Acessibilidade / Reportar erro

A família e a maternidade como referências para pensar a política** ** Este artigo foi extraído de tese de doutorado Representações sobre gênero e política no Distrito Federal, defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade de Brasília em maio de 2014.

Family and maternity as references to think of politics

Resumos

Supondo que a divisão sexual do trabalho seja determinante de identidades de gênero e de perspectivas sociais distintas, as quais têm impactos políticos, a pesquisa de que trata este artigo teve por objetivo captar representações sobre gênero e política por meio de entrevistas qualitativas com mulheres e homens residentes em bairros de classe média e popular no Distrito Federal. A importância da socialização de gênero para o entendimento de como se articulam os discursos políticos fica evidenciada pela forma como a casa e a política se inter-relacionam, isto é, como papéis e valores familiares/morais são usados para pensar a política. As concepções que respaldam a divisão sexual do trabalho não constituem guias apenas para relações familiares, mas para o entendimento de todo o mundo social. A participação da mulher na política é vista comumente na forma de estereótipos, relacionados a uma suposta superioridade moral decorrente da maternidade.

Gênero; representações; participação política; divisão sexual do trabalho; maternidade; família.


Assuming that sexual division of labor is determinant for both gender identities and distinct social perspectives that carry political impacts, this research has captured representations on gender and politics through qualitative interviews with a group of men and women who live in different neighborhoods of Brasilia/the Federal District - a middle class neighborhood and a lower class neighborhood. The importance of gender socialization for understanding how political discourses are articulated is evidenced by the way home and politics are interrelated, that is, how family/moral values and roles are used to think of politics. The views underlying sexual division of labor guide not only family relations but also the entire social world. The political participation of women is seen through stereotypes related to their alleged moral superiority stemming from maternity.

Gender; representations; political participation; sexual division of labor; maternity; family.


A divisão sexual do trabalho relega as mulheres a uma situação inferior em termos de acesso a recursos políticos e as leva a desenvolver representações e vivências da política distintas das masculinas porque marcadas pela localização estrutural de gênero. Neste artigo, este argumento será brevemente discutido do ponto de vista teórico e apresentar-se-ão alguns resultados de investigação qualitativa, relativa a como as representações da política se diferenciam por gênero e como representações de gênero e de política se inter-relacionam. O foco aqui está na relação entre representações de masculinidade e feminilidade e sua relação com representações sobre política. O argumento de que a maternidade é a característica definidora da feminilidade e referência principal de sua inserção política é debatida à luz de discursos que utilizam estereótipos de gênero para explicar a participação da mulher na política. Trata-se de uma investigação de diferenças de gênero que se revelam discursivamente, visto que é por meio do discurso que se articulam identidades e se promovem comportamentos, mas que importam sobretudo porque estão na raiz das desigualdades de gênero e políticas.

Divisão sexual do trabalho e inserção política

A suposição de que mulheres e homens pensem a política de formas distintas está baseada na premissa de que a "experiência da marginalização" (Williams, 1998WILLIAMS, Melissa (1998). Voice, trust, and memory: marginalized groups and the failings of liberal representation. Princeton: Princeton University Press., p. 15), sofrida por mulheres e outros "grupos marginalizados imputados" - sujeitos a "padrões de desigualdade social e política estruturados de acordo com o pertencimento de grupo" -, é capaz de dar origem a "perspectivas" (Young, 2000YOUNG, Iris M. (2000). Inclusion and democracy. Oxford: Oxford University., p. 137), isto é, formas específicas e situadas de ver o mundo que caracterizam os membros de tais grupos. Williams julga que tais grupos desenvolvam mesmo uma identidade política própria, desvalorizada pela cultura dominante, o que significa que há um estigma em relação aos membros desses grupos que "limita a agência dos indivíduos" (Williams, 1998WILLIAMS, Melissa (1998). Voice, trust, and memory: marginalized groups and the failings of liberal representation. Princeton: Princeton University Press., p. 16) que os compõem. Portanto, mulheres desenvolveriam visões sobre a política marcadas pelas limitações decorrentes de sua experiência social desfavorecida.

A marginalização feminina decorre da existência, como argumenta (Pateman 1989PATEMAN, Carole (1989). The disorder of women: democracy, feminism, and political theory. Stanford: Stanford University Press.), de uma dicotomia entre esferas pública/privada, subjacente à qual estão diversas outras, de caráter igualmente hierárquico (natureza/cultura, irracionalidade/razão), que reforçam a exclusão das mulheres da esfera tida como a mais nobre e mais importante da sociedade por enquadrá-las como incapazes de desenvolver o senso de justiça e racionalidade requerido de cidadãos plenos. A divisão sexual do trabalho segue as linhas dessa dicotomia por ser derivada dela. Trata-se de uma "forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais entre os sexos", caracterizada pela "designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, da apropriação pelos homens das funções com maior valor social adicionado (políticas, religiosas, militares etc.)" (Hirata e Kergoat, 2007HIRATA, Helena & KÉRGOAT, Daniele (2007). "Novas configurações da divisão sexual de trabalho". Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 132, p. 595-609., p. 599).

Como a definição acima implica, pode-se falar não apenas em divisão sexual do trabalho na família, mas também em outras esferas, e também em divisão sexual de poder e do trabalho político, como fazem diversos autores1 1 Ver (Sapiro 1984, p. 14) e (Miguel e Biroli 2009, p. 74), por exemplo. . Desigualdades dentro da família estão alinhadas com desigualdades na economia e política, num círculo vicioso. (Burns 2009BURNS, Nancy (2009). "Gender inequality", em KING, Gary, SCHLOZMAN, Kay & NIE, Norman (eds.). The future of political science: 100 perspectives. Taylor & Francis e-library.) propõe o entendimento desse processo a partir de um modelo de sobreposição cumulativa de desvantagens (menor quantidade de recursos de ordens diversas, principalmente econômica) que culmina no acesso desigual ao poder político-institucional. A origem na família seria determinante de sua configuração social também em outros âmbitos. A desigualdade de gênero, ao contrário de outras, como as de classe e raça, se constrói de forma irrefletida entre pessoas que convivem intimamente e que possuem laços fortes, assentados em valores de honra e afetividade, relacionados a cuidar dos filhos e de outros familiares. Trata-se de uma desigualdade sub-reptícia, mascarada e duradoura porque encoberta por relações de amor entabuladas por familiares e amigos num contexto supostamente marcado pelo consenso e altruísmo e desprovido de assimetrias de poder. Dado que o cuidado sequer costuma ser encarado como "trabalho", sendo antes caracterizado como um conjunto de atos de amor e devoção, torna-se difícil discutir quem deverá executar que fração dele. E, ao se concentrar todo ou uma parte desproporcional desse cuidado sobre a mulher, que se considera ter as disposições naturais para tal, estabelece-se uma divisão de trabalho que expressa a forma mais acabada de organização familiar.

O fato de as mulheres serem as únicas ou principais cuidadoras dos filhos tem, portanto, "consequências enormes para o tipo de pessoas que nos tornamos, a estrutura do mercado de trabalho e quem detém o poder estatal" (Phillips, 2002________ (2002). "Does feminism need a conception of civil society?", em CHAMBERS, Simone & KYMLICKA, Will. Alternative conceptions of civil society. Princeton: Princeton University Press., p. 75). Esse argumento remete à questão das interligações entre esferas doméstica/privada e pública. Vistas como opostas, as características de uma adquirem sentido em comparação com as da outra. A esfera pública é, tradicionalmente, a esfera do político, onde os homens se reúnem para discutir as questões da coletividade e exercitar suas mais nobres virtudes ao passo que a privada é a esfera da sujeição "natural" da mulher. No entanto, uma está proximamente ligada à outra no sentido de que, por exemplo, é o trabalho doméstico realizado pela mulher que permite ao homem aceder à vida pública como trabalhador. Quando se torna trabalhadora, a mulher não o faz nas mesmas condições que os homens devido à "segregação sexual da força de trabalho" (Pateman, 1989PATEMAN, Carole (1989). The disorder of women: democracy, feminism, and political theory. Stanford: Stanford University Press., p. 8), que assigna a elas as piores ocupações em termos salariais e de status, privando-as também do desenvolvimento de habilidades cívicas e outros recursos importantes politicamente - contatos e renda - por inseri-las de modo mais precário no mercado de trabalho.

A partir da família, portanto, a desigualdade se estende para as demais esferas sociais, inclusive a política, o que garante sua continuidade. O desenvolvimento da ambição política para candidatar-se a um cargo público é apenas a fase final de um processo que se inicia antes e em outras esferas. Ao passarem por processos de socialização de gênero e política distintos e frequentarem, ao longo da vida, espaços sociais que os tratam também desigualmente, homens e mulheres adquirem representações políticas distintas. A desigualdade inicial é exacerbada por outras esferas e instituições, notadamente a escola, o mercado de trabalho e o campo político, que também utilizam e recriam representações de gênero, originadas da divisão sexual do trabalho no âmbito domiciliar, para alocar homens e mulheres seletivamente e destinar-lhes montantes desiguais de recursos de poder. Por sua vez, indivíduos utilizam representações de gênero para pensar a política.

Há autoras feministas que procuram salientar o aporte distinto que as mulheres têm provido à política a partir de sua localização estrutural específica. Feministas do pensamento maternal, como (Elshtain 1998ELSHTAIN, Jean (1998). "Antigone's daughters", em PHILLIPS, Anne. Feminism & politics. Oxford, New York: Oxford University Press.), por exemplo, pretendem valorizar positivamente as experiências das mulheres em suas "diferenças" e até mesmo afirmar a superioridade moral das mulheres em relação aos homens, que é vista como ensejando uma concepção de política própria e uma forma de poder também específica. Para essa proposta, o feminismo não deveria se espelhar num modelo de comportamento masculino, mas na busca da valorização da feminilidade e do privado, tradicionalmente associados a valores como interdependência, comunidade, conexão, confiança, emoção etc. O objetivo é valorizar as formas de comportamento, inclusive políticas, que têm sido assumidas pelas mulheres de modo a impedir que elas precisem se "masculinizar" para alcançar poder numa sociedade em que este é definido por padrões masculinos.

A proposta de que as mulheres têm uma visão política diferenciada da masculina não necessita, porém, representar uma adesão ao chamado "pensamento maternal" ou à "ética do cuidado", que compreendem a contribuição política das mulheres como advinda de uma sensibilidade política peculiar para questões relacionadas ao cuidado. Em lugar disso, a razão pela qual se supõe aqui que mulheres atuem em uma esfera política distinta da tradicional deve-se ao fato de ser, para elas, mais difícil adentrar e ocupar posições no campo político convencional, restando-lhes ocupar outros domínios políticos que as comportem.

Mulheres tenderiam a ser mais ativas politicamente quando se trata de questões locais, relativas à comunidade e a importar-se mais com a "política do cotidiano" (Brito, 2001BRITO, Maria Noemi (2001). "Gênero e cidadania: referenciais analíticos". Revista de Estudos Feministas, v. 9, n. 1, p. 291-298., p. 293), ou seja, a micropolítica, em oposição à política institucional, relacionada a contextos mais formais, como parlamentos e eleições. Esse tipo de diferença de comportamento dever-se-ia, mais uma vez, à divisão sexual do trabalho e à consequente internalização, por parte das mulheres, da ideia socialmente prevalente de que a política institucional não é um terreno feminino ou que elas não têm as características requeridas para participar desse mundo masculinizado. Além disso, essa política do cotidiano é a que mais se aproxima das funções que lhes são assignadas em virtude da divisão sexual do trabalho, o que explicaria sua maior tendência a participar de atividades comunitárias e locais. Assim, como propõe (Randall 1982RANDALL, Vicky (1982). Women and politics. New York: St. Martin's Press.) a respeito de formas de ação política pouco organizadas, que tendem a ser praticadas por mulheres, essa política do cotidiano pode consistir em ações não coordenadas, individuais e não se reportar diretamente ao campo político. Grupos marginalizados têm suas próprias práticas políticas, não tão visíveis quanto as formas de participação usadas pelas elites políticas, especialmente quando o conceito de política que se tem em mente é o de política restrita a arenas clássicas. Esse alijamento não se traduziria em um apoliticismo do gênero feminino, mas numa inserção política alternativa (e subordinada), marcada pelo aproveitamento dos nichos de (menor) poder que estariam disponíveis às mulheres num campo político hostil.

Para explicar como a participação política das mulheres latino-americanas é moldada, (Craske 1999CRASKE, Nikki (1999). Women & politics in Latin America. New Jersey: Rutgers University Press.) argumenta que elas compartilham, independentemente de classe, raça/etnia e nacionalidade, uma identidade comum de mães que tem sido acionada politicamente. Essa identidade, construída religiosamente2 2 Ver, por exemplo, a discussão sobre marianismo, termo que designa originalmente um movimento da Igreja Católica de culto à Virgem Maria e que foi apropriado pela literatura sobre gênero na América Latina para descrever um "complexo híbrido de feminilidade idealizada", o qual "ofereceu uma série de crenças sobre a superioridade moral e espiritual das mulheres que agiu para legitimar seu papel social doméstico e subordinado" (Chant, 2003, p. 9). Visto como o ethos feminino correspondente ao machismo, ele tem como traços peculiares a exaltação tanto da maternidade, tida como o laço que tornaria as mulheres mais próximas de Deus, quanto da domesticidade, o espaço familiar em que as mulheres deveriam exercer sua missão primária no mundo. e dotada de legitimidade social, tem uma dimensão política, já que as mulheres a usam para manifestar demandas ao Estado. Portanto, a identidade materna tem um lado empoderador (visto que permite às mulheres se mobilizarem sob essa bandeira), mas também impõe fortes restrições3 3 A maternidade tem um lado "privatizador" das mulheres que pode, paradoxalmente, também levá-las a interagir com o público. A respeito do caráter limitador da maternidade, (Machado e Barros 2009, p. 380) ressaltam que o papel materno previne as mulheres de entrarem na esfera pública na mesma condição que os homens porque aumenta a sua carga de "responsabilidade doméstica" e reduz suas chances de realizar projetos individuais. Por outro lado, a maternidade tem sido idealizada e mobilizada por todas as forças políticas, de direita ou de esquerda. Por exemplo, Molineux (1985), em análise do papel das mulheres durante a revolução na Nicarágua, argumenta que elas assumiram uma "maternidade combativa", estimuladas pelos líderes políticos, que procuraram integrá-las à transformação social que tentavam promover, sem deixar, porém, de recorrer à sua identidade tradicional. . Mães são idealizadas como seres moralmente superiores e abnegados, mais sensíveis às necessidades da comunidade, o que tende a "constranger a atividade política, não apenas limitando táticas e estratégias, mas também restringindo possibilidades de negociação, o que é uma parte intrínseca do processo político" (Craske, 1999CRASKE, Nikki (1999). Women & politics in Latin America. New Jersey: Rutgers University Press., p. 4).

Breve descrição metodológica do estudo

A discussão teórica sumarizada anteriormente orientou o desenho de um estudo de caso que buscou captar representações sobre gênero e política por meio de entrevistas domiciliares em profundidade, realizado no Distrito Federal, em 2012, com mulheres e homens de diferentes faixas etárias e pertencentes a distintas classes sociais: popular e média4 4 Foram selecionados dois bairros com perfis correspondentes a essas duas classes sociais, definidas a partir do nível de renda médio de seus moradores. . O objetivo foi captar uma diversidade de representações sociais5 5 Refere-se aqui a um conjunto específico de representações que, no caso de gênero, abrangem questões como divisão sexual do trabalho, relação com o trabalho remunerado, relações de poder intrafamiliares - principalmente ligadas à chefia da unidade domiciliar e tomada de decisões -, identidade de gênero, relação entre representações religiosas e de gênero e ao posicionamento a respeito de aborto e casamento homossexual. No caso de política, as questões foram: relação com políticos e burocratas, percepção sobre candidatura de mulheres à presidência da República e ao governo do Distrito Federal (DF), prevalência de homens na política, percepção sobre ditadura versus democracia, senso de competência política, atividades políticas, noções de cidadania. sobre os temas investigados, tentando estabelecer, na seleção dos entrevistados, diferentes "estratos sociais, funções e categorias" (Bauer e Aarts, 2007BAUER, Martin & AARTS, Bar (2007). "A construção do corpus: um princípio para a coleta de dados qualitativos", em BAUER, Martin & GASKELL, George (eds.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes., p. 57), como propõem, e tentando acessar o fenômeno que se quer explicar - a articulação do gênero com a relação de homens e mulheres com o campo político - a partir do ponto de vista dos próprios atores envolvidos nele.

Outra suposição que informa a pesquisa diz respeito à interação entre gênero e outras variáveis socioeconômicas (classe social e idade) como fatores explicativos do diferencial de representações sobre política. Gênero se soma a outras clivagens estruturais, como classe, escolaridade, raça, idade, composição familiar, religião e outras, para moldar os comportamentos e crenças individuais. No entanto, dados o escopo deste projeto e as limitações relativas à construção dos dados, decidiu-se restringir a análise da interação de gênero com duas outras variáveis: classe e idade. Foram analisadas as diferenças de representações sobre política entre mulheres e homens com diversos perfis em termos de posições de classe e faixa etária no intuito de buscar explicar como as diferenças de papéis sociais de gênero, alicerçadas na divisão sexual do trabalho e em interação com a estratificação socioeconômica e geracional, se refletem em termos de representações sobre política.

A clivagem entre mulheres e homens de classes sociais distintas é bastante relevante para essa discussão. Análises de gênero devem estar atentas às divisões internas nos grupos de gênero visto que classe e escolaridade são determinantes de variações significativas em termos de formação de identidade e modos de vida. O conceito de classe está sendo entendido aqui como referente a um grupo cujos membros auferem uma renda domiciliar mensal semelhante, "frequentemente envolvendo um estilo de vida comum e que se diferencia de outros grupos em termos de poder e status e ainda das chances que seus membros têm de melhorar materialmente de vida" (Bradley, 2007BRADLEY, Harriet (2007). "Changing social structures: class and gender", em HALL, Stuart et al. (eds). Modernity: an introduction to modern societies. Malden: Blackwell. p. 122-147., p. 129). No que se refere à divisão sexual do trabalho, a variável classe, operacionalizada em termos de renda, é também relevante porque determina o acesso à contratação do trabalho doméstico remunerado. Além disso, classe e escolaridade têm efeitos sobre os níveis de interesse e compreensão cognitiva da política (Dalton, 2000DALTON, Russell (2000). "Citizen attitudes and political behavior". Comparative Political Studies, v. 33, n. 6/7, p. 912-940.).

Com relação à variável idade, supõe-se aqui que mulheres e homens mais velhos seriam mais conservadores por haverem sido socializados num meio social mais tradicional em termos de gênero e também porque, quanto maior a idade, menor a taxa de atividade econômica a partir de determinada faixa etária6 6 Na faixa de 50 a 59 anos, a taxa de atividade era, em 2009, de 68,1%, e, na faixa de 60 anos ou mais, a taxa de atividade era de 29,9%; ao passo que as maiores taxas de atividade são verificadas nas faixas etárias de 20 a 29 anos e de 30 a 39 anos (83,7% e 84,6%, respectivamente), segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD-IBGE) 2009. . A idade incide de forma diferente sobre o comportamento político visto que as variadas pesquisas apontam que homens e mulheres reagem cada um à sua maneira às mudanças nos ciclos de vida/faixas etárias. A intenção foi também levar em conta os efeitos geracionais e sua relação com a socialização de gênero, supondo que pessoas pertencentes a diferentes gerações, por haverem sido socializadas em períodos temporais distintos, terão concepções de gênero e de política diferentes. Procurou-se ter uma diversidade de entrevistadas e entrevistados em relação às variáveis propostas: classe e idade7 7 A forma de tratar a variável idade foi dividi-la em duas faixas etárias (a primeira de 21 a 40 anos e a segunda de 41 a 65 anos). A escolha inicial foi trabalhar com pessoas adultas, que já tivessem alguma experiência como eleitores. A seleção dessas faixas foi feita com base em suposições relativas a ciclos de vida e geração, visto que é na primeira faixa que mulheres e homens em geral têm o seu primeiro casamento e filhos. Na segunda faixa etária estão pessoas que tiveram alguma vivência do regime militar (experiência que supostamente as faz desenvolver percepções comparativas a respeito da ditadura versus democracia) e que também já se encontram em outra fase/geração em relação a seus papéis de gênero (algumas pessoas já se tornaram avós, mulheres que deixaram de trabalhar quando os filhos eram pequenos já retornaram ao mercado de trabalho, muitas testemunharam mudanças significativas em relação ao papel da mulher na sociedade). .

Fez-se uma amostra não probabilística em que o tamanho dependeu do grau de variedade que se pretendia obter e do processo de saturação teórica que tende a ocorrer nos estudos qualitativos (dado que se chega a um ponto em que se procede à "suspensão de inclusão de novos participantes quando os dados obtidos passam a apresentar, na avaliação do pesquisador, uma certa redundância ou repetição, não sendo considerado relevante persistir na coleta de dados" (Fontanela, 2008FONTANELA, Bruno et al. (2008). "Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas". Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 17-27.). Inicialmente, associações de naturezas diversas (de moradores, culturais, comerciais) foram contatadas e alguns de seus dirigentes entrevistados. A intenção era começar o trabalho de campo a partir de algum ponto de referência e, em seguida, passar a pessoas que residissem nas redondezas das associações, mas que não participassem delas. Assim, foi possível entrevistar pessoas selecionadas aleatoriamente que se encaixavam no perfil buscado (mulheres, homens, de determinada faixa etária e de renda e moradores dos dois bairros selecionados) por meio de solicitações de entrevistas em domicílio. À medida que o campo se desenrolou, passou-se à estratégia de ir a lugares onde as pessoas com o perfil desejado pudessem ser encontradas com mais facilidade, tais como escritórios de profissionais liberais e universidades.

Outro ponto importante diz respeito ao contexto em que estão inseridos os atores e como este foi analisado tendo em vista o arcabouço teórico-metodológico da pesquisa. As entrevistas individuais foram, em quase todos os casos, domiciliares ou realizadas no local de trabalho/estudo das(os) entrevistadas(os). Como se assume que as representações sobre política não são determinadas apenas por fatores individuais, mas também por questões relativas ao contexto em que se inserem os atores sociais, levou-se em consideração a questão de como o contexto social (determinados traços peculiares aos bairros, como tempo de existência, perfil histórico-político, proximidade com outros bairros com níveis de renda distintos etc.) pode influenciar as visões sobre política dos atores.

Ao contrário do que estudos etnográficos sobre a política tendem a fazer, esta pesquisa foi conduzida num período de interregno eleitoral, isto é, dois anos após as eleições de 20108 8 No DF, não há eleições para prefeito e vereador. No entanto, alguns reflexos da campanha eleitoral que começava a ser feita em municípios vizinhos a ele, dos quais provêm alguns dos(as) entrevistado(as), se faziam sentir. Várias pessoas mencionam que as cidades de onde elas ou suas famílias migraram estavam mobilizadas politicamente. Outras alegaram que nunca transferiram seu título eleitoral para o DF como razão para o não envolvimento com as questões políticas da cidade. . Isso significa que as discussões eleitorais já haviam passado e que a necessidade de decidir em quem votar não se impunha como preocupação naquele momento. Dessa forma, as pessoas não estavam esperando ter que falar sobre política num período não eleitoral. No entanto, a memória das eleições anteriores - em especial as disputas para presidente e governador - ainda estava presente.

A condução da pesquisa num momento em que a relação entre mulheres e política podia ser abordada à luz dos fatos de que a primeira mulher fora eleita presidenta e que houvera uma mulher candidata a governadora no Distrito Federal certamente teve impacto sobre as percepções a respeito de como se compatibilizam feminilidade e política. Caso tivesse sido outro o momento da entrevista, antes dessas candidaturas femininas ou após o mandato da presidenta, poderiam ter sido outros os resultados9 9 Como confirmam achados referentes aos Estados Unidos (cf. Sapiro, 2003, p. 610), a depender da presença de mulheres nas eleições estaduais, as diferenças de gênero com relação às eleições presidenciais podem ser maiores ou menores já que o fato de que o contexto local salienta questões de gênero acaba afetando o posicionamento do(a) eleitor(a) com relação também às demais disputas eleitorais. Outras pesquisas também apontam que os resultados de interesse relativos a gênero - por exemplo, a disposição de mulheres a convencer outrem a votar em seu candidato(a) (Hansen, 1997) - variam em função da existência de mulheres candidatas. . Assim como as representações sobre gênero mudam de acordo com o tempo histórico e a cultura, suas articulações com as representações de política também mudam segundo elementos que ressaltam a visibilidade da categoria gênero - notadamente a presença de mulheres - no campo político.

Tal como as etnografias, esta pesquisa insere-se no esforço de desvelar "disposições, habilidades, desejos e emoções de uma variedade de atores políticos e os significados que eles atribuem a suas práticas" (Auyero e Joseph, 2007AUYERO, Javier & JOSEPH, Lauren (2007). "Introduction: Politics under the ethnographic microscope", em JOSEPH, Lauren, MAHLER, Matthew & AUYERO, Javier. New perspectives in political ethnography. New York: Springer Science. p. 1-13., p. 2), neste caso, de pessoas comuns, que nem sempre se entendem como "atores políticos", que nutrem crenças políticas frequentemente contraditórias, que querem se afastar e ao mesmo tempo se aproximar de um campo que as repele ainda quando propaga a necessidade de sua participação. Em se tratando de grupos marginalizados, como mulheres e populações de periferias urbanas em geral10 10 A população residente na periferia do DF é formada, em grande parte, por migrantes vindos de zonas menos urbanizadas, principalmente do Nordeste (42% dos chefes de domicílio do DF eram naturais da região Nordeste, segundo dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios 2004), que mantêm os valores e modo de vida adquiridos em seus lugares de origem porque as relações familiares continuam a ser fundamentais para a sobrevivência dos pobres no meio urbano. No DF, as áreas periféricas se notabilizam por uma infraestrutura urbana mais precária que a das áreas centrais, pela distância em relação a estas e por taxas mais altas de violência. A desigualdade também representa um estímulo, segundo Reis (1995), a se restringir ao "círculo mais próximo", evitando interações que fujam a ele e mantendo distância do espaço, devido à existência de uma "cultura generalizada do medo", típica de um meio social com altas taxas de violência e pobreza. , a pesquisa qualitativa parece ser a mais apropriada para captar modos de pensar e fazer política11 11 Em ambos os casos, são famílias formadas por migrantes vindos de zonas menos urbanizadas, principalmente do Nordeste (42% dos chefes de domicílio do DF eram naturais da região Nordeste, segundo dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios 2004), que mantêm os valores e modo de vida adquiridos em seus lugares de origem porque as relações familiares continuam a ser fundamentais para a sobrevivência dos pobres no meio urbano. Como nota (Sarti 2009: 50), é frequentemente graças ao apoio recebido da família que a migração torna-se viável, o que é mais um motivo para que ela permaneça como uma rede de apoio indispensável para aqueles que encontram pouco suporte nas instituições públicas. Além disso, tanto no DF quanto em São Paulo, as áreas periféricas se notabilizam por uma infraestrutura urbana mais precária que a das áreas centrais, pela distância em relação a estas e por taxas mais altas de violência. A desigualdade também representa um estímulo, segundo Reis (1995), a restringir-se ao "círculo mais próximo", evitando interações que fujam a ele e mantendo distância do espaço, devido à existência de uma "cultura generalizada do medo" típica de um meio social com altas taxas de violência e pobreza. .

As perspectivas a partir das quais grupos marginalizados veem o mundo não são fixas, mas mutáveis histórica e socialmente. A partir delas, têm-se as representações sociais, entendidas no sentido durkheimiano de "crenças culturais, valores morais, símbolos e ideias compartilhados por qualquer grupo humano" (Durkheim, 1961 apud Bocock, 2007BOCOCK, Robert (2007). "The cultural formations of modern society", em HALL, Stuart et al. (eds.). Modernity: an introduction to modern societies. Malden: Blackwell., p. 157). Representações não são construídas de maneira individual e solitária, mas transmitidas intergeracionalmente via processo de socialização, e variam conforme os diversos segmentos sociais. As práticas discursivas revelam não apenas as diferentes maneiras de articular a língua utilizadas pelos variados grupos sociais, mas também suas representações e seus desiguais níveis de acesso aos bens sociais, incluindo status e reconhecimento social.

A análise que segue trata de um conjunto de 29 entrevistas12 12 Utilizou-se a recomendação de (Gaskell 2007, p. 71), de que se façam ao menos duas entrevistas por "tipo" relevante de entrevistado segundo as características selecionadas, que, neste caso, são homens e mulheres pertencentes a duas classes sociais distintas e a duas faixas etárias (21 a 40 anos e 41 a 65 anos). . A Tabela 1 mostra alguns detalhes dessa distribuição.

Tabela 1:
Distribuição das entrevistas por gênero, classe e faixa etária

Representações de gênero e política

Toda a socialização é segmentada por gênero, o que implica a transmissão de padrões de conduta e expectativas diferenciadas para homens e mulheres - ideais de feminilidade e masculinidade criados por cada sociedade, como ressalta (Goffman 1977GOFFMAN, Erving (1977). "The arrangement between the sexes". Theory and society, v. 4, n. 3, p. 301-331.). Decorre daí que as distintas classes de gênero desenvolvem o que o autor chama de "identidades de gênero", isto é, um senso de si próprio e uma referência para o autojulgamento que são dados pelo pertencimento ao gênero que lhes corresponde. Dentre as inúmeras maneiras pelas quais poder-se-ia pensar a articulação entre identidades de gênero e inserção política, optou-se por analisar as assunções de gênero que estão na base dos discursos sobre política e ainda as variações que podem ser atribuídas a gênero (e à combinação entre gênero, classe e idade/geração), nas formas de pensar e vivenciar a política apresentadas por mulheres e homens.

Dado que o acesso à política ou, de forma mais ampla, ao envolvimento social/público, requer disposições subjetivas que favoreçam a visão da política como algo possível e desejável, é preciso saber como homens e mulheres variam em sua exposição a informações sobre política bem como em suas oportunidades de desenvolver as orientações simbólicas necessárias ao envolvimento político e de se posicionar discursivamente sobre política. A aquisição de tais disposições se faz socialmente, por meio de uma socialização política mediada por instâncias tais como a família, a escola, o mercado de trabalho e os meios de comunicação. Como argumentam (Burns, Schlozman e Verba 2001BURNS, Nancy, SCHLOZMAN, Kay& VERBA, Sidney (2001). The private roots of public action: gender, equality, and political participation. Cambridge: Harvard University Press., p. 8), homens e mulheres são expostos a diferentes tipos de ambiente - mesmo que criados em uma mesma família ou educados numa mesma escola - que os "levam a extrair diferentes conclusões sobre a relevância da política para suas vidas".

A importância da socialização de gênero para o entendimento de como se articulam os discursos políticos fica evidenciada pela forma como a casa e a política se inter-relacionam. Há uma divisão do trabalho político familiar que atribui ao homem o papel de intermediário entre a família e o mundo externo13 13 A organização da família de classe popular, segundo (Sarti 2009, p. 20), está configurada como uma rede de obrigações morais em que o coletivo precede os indivíduos, o que confere um "padrão tradicional de autoridade e hierarquia" que segue a clivagem de gênero, assignando a mulher a uma posição subordinada e o homem ao polo dominante. O fato de que diversas(os) entrevistadas(os) tenham atribuído ao homem um papel mais ativo e de maior responsabilidade que o da mulher, em especial no que se refere a sair para trabalhar e prover o sustento, sinaliza um reconhecimento de que o enfrentamento do mundo externo ainda cabe primordialmente ao homem. , assim como há a percepção generalizada de que mulheres se interessam menos por política que homens e conversam menos sobre o tema14 14 Os dados provenientes das entrevistas indicam desigualdade de exposição à conversa sobre política. Há uma tendência, que independe de gênero, em não falar sobre política de forma geral e, especialmente, em não entrar em disputas políticas, o que decorre, em parte, do fato de que a democracia representativa não demanda, nem delas nem deles, um engajamento político mais abrangente que o voto. No entanto, segundo (Noelle-Neumann 1995, p. 44), as clivagens sociais importam no sentido de definir graus de silenciamento. Dentre as pessoas para quem se perguntou quem tem mais interesse por política e com quem se costuma falar mais sobre política - homens ou mulheres -, a maioria respondeu que homens se interessam e conversam mais. Havendo esse viés, isto é, supondo que essa intuição de que homens gostam mais de conversar sobre política seja usada como guia quando se trata de escolher um interlocutor - ainda quando as pessoas em geral não pensem sobre os motivos por que isso acontece -, decorre que mulheres sejam menos procuradas para tratar desse assunto, o que tenderia a reforçar sua menor exposição à política e, consequentemente, seu maior alheamento. . É esperado15 15 Sarti (2009, p. 140), em estudo sobre segmentos de classes populares urbanas, argumenta que "a família, com seus códigos de obrigações, é uma linguagem através da qual traduzem o mundo" e que "é esta especificidade que define o horizonte de sua ação política". que se usem princípios e valores empregados em outras esferas também na política, visto que a exigência de que a vida faça sentido abrange também a esfera política - ainda que, para muitas pessoas, a política permaneça como um campo propositadamente distante e obscuro - e é preciso responder a essa exigência aplicando algum princípio explicativo conhecido.

Para citar algumas falas que expressam o entendimento da inserção dos homens na política com base no seu papel doméstico, tem-se, por exemplo, a resposta de Camila16 16 Os nomes utilizados são fictícios. O uso dos pronomes "Dona" e "Seu" é feito para distinguir as faixas etárias. , jovem de classe média, ao porquê da prevalência dos homens na política: "Eu acho que, por causa até da sociedade, que o homem comanda: é o homem que lidera até a casa. De uns tempos para cá é que a mulher começou a aparecer mais. Mas eu acho que é por causa disso mesmo: passa de geração em geração, homem é que está ali no controle". Dona Miriam, de classe popular, sublinha a busca de poder na política como extensão do poder detido pelos homens em outras esferas: "Eu acho que, os homens, é para ter mais poder; ele já tem aquele poder por ser homem, né? Aí, na política, dobra mais aquele poder". Tratar-se-ia de um mecanismo que se inicia fora da política - neste caso, associado à essência mesma da masculinidade - e que se difunde para ela porque esta é a esfera por excelência de aquisição de poder.

Se a admissão de que os papéis familiares ainda privilegiam os homens politicamente - o que indica uma permanência - há, por outro lado, uma percepção de mudança. A maioria das pessoas entrevistadas nota que as relações de gênero estão mudando e as mulheres começando a entrar na política17 17 Todas(os) entrevistadas(os) que foram questionadas(os) se haveria maior presença das mulheres na política hoje do que antes responderam que sim. Nesse sentido, a política é um campo mais marcadamente masculino do que o religioso dado que inexistem dúvidas sobre a preponderância de homens na política ao passo que o mesmo nem sempre se dá em relação às instituições religiosas. A questão do aparecimento recente de mulheres na política não passa despercebida, mas não chega a constituir objeto de reflexão ou surpresa. Assim, há respostas que acusam a simples e completa desconsideração de questões como essa: "Não sei, não tenho nem ideia"; "Para mim, tanto faz". Outros posicionamentos sobre esse ponto serão analisados em articulação com os discursos relativos à compatibilidade entre feminilidade e política. . A feminilidade, tal como entendida predominantemente, impõe obstáculos ao ingresso da mulher no campo, mas também lhes proporciona recursos políticos, a começar pela maternidade, base da identidade feminina, que pode e tem sido mobilizada politicamente. Mães são agentes políticas e portadoras de reivindicações ao Estado. Nos termos de Costa (1983, p. 73 apud Santos et al., 2001SANTOS, Michele C. et al. (2001). "O papel masculino dos anos quarenta aos noventa: transformações no ideário". Paidéia, v. 11, n. 20, p. 57-68., p. 58), a valorização da maternidade imputa à mulher a condição de "mediadora entre os filhos e o Estado". Mulheres, em especial as mais pobres, interagem mais com agências públicas e, argumenta-se, tendem a ter posições mais favoráveis à provisão de políticas sociais que homens. O trabalho de cuidado lhes oferece uma perspectiva única sobre o papel do Estado. Dona Cleide faz referência explicitamente à sua condição de mãe para reclamar a atuação do Estado: "Nós, mães, primeiramente, temos que ser de casa. Porque o governo só manda a conta, né? O governo não sabe o que eu estou passando com ela (sua filha), mas eu sei, então eu tenho que fazer a minha parte e eles têm que fazer a deles. (...) Porque o governo está deixando a desejar nessa parte. Ele teria que melhorar muito o lado da infância, ajudar os filhos que pedem socorro".

A política, por constituir um campo alheio à realidade cotidiana, requer a analogia com outras práticas sociais para que se possa atribuir-lhe sentido. Como argumenta (Sarti 2009SARTI, Cynthia (2009). A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. São Paulo: Cortez., p. 39), a família constitui uma "referência simbólica" para pensar a política, o que é evidenciado por diversos traços presentes nos discursos analisados na pesquisa. Como exemplo de analogia com a vida familiar, usada para pensar a política, entrevistadas(os) propõem que ela seja reformada com os princípios morais da boa educação, cultivada em família: honestidade, caráter, disciplina e hierarquia.

A justificativa dada tanto por homens quanto por mulheres para afastar-se de um campo político considerado imoral é pontuada por referências a valores aprendidos com pai/mãe, como no caso de Fernando: "É algo que a minha mãe me ensinou, eu não imagino a possibilidade de alguém me pegar cometendo um tipo de irregularidade. Então, é questão até de formação mesmo". E de Ana: "Eu não iria me corromper porque meu pai me ensinou a ser justa e honesta e eu sou. Então, eu seria jogada de escanteio muito rápido porque eu não aceitaria as coisas e não daria certo". O mesmo raciocínio é usado por outras(os) entrevistadas(os) para pronunciar-se sobre como a política poderia ser modificada, o que também é uma forma de as(os) entrevistadas(os), tanto de classe popular quanto média, afirmarem a sua superioridade - ao menos a sua, criticando, em alguns casos, o que consideram os maus modos ou a falta de "conscientização" do brasileiro médio - em relação aos políticos. Eles se dizem portadores de algo que os políticos não têm: valores morais. Wiliam: "Para mudar, eles (os políticos) teriam que ter essa conscientização. Ensinar as crianças porque elas vão ser os futuros políticos. (...) Eu acho que a única forma de mudar é dessa forma: ensinando as crianças, as escolas, os pais passando para os filhos. Eu acredito que, se eu entrasse na política, eu faria alguma coisa, como você também". Elisabete: "A maioria dos políticos tem curso superior, mas falta um pouquinho mais de educação mesmo, caráter, honestidade mesmo. Isso aí, com estudo, não se adquire, não (risos)".

Se cabe à família prover os princípios morais que serão utilizados na política, alguns concluem que é a decadência da primeira a responsável pela derrocada da segunda. A ordem social mais ampla e a ordem doméstica são vistas como proximamente conectadas. O vínculo que se estabelece entre a casa e a política é resumido na seguinte fala, de Seu Ricardo: "Assim como todo mundo fala que a base de toda sociedade é a família, se você tem uma família desestruturada, o país vai ser desestruturado". Homens mais velhos - nesse ponto, a idade mostrou-se uma variável importante para entender as diferenças de postura - assinalam mudanças negativas, como a maior intervenção do Estado no âmbito familiar, abalando a autoridade paterna: "Se, hoje, você der um tapa num filho seu, você está arriscado a ir preso. E tem menino: 'Se o senhor me bater, eu vou dar parte (risos)"; "O Estado está assumindo essas responsabilidades e não está podendo, não está dando conta. O pai, hoje, não pode reprimir o filho". De forma geral, há um lamento pela perda de uma ordem social que se supõe ter havido em tempos passados - que entrevistados mais velhos contam ter vivido -, em que a criação dos filhos era mais rígida e as leis eram mais cumpridas ou havia menos violência. Seu Mário, por exemplo, transita, em sua fala, entre o mundo da casa e o mundo público como se não houvesse distinção: "Quando você perde o respeito dentro de casa, ninguém te obedece mais. Seu filho não te obedece. (...) Eu vejo o exemplo de quando eu tinha 18 anos. Era difícil você ver um jovem dirigindo sem carteira, antes dos 18, porque tinham medo da polícia, porque o pai não deixava, porque o irmão não incentivava. Hoje não, hoje com 12, 13 anos, o moleque está dirigindo e é um orgulho para o pai. (...) Está faltando o punho, uma ordem. Aqui, no Brasil, não tem isso. Você pode pegar uma multa ali, mas você liga para o parente, que liga para o senador e tira sua multa, o juiz te libera, tira sua multa do sistema. Sempre tem isso. Agora, o pobre não, o pobre paga, que ele não tem esse contato. (...) Falta a lei e falta quem execute a lei". Esse tipo de denúncia da falta de ordem está invariavelmente associado, nas entrevistas, a reclamações relativas a questões que vêm sendo bastante discutidas em tempos recentes - maioridade penal, casamento homossexual e pena de morte -, que não serão aprofundadas aqui.

Noções de feminilidade e masculinidade se imbricam com representações sobre política, em especial na medida em que papéis familiares femininos e masculinos são usados como referência para pensar a inserção de mulheres e homens na política. A esse respeito, há evidências empíricas18 18 Burns, Schlozman e Verba (2001) argumentam que a família tem efeitos indiretos sobre a participação política de homens e mulheres, empurrando homens para o mercado de trabalho e para instituições religiosas, o que lhes confere vantagens em termos de recursos e oportunidades de participação, e mantendo as mulheres em casa quando as crianças são pequenas. Além disso, os autores concluem que a hierarquia doméstica - fator apontado pela teoria feminista - tem também impacto negativo sobre a participação, de forma que mulheres são mais ativas quando se expressam livremente em discussões políticas em casa e homens também se tornam mais ativos quando controlam em maior medida as decisões financeiras em âmbito familiar. e argumentos teóricos que apontam ter a organização familiar implicações políticas. Além do fato de os domicílios constituírem locais de discussão política, o que pode ser positivo em termos de engajamento político das mulheres, há outros fatores referentes à organização familiar que beneficiam mais os homens que as mulheres.

Se se entende que o papel familiar do homem o impulsiona em direção à política, o da mulher é visto como limitador de seu engajamento político. No depoimento de Seu José, de classe popular, que preside uma associação, fica explícita a ideia de que as candidatas a cargos políticos enfrentam oposição cerrada em casa: "Ela (qualquer mulher) vai sair candidata e o marido não mexe com política: é o que termina causando separação. Isso a gente já viu muito por aí. Na época de política, é igual a carnaval, né? Eu vi muitos casamentos acabarem em época de campanha política, aqui. Mulher trabalhar na política, marido não gostava: aquele negócio, né?". Por outro lado, Fernando, jovem de classe média, recorre ao papel maternal feminino para explicar por que seria desejável que houvesse mais mulheres na política: "Eu acho que a mulher tem o dom de administrar muito bacana, muito suave. Tiro o exemplo da minha mãe: administra uma casa, um trabalho, filhos, estudo e tal. Só por conta disso, a mulher já é mais capacitada que o homem. Na essência, sem média, sem demagogia, acho mesmo". A justificativa que ele provê para sua opinião a respeito da capacidade de gestão das mulheres - o desempenho de sua mãe na gestão de sua vida profissional e familiar - reforça o uso do padrão de pensar em relações familiares como bússola para a política.

A existência de uma "chefia familiar" também diz respeito claramente a uma hierarquia doméstica ainda bastante presente, a qual permite que se pense no que pode haver de comum entre ambos os tipos de poder: o patriarcal familiar e o político. Da mesma maneira com que centram suas ideias sobre as origens dos males políticos em fatores relacionados ao âmbito privado/doméstico, fazem-se analogias entre o papel dos governantes na esfera pública e o papel do chefe de família. Falas como a de seu Mário, que estabelecem uma clara linha de continuidade entre as linhas de comando privadas e públicas, enfatizam que o pai de família deve se fazer obedecer assim como o governante deve saber impor a ordem. Ao ser perguntado sobre como avalia, em linhas gerais, o período referente à ditadura militar, após falar sobre suas muitas vantagens e poucas desvantagens, ele responde com uma frase que marca o que considera deva ser o princípio de atuação daquele que bem governa sua casa ou seu país: "Quando você perde o respeito dentro de casa, ninguém te obedece mais..." O papel dos governantes é concebido por analogia com o papel do pai de família. Essa mesma linha de argumentação pode ser usada para justificar que cada grupo - pais de família, de um lado, governantes, de outro - fique em seu lugar.

O cidadão comum faz questão de afirmar a dignidade de seu modo de vida, que gira, em grande parte, em torno de papéis privados/domésticos, em oposição à indignidade dos políticos. A face política da masculinidade19 19 Conforme Fuller (1997 apud Gutmann, 2003, p. 35), a masculinidade entre homens de classe média no Peru está configurada ao redor de três eixos: hombridade (manliness), domesticidade e exterioridade (referente ao trabalho e à política) e que cada homem se depara com as diferentes demandas colocadas por esses eixos ao longo da vida, às vezes privilegiando um ou outro a depender do seu posicionamento no ciclo de vida. fica frequentemente em segundo plano. Seu Ricardo, por exemplo, enxerga um dilema entre papéis familiares e outros e dá precedência ao papel paterno: "Como cidadão, que participa das coisas, eu até que gostaria muito. Mas, se eu desviar essa energia que eu tenho para minha vida, para minha família, se eu desviar para outra coisa, em uma das coisas eu vou comprometer, né? Você vê que um bom político não é um bom pai, um bom profissional, ele não é um bom marido porque ele vai se dedicar muito à empresa e vai deixar a desejar junto à esposa, à família20 20 A fala de Seu Ricardo, um homem que se diz religioso e devoto pai de cinco filhos, ilustra o modelo de masculinidade discutido por Santos et al. (2001), definido em torno da convivência familiar e da felicidade no lar. Trata-se de uma espécie de privatismo católico que reforça a importância da paternidade, mas não questiona estruturalmente a divisão sexual do trabalho nem a submissão feminina ao homem. ". Está implícita também a ideia, congruente com a de que as raízes dos problemas políticos encontram-se na vida cotidiana, de que a provisão de uma boa educação doméstica - responsabilidade do pai de família - já é uma contribuição suficiente à vida política.

As explicações relativas à predominância dos homens na política e à baixa presença de mulheres nessa esfera frequentemente recorrem a analogias com noções mais amplas de masculinidade e feminilidade. Como argumenta (Gutmann 2003GUTMANN, Matthew (2003). "Introduction: discarding manly dichotomies in Latin America", em GUTMANN, Matthew (ed.). Changing men and masculinities in Latin America. Durham, London: Duke University Press.), os modelos hegemônicos de masculinidade estão apoiados sobre relações de dominação masculina no âmbito doméstico e nos demais âmbitos sociais, reforçadas, como sublinham análises de casos latino-americanos, pelos impactos deixados por anos de regime militar, inclusive sobre o imaginário da sociedade brasileira a respeito da ordem como valor, como discutido.

Outro recurso ambivalente (no sentido de portador de potencialidades e riscos) de que dispõem as mulheres, também relativo às concepções prevalentes sobre feminilidade, diz respeito à existência de um "estereótipo benevolente" (Sapiro, 2003________ (2003). "Theorizing gender in political psychology research", em SEARS, David et al. (eds.). Oxford handbook of political psychology. New York: Oxford University Press., p. 616) - que, embora redutor e restritivo, dado que constitui um estereótipo, pode ser usado politicamente em favor das mulheres. Sapiro argumenta que a literatura sobre estereótipos de gênero sugere que eles podem ser tanto "benevolentes" - de acordo com os quais as mulheres são mais compassivas e, nesse caso, o estereótipo atua por meio de "paternalismo protetivo e cavalheirismo" - quanto "hostis", operando por meio de exclusão e classificando as mulheres como emotivas em excesso. Pensar sobre as mulheres e sua relação com a política, tal como a entrevista convida os respondentes a fazer, implica realizar operações mentais de oposição aos homens. Para (Krais 1993KRAIS, Beate (1993). "Gender and symbolic violence: female oppression in the light of Pierre Bourdieu's theory of social practice", em CALHOUN, Craig, LIPUMA, Edward & POSTONE, Moshe (eds.). Bourdieu: critical perspectives. Chicago: University of Chicago Press., p. 170), a construção da identidade de gênero requer um trabalho de "distinção, um trabalho que consiste de exclusões, simplificações, opressão de ambiguidades a respeito do conceito antagonístico de masculino e feminino". Isso quer dizer que as representações de gênero tendem a opor homens e mulheres, assumindo que elas são "maternais" - emotivas, honestas, dispostas a agradar o outro, mais presas à "moral relacional" e ao "valor-família" (Machado e Barros, 2009MACHADO, Maria das Dores & BARROS, Myriam (2009). "Gênero, geração e classe: uma discussão sobre as camadas médias e populares do Rio de Janeiro". Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 17, n. 344, p. 369-393., p. 371) e homens são o oposto disso. Essa distinção segue a linha da "ética do cuidado" e da "política ética", já referenciada anteriormente e baseada em autoras como Chodorow e Elshtain.

Há três tipos de discursos sobre a compatibilidade entre feminilidade e política. Tanto o primeiro quanto o segundo tipos partem da visão do estereótipo benevolente, que chamo de "feminilidade virtuosa", mas fazem conclusões distintas sobre a desejabilidade da entrada das mulheres na política. O primeiro supõe que as mulheres podem aportar características da feminilidade para o mundo da política, transformando-o. Celebra-se a entrada de mais mulheres na política por este motivo e tende-se a assumir que não haveria obstáculos estruturais ao incremento desse fenômeno. Assim como outros campos sociais, a política foi apenas recentemente aberta às mulheres e é uma questão de tempo até que elas atinjam o mesmo grau de presença dos homens. No entanto, há também a crença em que, por terem características distintas do que predomina na política, as mulheres a evitam. Nesse caso, haveria uma oposição entre feminilidade e política derivada da percepção de que mulheres, percebendo a política tal como ela é, corrupta e masculina, se intimidam e não a buscam.

O segundo tipo de discurso considera que a política muda as mulheres, e não o contrário. Em lugar de transformar a política, melhorando-a, as mulheres é que são corrompidas quando nela penetram. Por causa disso, elas também evitam a política e a política as evita, isto é, a política dispõe de um arcabouço institucional ou está inserida num contexto social mais amplo que restringe a participação feminina.

Esses discursos aparecem nas falas entremeados de referências a duas candidatas de características em vários sentidos opostas: a Presidenta Dilma Rousseff e a candidata a governadora nas últimas eleições no Distrito Federal, Weslian Roriz, esposa do ex-governador Joaquim Roriz, que se tornou candidata após o impedimento do marido21 21 Joaquim Roriz renunciou à candidatura após ter sido impedido pela Lei da Ficha Limpa no Tribunal Superior Eleitoral. No mesmo dia, 2 de outubro de 2010, a candidatura de sua esposa pelo Partido Social Cristão foi lançada. Weslian Roriz notabilizou-se por sua feminilidade convencional, que em nada a favoreceu. Weslian incorporou, na perspectiva dos(as) respondentes, a imagem de mulher tradicional: dona de casa que estava ali apenas para ser leal ao marido e fazer sua vontade, sem nada entender de assuntos públicos. Esta "mulherzinha" inspiradora de pena em nada se assemelha à imagem "pulso firme" de Dilma, vista como uma afilhada de Lula, mas também como uma pessoa de personalidade própria ou, no mínimo, como alguém cujo comportamento não é constrangedoramente impróprio do campo político. .

Feminilidade e política são compatíveis e é desejável que o sejam. Essa é a visão expressa por mulheres e homens que são convidadas(os) a pensar sobre por que a presença de mulheres na política não é tão grande quanto a de homens e o que pensaram a respeito da candidatura de mulheres para a presidência da República nas eleições passadas. O raciocínio expresso por muitos consiste em aplicar à política as representações dominantes sobre mulheres - o estereótipo benevolente a respeito da feminilidade virtuosa -, isto é, supor que as mulheres se comportariam na esfera política assim como fazem em casa, isto é, como mães honestas, emotivas e sensíveis. Assim, dado que a presença das mulheres na política ganhou proporções maiores nas últimas eleições, a novidade desse fato é recebida por muitos - a maioria das(os) entrevistadas(os) - com bons olhos. Para esse grupo, o gênero pode ser considerado um atributo que permite prever honestidade num grau que muitos não atribuem ao curso superior, por exemplo, embora não haja essa comparação nos discursos. No entanto, vários dos que julgaram que a educação doméstica - em geral, provida pelas mulheres - é mais efetiva em garantir um bom comportamento do que a escolaridade também consideram que a maior "sensibilidade" feminina teria serventia na política.

As representações das mulheres entrevistadas - independentemente de classe social - não distam muito das representações masculinas sobre as mulheres. Além disso, tanto elas quanto eles explicitam suas representações sempre de forma comparativa, confirmando que a identidade de gênero se constrói pelo antagonismo entre feminino e masculino. Dona Renata, por exemplo, afirma que "mulher é muito voltada para o sentimento. Eu sempre acreditei nisso. Então eu sempre achei que elas olhariam para o lado da pobreza, da carência. Eu acho que a mulher pensa mais com o coração. Então, eu acho que a maioria dos homens é muito endurecida, muito prática com as coisas. Eu acho que as mulheres, mesmo sendo no quesito política, eu acho que seria melhor". Camila reforça o ponto de que os escândalos políticos em geral não envolvem mulheres: "Não sei por que, mas eu acho que as mulheres são mais honestas. Na política, você vê pouco escândalo envolvendo mulher. (...) Então, eu acho que mulher tem mais esse lado de honestidade".

No caso dos homens, argumentos semelhantes são utilizados: menor corrupção associada às mulheres ("Você já viu - deve ter, não vou dizer que não tem - mulher corrupta? Você já viu envolvida em alguma coisa? É muito difícil, não é?"; "Mulher não tem muito instinto de roubar, não. É muito difícil você ver uma mulher metida em coisa errada") e características da feminilidade que fariam a mulher agir com mais cuidado ("mulher é mais centrada, homem é mais afoito") ou de forma mais sentimental ("A mulher tem mais misericórdia do ser humano, o homem é mais durão. A mulher é mais amorosa, mais compreensiva") e/ou com maior preocupação pelo bem-estar social: "O olhar da mulher, a palavra da mulher, em questões sociais, isso é muito importante"; "Se ela é motivada mais pela emoção do que pela razão, então, ela vai olhar para aquela pessoa que está passando dificuldade e vai se colocar no lugar dela e: 'Eu vou tentar fazer alguma coisa. (...)' O homem é muito razão: 'Ah, ele está lá? Não estou nem aí. Eu estou aqui, eu estou bem'. E, geralmente, esses que são mais... recebem o preconceito da sociedade. Então, é melhor botar mulher que ela não vai receber o mesmo preconceito, da mesma forma. Porque ela é um outro gênero, mas é o gênero dela, entendeu? Não é um homem com gênero de mulher. É o gênero dela").

Como visto, os principais pontos positivos, elencados por mulheres e homens, potencialmente agregados pela mulher à política são a honestidade e o olhar para questões sociais. Logo, o lugar que se imagina poderia ser ocupado pelas mulheres na política é o do social - um local de menor prestígio e poder dentro do campo político. Como bem assinala o último entrevistado citado - Ivo, jovem de classe média -, a emotividade e o sentimentalismo são características estranhas ao campo político e discriminadas por ele. No entanto, ele faz a suposição - errônea, segundo (Okin 1989OKIN, Susan (1989). Justice, gender, and the family. New York: Basic Books.) - de que esses traços poderiam ser bem-vindos em mulheres ainda que não o sejam em homens.

O otimismo da(os) portadora(es) desse discurso - embora não sejam a(os) única(os) a manifestar tal crença - a(os) leva a, em muitos casos, acreditar que as mulheres poderão eleger-se e ocupar uma proporção cada vez maior de postos políticos com base nesse capital advindo do estereótipo da feminilidade. Nesse sentido, a eleição de uma mulher para presidente é entendida, por alguns, como prova de que não há mais obstáculos às mulheres na política - quer seja no que se refere à sua circulação no campo político ou ao seu desejo de entrada nele (e de que, caso mais mulheres queiram, elas poderão entrar, sem maiores problemas). A progressiva entrada de mulheres em campos dos quais estavam ausentes - o mercado de trabalho, a educação e, agora, a política -, é entendida como um mesmo fenômeno, que tenderia a se intensificar também neste último como tem acontecido nos demais.

Os recursos da feminilidade que se supõe poder reformar a política são, no entanto, os mesmos que podem afastar as mulheres desse campo. Dona Márcia, de classe média, considera que a presença maior de homens na política se deve a que "nem todas as mulheres têm coragem de enfrentar uma política" e que os homens têm essa coragem "porque eles já vão no pensamento de roubar". Se, para Dona Márcia, a "coragem" masculina não é louvada, mas desqualificada, dado que a política é o que é22 22 Trata-se de um raciocínio um tanto paradoxal que, ao mesmo tempo, comemora a recusa das mulheres em participar da "política corrupta" e destaca as virtudes que elas poderiam aportar. À maneira do que fazem Bourque e Grossholtz (1998) em artigo em que lamentam que as mulheres tenham "entrado no jogo" da política masculina, participando dele, e concomitantemente, tecem loas à visão feminina mais preocupada com a dimensão moral da política, um traço visto como devendo ser incorporado pela política dominante. , para Gabriela, a falta de coragem e vontade feminina também não é censurada, é apenas vista como um traço distintivo de gênero: "Às vezes, os homens gostam mais de política do que as mulheres. As mulheres gostam de comentar mais sobre política, mas o homem gosta de se amostrar mais, ele gosta mais de dizer assim: 'Não, eu vou entrar, vou tentar'. A mulher já não pensa em entrar para a política, ela gosta mais de falar sobre política. Só não tem coragem de entrar para assumir um cargo". A política é vista como uma atividade que requer agressividade e racionalidade instrumental estrita, mais do que princípios. Dado que são menos propensas à corrupção que homens, as mulheres fogem dela.

Como regra geral, não há um clamor para que mais mulheres entrem na política - ainda que se reconheçam as qualidades agregadas pelas mulheres ao campo e que a feminilidade possa não ser vista como um empecilho à entrada nele. Se não é visto como empecilho, porém, tampouco constitui um trunfo. O discurso de que mulheres moralizam a política - ainda que usado por candidatas a seu favor, como afirma (Barreira 1998BARREIRA, Irlys (1998). Chuva de papéis: ritos e símbolos de campanhas eleitorais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará., p. 26) - parece construído para dar conta da singularidade deste "novo" ator político, mas não para orientar a avaliação de eleitora(es) sobre as candidaturas femininas. Se o estereótipo de gênero é acionado para responder à questão da possível existência de diferenças entre mulheres e homens na política, isso não se conjuga com um potencial desejo de ver mais mulheres ocupando cargos políticos. Isso porque a dimensão de gênero simplesmente não é percebida como uma questão para o(a) eleitor(a) comum ("para mim, tanto faz", "nunca parei para pensar nessa questão, não") ou, ainda, porque não se considera que o gênero seja um critério legítimo para pautar a ocupação de cargos públicos.

Poder-se-ia supor que, no caso das mulheres, os discursos sublinhados indicariam uma tendência a crer na representação feminina como uma forma de "política de presença" (Phillips, 2001PHILLIPS, Anne (2001). "De uma política de ideias a uma política de presença?". Revista de Estudos Feministas, v. 9, n. 1, p. 268-290.), isto é, uma forma de representação que levaria ao campo político características da feminilidade que permitiriam às mulheres identificar-se com suas representantes, enxergando nelas traços positivos de gênero. No entanto, há poucas razões para crer que mulheres fariam sua escolha eleitoral com base no gênero das candidatas. Além disso, os elogios à mulher na política apenas surgem quando se levanta este tema específico, mas não quando se questiona a respeito dos políticos e da política em geral. Gênero não aparece nos discursos como uma identidade significativa, em termos políticos, para as mulheres entrevistadas. Há uma condenação moral padrão à escolha eleitoral baseada no gênero da candidata, o que se verifica pela ênfase em afirmar que não se votou em Dilma/Marina/Weslian ou em qualquer outra candidata por se tratar de mulheres, mas por outros critérios que se julgam mais relevantes/aceitáveis: (i) competência e projeto político; (ii) no caso de Dilma, e, em maior medida, Weslian, confiança na indicação de Lula e Roriz; (iii) filiação religiosa da(o) candidato(a), no caso de Marina.

No caso da primeira narrativa - a que enfatiza a competência técnica e/ou a trajetória política em detrimento do gênero -, há uma preocupação em afirmar que se conhecem e se seguem os códigos de conduta próprios ao campo político - não sendo o de gênero um deles (ao menos não no caso das candidatas). Assim, Jeremias responde que votaria, sim, em uma mulher, "dependendo das propostas dela". E quando perguntado se votara em Marina por ser evangélica, ele responde, com certa indignação: "Não, o meu voto independe de a pessoa ser evangélica ou não. O que vale, para mim, é o caráter da pessoa, as propostas das pessoas". A segunda narrativa é a que justifica o voto especificamente em Dilma e Weslian em razão daqueles que são considerados seus "padrinhos políticos", que já gozavam de ampla popularidade e identificação com o eleitorado. No caso de Dilma, observa-se, em alguns casos, uma tendência a afirmar suas características próprias - masculinas - como um fator adicional de reforço ao voto e, no caso de Weslian, suas características de gênero são citadas como um fator desabonador do voto nela, às vezes superado em virtude de seu padrinho/marido.

O discurso relativo à candidatura de Marina Silva compõe a terceira narrativa contendo critérios de escolha eleitoral considerados mais legítimos do que o gênero da mulher em questão. A alusão à religião de Marina como justificativa para o voto nela é citada por cinco mulheres. Nesse sentido, percebe-se que há uma tendência a admitir que o critério religioso é politicamente válido ainda que nem todas(os) as(os) entrevistada(os) que votaram em Marina sejam capazes de defendê-lo abertamente23 23 Para (Miranda 1999, p. 79), que estudou integrantes do movimento católico carismático, "a religião se constitui uma forte e, em certos casos quase exclusiva, referência para pensar a política". . Camila não se intimida, porém, e declara em resposta à questão de por que escolheu Marina: "Porque ela é cristã e eu sou cristã também. Eu acho que é mais difícil de ela se corromper. E eu a acho muito pulso firme, ela é muito inteligente, ela sabe do que ela está falando, do que ela está fazendo, do que ela pretende fazer. Eu achava até que ela era bem mais convicta do que a Dilma. Mas a Dilma pegou a onda do Lula e se beneficiou, mas eu preferiria ela. Acho que ela teria mais garra para governar". Em seu discurso, à dimensão religiosa acrescentam-se outras, o que sinaliza uma compreensão de que apenas a cristandade de Marina poderia ser considerada uma razão insuficiente/ilegítima para guiar o voto.

A despeito de que haja uma tendência a considerar a religião e a política como campos opostos - sinalizada pelo rechaço de alguns à ideia de que utilizaram o critério religioso para guiar a escolha política -, observa-se também, e de forma preponderante, a imbricação entre os dois campos e uma disposição a usar o princípio religioso mais do que o de gênero. O caso de Marina Silva presta-se de forma particularmente interessante a essa análise por se tratar de uma mulher evangélica, que conjuga, portanto, duas identidades acionáveis politicamente. Ela se beneficiaria, assim, de eventuais apostas na sua dupla blindagem contra a corrupção: sua condição de mulher e o fato de ser evangélica.

Há ainda outro elemento relevante mais encontrado entre os portadores do primeiro discurso: a crença em que mulheres na política, mais especificamente a Presidenta Dilma, simbolizam a ascensão social de uma minoria - as mulheres - ao poder. Essa percepção nem sempre é suficiente para levar sua portadora a votar numa mulher - até porque, como já sugerido, a feminilidade não é comumente vista como critério político válido. No entanto, não deixa de haver o reconhecimento de que uma mulher poderá ter interesse maior em agendas femininas/feministas. A eleição de Dilma consiste numa poderosa forma de representação simbólica feminina porque aponta a capacidade feminina de ocupar espaços de poder. A simples presença de uma mulher num cargo tão simbólico já evoca algum sentido de identificação por parte de mulheres.

Outra dimensão da representação feminina de Dilma estaria em sua capacidade de atuar em favor de "interesses femininos". Nesse sentido, a excepcionalidade e a singularidade da presença feminina na política levam a supor que ela procurará atuar em defesa da minoria que integra, o que não acontece com os homens em relação aos políticos. A "perspectiva social" de Dilma a tornaria capaz de entender as mulheres e governar em seu favor numa espécie de solidariedade de gênero, para Michele: "Mulher sabe o que as outras mulheres passam. (...) Porque homem, minha filha (risos), homem só quer as coisas para ele, o que eles pensam é só para eles. Então, tendo mulher, fica até mais fácil". Como já sugerido, porém, esse sentido de representatividade, além de não ser alimentado por todas as mulheres, não é considerado uma razão para o voto. Mesmo mulheres que louvam a eleição de uma mulher para a presidência, como Dona Luzia ("Agora tem a presidenta lá: eu acho o máximo! Tudo que o homem faz, quando uma mulher começa a fazer, eu acho legal demais.") afirma não ter votado em Dilma por causa de seu partido, razão também apresentada por Dona Eunice, que vê a ascensão de Dilma como "sinal de que as mulheres estão com um crescimento bom na política".

A descrença de Ivo em que Dilma poderia promover interesses femininos, como quer que sejam entendidos, é respaldada por outras(os) entrevistadas(os), como Ana: "Não necessariamente o fato de ser uma mulher no poder quer dizer que ela vá defender mais ou menos os interesses das mulheres". Dado que não há uma forte identidade política de gênero, também não se manifesta a crença em que uma presidenta poderia advogar "interesses das mulheres". A própria definição desse termo é improvável. Ao contrário do que acontece em relação à raça, como argumentam (Burns e Kinder 2011BURNS, Nancy & KINDER, Donald (2011). "Categorical politics: gender, race, and public opinion", em BERINSKY, Adam (ed.). New directions in public opinion. New York: Routledge.), a organização social de gênero (o fato de que as mulheres estão distribuídas entre os homens - como já argumentado por Beauvoir24 24 (Beauvoir 2009, p. 20): "O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro" dado que as mulheres "vivem dispersas entre os homens, ligadas ... (a eles) mais estreitamente do que a outras mulheres". -, ao contrários dos negros, que tendem a estar mais segregados), impede que as mulheres desenvolvam um senso de identificação com seu próprio grupo tão alto quanto os negros. Em decorrência disso também, como acrescento, as mulheres passam pelos mesmos processos de socialização cultural a que são submetidos os homens, o que faz delas portadoras de representações de gênero que lhes reservam um lugar subordinado na sociedade. Daí a maior dificuldade de levar as mulheres a se verem como membros de um "grupo marginalizado imputado", portador de interesses comuns.

A suspeição a respeito da atuação política das mulheres é marcante do segundo discurso, aquele que considera a política uma cilada para as mulheres e, portanto, desconfia de que elas poderiam acrescentar algo de positivo a esse campo, tanto porque elas próprias falhariam em manter sua virtude quanto porque o campo as desvirtuaria. Observa-se uma tentativa de apegar-se à crença de que a presença das mulheres poderia resultar em algo positivo para a política, porém considera-se essa aposta muito arriscada - melhor não fazê-la. Encontram-se argumentos como os de que a mulher tem em si a virtude, mas não consegue ou está impossibilitada de fazê-la germinar na política. A política é estruturalmente corrupta e não pode ser reformada pela infusão de virtude feita por mulheres, dado que estas são cooptadas e reproduzem o comportamento próprio do campo.

O ethos político é masculino, isto é, seus valores predominantes são masculinos, daí porque se valoriza e se estigmatiza a mudança que a feminilidade poderia trazer. No entanto, não se crê que uma minoria de mulheres seja capaz de modificar todo o funcionamento de um campo, em que práticas corruptas são percebidas como correntes. Ana é otimista, porém duvida: "A mulher tem uma outra visão das coisas, de um modo geral. Vejo como uma coisa positiva, mas é como eu lhe falei também: isso não quer dizer que vai diminuir corrupção, roubalheira, que vai diminuir essa coisa horrorosa que, realmente, já está instalada aí. É um bom começo, a mulher é mais sensitiva, observadora, algumas são mais éticas - algumas. (...) Eu acho que já existe um vício muito grande na estrutura. Mas, há possibilidades". E sobre a Presidenta Dilma, ela ressalva: "Eu acho que a Dilma está procurando, de alguma forma, fazer as coisas caminharem. Ela me parece ser bem pulso firme. Mas ela tem assessores, né? Ela não trabalha sozinha. (...) Mesmo que ela dê a última palavra, eu não acredito que a última palavra seja decidida sozinha". Jeremias ecoa a mesma linha de raciocínio. Em princípio, pondera: "As mulheres são mais racionais, a maioria pensa em, realmente, fazer alguma coisa. Talvez não consiga, mas pelo menos tem a intenção". Depois, porém, o pessimismo prevalece: "Mas quando entram lá dentro, o sistema é outro, né? Acho que até pensam em mudar, em fazer coisas que vão beneficiar a população. Só que o político não muda sozinho, ele depende dos outros. (...) Então, acaba que fica meio que de rabo preso com os outros políticos. Independe de ser mulher ou homem".

A avaliação que fazem da presença da mulher na política é que elas se comportam tal como os homens, ou seja, perdem as virtudes da feminilidade. Para os portadores desse discurso, o aumento do número de mulheres não é uma solução adequada para o problema da corrupção na política nem para o problema do comportamento oportunista e indigno de confiança dos políticos. Mulheres, em suma, podem ser mães dedicadas e até moralmente superiores, mas também são seres humanos, ou seja, "a mulher também pode ser balançada pelo interesse. A mulher, também, não é aquela perfeição", nos termos de Seu Ricardo. A esperança de redenção feminina seria, dessa forma, vã. Para preservar sua feminilidade/integridade, seria desejável até que as mulheres se afastassem da política, para Fabiana: "Política é um trem tão sujo, né? E mulher fica se envolvendo com isso, é tão feio..."

Há, portanto, uma suposição de que a feminilidade virtuosa pode ser corrompida por um campo político masculinizado. E há também um entendimento de que a política é um campo que suprime as diferenças de gênero, igualando mulheres a homens, ainda que não seja permeável aos dois gêneros na mesma medida. Se elas não agem diferentemente dos homens, a hipótese da representatividade maior das mulheres cai por terra ao menos no que diz respeito à sua capacidade de atuar em benefício das mulheres.

O terceiro discurso - minoritário - é o único a romper com o estereótipo da feminilidade virtuosa. Nem a política as corrompe (as mulheres) nem elas a melhoram. A política é um campo em que preocupações de gênero não devem existir porque não se pode saber, a priori, se uma mulher ou um homem fará um melhor trabalho na política. Não porque a política seja um campo em que as diferenças de gênero se anulam - característica do segundo discurso -, mas porque as mulheres não estão mais predispostas a atuar de forma maternal e honesta na política. A fala de Paulo sintetiza a ideia: "Eu penso o seguinte: humano é humano e política é política. (...) Eu acho que gênero não, sexo não define caráter de ninguém".

E Seu Arnaldo também se incomoda com a pergunta se votaria em uma mulher: "Eu votaria no político que me agradasse, independentemente do sexo. Eu acho um tremendo de um preconceito: 'Você votaria numa mulher? Você faria isso com uma mulher?' Eu olho o profissional. Eu não me consultaria com uma mulher, eu me consultaria com um profissional de saúde. (...) Se eu olhar primeiro o sexo, eu já estou errando". Ainda que eles não estejam imunes a representações de gênero que marcam distinções entre homens e mulheres, procuram negar radicalmente que gênero seja usado como critério para pautar decisões politicas e acreditam fazê-lo em nome da igualdade de gênero.

Em suma, todo o discurso sobre a presença das mulheres na política - tanto o que o celebra quanto o que desconfia de seus efeitos e o que lhe é indiferente - não faz desta uma questão politicamente relevante. Ainda quando se recebe com bons olhos o crescimento do número de mulheres, é de uma perspectiva estereotipada - dada a perpetuação das mulheres como pessoas maternais - e instrumental, ou seja, como algo que poderá trazer efeitos benéficos para as práticas políticas ou para as políticas públicas, e não como uma questão de justiça de gênero, isto é, de inclusão das mulheres em condições de igualdade no campo político. Exceto pelas poucas falas que mencionam a representatividade descritiva de mulheres que chegam ao poder, de forma geral a identidade de gênero passa ao largo das preocupações femininas.

Conclusão

O conceito de política do cotidiano - da política praticada nas interações do dia a dia, em espaços não convencionalmente chamados de políticos - é o que mais se aproxima da visão de política que muitos das(os) entrevistadas(os) nutrem: a política baseada em representações e critérios morais. Não porque a política seja vista como praticada fora dos gabinetes, mas porque os valores associados à política estão presentes nas demais esferas de vida das pessoas e porque a cidadania é entendida como referente à vida cotidiana.

O entendimento e a avaliação da política institucional com base em valores familiares são feitos extensivamente, com relação aos seguintes aspectos: papel dos governantes, avaliação de candidatas(os), prevalência dos homens na política e organização da ordem social. Como a família está ordenada sobre bases não democráticas, o uso dessa analogia para pensar a ordem política tende a não resultar em posturas políticas democráticas. As experiências vividas na família constituem a fonte a partir da qual o comportamento político começa a ser moldado, sendo a organização política pensada a partir da doméstica e papéis políticos concebidos a partir de papéis domésticos. Nesse sentido, a inter-relação entre valores familiares e políticos, que tenta aproximar a política do âmbito do cotidiano, não produz a sua democratização25 25 Autoras que estudaram esta inter-relação percebem a continuidade entre o autoritarismo nas duas esferas. Para Young (2005), num "regime de segurança", a relação dos cidadãos com o mundo político pode tomar contornos semelhantes à relação estabelecida entre patriarca e subalternos num contexto familiar. A postura de "masculinidade protetora" e paternalista que o governante assume num regime desse tipo é entendida por associação com o "cuidado familiar", o que a torna sedutora para os cidadãos a serem protegidos, estabelecendo-se assim uma relação não democrática de obediência baseada no medo. Ao agir dessa forma, o governante emula o papel de pai que infantiliza os cidadãos. .

Exemplificando como esse fenômeno se fez notar no caso desta pesquisa, observou-se a avaliação do regime militar com base em analogias com a ordem privada que servem para ressaltar a ordem reinante naquela época, em comparação com a desorganização típica da multiplicidade de atores políticos de um regime democrático. Para alguns segmentos, notadamente homens mais velhos, a relevância da família se manifesta especificamente na perda da autoridade paterna que possuíam e, em grande medida, ainda possuem os homens numa ordem familiar que lhes atribui o papel de autoridades mantenedoras da ordem moral. A avaliação que eles fazem das transformações no âmbito da família influencia também sua visão de como a ordem social/pública está sendo alterada. A maior intervenção do Estado na vida familiar, com o intuito de assegurar proteção a indivíduos, como crianças e mulheres, que ocupam uma posição de vulnerabilidade, lhes retira parte do poder patriarcal. Isso os leva a acreditar que a autoridade pública está usurpando funções que não lhe cabem e que a política como um todo não funciona tão bem quanto antes, em tempos mais ordeiros e pacíficos. Homens e mulheres mais jovens e escolarizados não têm essa memória positiva dos tempos do regime militar e fazem críticas mais incisivas sobre o cerceamento de liberdades imperante no período. Por outro lado, também esses jovens foram socializados em famílias organizadas de forma ainda tradicional, isto é, marcada pela divisão sexual do trabalho e pelas hierarquias associadas a ela. Sua visão dos papéis masculino e feminino tanto na família quanto na política não demonstra uma renovação geracional relevante. As mulheres jovens, de ambas as classes, demonstraram valorizar o trabalho remunerado como fonte de renda e independência e mesmo como crescente base da identidade feminina. No entanto, é improvável que o trabalho remunerado possa, por si só, ter como efeito a transformação de práticas familiares consolidadas, visto que ele permanece conjugado, predominantemente por mulheres, com o trabalho não remunerado.

As representações da relação entre mulheres e política simplesmente tendem a enquadrá-las nos estereótipos já consolidados de feminilidade. Os efeitos disso para a entrada das mulheres na política são mistos: de um lado, é considerado bom que as mulheres, com sua "força moral", entrem na política; de outro, considera-se que elas devem manter-se afastadas para não se corromper. O uso de estereótipos advindos da domesticidade para julgar as mulheres acaba reforçando, segundo (Biroli 2011BIROLI, Flávia (2011). "Mídia, tipificação e exercícios de poder: a reprodução dos estereótipos no discurso jornalístico". Revista Brasileira de Ciência Política, n. 6, jul.-dez., p. 71-98., p. 86), a "naturalização de características e competências" associadas a elas, o que segmenta e restringe sua circulação no campo político. É, como diagnosticara (Sapiro 1984SAPIRO, Virginia (1984). The political integration of women: roles, socialization, and politics. Urbana: University of Illinois Press.), a continuada marginalização feminina como condenação ao seu pertencimento a dois mundos - o privado e o público.

A participação da mulher na política é vista na forma de estereótipos, relacionados a uma suposta superioridade moral decorrente da maternidade. Interpretar o discurso maternalista como uma via legítima de entrada das mulheres na política implica eternizá-las nessa feminilidade estereotipada que advém de sua circunscrição ao trabalho não ou mal remunerado de cuidado. O primeiro dos discursos analisados sobre compatibilidade entre feminilidade e política - o da feminilidade virtuosa que transforma a política - reproduz o essencialismo de gênero ao pressupor que mulheres são mais maternais e estão predestinadas a se manter assim. Apesar disso, ele pode ser o mais útil para a promoção dos interesses estratégicos de gênero, isto é, para servir a estratégias eleitorais que justifiquem a demanda por maior presença das mulheres na política em termos que se coadunem com a imagem que o senso comum atribui às mulheres.

O segundo discurso supõe que mulheres tendem a adquirir valores próprios do ethos masculino ao entrar na política e que, são também, portanto, sujeitas à corrupção. Tende-se, nesse caso, a considerar que os incentivos institucionais que constituem o campo político são mais determinantes do comportamento dos(as) parlamentares do que as identidades de gênero, e reconhece-se, assim, que ele é autônomo e sujeito a regras de funcionamento próprias, as quais moldam seus agentes. Diante disso, o essencialismo de gênero pode não se manter, o que representa uma visão menos determinística sobre gênero.

Já entre os portadores do terceiro discurso, encontrado entre homens mais jovens e de maior escolaridade, há ao menos a proposta de que o masculino e o feminino não tenham desigualdade valorativa, isto é, que sejam intercambiáveis porque dotados de igual valor, algo que está no cerne da proposta feminista. No entanto, ele não serve aos interesses feministas porque não faz da paridade de gênero nos espaços de poder uma questão relevante; ao contrário, deslegitima essa preocupação por não acreditar que gênero deveria ser visto como uma variável relevante tanto em termos de discriminação quanto de luta por igualdade. Esse discurso, portanto, fecha os olhos para a desigualdade de gênero e, por causa disso, desconsidera a importância da presença de perspectivas sociais distintas no campo político, advindas de estruturas sociais geradoras de desigualdade social de gênero, raça e tantas outras.

Há que se ressaltar ainda que as considerações sobre gênero das(o)s candidatas(os) não aparecem espontaneamente nos discursos e que, quando estimuladas(os) a pensar sobre a importância da categoria gênero para o comportamento dos políticos, a maioria das pessoas rejeita sua legitimidade como critério para balizar a escolha eleitoral. Considera-se, por isso, que gênero é tido como uma variável inválida em termos eleitorais, ainda que constitutiva do campo político, por não ser visto como um fator de promoção da representação política.

  • AUYERO, Javier & JOSEPH, Lauren (2007). "Introduction: Politics under the ethnographic microscope", em JOSEPH, Lauren, MAHLER, Matthew & AUYERO, Javier. New perspectives in political ethnography. New York: Springer Science. p. 1-13.
  • BARREIRA, Irlys (1998). Chuva de papéis: ritos e símbolos de campanhas eleitorais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
  • BAUER, Martin & AARTS, Bar (2007). "A construção do corpus: um princípio para a coleta de dados qualitativos", em BAUER, Martin & GASKELL, George (eds.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes.
  • BEAUVOIR, Simone de (2009). O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
  • BIROLI, Flávia (2011). "Mídia, tipificação e exercícios de poder: a reprodução dos estereótipos no discurso jornalístico". Revista Brasileira de Ciência Política, n. 6, jul.-dez., p. 71-98.
  • BOCOCK, Robert (2007). "The cultural formations of modern society", em HALL, Stuart et al. (eds.). Modernity: an introduction to modern societies. Malden: Blackwell.
  • BOURQUE, Susan & GROSSHOLTZ, Jean (1998). "Politics an unnatural practice: political science looks at female participation", em PHILLIPS, Anne (ed.). Feminism and politics. Oxford: Oxford University Press.
  • BRADLEY, Harriet (2007). "Changing social structures: class and gender", em HALL, Stuart et al. (eds). Modernity: an introduction to modern societies. Malden: Blackwell. p. 122-147.
  • BRITO, Maria Noemi (2001). "Gênero e cidadania: referenciais analíticos". Revista de Estudos Feministas, v. 9, n. 1, p. 291-298.
  • BURNS, Nancy (2009). "Gender inequality", em KING, Gary, SCHLOZMAN, Kay & NIE, Norman (eds.). The future of political science: 100 perspectives. Taylor & Francis e-library.
  • BURNS, Nancy & KINDER, Donald (2011). "Categorical politics: gender, race, and public opinion", em BERINSKY, Adam (ed.). New directions in public opinion. New York: Routledge.
  • BURNS, Nancy, SCHLOZMAN, Kay& VERBA, Sidney (2001). The private roots of public action: gender, equality, and political participation. Cambridge: Harvard University Press.
  • CHANT, Sylvia (2003). "Gender in a changing continent", em CHANT, Sylvia & CRASKE, Nikki. Gender in Latin America. New Jersey: Rutgers University Press.
  • CHODOROW, Nancy (1990). Psicanálise da maternidade: uma crítica a Freud a partir da mulher. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos.
  • CRASKE, Nikki (1999). Women & politics in Latin America. New Jersey: Rutgers University Press.
  • DALTON, Russell (2000). "Citizen attitudes and political behavior". Comparative Political Studies, v. 33, n. 6/7, p. 912-940.
  • ELSHTAIN, Jean (1998). "Antigone's daughters", em PHILLIPS, Anne. Feminism & politics. Oxford, New York: Oxford University Press.
  • FONTANELA, Bruno et al. (2008). "Amostragem por saturação em pesquisas qualitativas em saúde: contribuições teóricas". Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 17-27.
  • GASKELL, George (2007). "Entrevistas individuais e grupais", em BAUER, Martin & GASKELL, George (eds.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes.
  • GOFFMAN, Erving (1977). "The arrangement between the sexes". Theory and society, v. 4, n. 3, p. 301-331.
  • GUTMANN, Matthew (2003). "Introduction: discarding manly dichotomies in Latin America", em GUTMANN, Matthew (ed.). Changing men and masculinities in Latin America. Durham, London: Duke University Press.
  • HANSEN, Susan (1997). "Talking about politics: gender and contextual effects on political discourse". Journal of Politics, v. 59, n. 1, p. 73-103.
  • HIRATA, Helena & KÉRGOAT, Daniele (2007). "Novas configurações da divisão sexual de trabalho". Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 132, p. 595-609.
  • KRAIS, Beate (1993). "Gender and symbolic violence: female oppression in the light of Pierre Bourdieu's theory of social practice", em CALHOUN, Craig, LIPUMA, Edward & POSTONE, Moshe (eds.). Bourdieu: critical perspectives. Chicago: University of Chicago Press.
  • MACHADO, Maria das Dores & BARROS, Myriam (2009). "Gênero, geração e classe: uma discussão sobre as camadas médias e populares do Rio de Janeiro". Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 17, n. 344, p. 369-393.
  • MIGUEL, Luis Felipe & BIROLI, Flávia (2009). "Mídia e representação política feminina: hipóteses de pesquisa". Opinião Pública, v. 15, n. 1, p. 55-81.
  • MIRANDA, Júlia (1999). Carisma, sociedade e política: novas linguagens do religioso e do político. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
  • MOLINEUX, Maxine (1985). "Mobilization without emancipation? Women's interests, the State, and revolution in Nicaragua". Feminist Studies, v. 11, n. 2, p. 227-251.
  • NOELLE-NEUMANN, Elisabeth (1995). La espiral del silencio: opinión pública: nuestra piel social. Barcelona, Buenos Aires, Ciudad de México: Paidós.
  • OKIN, Susan (1989). Justice, gender, and the family. New York: Basic Books.
  • PATEMAN, Carole (1989). The disorder of women: democracy, feminism, and political theory. Stanford: Stanford University Press.
  • PHILLIPS, Anne (2001). "De uma política de ideias a uma política de presença?". Revista de Estudos Feministas, v. 9, n. 1, p. 268-290.
  • ________ (2002). "Does feminism need a conception of civil society?", em CHAMBERS, Simone & KYMLICKA, Will. Alternative conceptions of civil society. Princeton: Princeton University Press.
  • RANDALL, Vicky (1982). Women and politics. New York: St. Martin's Press.
  • REIS, Elisa (1995). "Desigualdade e solidariedade. Uma releitura do 'familismo amoral' de Banfield". Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 10, n. 29, out., p. 35-48.
  • SANTOS, Michele C. et al. (2001). "O papel masculino dos anos quarenta aos noventa: transformações no ideário". Paidéia, v. 11, n. 20, p. 57-68.
  • SAPIRO, Virginia (1984). The political integration of women: roles, socialization, and politics. Urbana: University of Illinois Press.
  • ________ (2003). "Theorizing gender in political psychology research", em SEARS, David et al. (eds.). Oxford handbook of political psychology. New York: Oxford University Press.
  • SARTI, Cynthia (2009). A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. São Paulo: Cortez.
  • WILLIAMS, Melissa (1998). Voice, trust, and memory: marginalized groups and the failings of liberal representation. Princeton: Princeton University Press.
  • YOUNG, Iris M. (2000). Inclusion and democracy. Oxford: Oxford University.
  • ________ (2005). "The logic of masculinist protection: reflections on the current security State", em FRIEDMAN, Marilyn. Women and citizenship. Oxford: Oxford University Press.
  • **
    Este artigo foi extraído de tese de doutorado Representações sobre gênero e política no Distrito Federal, defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade de Brasília em maio de 2014.
  • 1
    Ver (Sapiro 1984SAPIRO, Virginia (1984). The political integration of women: roles, socialization, and politics. Urbana: University of Illinois Press., p. 14) e (Miguel e Biroli 2009MIGUEL, Luis Felipe & BIROLI, Flávia (2009). "Mídia e representação política feminina: hipóteses de pesquisa". Opinião Pública, v. 15, n. 1, p. 55-81., p. 74), por exemplo.
  • 2
    Ver, por exemplo, a discussão sobre marianismo, termo que designa originalmente um movimento da Igreja Católica de culto à Virgem Maria e que foi apropriado pela literatura sobre gênero na América Latina para descrever um "complexo híbrido de feminilidade idealizada", o qual "ofereceu uma série de crenças sobre a superioridade moral e espiritual das mulheres que agiu para legitimar seu papel social doméstico e subordinado" (Chant, 2003CHANT, Sylvia (2003). "Gender in a changing continent", em CHANT, Sylvia & CRASKE, Nikki. Gender in Latin America. New Jersey: Rutgers University Press., p. 9). Visto como o ethos feminino correspondente ao machismo, ele tem como traços peculiares a exaltação tanto da maternidade, tida como o laço que tornaria as mulheres mais próximas de Deus, quanto da domesticidade, o espaço familiar em que as mulheres deveriam exercer sua missão primária no mundo.
  • 3
    A maternidade tem um lado "privatizador" das mulheres que pode, paradoxalmente, também levá-las a interagir com o público. A respeito do caráter limitador da maternidade, (Machado e Barros 2009MACHADO, Maria das Dores & BARROS, Myriam (2009). "Gênero, geração e classe: uma discussão sobre as camadas médias e populares do Rio de Janeiro". Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 17, n. 344, p. 369-393., p. 380) ressaltam que o papel materno previne as mulheres de entrarem na esfera pública na mesma condição que os homens porque aumenta a sua carga de "responsabilidade doméstica" e reduz suas chances de realizar projetos individuais. Por outro lado, a maternidade tem sido idealizada e mobilizada por todas as forças políticas, de direita ou de esquerda. Por exemplo, Molineux (1985)MOLINEUX, Maxine (1985). "Mobilization without emancipation? Women's interests, the State, and revolution in Nicaragua". Feminist Studies, v. 11, n. 2, p. 227-251., em análise do papel das mulheres durante a revolução na Nicarágua, argumenta que elas assumiram uma "maternidade combativa", estimuladas pelos líderes políticos, que procuraram integrá-las à transformação social que tentavam promover, sem deixar, porém, de recorrer à sua identidade tradicional.
  • 4
    Foram selecionados dois bairros com perfis correspondentes a essas duas classes sociais, definidas a partir do nível de renda médio de seus moradores.
  • 5
    Refere-se aqui a um conjunto específico de representações que, no caso de gênero, abrangem questões como divisão sexual do trabalho, relação com o trabalho remunerado, relações de poder intrafamiliares - principalmente ligadas à chefia da unidade domiciliar e tomada de decisões -, identidade de gênero, relação entre representações religiosas e de gênero e ao posicionamento a respeito de aborto e casamento homossexual. No caso de política, as questões foram: relação com políticos e burocratas, percepção sobre candidatura de mulheres à presidência da República e ao governo do Distrito Federal (DF), prevalência de homens na política, percepção sobre ditadura versus democracia, senso de competência política, atividades políticas, noções de cidadania.
  • 6
    Na faixa de 50 a 59 anos, a taxa de atividade era, em 2009, de 68,1%, e, na faixa de 60 anos ou mais, a taxa de atividade era de 29,9%; ao passo que as maiores taxas de atividade são verificadas nas faixas etárias de 20 a 29 anos e de 30 a 39 anos (83,7% e 84,6%, respectivamente), segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD-IBGE) 2009.
  • 7
    A forma de tratar a variável idade foi dividi-la em duas faixas etárias (a primeira de 21 a 40 anos e a segunda de 41 a 65 anos). A escolha inicial foi trabalhar com pessoas adultas, que já tivessem alguma experiência como eleitores. A seleção dessas faixas foi feita com base em suposições relativas a ciclos de vida e geração, visto que é na primeira faixa que mulheres e homens em geral têm o seu primeiro casamento e filhos. Na segunda faixa etária estão pessoas que tiveram alguma vivência do regime militar (experiência que supostamente as faz desenvolver percepções comparativas a respeito da ditadura versus democracia) e que também já se encontram em outra fase/geração em relação a seus papéis de gênero (algumas pessoas já se tornaram avós, mulheres que deixaram de trabalhar quando os filhos eram pequenos já retornaram ao mercado de trabalho, muitas testemunharam mudanças significativas em relação ao papel da mulher na sociedade).
  • 8
    No DF, não há eleições para prefeito e vereador. No entanto, alguns reflexos da campanha eleitoral que começava a ser feita em municípios vizinhos a ele, dos quais provêm alguns dos(as) entrevistado(as), se faziam sentir. Várias pessoas mencionam que as cidades de onde elas ou suas famílias migraram estavam mobilizadas politicamente. Outras alegaram que nunca transferiram seu título eleitoral para o DF como razão para o não envolvimento com as questões políticas da cidade.
  • 9
    Como confirmam achados referentes aos Estados Unidos (cf. Sapiro, 2003________ (2003). "Theorizing gender in political psychology research", em SEARS, David et al. (eds.). Oxford handbook of political psychology. New York: Oxford University Press., p. 610), a depender da presença de mulheres nas eleições estaduais, as diferenças de gênero com relação às eleições presidenciais podem ser maiores ou menores já que o fato de que o contexto local salienta questões de gênero acaba afetando o posicionamento do(a) eleitor(a) com relação também às demais disputas eleitorais. Outras pesquisas também apontam que os resultados de interesse relativos a gênero - por exemplo, a disposição de mulheres a convencer outrem a votar em seu candidato(a) (Hansen, 1997)HANSEN, Susan (1997). "Talking about politics: gender and contextual effects on political discourse". Journal of Politics, v. 59, n. 1, p. 73-103. - variam em função da existência de mulheres candidatas.
  • 10
    A população residente na periferia do DF é formada, em grande parte, por migrantes vindos de zonas menos urbanizadas, principalmente do Nordeste (42% dos chefes de domicílio do DF eram naturais da região Nordeste, segundo dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios 2004), que mantêm os valores e modo de vida adquiridos em seus lugares de origem porque as relações familiares continuam a ser fundamentais para a sobrevivência dos pobres no meio urbano. No DF, as áreas periféricas se notabilizam por uma infraestrutura urbana mais precária que a das áreas centrais, pela distância em relação a estas e por taxas mais altas de violência. A desigualdade também representa um estímulo, segundo Reis (1995)MACHADO, Maria das Dores & BARROS, Myriam (2009). "Gênero, geração e classe: uma discussão sobre as camadas médias e populares do Rio de Janeiro". Revista de Estudos Feministas, Florianópolis, v. 17, n. 344, p. 369-393., a se restringir ao "círculo mais próximo", evitando interações que fujam a ele e mantendo distância do espaço, devido à existência de uma "cultura generalizada do medo", típica de um meio social com altas taxas de violência e pobreza.
  • 11
    Em ambos os casos, são famílias formadas por migrantes vindos de zonas menos urbanizadas, principalmente do Nordeste (42% dos chefes de domicílio do DF eram naturais da região Nordeste, segundo dados da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios 2004), que mantêm os valores e modo de vida adquiridos em seus lugares de origem porque as relações familiares continuam a ser fundamentais para a sobrevivência dos pobres no meio urbano. Como nota (Sarti 2009SARTI, Cynthia (2009). A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. São Paulo: Cortez.: 50), é frequentemente graças ao apoio recebido da família que a migração torna-se viável, o que é mais um motivo para que ela permaneça como uma rede de apoio indispensável para aqueles que encontram pouco suporte nas instituições públicas. Além disso, tanto no DF quanto em São Paulo, as áreas periféricas se notabilizam por uma infraestrutura urbana mais precária que a das áreas centrais, pela distância em relação a estas e por taxas mais altas de violência. A desigualdade também representa um estímulo, segundo Reis (1995)REIS, Elisa (1995). "Desigualdade e solidariedade. Uma releitura do 'familismo amoral' de Banfield". Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 10, n. 29, out., p. 35-48., a restringir-se ao "círculo mais próximo", evitando interações que fujam a ele e mantendo distância do espaço, devido à existência de uma "cultura generalizada do medo" típica de um meio social com altas taxas de violência e pobreza.
  • 12
    Utilizou-se a recomendação de (Gaskell 2007GASKELL, George (2007). "Entrevistas individuais e grupais", em BAUER, Martin & GASKELL, George (eds.). Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático. Petrópolis: Vozes., p. 71), de que se façam ao menos duas entrevistas por "tipo" relevante de entrevistado segundo as características selecionadas, que, neste caso, são homens e mulheres pertencentes a duas classes sociais distintas e a duas faixas etárias (21 a 40 anos e 41 a 65 anos).
  • 13
    A organização da família de classe popular, segundo (Sarti 2009SARTI, Cynthia (2009). A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. São Paulo: Cortez., p. 20), está configurada como uma rede de obrigações morais em que o coletivo precede os indivíduos, o que confere um "padrão tradicional de autoridade e hierarquia" que segue a clivagem de gênero, assignando a mulher a uma posição subordinada e o homem ao polo dominante. O fato de que diversas(os) entrevistadas(os) tenham atribuído ao homem um papel mais ativo e de maior responsabilidade que o da mulher, em especial no que se refere a sair para trabalhar e prover o sustento, sinaliza um reconhecimento de que o enfrentamento do mundo externo ainda cabe primordialmente ao homem.
  • 14
    Os dados provenientes das entrevistas indicam desigualdade de exposição à conversa sobre política. Há uma tendência, que independe de gênero, em não falar sobre política de forma geral e, especialmente, em não entrar em disputas políticas, o que decorre, em parte, do fato de que a democracia representativa não demanda, nem delas nem deles, um engajamento político mais abrangente que o voto. No entanto, segundo (Noelle-Neumann 1995NOELLE-NEUMANN, Elisabeth (1995). La espiral del silencio: opinión pública: nuestra piel social. Barcelona, Buenos Aires, Ciudad de México: Paidós., p. 44), as clivagens sociais importam no sentido de definir graus de silenciamento. Dentre as pessoas para quem se perguntou quem tem mais interesse por política e com quem se costuma falar mais sobre política - homens ou mulheres -, a maioria respondeu que homens se interessam e conversam mais. Havendo esse viés, isto é, supondo que essa intuição de que homens gostam mais de conversar sobre política seja usada como guia quando se trata de escolher um interlocutor - ainda quando as pessoas em geral não pensem sobre os motivos por que isso acontece -, decorre que mulheres sejam menos procuradas para tratar desse assunto, o que tenderia a reforçar sua menor exposição à política e, consequentemente, seu maior alheamento.
  • 15
    Sarti (2009, p. 140), em estudo sobre segmentos de classes populares urbanas, argumenta que "a família, com seus códigos de obrigações, é uma linguagem através da qual traduzem o mundo" e que "é esta especificidade que define o horizonte de sua ação política".
  • 16
    Os nomes utilizados são fictícios. O uso dos pronomes "Dona" e "Seu" é feito para distinguir as faixas etárias.
  • 17
    Todas(os) entrevistadas(os) que foram questionadas(os) se haveria maior presença das mulheres na política hoje do que antes responderam que sim. Nesse sentido, a política é um campo mais marcadamente masculino do que o religioso dado que inexistem dúvidas sobre a preponderância de homens na política ao passo que o mesmo nem sempre se dá em relação às instituições religiosas. A questão do aparecimento recente de mulheres na política não passa despercebida, mas não chega a constituir objeto de reflexão ou surpresa. Assim, há respostas que acusam a simples e completa desconsideração de questões como essa: "Não sei, não tenho nem ideia"; "Para mim, tanto faz". Outros posicionamentos sobre esse ponto serão analisados em articulação com os discursos relativos à compatibilidade entre feminilidade e política.
  • 18
    Burns, Schlozman e Verba (2001)BURNS, Nancy, SCHLOZMAN, Kay& VERBA, Sidney (2001). The private roots of public action: gender, equality, and political participation. Cambridge: Harvard University Press. argumentam que a família tem efeitos indiretos sobre a participação política de homens e mulheres, empurrando homens para o mercado de trabalho e para instituições religiosas, o que lhes confere vantagens em termos de recursos e oportunidades de participação, e mantendo as mulheres em casa quando as crianças são pequenas. Além disso, os autores concluem que a hierarquia doméstica - fator apontado pela teoria feminista - tem também impacto negativo sobre a participação, de forma que mulheres são mais ativas quando se expressam livremente em discussões políticas em casa e homens também se tornam mais ativos quando controlam em maior medida as decisões financeiras em âmbito familiar.
  • 19
    Conforme Fuller (1997 apud Gutmann, 2003GUTMANN, Matthew (2003). "Introduction: discarding manly dichotomies in Latin America", em GUTMANN, Matthew (ed.). Changing men and masculinities in Latin America. Durham, London: Duke University Press., p. 35), a masculinidade entre homens de classe média no Peru está configurada ao redor de três eixos: hombridade (manliness), domesticidade e exterioridade (referente ao trabalho e à política) e que cada homem se depara com as diferentes demandas colocadas por esses eixos ao longo da vida, às vezes privilegiando um ou outro a depender do seu posicionamento no ciclo de vida.
  • 20
    A fala de Seu Ricardo, um homem que se diz religioso e devoto pai de cinco filhos, ilustra o modelo de masculinidade discutido por Santos et al. (2001)SANTOS, Michele C. et al. (2001). "O papel masculino dos anos quarenta aos noventa: transformações no ideário". Paidéia, v. 11, n. 20, p. 57-68., definido em torno da convivência familiar e da felicidade no lar. Trata-se de uma espécie de privatismo católico que reforça a importância da paternidade, mas não questiona estruturalmente a divisão sexual do trabalho nem a submissão feminina ao homem.
  • 21
    Joaquim Roriz renunciou à candidatura após ter sido impedido pela Lei da Ficha Limpa no Tribunal Superior Eleitoral. No mesmo dia, 2 de outubro de 2010, a candidatura de sua esposa pelo Partido Social Cristão foi lançada. Weslian Roriz notabilizou-se por sua feminilidade convencional, que em nada a favoreceu. Weslian incorporou, na perspectiva dos(as) respondentes, a imagem de mulher tradicional: dona de casa que estava ali apenas para ser leal ao marido e fazer sua vontade, sem nada entender de assuntos públicos. Esta "mulherzinha" inspiradora de pena em nada se assemelha à imagem "pulso firme" de Dilma, vista como uma afilhada de Lula, mas também como uma pessoa de personalidade própria ou, no mínimo, como alguém cujo comportamento não é constrangedoramente impróprio do campo político.
  • 22
    Trata-se de um raciocínio um tanto paradoxal que, ao mesmo tempo, comemora a recusa das mulheres em participar da "política corrupta" e destaca as virtudes que elas poderiam aportar. À maneira do que fazem Bourque e Grossholtz (1998)BOURQUE, Susan & GROSSHOLTZ, Jean (1998). "Politics an unnatural practice: political science looks at female participation", em PHILLIPS, Anne (ed.). Feminism and politics. Oxford: Oxford University Press. em artigo em que lamentam que as mulheres tenham "entrado no jogo" da política masculina, participando dele, e concomitantemente, tecem loas à visão feminina mais preocupada com a dimensão moral da política, um traço visto como devendo ser incorporado pela política dominante.
  • 23
    Para (Miranda 1999MIRANDA, Júlia (1999). Carisma, sociedade e política: novas linguagens do religioso e do político. Rio de Janeiro: Relume Dumará., p. 79), que estudou integrantes do movimento católico carismático, "a religião se constitui uma forte e, em certos casos quase exclusiva, referência para pensar a política".
  • 24
    (Beauvoir 2009BEAUVOIR, Simone de (2009). O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira., p. 20): "O laço que a une a seus opressores não é comparável a nenhum outro" dado que as mulheres "vivem dispersas entre os homens, ligadas ... (a eles) mais estreitamente do que a outras mulheres".
  • 25
    Autoras que estudaram esta inter-relação percebem a continuidade entre o autoritarismo nas duas esferas. Para Young (2005)________ (2005). "The logic of masculinist protection: reflections on the current security State", em FRIEDMAN, Marilyn. Women and citizenship. Oxford: Oxford University Press., num "regime de segurança", a relação dos cidadãos com o mundo político pode tomar contornos semelhantes à relação estabelecida entre patriarca e subalternos num contexto familiar. A postura de "masculinidade protetora" e paternalista que o governante assume num regime desse tipo é entendida por associação com o "cuidado familiar", o que a torna sedutora para os cidadãos a serem protegidos, estabelecendo-se assim uma relação não democrática de obediência baseada no medo. Ao agir dessa forma, o governante emula o papel de pai que infantiliza os cidadãos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2015

Histórico

  • Recebido
    29 Set 2014
  • Aceito
    03 Dez 2014
Universidade de Brasília. Instituto de Ciência Política Instituto de Ciência Política, Universidade de Brasília, Campus Universitário Darcy Ribeiro - Gleba A Asa Norte, 70904-970 Brasília - DF Brasil, Tel.: (55 61) 3107-0777 , Cel.: (55 61) 3107 0780 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbcp@unb.br