-120. 2014.), ou o problema da tecnologia moderna (MCCORMICK, 1995MCCORMICK, John. Dangers of mythologizing technology and politics: Nietzsche, Schmitt and the Antichrist. Philosophy and Social Criticism, v. 21, n. 4, p. 52-92, 1995.) e estudiosos ainda se dedicaram a medir a extensão da influência direta ou indireta que um surtiu no outro (GLUTH, 2018GLUTH, Sophia. Carl Schmitt und Friedrich Nietzsche: Eine weitere Nietzsche-Lektüre der konservativen revolution?. In: SOMMER, Andreas; KAUFFMAN, Sebastian (orgs.). Nietzsche und die konservative Revolution. Berlin: Walter de Gruyter, 2018. p. 331-343.; MOHLER 1990MOHLER, Armin. La rivoluzione conservatrice. Napoli: Editora Akropolis, 1990.; ZAVORONKHOV, 2018ZAVORONKHOV, Alexey. Nietzsches Idee der Gemeinschaft zwischen Liberalismus und Konservativer Revolution: Helmuth Plessner contra Carl Schmitt. In: SOMMER, Andreas; KAUFFMAN, Sebastian (orgs.). Nietzsche und die konservative Revolution. Berlin: Walter de Gruyter, 2018. p. 331-343.). É claro que de algum modo todos esses trabalhos tangenciam a temática do presente artigo, mas não o tocam diretamente, esperamos assim contribuir para avançar criticamente o debate a respeito dos dois pensadores. A partir da confrontação entre suas ideias propomos uma reflexão a respeito dos excessos e das virtudes que os autores podem ter para reflexões acerca do regime liberal democrático.

Nietzsche, o movimento democrático moderno e a questão do liberalismo

Nietzsche não foi por excelência um pensador político. Em sua vida, exceto pelo engajamento de juventude no projeto político-cultural de Richard Wagner, do qual, quando jovem, fora ardente adepto5 5 No espírito dessa militância, Nietzsche escreve a seu amigo Von Gersdorff, “Não temos nenhum direito de viver hoje se não formos militantes, militantes que preparam um século vindouro, do qual podemos adivinhar alguma coisa em nós através de nossos melhores instantes: pois esses instantes afastam-nos do espírito de nosso tempo; em tais instantes sentimos algo dos tempos que virão” (1967a). , Nietzsche não emprestou seu nome a nenhuma causa política de seu tempo. O filósofo eremita se dedicou apenas de modo tangencial à reflexão sobre instituições políticas, formas de governo e legitimidade. Pois bem, isso não impediu Nietzsche de profetizar, em sua autobiografia, que apenas de sua obra em diante “existe sobre a Terra a grande política”, que desencadearia uma “Guerra espiritual” sem paralelos (1889a, além do bem e do mal, aforismo 2)NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. 1889a. Disponível em Disponível em http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/EH Acesso em: 20 de mar. 2021.
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.6 6 Ver também NIETZSCHE, 1886b, aforismo 208. A guerra de Nietzsche se referia à “transvaloração de todos os valores”, direcionada à superação do ideal político-moral moderno. Exatamente no escopo desse projeto, Nietzsche acoplou a crítica não apenas ao liberalismo, mas também à democracia, ao anarquismo, ao nacionalismo e ao socialismo.

A despeito de a grande política marcar especialmente suas últimas obras, Nietzsche sempre manteve no horizonte de seu pensamento a preocupação central com a saúde e a doença da civilização. “O filósofo como médico da cultura” (Arzt der Cultur) (1967b, aforismo 1873, 30[8])NIETZSCHE, Friedrich. Posthumous fragments. Berlin/New York: De Gruyter, 1967b. (Fragmentos póstumos). Disponível em: Disponível em: http://www.nietzschesource.org/#eKGWB Acesso em: 15 abr. 2020.
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escreveu em uma nota do período de seu primeiro livro, O nascimento da tragédia. Seu diagnóstico da cultura moderna, nessa obra de juventude, era grave. O Estado moderno, disse Nietzsche, graças, entre outros elementos, à “concepção de mundo liberal e otimista, que tem suas raízes nas doutrinas do Iluminismo e da Revolução Francesa” é tido como “instituição de proteção de indivíduos egoístas” (1872b)NIETZSCHE, Friedrich. Fünf Vorreden zu Fünf Ungeschriebenen Büchern. 1872b. (Cinco prefácios para cinco livros não escritos). http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/CV Acesso em: 20 de mar. 2021.
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. R4evidente que Nietzsche mira aqui o contratualismo, pelo qual a sociedade civil e a legitimidade política fundem-se no contrato social entre indivíduos livres e iguais, motivados pelo auto interesse de preservação, de onde se origina a noção de que o Direito Individual é fim último da sociedade política. Sua preocupação era similar às de Hegel e Rousseau que frente ao individualismo atomista, contrapuseram o modelo grego, “em que se ressaltava a disciplina política e concebia-se o indivíduo como parte de um todo orgânico” (ANSELL-PEARSON, 1994ANSELL-PEARSON, Keith. Nietzsche como pensador político: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994., p. 85). Encantava, sobretudo, o jovem Nietzsche, na cultura grega, a tragédia, que não era somente espetáculo artístico, mas um elemento de unidade política e moral que circunscrevia os mitos compartilhados de todo um povo. Os modernos, por sua vez, são racionalistas, individualistas, fragmentados, orientados ao ganho material, carentes de mito e de unidade política e cultural. A devoção de Nietzsche ao projeto artístico cultural de Richard Wagner surge nesse bojo, o músico encarnava para Nietzsche o papel de Gênio-Artista, cuja ópera7 7 “Gesammtkunstwerk” - “a obra de arte total”, como o próprio músico a denominava. Tal projeto teria como ponto inicial o Festival de Beyeruth, no qual por vários dias seriam encenadas as óperas de Wagner, principalmente O anel dos Nibelungos e Parsifal, e que contou com célebres espectadores da elite política e intelectual da época, incluso o Kaiser Guilherme I, e o imperador do Brasil Dom Pedro II. revitalizaria a cultura alemã, resgatando a vida cívica do colapso.

Ao nosso ver, Nietzsche jamais abandonou a ideia do “filósofo como médico da cultura”; em contrapartida, se afastou decididamente do projeto estético político wagneriano e da filosofia de Schopenhauer que subjazia a ele. Após romper com essas influências de juventude, Nietzsche reavaliou sua interpretação da modernidade, com isso deixou de criticar o Iluminismo en bloc e passou a distingui-lo em dois tipos de Iluminismo. O primeiro, abominado por Nietzsche, era revolucionário, ingênuo, disruptivo e violento, inspirado por Rousseau, era radical e visava promover transformações políticas e sociais abruptas (1886a, aforismo 463). O segundo Iluminismo, mais sóbrio e tranquilo, inspirado em Voltaire8 8 Vale notar que Humano, demasiado humano I, publicado em 1878, é o livro que inaugura o período intermediário da obra de Nietzsche e foi originalmente dedicado ao “grande seigneur do espírito Voltaire” (1889a, humano demasiado humano, 1), porém Nietzsche retirou mais tarde essa dedicatória. , apenas “lentamente”, como “progressiva evolução” transformaria costumes e instituições. A esse último, Nietzsche exortou seus leitores a avaliar a possibilidade de “chamá-lo de volta!” (1886a, aforismo 463)NIETZSCHE, Friedrich. Menschliches, Allzumenschliches I. Leipzig: Verlag von E. W. Fritzsch, 1886a. (Humano, demasiado humano I). Disponível em: Disponível em: http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/MA-I Acesso em: 15 abr. 2020.
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. Em consonância com essa virada Iluminista, Nietzsche arrefeceu sua crítica às ideias políticas modernas. Segundo ele, uma das consequências do Iluminismo era a doutrina da “soberania do povo”, ou, a “democracia moderna”. Ela surge em oposição ao “governo tutelar” que, em aliança com a religião, vê a si mesmo como líder de uma multidão menor de idade. Essa simbiose entre governo e religião, cara ao direito natural divino, ensinou Nietzsche, é paulatinamente desgastada pela propagação do Iluminismo; cai, assim, a crença na “ordenação divina das coisas políticas”. O Estado perde com isso sua aura mística e os indivíduos passam a ter uma relação meramente utilitária com ele, vendo apenas o que lhes pode ser útil ou prejudicial e disputando entre si para aumentar sua influência e retirar o máximo de benefícios sobre ele. Nietzsche avaliou que as consequências dessa situação eram ainda incertas, mas que provavelmente levariam a mais instabilidade política, disputa entre grupos civis por parcelas de poder do Estado, surgimento de partidos políticos e grupos de interesse, etc. Porém, mais que um fatalismo resignado, esboçou comedido otimismo a respeito das mudanças, em particular, com o princípio do “auto interesse” individual. Afinal, como disse Nietzsche, a história humana já viu a ascensão e a queda de diversos tipos de princípios organizadores da vida política, seja o clã hereditário ou a família, logo, dado que a “astúcia e o auto interesse” (Klugheit und Eigennutz) são as “características mais desenvolvidas” dos homens, uma nova forma de governo, e não o “caos” (1886a, aforismo 472), deveria surgir do auto interesse como fundamento organizativo. Fica claro que o filósofo toma parte no que podemos classificar como um Iluminismo moderado e se torna aqui mais aberto do que em sua juventude ao princípio do direito individual que está no fundamento filosófico e jurídico liberal e se desenvolve na esteira de conceitos como a “soberania do povo”, a doutrina do “auto interesse” e a “democracia moderna”.

Contudo, nosso filósofo da cultura adota em sua maturidade uma retórica veementemente crítica à modernidade e seus ideais políticos, dentro da qual abarca seu projeto de crítica aos valores. De modo que as duas pontas de sua obra, juventude e maturidade, tocam-se nesse ponto. Pretendemos esclarecer, de modo compreensivo, essa posição do velho Nietzsche e como surge daí a crítica ao liberalismo moderno. A começar pelo signo que marca a modernidade, a morte de Deus.

O “evento monstruoso”, diz Nietzsche, que marca o espírito moderno e sua tábua de valores é a morte de Deus. Nietzsche faz o anúncio fúnebre ser declarado pela primeira vez pela figura do Louco, que é mal compreendido e tornado objeto de desprezo e escárnio por parte de seu público, vale notar que sua audiência era formada por muitos “que já não acreditavam em Deus”. Por que os ateus riram do desespero do louco frente ao Deus morto? Como Nietzsche esclarece mais a frente, “os acontecimentos precisam de tempo, mesmo depois de terem ocorrido, para serem vistos e ouvidos” (1887, aforismo 125)NIETZSCHE, Friedrich. Die Fröliche Wissenschaft. Leipzig: Verlag von E. W. Fritzsch, 1887. (A gaia ciência). Disponível em: Disponível em: http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/FW Acesso em: 15 abr. 2020.
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, ou seja, as consequências de tal fato ainda não chegaram aos olhos e ouvidos daqueles homens. Tal como o bobo da corte de Rei Lear, o louco nietzschiano é o mais lúcido entre os seus, assim, sua tolice é a máscara de sua face extemporânea que reflete os efeitos vindouros da crise espiritual de seu tempo.

Por que “Deus está morto”? Qual a causa de tanta preocupação do filósofo? Eis uma pergunta fundamental, pois nem o Zaratustra, nem a passagem do Louco, nos quais Nietzsche introduz o tópico, tratam o assunto em seus pressupostos mais básicos. Por trás do slogan, hoje corrente em filmes, livros, camisetas e refrões de músicas tristes, não se encontra uma mera declaração de ateísmo pessoal, nem mesmo uma celebração do fato. Antes, a constatação da morte de Deus funda-se em uma visão compreensiva a respeito da situação espiritual do Ocidente. Primeiro, Nietzsche parte de uma concepção de cultura na qual os valores e ideais compartilhados têm a primazia, por isso, Z ensina que não há “poder” na terra maior que o “bem e o mal”, isto é, os valores que orientam um “povo” (1883, parte I, seção 15)NIETZSCHE, Friedrich. Also sprach Zarathustra: ein Buch für Alle und Keinen. Chemnitz: Verlag von Ernst SchmeitENr, 1883. (Assim falou Zaratustra). Disponível em: Disponível em: http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/Za-I Acesso em: 15 abr. 2020.
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. No entanto, a tradição Ocidental, devido a qualidades intrínsecas, leva à desvalorização de todo ideal superior. Assim, Nietzsche não se refere apenas à tradição judaico cristã, mas à tradição socrático-platônica que a antecede, o cristianismo é, afinal, o “platonismo para o povo” (1886b, prólogo). O cristianismo, enquanto religião pós-filosófica, pretendeu conciliar dois impulsos, a razão e a fé, e incorporou, na tentativa de superá-lo, o discurso filosófico.9 9 Para análise detalhada sobre o balanço de Nietzsche das duas raízes da tradição Ocidental, filosófica e religiosa, e sua relação de incorporação e diferença, ver Pangle (1983). Mas, a vontade de verdade, a probidade intelectual, acabou, em última instância, por levar ao que Nietzsche chamou de “autossuperação da moral” (Selbstüberwindung der Moral) (1886b, aforismo 32). A probidade intelectual, uma das principais virtudes, segundo Nietzsche, compromete a crença na “invenção platônica da mente pura” capaz de contemplar as ideias absolutas e imutáveis de Platão, assim como corrói as bases da fé católica (1886b, prólogo).

É, portanto, diria Nietzsche, em função dessa reavaliação crítica de toda tradição de nosso pensamento que podemos compreender o porquê de Deus não ter, por assim dizer, simplesmente morrido de causas naturais, mas que nós o tenhamos matado. A busca pela verdade resultou no historicismo, que o jovem Nietzsche descrevera como “o ensinamento do devir soberano, da fluidez de todos os conceitos” (1874, seção 9)NIETZSCHE, Friedrich. Unzeitgemässe Betrachtungen: Von Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben Leipzig: Verlag von E. W. Fritzsch, 1874. (A segunda consideração extemporânea). Disponível em: Disponível em: http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/HL . Acesso em: 15 abr. 2020.
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, ou seja, essa doutrina expõe o caráter relativo e contingente de todos os conceitos compartilhados de bem, justiça, Deus, além vida e alma. Nietzsche não argumenta que o historicismo é apenas uma visão, uma perspectiva arbitrária, mas, mais precisamente, tratou-o como um “ensinamento que tomo como verdadeiro, mas mortal” (1874, seção 9). Mortal porque desestabiliza as crenças fundamentais à vida, à existência individual e social; assim, caso a doutrina do historicismo seja “por mais uma geração empurrado sobre o povo”, alertou Nietzsche, “ninguém deve se impressionar, caso o povo se desfaça em pequeneza e miséria egoísta, em ossificação e auto interesse, e antes de tudo desmorone e deixe de ser um povo” (1874, seção 9). A despeito de muitos acreditarem que Nietzsche é uma espécie de advogado do relativismo do historicismo, o filósofo da cultura reconheceu antes essa situação, pois levou às últimas consequências o historicismo, que implicou uma crítica radical ao idealismo alemão e à noção de uma teleologia, um desenvolvimento moral, introjetado no sentido histórico (MOURA, 2005MOURA, Carlos. Nietzsche: civilização e cultura. São Paulo: Martins Fontes, 2005., p. 24). Além disso, não encarou com otimismo ingênuo, mas com senso agudo dos dilemas desencadeados dessa problemática que desenvolveu sobre o título da “morte de Deus” ou niilismo.

Em seu Zaratustra, Nietzsche explora as consequências da morte de Deus para o destino da humanidade. Frente à situação de crise espiritual, Zaratustra desce aos homens para ensinar sua doutrina a respeito dos valores. Afinal, segundo Z, “ao redor dos inventores de novos valores gira o mundo - de modo invisível ele gira” (1883, prólogo)NIETZSCHE, Friedrich. Also sprach Zarathustra: ein Buch für Alle und Keinen. Chemnitz: Verlag von Ernst SchmeitENr, 1883. (Assim falou Zaratustra). Disponível em: Disponível em: http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/Za-I Acesso em: 15 abr. 2020.
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. Assim, Z desce à cidade mais próxima onde profere seu discurso exortativo ao povo, na praça pública. “O homem”, ensina Z, “deve ser superado”, porque ele é “uma corda entre o animal e o super-homem” (1883, prólogo). Z prossegue elencando as virtudes necessárias para atingir esse fim, que consistem no autodesprezo e auto sacrifício em função de uma tarefa superior. Apenas com esse esforço de indiferença ao próprio conforto e bem-estar pode-se criar o caminho para o super-homem, pois a dureza é pré-requisito para a criação, na medida em que os criadores de novos valores, esses redentores da humanidade, veem a si mesmos e ao homem como matéria bruta sobre a qual tem de imprimir alguma forma. Esse processo fica mais claro no primeiro discurso de Zaratustra, no qual ele narra as três metamorfoses do espírito. O imperativo inicial do “tu deves” da tradição cristã se transmuta na vontade que afirma o “eu quero”, capaz da força libertadora de negar a força milenar da moral do dever. A força da negação é ainda uma preparação para a verdadeira criação e “dizer-sim”, que se realiza na inocência do “eu-sou”, capaz então de dar forma a si mesmo. Não obstante, o esforço em ensinar os homens do mercado é vão, o povo escarnece e se ri de Zaratustra.

Desapontado com a reação do povo, Z opta por uma segunda tática retórica. Ao invés de apresentar o mais alto ideal, o Übermensch, ele apresenta o ideal oposto, o letzte Mensch, último homem, como alternativa rebaixada derivada do evento fundamental da morte de Deus. Um tipo apequenado e satisfeito que acredita ter encontrado a felicidade. Sua felicidade consiste nas condições perfeitamente pacíficas da condição de bem-estar, conforto e segurança, para o que tudo aquilo que envolve risco e perigo é loucura e parece como coisa de um passado longínquo, em função disso ele deixou os locais “onde é difícil de viver”. Seu contentamento está no viver em um mundo tecnicamente controlado, organizado pelas relações de troca e produção, no qual pode saciar sua mais alta paixão, o gosto pelo entretenimento, pois ele tem seu “pequeno prazer pelo dia e seu pequeno prazer pela noite: mas cuida para não estragar a saúde”. O último homem entende a si mesmo como o suprassumo e final da história, todos os ideais de outrora não passaram de insanidade e quem pensa de modo diferente vai “espontaneamente para o sanatório” (1883, prólogo). Ao fim desse discurso, para a surpresa de Z, o povo do mercado gritava e zombava: “nos dê esse último homem, oh Zaratustra”. Amargurado e perplexo, Z decidiu que aquela era a última vez que se dirigia ao povo, daí em diante todos seus ensinamentos são dirigidos aos discípulos.

Podemos sumarizar o argumento de Nietzsche como se segue. O homem é guiado por valores, que o orientam a respeito da questão acerca de qual é o modo de vida correto. Esses valores carecem de suporte em Deus, ou na Natureza das coisas. A filosofia e a ciência modernas não podem se desviar desse fato, o historicismo, a probidade intelectual, a morte de Deus e o niilismo se entrelaçam na consciência de profunda carência ontológica. Face ao nada, despontam dois caminhos distintos, a criação de novos valores ascendentes - pois os valores não passam de criações humanas - ou o hedonismo rasteiro dos últimos homens que, na falta do guia e de sentido superior, não anelam por um tipo de vida guiada por algo além do horizonte utilitarista e filisteu. Começamos a perceber a tensão entre Nietzsche e as ideias políticas modernas, quando consideramos que, para o filósofo, o último homem se torna uma espécie de ideal da civilização, o ideal normativo de vida.

Em seu Além do bem e do mal, Nietzsche investiga a questão de um modo mais voltado ao seu tempo. É justo aqui em que o filósofo foi mais incisivo em sua posição a respeito dos ideais políticos modernos. Segundo Nietzsche, os “escravos eloquentes e propagandistas do gosto democrático e suas ‘ideias modernas’” são os “niveladores”. O fim a que se prestam é a “felicidade dos pastos verdes de rebanho, com sua segurança, ausência de perigo, conforto e facilitação da vida para todos” (1886b, aforismo 44). Nessa categoria estão inclusos os anarquistas, socialistas e outros democratas (1886b, aforismo 202), que não obstante a divergência a respeito dos meios para atingi-lo são unânimes a respeito daquele fim. Esses homens das ideias modernas são confundidos com “espíritos livres” e assim se consideram. Certamente poderiam entoar a máxima de Voltaire écraisez l’infâme, pois são ateus. No entanto, no que tange à moral, “o movimento democrático é herança do movimento cristão” (1886b, aforismo 202). Deus morreu, mas os valores cristãos permanecem de forma sub-reptícia. O ressentimento travestido de igualitarismo não perdeu sua força, e a moral da compaixão permanece a serviço do democratismo e segue o “imperativo do temor de rebanho: ‘nós queremos que algum dia não haja mais nada a temer!” (1886b, aforismo 201).

Contra os falsos espíritos livres, Nietzsche exortou a vinda de novos filósofos, os filósofos do futuro. Estes, diz Nietzsche, carregam um conhecimento e uma tarefa diferentes daqueles das ideias modernas, pois sabem em que condições “a planta ‘homem’ cresceu com mais força às alturas”, isto é, em condições opostas [àquelas da ‘universal felicidade de rebanho’]”, nas quais “o perigo de sua situação tinha de crescer enormemente, sua força de criação e transformação (seu “espírito”), tinha de se desenvolver, sob grande pressão e coerção, em algo mais refinado e audaz” (1886b, aforismo 44). Não nos parece que Nietzsche advogue em favor do retorno ao bellum omnium contra omnes hobbesiano, nem a uma simples visão do darwinismo social de seleção natural daqueles capazes de vencer sobre os outros; antes Nietzsche defende um aspecto da vida ameaçado pelos ideais unânimes modernos, pois lhe parece que uma vez que se concretize em sua plenitude o reino dos últimos homens, uma parte significativa da vida humana estará comprometida, justamente aquela que exige coerção, disciplina e dureza. Desse ponto de vista, Nietzsche é um pensador que visa a justa medida e que denuncia a hybris moderna. Afinal, o princípio nietzscheano da “economia geral da vida” reza que certos aspectos considerados maus do ponto de vista moral como “ódio, inveja, cobiça, aspirar ao domínio” devem, por vezes, ser não apenas tidos como necessários, mas até ser “intensificados, caso a vida deva ser intensificada” (1886b, aforismo 23).

A demanda securitária moderna, o ideal unânime, materializa-se no projeto de controle da natureza, a fim de acabar com qualquer possibilidade de sofrimento, de restringir o acaso e tornar o mundo um safe space global e está em tensão com a intensidade, o risco e o devir. O critério vida é fundamental, Nietzsche o utilizou anteriormente para medir o perigo da verdade do historicismo para a “vida” (1874, seção 9), e o retoma sob a forma da “economia global da vida”. Mais, Nietzsche, como psicólogo e médico da cultura, localiza esse impulso reativo de controle da vida ao pathos do ressentimento, da fraqueza e da moralidade escravas demasiado sensíveis e psicologicamente abatidas, como fica evidente em sua Genealogia da moral. Nietzsche identificou essa tendência neurótica na civilização moderna. O avanço do controle em nome do bem-estar ameaça a potência da vida. Autores como Simmel, Weber, Ortega y Gasset, Freud, Heidegger, Foucault, entre outros críticos do racionalismo, da técnica e do niilismo, devem muito a Nietzsche nesse ponto.

Na única passagem em que se refere diretamente ao termo liberalismo em suas publicações, Nietzsche ataca a noção de liberdade liberal, na medida em que liberdade é medida segundo o critério da “felicidade”. Novamente essa noção de liberdade deriva de um pathos, um instinto decadente: “o nivelamento de montanhas e vales elevado à condição moral, [que] tornam o homem covarde, apequenado e lascivo” (1889b, aforismo IX, 38)NIETZSCHE, Friedrich. Götzen-Dämmerung. Verlag von C. G. Naumann, 1889b. (O crepúsculo dos ídolos). Disponível em: Disponível em: http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/GD Acesso em: 15 abr. 2020.
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. Nietzsche coloca em xeque a base da teoria moral do liberalismo, o individualismo hedonista, ou utilitarista, “que mede o valor das coisas segundo prazer e dor, ou seja, segundo condições e estados secundários” (1886b, aforismo 225). A despeito de não a negar enquanto uma possível verdade, ele a tem como uma verdade para “cabeças medíocres”, como as de Darwin, Mill e Spencer, algo, segundo ele, tipicamente inglês, como a origem das “ideias modernas” em geral (1886b, aforismo 253). Nietzsche ataca o utilitarismo, por, ao menos, duas razões, primeiro porque ele se funda, se não em uma mentira, ao menos em uma verdade pobre, ao passo que perde de vista quanto bem-estar os homens são capazes de sacrificar para fins que o transcendem. Segundo, porque essa premissa de natureza contém um ideal normativo, o ideal da segurança, o auto interesse e o conforto, e a noção de liberdade como ausência de sofrimento. Ou seja, ela esconde uma doutrina moral respectiva ao tipo fraco que a emite (1886b, aforismo 260). Ora, a isso Nietzsche opõe sua própria noção de liberdade, como “a superação de resistências”, associada à conquista, ao agonismo e ao conflito. A vontade de poder ascendente busca aquilo que tem que superar. Nietzsche atribui essa noção positiva de liberdade, no limite, às aristocracias de Roma e Veneza e a associa a homens como César e Napoleão (1889b, aforismo IX, 38).

Nietzsche novamente se coloca como advogado polêmico do “mal”, da vontade de domínio, poder, ambição e fama. Pois o que seria da “economia global da vida” sem o “mal”? Nessa linha, Nietzsche defende também “a tirania” sobre a natureza contra o laisser aller utilitarista10 10 Para um aprofundamento desse ponto, ver COSTA(2020). (NIETZSCHE, 1886bNIETZSCHE, Friedrich. Jenseits von Gut und Böse. Leipzig: Druck und Verlag von C. G. Naumann, 1886b. (Além do bem e do mal). Disponível em: Disponível em: http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/JGB Acesso em: 15 abr. 2020.
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, aforismo 188). Toda moral é uma espécie de “tirania contra a ‘natureza’ e a ‘razão’”, o que não caracteriza uma objeção contra a moral, diz Nietzsche. Kant se engana ao derivar a moral da Razão, assim como os utilitaristas, com sua psicologia hedonista e os anarquistas e seu anseio por liberdade de espírito. Justamente certa coação da alma, a imposição de forma e de arbítrio, permite a criação artística, a ciência e a filosofia, pois aquilo que é elevado exige o disciplinamento e hierarquização daquilo que é meramente dado como a natureza (NIETZSCHE, 1886bNIETZSCHE, Friedrich. Jenseits von Gut und Böse. Leipzig: Druck und Verlag von C. G. Naumann, 1886b. (Além do bem e do mal). Disponível em: Disponível em: http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/JGB Acesso em: 15 abr. 2020.
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, aforismo 188). Mas a moralidade democrática moderna e sua hybris compassiva toma isso como uma violência, uma fonte de sofrimento, logo, algo a ser abolido. Uma dissolução geral de critérios e hierarquia. A democracia da liberdade permissiva, da tolerância, não o regime da virtude.

Em suma, Nietzsche compreendeu o liberalismo enquanto parte de um processo mais amplo, como manifestação das ideias políticas modernas ou do movimento democrático moderno. Além disso, localizou a motivação central do projeto moderno, enquanto herdeiro do movimento cristão, como a tentativa de aniquilar o sofrimento, incluso aí sua tendência hedonista e igualitária. Mas pareceu a ele que existe uma tensão entre esse projeto e as demandas fundamentais da vida. Nesse sentido, Nietzsche colocou-se como advogado do sofrimento e do acaso e seus exageros retóricos, o elogio à guerra, à dor e à penúria, são armas polêmicas contra o pathos compassivo, uma forma de provocar a sensibilidade, no intuito de afetar o leitor. O paradoxo é que Nietzsche o faz por um tipo de compaixão11 11 Notar que Nietzsche coloca a simpatia, sua forma de compaixão, como uma das quatro virtudes essenciais (NIETZSCHE, 1886, aforismos 260; 284). Para a análise da natureza da compaixão nietzschiana ver Lampert (2001, p. 71). , segundo ele, trata-se de “compaixão contra compaixão”. “Nossa compaixão”, disse Nietzsche, “é uma compaixão mais elevada e circunspecta: - nós vemos como o homem se apequena, como vocês o apequenam” (1886b, aforismo 225). Isto é, a simpatia (Mitgefühl) nietzschiana difere da compaixão (Mitleid) moderna não por falta de amor à humanidade, mas porque seu amor se dirige à promessa contida no homem, e não à natureza mais pedestre, do último homem.

A despeito do estudo simpático a Nietzsche aqui proposto, não podemos deixar de lembrar que sua oposição enfática à democracia moderna influenciou mais de um movimento radical e que seu elogio à guerra e à dureza ecoaram no problemático contexto da frágil república de Weimar. Nietzsche, em sua obra madura, passou longe de temperar sua crítica à democracia moderna com a prudência política, tal como fizera, por exemplo, Tocqueville (2014, p. 400)TOCQUEVILLE, Alexis. A democracia na América. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014. que alertou aos “amigos da liberdade e da grandeza humana” acerca dos males que a era da igualdade trazia, sem, no entanto, deixar margens de inspiração para subversões radicais e revolucionários de regime. Na última seção do artigo, voltaremos a considerar essa problemática.

Schmitt e a crítica ao liberalismo

Assim como Nietzsche, Schmitt tomou a modernidade como um problema. A despeito de não ser um “discípulo direto de Nietzsche”, Schmitt incorporou aspectos da “crítica nietzschiana”, tais como o abandono da crença na “racionalidade da história” e da “fé no progresso na democracia liberal” (GALLI, 1996GALLI, Carlo. Genealogia della política: Carl Schmitt e la crisi del pensiero politico modierno. Bologna: Il Mulino, 1996., p. 130). Fato que não surpreende se considerarmos, como demonstrou Mohler, a ampla presença de Nietzsche no ambiente intelectual conservador revolucionário alemão da época. Outros ainda tomam por certo que as afinidades foram mediadas por Weber que, além de ser a maior influência intelectual de Schmitt, “era um devoto de Nietzsche” e “redimensionou a crítica de Nietzsche à racionalidade Iluminista em uma crítica da racionalidade técnica” (MCCORMICK, 1999MCCORMICK, John. Carl Schmitt’s critique of liberalism. Cambridge: Cambridge University Press, 1999., p. 84-85). Contudo, Schmitt apresenta uma visão singular do fenômeno, na medida em que se preocupou, sobretudo, com o problema da “teologia política”, que nutriu ao longo de toda vida. Em particular, debruçou-se sobre a questão de como ao longo dos últimos séculos da história do espírito Ocidental tal problemática teológica política se desenvolveu no sentido da neutralização e despolitização, cujas consequências lhe pareciam catastróficas, pois caminhavam para a ignorância da natureza do político e da mais terrível falta de sentido e corrupção humanas encarnadas na era da técnica. O liberalismo, para ele, é um estágio deste grande processo histórico. Entender, pois, a crítica schmittiana ao liberalismo equivale a compreender o processo de neutralização e secularização modernos que o engendram.

Através de uma profunda análise da história, nomeada por comentadores de “genealogia da política”, “genealogia da normatividade”, ou ainda “teologia política”, Schmitt apresentou sua visão compreensiva acerca do processo pelo qual se realiza o fenômeno de neutralização (Neutralisierung). Esse modo de compreender a história é guiado pela dinâmica de “sucessão de etapas dos espaços centrais transitórios” (Die Stufenfolge der wechselnden Zentralgebiete) (SCHMITT, 1932, p. 67). O “espaço central” é o que se conhece de modo mais brando como o “Zeitgeist”, o espírito do tempo de uma época. Em definição categórica pode-se dizer que o espaço central é uma posição formal que pode ser ocupada por diferentes conteúdos, em função dos quais se determinam as aspirações e os horizontes normativos espirituais, sociais e jurídicos de determinadas épocas. Mas, sobretudo, é a partir daí que se determina o critério de corte do político, isto é, quem é o amigo e quem é o inimigo (SCHMITT, 1932, p. 74).12 12 Não por acaso Schmitt utiliza o adjetivo “maßgebende”, ao referir-se à área central, desta feita, unindo o subtantivo Maß = medida, e o adjetivo geben = dar, formando, portanto, algo como “aquilo que dá a medida”. Sua natureza é “transitória”, na medida em que sua essência é fundamentalmente histórica, condicionada pela contingência e historicidade.

Assim, argumentou o jurista, a história europeia passou por quatro grandes transmutações de estágios do espaço central, nos últimos séculos, do “teológico ao metafísico, daí para o humanitário-moralista e finalmente para o econômico” (SCHMITT, 1932, p. 74). Schmitt reconheceu ainda o caráter plural das áreas centrais, atestado pelo fato de que em uma mesma época, em um país, e até em uma mesma família, podem conviver lado a lado diferentes posições. Argumentou Schmitt que sua tese demonstra o “fato concreto” de que ao longo dos últimos quatro séculos de história europeia

as elites dirigentes mudaram, que a evidência de suas crenças e argumentos alteraram-se constantemente, assim como o conteúdo de seus interesses espirituais, o princípio de suas ações, o segredo de seu sucesso político e a prontidão das grandes massas de deixarem-se influenciar por determinadas sugestões (1932, p.68).

Desse modo, o século XVII rompe com a teologia e dá lugar aos grandes sistemas metafísico-naturalistas fundados no conhecimento da ciência natural, matemática e astronômica, de pensadores como Galileu, Descartes, Hobbes, Spinoza, Newton e Bacon, heróis do racionalismo ocidental. O século XVIII, por sua vez, deixou de lado a metafísica e, apoiado em uma religiosidade deísta, foi uma “vulgarização em grande estilo” (SCHMITT, 1932, p. 69) do anterior, apropriou-se das grandes descobertas e se inclinou ao Iluminismo e ao humanismo moral, foi o tempo das construções morais de Rousseau e Kant, do “sapere aude”. O século XIX é um século “híbrido” entre “tendências estético-românticas e econômico-técnicas”. No entanto, o “consumo e o gozo estético” romântico, no qual Schmitt incluía Nietzsche, foi apenas um “estágio intermediário” entre o moralismo do XVIII e o economicismo do XIX, ele apenas prepara aquela “constituição do espírito que encontra nas atividades de produção e consumo as categorias centrais da essência humana” (SCHMITT, 1932, p.70). O economicismo desponta, portanto, como forma mais acabada do espírito novecentista.

O liberalismo, segundo Schmitt, é um dos filhos do economicismo. A doutrina liberal deriva seus conceitos da combinação de dois princípios fundamentais. De um lado, o “pathos ético”, o individualismo, e, de outro, a “objetividade materialista economicista” (SCHMITT, 1932, p. 58). Decorre do primeiro, analisou Schmitt, que o indivíduo se torna o “terminus a quo e o terminus ad quem” (1932, p. 57), ou seja, o princípio e fim últimos. Logo, tudo aquilo que parece ameaçar o espaço da liberdade individual é considerado danoso e deve ser controlado e restringido. O Estado deve ser separado em um sistema de poderes autolimitantes, a religião deve se submeter ao crivo da consciência de cada um, a guerra deve ser abolida, na medida em que impõe o risco de vida em nome de um interesse extra individual, e o direito é direcionado ao direito privado e de propriedade. O antagonismo e o conflito políticos são reduzidos à eterna concorrência no âmbito econômico e à incessante discussão na esfera política.13 13 A crítica schmittiana à neutralização, vale dizer, tem servido ao repertório teórico daqueles cujo intuito é atacar correntes do pensamento liberal que desde os anos 70 se estabeleceram no cenário acadêmico sob os nomes de John Rawls e Jürgen Habermas. Ver Mouffe (2006) e Dyzenhaus (1997). . O povo politicamente unido é transformado em “público interessado na cultura”, “corpo de funcionários” e “massas de consumidores” (SCHMITT, 1932, p. 58). Ao lado do individualismo ético, o economicismo fundamentaria a doutrina liberal, assim, “um dos poucos dogmas efetivamente indiscutíveis e indubitáveis dessa era liberal” consiste na crença de que a “produção e o consumo, a dinâmica de preços e o mercado tem sua esfera própria que não pode ser dirigida nem pela ética nem pela estética, nem mesmo pela religião e, acima de tudo, menos ainda, pela política” (SCHMITT, 1932, p. 59). Em suma, o liberalismo nega a dimensão do político, enquanto unidade fundamental do povo e do Estado, em nome do individualismo moral e do economicismo. Além de visar, ainda que de modo vão, o fim do conflito político por meio do econômico. Por isso Schmitt afirma que não há propriamente uma “política liberal enquanto tal”, tão somente uma “crítica liberal da política” (1932, p. 57).

Não obstante, o liberalismo analisado enquanto “efetividade concreta do modo de ser político”, a qual não é regida por normas abstratas, mas pelo “domínio de homens ou associações concretas sobre outros homens e associações concretas”, como qualquer outra doutrina, ganha um “sentido político concreto” (SCHMITT, 1932, p. 59). Nesse ponto, de modo similar ao marxista, Schmitt pretende descortinar a dinâmica de poder na qual o liberalismo está enredado. Transparece aí o ressentimento de Schmitt com o tratado de Versalhes, por exemplo. Argumenta, assim, que tal doutrina se presta ao serviço das nações mercantis cujo poder é exercido por meio de pressão e sanções econômicas e, portanto, para as quais a negação da guerra física em favor da suposta paz de mercado é uma estratégia de vitória na guerra política entre as nações, logo serve ao “imperialismo economicista” movido por interesses de domínio e lucro burguês (1932, p. 42).14 14 Embora crítico do economicismo, há quem note semelhanças entre Schmitt e o pensamento liberal de Hayek, sobretudo no que tange à crítica de ambos às vertentes políticas de esquerda no contexto da República de Weimar e faça dessa relação um ponto de partida para refletir acerca da “’afinidade eletiva’ entre a economia de livre mercado e a política autoritária” (SCHEUERMAN, 1997, p.184). Ver também Cristi (1998).

Seguindo a máxima, de acordo com a qual é de bom tom ler um autor pela maneira como ele lia outros autores, podemos levantar a questão a respeito da posição do discurso schmittiano na “efetividade concreta do ser político”. No plano teórico, o contexto efetivo de produção intelectual de Schmitt se desdobra em um período no qual a teoria do Estado de direito europeu vivia sob o impacto do desenvolvimento da democracia de massas e dos partidos políticos (BERCOVICI, 2009BERCOVICI, Gilberto. Carl Schmitt e a tentativa de uma revolução conservadora. In: ALMEIDA, Jorge de; BADER, Wolfgang (orgs.). Pensamento alemão no século XX. São Paulo: Cosacnaify, 2009. v. 1. p. 67-97., p. 69-73). No plano concreto, Schmitt antagonizou contra o pluralismo liberal da república de Weimar. Segundo ele, o parlamento representava uma ameaça ao Estado enquanto unidade política na medida em que os partidos políticos trazem para o interior do Estado a animosidade das facções, dividindo assim o centro da soberania em uma série de partes que defendem interesses particulares, que poderiam levar à instabilidade, à paralisia decisória e, no limite, à guerra civil. Nesse sentido, Schmitt defendeu em seu O guardião da constituição (1931) o presidente do Reich como a “autoridade mediadora”, o poder neutro, que pairaria acima dos outros poderes (2015, p. 162)SCHMITT, Carl. The Guardian of the constitution In: VINX, L (org.). The guardian of the constitution: Hans Kelsen and Carl Schmitt on the limits of constitutional law. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 79-174. (O guardião da constituição).. Apenas essa concepção faria jus, pensava Schmitt, ao princípio democrático da constituição e, com base exatamente nele, defendeu a possibilidade de dissolução do parlamento e a eleição do presidente com base em referendo popular. Desse modo, pode concluir Schmitt que

Ao tornar o presidente do Reich o ponto focal de um sistema de instituições e competências plebiscitárias, que são neutras com relação à política partidária, a presente constituição do Reich pretende, precisamente com base nos princípios democráticos, formar um contrapeso ao pluralismo de grupos de poder sociais e econômicos e preservar a unidade do povo enquanto totalidade política (2015, p. 172, grifo nosso).

A interpretação de Schmitt é quase indistinguível de uma revisão autoritária da constituição. A saída autoritária não era um flerte recente de Schmitt, em seu panegírico ao Estado fascista de Mussolini; em Essência e desenvolvimento do Estado fascista (1929), o jurista já demonstrara suas inclinações. Argumentou então a favor do Fascismo como a força capaz de garantir a unidade do Estado e do povo em oposição ao pluralismo dos interesses econômicos, e contrapor a “dissolução liberal da genuína democracia” (1929, p. 108, apud MEIER, 2011MEIER, Heinrich. The lesson of Carl Schmitt: four chapters on the distinction between political theology and political philosophy. Chicago: University of Chicago Press, 2011., p. 139). Apesar de sua origem spinozina-rousseauniana, Schmitt estava disposto a defender circunstancialmente o princípio democrático, presente na constituição de Weimar, e propriamente político, contra o Estado parlamentar liberal burguês e antipolítico. Sua noção de democracia não tinha a ver com o “método liberal”, centrado no voto de indivíduos atomizados, mas na homogeneidade e unidade política, na aclamação pública, assembleias, e identidade e semelhança entre governantes e governados. Daí sua adesão ao nacionalismo, que em sua forma autêntica, pensava, é fundado na democracia, na soberania do povo (MEIER, 2011MEIER, Heinrich. The lesson of Carl Schmitt: four chapters on the distinction between political theology and political philosophy. Chicago: University of Chicago Press, 2011., p. 142). Note-se que Schmitt defendia essa posição sem fazer ideia da ascensão de Hitler como o Führer, o que não o exime de ter se filiado e emprestado seu nome ao partido nacional socialista alemão após o ocorrido em 1933. De qualquer modo, vemos que o jurista tomou parte em uma espécie de democracia iliberal nacionalista e autoritária, que tinha o fascismo italiano como inspiração.

Contudo, essa constatação é ainda insuficiente para acessar a camada mais profunda da oposição de Schmitt ao liberalismo, pois permanece velado ainda um dos principais fatores que motivou a oposição de Schmitt ao liberalismo e à era da neutralização. Tal fator é aquele que mais obviamente o separa de Nietzsche. Tanto Nietzsche quanto Schmitt criticam o ideal ao qual a modernidade, e o liberalismo, tendiam a encaminhar a humanidade, aquilo que Weber também diagnosticou como os “últimos homens”, “especialistas sem espírito e lascivos sem coração”, os modernos rebentos do processo de racionalização ocidental (2016, p. 172). Nesse sentido, Leo Strauss apontou que Schmitt abominava a leviandade que seria a realização do “ideal da civilização” como o “mundo do entretenimento, um mundo de prazeres, um mundo sem seriedade” (2013, p. 118). Contudo, diferente de Nietzsche, o que movia o teólogo político contra essa tendência presente tanto no liberalismo quanto no socialismo, que no fundo partilhavam a mesma raiz, era sua profunda fé católica. O que nos leva ao derradeiro antagonismo em Schmitt, a “fé versus a neutralização”.

No século XX, segundo o teólogo político, ocorreu a realização mais plena da neutralização sob a insígnia da “técnica”. Nele se desenvolve a “religião do progresso técnico”, isto é, a “religiosidade da maravilha técnica, da conquista e dominação da natureza. A religiosidade mágica transpassa para uma igualmente mágica tecnicidade” (SCHMITT, 1932, p. 70-71). Cada estágio da área central define a resolução dos problemas em decorrência daquilo que é seu cerne. No século XVI, tudo estava resolvido caso a questão teológica estivesse. No século XVIII, dentro da teologia política schmittiana, o progresso era tido enquanto avanço do esclarecimento e da luta contra as trevas. E, no século XIX, é o vigor das relações de troca e consumo que garantem o bem do todo. Já no século da técnica, é a crença no avanço de novas tecnologias e na ampliação da dominação sobre a natureza que encerra a panaceia, ela é uma “metafísica otimista”, fundada “na crença do ilimitado poder e domínio do homem sobre a natureza, também sobre a physis humana” (SCHMITT, 1932, p. 80-81).

A técnica, contudo, não resume a neutralização, mas é apenas sua última expressão, seu cume. Antes, desde sua gênese, os estágios centrais se sucederam no sentido da “busca por um espaço central neutro”. De modo que, pode afirmar Schmitt, “a mais forte e prenhe de consequências” de todas as transições de espaço central foi a que se deu do nível teológico para o metafísico, ou seja, do século XVI para o XVII. Tal ruptura significou a descida de uma ordem transcendente e divina para uma ordem imanente e secularizada (1932, p. 74). Tendência que se intensificou nos estágios decorrentes e conferiu o “motivo fundamental, elementar e simples, determinante de séculos” (SCHMITT, 1932, p. 75, grifo nosso). Como resumiu um intérprete, “a desagregação das bases religiosas da vida coletiva e a dissolução da força pública e totalizadora das referências supramundanas definem a dinâmica específica da história moderna” (FERREIRA, 2012FERREIRA, Bernardo. Exceção e história no pensamento de Carl Schmitt. Revista brasileira de estudos políticos, Belo Horizonte, n. 105, jul.-dez., p. 343-382, 2012. , p. 374). A revolta antiteológica, por sua vez, foi em grande medida motivada pela natureza potencialmente belicosa da religião que se expressou ao longo da história por meio da disputa sectária e, no limite, sangrenta entre fés distintas. Portanto, a teologia tradicional, disse Schmitt, foi abandonada no intuito de se atingir uma área central na qual a “luta cessasse” e prevalecessem a “segurança, evidência, concórdia e paz” (1932, p. 75). A técnica aparentemente garante esse fim, pois, à primeira vista, diferente dos outros espaços neutrais que pretenderam atingir a neutralidade, ela realiza o sonho babelesco de reunir todos os povos, crenças e nações ao redor da superabundância de frutos e confortos trazidos pelas soluções técnicas.

Podemos dizer que para o teólogo-político o resultado da busca pela neutralidade semelharia a uma monstruosa torre de Babel, no sentido do que o também católico Dostoiévski (2015, p. 46)DOSTOIÉVSKI, F. Os irmãos Karamázov. 3 ed. São Paulo: Editora 34, 2015. resumiu como o projeto dos “ateus e socialistas” isto é “a questão da torre de Babel construída precisamente sem Deus, não para alcançar o céu a partir da Terra, mas para fazer o céu descer à Terra”. E tal qual a torre de Babel bíblica, falha também o projeto de neutralização. O fito de dissolver o conflito político e o antagonismo que moveu o processo secular da neutralização naufraga na medida em que no seio de cada espaço neutro surgiu sempre uma nova configuração do conflito político. O economicismo, por exemplo, que buscou dissolver o político no âmbito do individualismo e do materialismo econômico, viu nascer de seus princípios o antagonismo de classes. A técnica, do mesmo modo, a despeito da aparente neutralidade, pode ser utilizada tanto para fins de paz quanto de guerra. Da própria natureza vazia da tecnicidade, isto é, sua religiosidade do nada espiritual, decorre que possa ser apropriada para qualquer fim, assim, ela “pode ser revolucionária ou reacionária, servir à liberdade ou à coerção, à centralização ou à descentralização” (SCHMITT, 1932, p. 78), seu nada espiritual a torna instrumento para “intensificar a guerra ou a paz, ela está preparada de igual modo para ambos” (SCHMITT, 1932, p. 81). Logo, como ocorreu nos estágios do espaço central anteriores, a técnica também falha em eliminar o político em sua dimensão conflitiva. E, mais que isso, devido ao seu controle ampliado sobre a physis humana e natural, a técnica encerra em si um perigosíssimo veículo de destruição.

Decorre, como dissera Schmitt em sua Teologia política, em consonância com Donoso Cortés, que “com o [âmbito] teológico desaparece também o moral, com o moral desaparece a ideia política, e toda distinção moral e política se paralisa em uma imediata e paradisíaca mundanidade da vida natural e da carnalidade destituída de problemas” (SCHMITT, 1934SCHMITT, Carl. Politische theologie. 2 ed. Berlin: Duncker & Humblot, 1934. (Teologia política)., p. 82). Sob essa luz, ganha novo contorno o fato de que nosso teólogo político argumente que a transição “mais forte e prenhe de consequências” tenha sido aquela que desencadeou o abandono do espaço central teológico em direção a cada vez mais intensas secularizações. Em contraponto ao desencantamento encarnado na fé da neutralidade economicista, a religião da tecnicidade, Schmitt se posicionou sempre ao lado do catolicismo.15 15 A título de honestidade intelectual, cabe notar que alguns intérpretes questionam a sinceridade da fé de Schmitt e se em seu íntimo não tinha lá seus relapsos no ceticismo. Afirmam isso em vista dos elogios de Schmitt à articulação político pragmática do “mito nacional” ou de seu apreço por Sorel, o teórico do mito político “original e rico de ideias” (SCHMITT, 1998, p. 27), de modo que seu catolicismo não seria substancial, mas apenas tática circunstancial. Ver Fraenkel (1969) e Mccormick (1999). Para o problema do niilismo, esse “nada cultural ou social” (SCHMITT, 1932, p. 80), o jurista encontrou solução na moralidade substantiva e unificadora do catolicismo. À luz disso, a afirmação do político e dos critérios de amizade e inimizade, isto é, critérios que dependem de determinada concepção de bem, podem ser compreendidos dentro do empreendimento teológico político de reabilitação da fé.16 16 Nesse sentido, observou Meier (2013, p. 91), é notório que Schmitt se autocaracterizou como “o Epimeteu cristão” (der christliche Epimetheus), cujo inimigo principal era o Anticristo em sua forma de neutralização (MEIER, 2011, p. 134-135). Mais, acrescenta Meier, “o que separa o historicismo do epimeteu cristão do historicismo de um Croce ou um Collingwood é o ‘conhecimento íntegro’ do sentido e do destino do drama que encerra o movimento da história mundial”. Ou seja, o que “tão somente separa, mas que decisivamente separa” o seu historicismo do historicismo dos liberais de seu tempo é “a fé de Schmitt”, o catolicismo (2013, p. 92) Dentro desse arcabouço intelectual se evidencia em sua integralidade o escopo da crítica schmittiana ao liberalismo.

A adesão do teólogo político ao nazismo e ao fascismo não está em descompasso com a fé cristã na história; já em seu Catolicismo romano e forma política (1923), ele afirmara a capacidade de adaptação e aglutinação do catolicismo a respeito de diferentes situações, contextos políticos e acidentes históricos. A cada época é dada à igreja a fatalidade de escolher por alguma posição no campo das disputas políticas, assim, “na primeira metade do século XIX” a igreja se posicionou “ao lado contrarrevolucionário”, de Visconde de Bonald, Donoso Cortés e Joseph de Maistre. Já, na metade seguinte do século, a igreja se posicionou “mais próxima de Mazzini do que do socialismo ateu do anarquista [Bakunin] russo” (SCHMITT, 1998SCHMITT, Carl. Catolicismo romano e forma política. Tradução de Alexandre de Sá. Lisboa: Hugin Editores, 1998., p. 49-50). Surpreendente assertiva de Schmitt, dado que o italiano Mazzini era um “maçom”, e a maçonaria foi, no século XVIII, o “último opositor” do catolicismo (1998, p. 47), o que mostra as dificuldades implicadas na decisão inevitável do catolicismo. Porém, na década que segue desse escrito até a filiação de Schmitt ao partido, uma nova alternativa surge no campo de forças políticas, o fascismo italiano e o nacional socialismo alemão, nos quais Schmitt vislumbrou, como vimos, a capacidade de resistir à despolitização, fragmentação e economicismo, presentes tanto no liberalismo quanto no socialismo. Desse modo, não apenas ele, mas outros teólogos políticos seguiram a mesma senda, Emanuel Hirsch, Friedrich Gogarten, além de amigos teólogos de Schmitt, como Hans Barion e Paul Althaus (MEIER, 2011MEIER, Heinrich. The lesson of Carl Schmitt: four chapters on the distinction between political theology and political philosophy. Chicago: University of Chicago Press, 2011., p. 149).

Em suma, de acordo com o que analisamos, segundo a perspectiva de Schmitt, o liberalismo é uma expressão do processo mais amplo de neutralização. Enquanto tal, ele busca negar a essência conflitiva do político. Todavia, está fadado ao fracasso, pois a natureza do político triunfa a cada nova tentativa de restringi-la. Portanto, a linha desse argumento é de que existiria uma incompatibilidade fundamental entre os fins do liberalismo e a própria natureza do político. Ademais, a rejeição de Schmitt ao liberalismo não se resume a incongruência entre seus propósitos e a realidade, mas ganha traços de uma crítica normativa e propriamente moral, na medida em que se dirige à qualidade do tipo de vida que este regime visa promover. O materialismo economicista e a ética individualista, pilares do liberalismo, tendem a privilegiar, segundo vimos, na perspectiva de Schmitt, um modo de vida hedonista e obtuso, para o qual a experiência romântica do gozo estético individual contribuiu, balizado pela lógica da produção e consumo e do entretenimento mundanos. Nem só de pão vive o homem, uma máxima digna de Schmitt. Por mais que significasse reafirmar o conflito, antagonismo e inimizade, Schmitt o fez em nome de resgatar o traço de dignidade e seriedade da vida humana. O que equivaleu, para ele, a denunciar a metafísica mundana inerente ao processo de neutralização, ou secularização, e reacender a chama da fé. Desse modo, se a história é um palco no qual a “vida luta contra a vida e o espírito contra o espírito” (1932, p. 81), o teólogo político encenou o cruzado na guerra do espírito.

Últimas considerações

Vimos que Nietzsche dirigiu sua potência intelectual, sobretudo, à crítica aos valores modernos. Por isso, rastreou suas fontes em uma moral, um páthos do ressentimento, ao qual levantou seu protesto em nome de um tipo mais nobre de vida. Tal como Rousseau fizera antes dele, Nietzsche levanta um protesto moral contra a modernidade. Fato é que Nietzsche não foi um pensador político em sentido estrito, muito antes foi o “médico da cultura”, ou psicólogo da civilização - o que não significa que suas ideias não tiveram consequências políticas. Isso se deve à falta de uma discussão clara em Nietzsche a respeito das instituições políticas ou econômicas. Quando Nietzsche fala em liberalismo ou democracia, no mais das vezes, não os trata em termos de pesos e contrapesos, regra da maioria, e divisão de poderes. O filósofo procede, segundo lhe é habitual, de modo a encontrar a raiz moral e os valores que fundamentam os regimes. Nietzsche está mais próximo de uma perspectiva clássica que entende os regimes não apenas em sua dimensão institucional, mas como um todo que forma distintos modos de vida. Nesse sentido, como vimos, o liberalismo, ao lado do movimento democrático moderno, aparece ao genealogista como o governo fundado no ideal de um individualismo securitário, voltado à autopreservação confortável e à garantia de bem-estar material.

Uma geração antes de Nietzsche, pensadores como Tocqueville, Emerson, e até mesmo Mill17 17 Ver a tese de Himmelfarb (2018) a respeito da existência de duas doutrinas políticas distintas em Mill, “os dois Mills”, uma, mais célebre que enfatiza a liberdade individual e outra, que se preocupa com a questão da coesão social e da qualidade do espírito público no contexto de avanço democrático. , também reconheceram o drama da era democrática, e as ameaças do igualitarismo excessivo e da paixão pelo bem-estar para a liberdade política e a excelência dos cidadãos. Porém, diferente de Tocqueville, Nietzsche foi incapaz de mostrar uma resposta moderada para os males do individualismo igualitário, distinto de Emerson, não conjugou seu elogio da criatividade e autenticidade com instituições políticas existentes, e, em descompasso com Mill, não apresentou alternativas claras para tentar equilibrar as demandas modernas mais igualitárias com valores como excelência e nobreza das lideranças políticas.

Ao cabo, Nietzsche parece vacilar entre um tipo de individualismo e o platonismo político. Schmitt, por sinal, lia Nietzsche dentro da primeira chave, como um dos três “grandes padres” do romantismo, ao lado de Byron e Baudelaire, cuja doutrina exortava cada indivíduo a ser seu próprio poeta, rei e filósofo, “seu próprio mestre construtor na catedral de sua individualidade” (1968, p. 20)SCHMITT, Carl. Political Romanticism. Cambridge: The MIT Press, 1968. (Romantismo político)..18 18 Evidente que Schmitt avaliava esse aspecto de modo muito crítico, e o entendia como reflexo de uma sociedade desintegrada, burguesa e desesperada diante da desintegração da moral e da religião, que se volta para o indivíduo e sua subjetividade como a primazia sobre o todo (1968, p. 20). Essa veia aproxima Nietzsche de uma ética do auto cultivo, do perspectivismo, e foca em temáticas do espírito livre, do pluralismo, do agonismo, do horizonte institucional e valorativo das democracias liberais.19 19 Diferente do olhar crítico de Schmitt, muitos encontram exatamente aí a força das ideias de Nietzsche. Assim, alguns como Nehamas (1985) e Mattos (2013) se valem dessas reflexões para refletir a respeito do indivíduo e do espírito livre criador de si mesmo. Outros tomam o tema do espírito livre sob uma ótica anarquista, como Lemm (2011) ou Bergmann (1987). Também há a linha agonística que se apropria de temas como conflito, perspectivismo e antifundacionismo a fim de repensar modelos democráticos, Warren (1985), Connolly (1991), Hatab (1995), Owen (1995), entre outros. Por outro lado, como argumenta Strauss (1983)STRAUSS, L. Studies in Platonic Political Philosophy. Chicago: University of Chicago Press, 1983., Nietzsche teve seu momento de “relapso no platonismo”20 20 Lampert (2001) segue na trilha interpretativa de Strauss. Outros intérpretes que reconhecem a sutil relação entre Nietzsche e a herança platônica são Bremer (1979), Müller (2012) e Lopes (2012). , em especial em seu Além do bem e do mal, quando incitou a vinda de “filósofos do futuro”, que exerceriam o papel filosófico-artístico-legislador de criar novos valores e uma nova religião, capazes de guiar a humanidade e redimir a história até então. Essa leitura apresenta um Nietzsche não domesticado, que pode ser caracterizado como defensor de uma aristocracia espiritual e política.21 21 Sobre Nietzsche como um aristocrata radical, ver Detwiller (1990), Dombowsky (2004) e Losurdo (2010). Não obstante, Nietzsche foi vago o suficiente para impossibilitar qualquer transformação de suas ideias em um programa de ação político.

A natureza de homem de ação foi, por sua vez, mais acentuada em Schmitt. Em decorrência, Schmitt se debruçou de modo radical sobre o problema das instituições políticas. Não obstante, o centro moral de sua crítica aos conceitos políticos modernos não foi mero acessório no cosmos de seu pensamento. O centro moral de sua crítica emana do coração da fé. A oposição fundamental, como demonstramos, dá-se, para o teólogo político, entre o caminho da fé e da providência versus o ateísmo e a neutralização. Schmitt manteve de seus heróis intelectuais contrarrevolucionários, Joseph de Maistre, Donoso Cortes, e Visconde de Bonald, a obstinação católica e reacionária. Se perdermos de vista esse núcleo fundamental, nos tornamos cegos a respeito do âmago da reflexão schmittiana. Daí sua preocupação com o liberalismo, enquanto regime no qual o indivíduo é princípio e fim último, de status superior à guerra, ao Estado, ao demos, e à religião. O economicismo, de igual modo, funda-se na noção de que a afluência e o conforto material, pautados na visão mundana-imanente moderna, são a cristalização do processo de neutralização, logo, se insere no movimento de abandono do divino e do transcendente em direção ao que lhe parecia a abominável “torre de Babel”.

Schmitt se colocou desse modo contra as instituições liberais. Em oposição à fragmentação pluralista do Estado que desmancha a unidade do povo, em oposição à confusão dos partidos que cindem o Estado em facções animosas e contra o parlamento que afronta o princípio democrático do presidencialismo, Schmitt tomou partido do nacional socialismo, emprestou sua voz à causa da ditadura, advogou intelectualmente e com afinco em favor do Reich e apoiou medidas antissemitas (sobre as quais jamais se retratou). É devido integralmente a seu esforço que Schmitt tenha logrado o epíteto: “O Jurista do Terceiro Reich”. O jurista considerou o fascismo como a melhor saída entre o anticristo soviético e o Estado neutro liberal. Liberalismo e socialismo eram facetas de um mesmo mal, expressões várias daquele movimento de neutralização que partilhavam o centro metafísico comum. Frente a isso, como vimos, o Schmitt dos anos 20 e 30 optou pela saída nacionalista autoritária, que identificou como a legítima democracia, contra o liberalismo parlamentar da república de Weimar.

Propusemos uma anatomia teórica do antiliberalismo, não como exercício de mero antiquarismo, mas como meio de lançar luz às dificuldades imanentes ao regime liberal democrático, isto é, o governo cuja autoridade é fundamentada na noção de direitos dos indivíduos, cujas leis se fundam na letra da constituição e onde há a separação de poderes. Nietzsche e Schmitt, cada um a seu modo, contribuíram para a descrença nesse governo, no contexto da república de Weimar. Ainda que, nunca é demais relembrar, Nietzsche tenha sido apenas apropriado postumamente para esse desígnio e que provavelmente teria abominado profundamente tal regime. Seria confortável simplesmente negar o que disseram, mas é mais prudente dar ouvido aos críticos. Primeiro, porque nos tornamos mais aptos a nos defender dos ataques. Depois, porque, como é sabido, por vezes, aprende-se mais com inimigos do que com bajuladores.

Assim ambos direcionam nosso olhar para o horizonte normativo, no qual os princípios liberais democráticos estão predicados e demonstram que não se tratam de verdades absolutas e perenes, mas de valores históricos e contingentes. O historicismo acaba por relativizar princípios caros ao liberalismo, supostamente fundados em uma racionalidade universalista, como os direitos naturais e inatos, e o contratualismo. Não surpreende que a teoria política do liberalismo tenha tentado recuperar, com Rawls, elementos da razão contratualista moderna, sobretudo Kant. Um passo para além de nossos autores, e sem incorrer no projeto rawlsiano, contudo, permite concluir que a radical historicidade dos valores convida ao desafio do constante cultivo da ordem, das instituições e dos modos de vida que caracterizam o regime liberal democrático.

Outro ponto em que ambos tocam é a redução do ideal de virtude ao conforto material e autopreservação individual, princípio esse que, para os pensadores, informa tanto o liberalismo, quanto o socialismo e o anarquismo. Nietzsche associava essa tendência à moralidade democrática moderna com seu igualitarismo, nivelamento, e à antítese da aspiração humana por ideais mais elevados. Schmitt também entende esse individualismo liberal como como um sintoma de decadência da política cultural. Nesse ponto, talvez seja de alguma valia dar ouvido a eles e, ao menos, considerar se as virtudes modernas não podem ser temperadas com a lembrança de virtudes antigas, e avaliar se é atual a necessidade de avaliarmos se a apatia cívica, a redução da vida à esfera das relações de produção e consumo e do entretenimento da cultura de massas é suficiente.

Vale apontar a diferença fundamental entre Nietzsche e Schmitt. O primeiro jamais abandonou o caminho filosófico, por mais que tenha sido um dos maiores críticos da tradição filosófica. É em nome da probidade intelectual que Nietzsche se depara com a morte de Deus e com o historicismo e, a partir disso, lança seu chamado para a criação de novos valores. Por isso, Nietzsche, a nosso ver, não é um anti-Iluminista, mas um pós-Iluminista, que critica parcialmente o projeto racional moderno. Tanto que a figura redentora a quem o velho Nietzsche conclama a vinda são justamente os filósofos do futuro, encarregados do projeto da transvaloração dos valores. Por sua vez, Schmitt é o representante do caminho teológico e, em função de seu catolicismo, opôs-se ao pensamento moderno. Ainda que sua doutrina jurídica da legitimidade do poder presidencial tenha se dado sob uma doutrina moderna, a saber, a soberania do povo, o anti-Iluminismo é muito mais ressaltado no seu caso, na medida em que o esclarecimento lhe parecia como um distanciamento sempre mais intensificado da visão de mundo católica.

Ainda há lições pela via negativa que podem ser depreendidas de nossos autores. Com relação a Nietzsche, por mais que toda interpretação política de seu pensamento seja, de um modo ou outro, uma perversão de suas ideias, Nietzsche passou ao largo da prudência na esfera da ação. Ao desacreditar toda a tradição de pensamento e exortar o papel da criatividade, Nietzsche emprestou seu nome a todas as causas que, no final do século XIX e na primeira metade do XX, viam na mudança radical a saída para os males do mundo moderno, seja pela via do anarquismo de Emma Goldman, pelo socialismo de Sorel, ou pelo nacionalismo fascista. O caso Nietzsche ensina, no campo político, a precaução a respeito da criatividade desmesurada que esquece das virtudes da responsabilidade e da moderação.

Com Schmitt aprendemos também pelo contraste com o mau exemplo. Contra o liberalismo e o economicismo, Schmitt levantou a causa democrática e o nacionalismo. Hoje vemos essa tensão entre liberalismo (instituições, mídia, separação de poderes) e a democracia (vontade popular, referendos, populismo) voltar intensamente ao debate público e intelectual. Em similar encruzilhada, Schmitt seguiu o caminho do demos, do povo, como fonte de verdadeira legitimidade jurídica e política. O ensinamento mais evidente daí é o cuidado contra o populismo, de esquerda e de direita, e as ameaças ao constitucionalismo aí implicadas. Ainda relevante para nós, é a relação entre teologia e política que tomou forma em Schmitt. É verdade que a religião e a liberdade de crença são direitos constitucionais fundamentais e positivos de nosso regime liberal democrático. Todo regime político que se propôs a abolir a religião encontrou o caminho rápido e certeiro da tirania. Contudo, o caso Schmitt nos põem a pensar como a posição teológica pode também enveredar por via pouco virtuosa e como a visão da história como a incessante luta entre cristo e anticristo pode capitular ao tipo mais odioso de regime.

É assim que esperamos aprender com os erros e os acertos, os devaneios e a lucidez de nossos antípodas. Para que com aquilo que há de lúcido nos tornemos melhores, e com o que há de erro nos tornemos resistentes. Se nenhuma resposta ou cartilha é dada pelo pensamento do passado, ao menos nos é dado contemplar como os grandes problemas foram, então, articulados. Mas, resta sob nossos ombros a responsabilidade perante o presente.

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    É necessário lembrar, contudo, que Nietzsche foi grande crítico dos princípios centrais que caracterizaram a ideologia nazista. Basta recordarmos que o filósofo considerou o nacionalismo como um tipo de “neurose nacional” (névrose nationale) (1889a, o caso Wagner, 2) e advogou, como um “bom europeu”, tal qual, segundo ele, fizera Goethe (1967b, aforismo 1888, 16[68]) em favor da uma unidade da cultura europeia e da causa política paneuropeista (1886b, aforismo 208), além disso considerou o antissemitismo como uma “absurda” e “injustificada” (absurden; unberechtigten) opinião alemã contra a qual travava uma “guerra brutal” (schonungslosen Krieg) (1967b, aforismo 1888, 24 [11]). Logo, Nietzsche muito possivelmente teria abominado tal regime.
  • 3
    O cientista e historiador político, Armin Mohler aponta que o pensamento de Nietzsche serviu de “modelo no qual se fundou” o movimento conhecido como “revolução conservadora”, que viria a inspirar o nazismo (1990, p 101), além de apontar Schmitt, ao lado de Spengler e Blüher, como figuras proeminentes de tal movimento (1990, p. 76). Além de Mohler, Maus (1986)MAUS, Ingeborg. Rechtstheorie und politische theorie im industrielkapitalismus. Munique: Wilhelm Fink Verlag, 1986. , Herf (1993)HERF, Jeffrey. O modernismo reacionário: tecnologia, cultura e política na República de Weimar e no terceiro Reich. Campinas: Ed. Unicamp, 1993., e Breuer (1996)BREUER, Stefan. Anatomie de la révolution conservatrice. Paris: Éditions de la maison des sciences de l’homme, 1996. seguem a tese da aliança entre Schmitt e a revolução conservadora. Por sua vez, Bendersky (1983)BENDERSKY, Joseph. Carl Schmitt: theorists for the reich. Princeton: Princeton University Press, 1983. e Galli (1996)GALLI, Carlo. Genealogia della política: Carl Schmitt e la crisi del pensiero politico modierno. Bologna: Il Mulino, 1996. relativizam essa ligação. Para balanço e análise dessa discussão, ver Bercovici (2009, p. 80-83)BERCOVICI, Gilberto. Carl Schmitt e a tentativa de uma revolução conservadora. In: ALMEIDA, Jorge de; BADER, Wolfgang (orgs.). Pensamento alemão no século XX. São Paulo: Cosacnaify, 2009. v. 1. p. 67-97..
  • 4
    A despeito da diferença estilística astronômica entre os livros, Zaratustra com sua forma poética, sublime, e Além do bem e do mal, com sua prosa afiada e polêmica, segundo Nietzsche, o último “diz a mesma coisa que meu Zaratustra, mas de modo diferente, muito diferente” (1967a). A diferença, segundo observou o autor em sua autobiografia, reside no fato de que Além do bem e do mal volta o olhar para o que é “o próximo, o tempo, o derredor” (das Nächste, die Zeit, das Um), enquanto Zaratustra visa o infinito atemporal (1889a, além do bem e do mal, aforismo 2).
  • 5
    No espírito dessa militância, Nietzsche escreve a seu amigo Von Gersdorff, “Não temos nenhum direito de viver hoje se não formos militantes, militantes que preparam um século vindouro, do qual podemos adivinhar alguma coisa em nós através de nossos melhores instantes: pois esses instantes afastam-nos do espírito de nosso tempo; em tais instantes sentimos algo dos tempos que virão” (1967a)NIETZSCHE, Friedrich. Briefe von Nietzsche. Berlin/New York: De Gruyter, 1967a. (Cartas de Nietzsche). Disponível em: Disponível em: http://www.nietzschesource.org/#eKGWB Acesso em: 15 abr. 2020.
    http://www.nietzschesource.org/#eKGWB...
    .
  • 6
    Ver também NIETZSCHE, 1886bNIETZSCHE, Friedrich. Jenseits von Gut und Böse. Leipzig: Druck und Verlag von C. G. Naumann, 1886b. (Além do bem e do mal). Disponível em: Disponível em: http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/JGB Acesso em: 15 abr. 2020.
    http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/JG...
    , aforismo 208.
  • 7
    Gesammtkunstwerk” - “a obra de arte total”, como o próprio músico a denominava. Tal projeto teria como ponto inicial o Festival de Beyeruth, no qual por vários dias seriam encenadas as óperas de Wagner, principalmente O anel dos Nibelungos e Parsifal, e que contou com célebres espectadores da elite política e intelectual da época, incluso o Kaiser Guilherme I, e o imperador do Brasil Dom Pedro II.
  • 8
    Vale notar que Humano, demasiado humano I, publicado em 1878, é o livro que inaugura o período intermediário da obra de Nietzsche e foi originalmente dedicado ao “grande seigneur do espírito Voltaire” (1889a, humano demasiado humano, 1), porém Nietzsche retirou mais tarde essa dedicatória.
  • 9
    Para análise detalhada sobre o balanço de Nietzsche das duas raízes da tradição Ocidental, filosófica e religiosa, e sua relação de incorporação e diferença, ver Pangle (1983)PANGLE, Thomas. The roots of contemporary nihilism and its political consequences according to Nietzsche. The Review of Politics, v. 45, n. 1, p. 45-70, 1983..
  • 10
    Para um aprofundamento desse ponto, ver COSTA(2020)COSTA, Jean. Laisser aller e respeito agonístico: considerações sobre as apropriações agonísticas da filosofia de Nietzsche. Política & Sociedade, Florianópolis, v. 19, n. 46, p. 357-86, 2020..
  • 11
    Notar que Nietzsche coloca a simpatia, sua forma de compaixão, como uma das quatro virtudes essenciais (NIETZSCHE, 1886, aforismos 260; 284). Para a análise da natureza da compaixão nietzschiana ver Lampert (2001, p. 71)LAMPERT, Lawrence. Nietzsche’s task: an interpretation of beyond good and evil. New Haven: Yale university press, 2001. .
  • 12
    Não por acaso Schmitt utiliza o adjetivo “maßgebende”, ao referir-se à área central, desta feita, unindo o subtantivo Maß = medida, e o adjetivo geben = dar, formando, portanto, algo como “aquilo que dá a medida”.
  • 13
    A crítica schmittiana à neutralização, vale dizer, tem servido ao repertório teórico daqueles cujo intuito é atacar correntes do pensamento liberal que desde os anos 70 se estabeleceram no cenário acadêmico sob os nomes de John Rawls e Jürgen Habermas. Ver Mouffe (2006)MOUFFE, Chantal. Por um modelo agonístico de democracia. Revista de Sociologia Política, v. 25, p. 165-175, 2006. e Dyzenhaus (1997)DYZENHAUS, David. Legality and legitimacy: Carl Schmitt, Hans Kelsen and Hermann Heller in Weimar. Oxford: Oxford University Press, 1997..
  • 14
    Embora crítico do economicismo, há quem note semelhanças entre Schmitt e o pensamento liberal de Hayek, sobretudo no que tange à crítica de ambos às vertentes políticas de esquerda no contexto da República de Weimar e faça dessa relação um ponto de partida para refletir acerca da “’afinidade eletiva’ entre a economia de livre mercado e a política autoritária” (SCHEUERMAN, 1997SCHEUERMANN, William. The unholly alliance of Carl Schmitt and Friedrich A. Hayek. Constellations, v. 4, n. 2, p.172-188, 1997., p.184). Ver também Cristi (1998)CRISTI, Renato. Carl Schmitt and authoritarian liberalism. Cardiff: University of Wales Press, 1998..
  • 15
    A título de honestidade intelectual, cabe notar que alguns intérpretes questionam a sinceridade da fé de Schmitt e se em seu íntimo não tinha lá seus relapsos no ceticismo. Afirmam isso em vista dos elogios de Schmitt à articulação político pragmática do “mito nacional” ou de seu apreço por Sorel, o teórico do mito político “original e rico de ideias” (SCHMITT, 1998SCHMITT, Carl. Catolicismo romano e forma política. Tradução de Alexandre de Sá. Lisboa: Hugin Editores, 1998., p. 27), de modo que seu catolicismo não seria substancial, mas apenas tática circunstancial. Ver Fraenkel (1969)FRAENKEL, Ernst. The dual state: a contribution to the theory of dictatorship. New York: Octagon Books, 1969. e Mccormick (1999)MCCORMICK, John. Carl Schmitt’s critique of liberalism. Cambridge: Cambridge University Press, 1999..
  • 16
    Nesse sentido, observou Meier (2013, p. 91)MEIER, Heinrich. Carl Schmitt, Leo Strauss und “Der Begriffe des Politischen” Zu einem Dialog unter abwesenden. 3 ed. Stutgart e Weimar: Verlag J.B. Metzler, 2013., é notório que Schmitt se autocaracterizou como “o Epimeteu cristão” (der christliche Epimetheus), cujo inimigo principal era o Anticristo em sua forma de neutralização (MEIER, 2011MEIER, Heinrich. The lesson of Carl Schmitt: four chapters on the distinction between political theology and political philosophy. Chicago: University of Chicago Press, 2011., p. 134-135). Mais, acrescenta Meier, “o que separa o historicismo do epimeteu cristão do historicismo de um Croce ou um Collingwood é o ‘conhecimento íntegro’ do sentido e do destino do drama que encerra o movimento da história mundial”. Ou seja, o que “tão somente separa, mas que decisivamente separa” o seu historicismo do historicismo dos liberais de seu tempo é “a fé de Schmitt”, o catolicismo (2013, p. 92)
  • 17
    Ver a tese de Himmelfarb (2018)HIMMELFARB, Gertrude. A imaginação moral. São Paulo: É realizações, 2018. a respeito da existência de duas doutrinas políticas distintas em Mill, “os dois Mills”, uma, mais célebre que enfatiza a liberdade individual e outra, que se preocupa com a questão da coesão social e da qualidade do espírito público no contexto de avanço democrático.
  • 18
    Evidente que Schmitt avaliava esse aspecto de modo muito crítico, e o entendia como reflexo de uma sociedade desintegrada, burguesa e desesperada diante da desintegração da moral e da religião, que se volta para o indivíduo e sua subjetividade como a primazia sobre o todo (1968, p. 20).
  • 19
    Diferente do olhar crítico de Schmitt, muitos encontram exatamente aí a força das ideias de Nietzsche. Assim, alguns como Nehamas (1985)NEHAMAS, Alexander. Nietzsche: life as literature. Cambridge: Harvard Univ. Press, 1985. e Mattos (2013)MATTOS, Fernando. Nietzsche, perspectivismo e democracia: um espírito livre em guerra contra o dogmatismo. São Paulo: Saraiva, 2013. se valem dessas reflexões para refletir a respeito do indivíduo e do espírito livre criador de si mesmo. Outros tomam o tema do espírito livre sob uma ótica anarquista, como Lemm (2011)LEMM, Vanessa. Nietzsche, Aristocratism and non-domination. In: KLAUSEN, J.; MARTEL, J. (orgs.). How not to be governed: readings and interpretations from a radical anarchist left. Maryland: Lexington Books, 2011. p. 83-102. ou Bergmann (1987)BERGMANN, Peter. Nietzsche: the last antipolitical german. Bloomington: Indiana University Press, 1987.. Também há a linha agonística que se apropria de temas como conflito, perspectivismo e antifundacionismo a fim de repensar modelos democráticos, Warren (1985WARREN, Mark. Nietzsche and political philosophy. Political Theory, New York, v. 13, n. 2, p. 183-212, 1985.), Connolly (1991)CONNOLLY, W. Identity\Difference: democratic negotiations of political paradox. Ithaca: Cornell University Press, 1991., Hatab (1995)HATAB, Lawrence. A nietzschean defense of democracy: an experiment in postmodern politics. Illinois: Open Court Publishing Company, 1995., Owen (1995)OWEN, David. Nietzsche, politics, and modernity. London: Sage, 1995., entre outros.
  • 20
    Lampert (2001)LAMPERT, Lawrence. Nietzsche’s task: an interpretation of beyond good and evil. New Haven: Yale university press, 2001. segue na trilha interpretativa de Strauss. Outros intérpretes que reconhecem a sutil relação entre Nietzsche e a herança platônica são Bremer (1979)BREMER, Dieter. Platonisches, Antiplatonisches. Aspekte der Platon-Rezeption in Nietzsches Versuch einer Wiederherstellung des frühgriechischen Daseinsverständnisses. Nietzsche-Studien, v. 8, p. 39-103, 1979., Müller (2012)MÜLLER, Enrico. Entre logos e pathos: o antiplatonismo platônico de Nietzsche. ArteFilosofia, Ouro Preto, n. 13, p. 41-56, 2012. e Lopes (2012)LOPES, Rogério. Nietzsche e a interpretação cética de Platão. Artefilosofia, Ouro Preto, n. 13, p. 18-40, 2012. .
  • 21
    Sobre Nietzsche como um aristocrata radical, ver Detwiller (1990), Dombowsky (2004)DOMBOWSKY, D. Nietzsche’s machiavellian politics. New York: Palgrave Macmillan, 2004. e Losurdo (2010)LOSURDO, Domenico. Nietzsche, o aristocrata rebelde: biografia intelectual e balanço crítico. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2010..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2020
  • Aceito
    20 Ago 2021
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