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Ativismo trans e reconhecimento: por uma “transcis-rexistência” na política brasileira

Trans activism and recognition: for a “transcis-rexistence” in Brazilian politics

Resumo:

O objetivo deste artigo é analisar a luta por reconhecimento do ativismo trans no contexto político brasileiro e propor o conceito de “transcis-rexistência”, para avaliar empiricamente as possibilidades de resistência por meio de alianças que promovam o reconhecimento e a representação de pessoas trans. As discussões são baseadas na teoria do reconhecimento social de Axel Honneth e nas discussões de Anne Phillips e Iris Marion Young sobre a representação descritiva. Mostramos que as candidaturas e os mandatos coletivos promovem a “transcis-rexistência”, desafiando o sistema político brasileiro e considerando a sub-representação política como uma dimensão de não-reconhecimento. A luta coletiva ajuda a construir o reconhecimento intersubjetivo, através da construção de alianças que conectam ideias e perspectivas sociais, assim como atores sociais.

Palavras-chave:
ativismo trans; transexuais; reconhecimento social; representação descritiva; transcis-rexistência

Abstract:

The objective of this article is to analyze the struggle of trans activism for recognition in the Brazilian political context and to propose the concept of “transcis-rexistence,” for assessing empirically the possibilities of resistance through alliances that promote the recognition and representation of trans people. The discussions are based on the Axel Honneth’s theory of social recognition and on Anne Phillips and Iris Marion Young’s discussions of descriptive representation. We show that collective candidacies and mandates promote “transcis-rexistence” by challenging the Brazilian political system and by considering political under-representation as a dimension of non-recognition. Collective struggle helps build intersubjective recognition through the construction of alliances that connect ideas and social perspectives, as well as social actors.

Keywords:
trans activism; transsexuals; social recognition; descriptive representation; transcis-rexistence

Introdução4 4 Agradecemos aos pareceristas anônimos da Revista Brasileira de Ciência Política pelos comentários e sugestões fundamentais para aprimorar o artigo. Informamos que o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

O objetivo deste artigo é analisar a luta por reconhecimento do ativismo trans no contexto político brasileiro e propor o conceito de “transcis-rexistência”, para avaliar empiricamente as possibilidades de resistência por meio de alianças que promovam o reconhecimento e a representação de pessoas trans. Constata-se que, no país, às pessoas trans5 5 O uso do termo “trans” é uma expressão guarda-chuva para pessoas transgêneras, abrangendo todas as manifestações que ultrapassam as barreiras de gênero (CARVALHO, 2015). Travestis e transexuais, entre outras posições identitárias, são consideradas/os transgêneras/os (BENTO, 2006). , principalmente se forem negras e periféricas6 6 Salienta-se que a crítica acerca da ausência das pessoas transexuais negras na política é contemplada sob perspectiva interseccional (CRENSHAW, 2002), em que atributos como a raça e gênero, correlacionados, acentuam as exclusões existentes. , inflige-se uma situação de não-reconhecimento social, na qual são dispensadas violências físicas e/ou simbólicas, que lhes anulam cotidianamente, havendo ainda sistemática privação de seus direitos por parte do Estado, o que compromete o próprio exercício da cidadania.

Com fins de lutar contra o não-reconhecimento das pessoas trans e lhes conferir visibilidade positiva emergiu o ativismo trans. Caracteriza-se como tal a rede que tem se estabelecido entre atores trans, geralmente inseridos em movimentos sociais, a partir do contexto da redemocratização, buscando reivindicar direitos, denunciar violências e adentrar à cena política, a partir de diversos regimes de visibilidade (CARVALHO, 2015CARVALHO, Mário. “Muito Prazer, Eu Existo!” Visibilidade e reconhecimento no ativismo de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.; CARVALHO, 2017CARVALHO, Mário. Nossa esperança é ciborgue? Subalternidade, reconhecimento e “tretas” na internet. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n.1, p. 347-363, 2017.; CARVALHO; CARRARA, 2015CARVALHO, Mario; CARRARA, Sérgio. Ciberativismo trans: considerações sobre uma nova geração militante. Contemporânea, São Carlos, v. 13, n. 2, p. 382-400, 2015.; COACCI, 2018COACCI, Thiago. Conhecimento precário e conhecimento contra-público: a coprodução dos conhecimentos e dos movimentos sociais de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.; LINS; MESQUITA, 2020LINS, Carolina; MESQUITA, Marcos. A compreensão da política por militantes do movimento trans alagoano. Psicologia: teoria e prática, São Paulo, v. 22, n. 1, p. 251-269, 2020.).

Nesse percurso, especialmente a partir da segunda década deste século, acrescenta-se uma alternativa para dar vazão às reivindicações por reconhecimento do ativismo trans. Trata-se de candidaturas de pessoas trans para cargos eletivos, com vistas a ocupar espaços de representação, principalmente casas legislativas (PRADO, 2016PRADO, Marco Aurélio. Representação local e política partidária: candidaturas transexuais e travestis no Brasil. Sexuality policy watch, Rio de Janeiro, v. 18, 2016. Disponível em: Disponível em: https://sxpolitics.org/ptbr/representacao-local-e-politica-partidaria-candidaturas-transexubais-e-travestis-no-brasil/6884 . Acesso em: 08 set. 2021.
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; SANTOS, 2016aSANTOS, Gustavo. Diversidade sexual e política eleitoral: analisando as candidaturas de travestis e transexuais no Brasil contemporâneo. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 23, p. 58-96, 2016a.; COACCI, 2018COACCI, Thiago. Conhecimento precário e conhecimento contra-público: a coprodução dos conhecimentos e dos movimentos sociais de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.; PEDRA, 2018PEDRA, Caio. Acesso à cidadania por travestis e transexuais no Brasil: um panorama da atuação do Estado no enfrentamento das exclusões. Dissertação (Mestrado em Administração Pública) - Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho, Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte, 2018.). Registra-se um significativo aumento no número de candidaturas de pessoas trans para cargos em assembleias estaduais (a exemplo da eleição de candidatas transexuais negras para o cargo de deputada estadual, por meio de mandatos coletivos, nos estados de São Paulo e de Pernambuco, em 2018), bem como no número de pessoas trans eleitas para a vereança; número este que saltou em 275%, se comparados os pleitos de 2016 e 2020 (ANTRA, 2016ANTRA - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS. Candidaturas trans 2016. Salvador, 2016. Disponível em: Disponível em: https://antrabrasil.org/eleicoes2016/ . Acesso em: 07 fev. 2021.
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; ANTRA, 2018ANTRA - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS. Candidaturas trans 2018. Salvador, 2018. Disponível em: Disponível em: https://antrabrasil.org/candidaturas2018/ . Acesso em: 28 abr. 2020.
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; ANTRA, 2020ANTRA - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS. Mapeamento de candidaturas de travestis, mulheres transexuais, homens trans e demais pessoas trans em 2020. Salvador, 2020. Disponível em: Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/11/lista-final-15nov2020-1.pdf . Acesso em: 07 fev. 2021.
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). Assim, tendo em vista que se, historicamente, é ínfima a presença da população trans ocupando cargos eletivos (SANTOS, 2016aSANTOS, Gustavo. Diversidade sexual e política eleitoral: analisando as candidaturas de travestis e transexuais no Brasil contemporâneo. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 23, p. 58-96, 2016a.), observa-se, agora, maior visibilidade dessas pessoas no contexto da representação política.

Neste artigo, compreendemos que as instituições políticas consistem em um dos catalisadores sociais capazes de acentuar o não-reconhecimento dos grupos marginalizados. O contexto legislativo, quase em sua totalidade feita “por homens, ricos, brancos e heterossexuais que não representam a pluralidade e a diversidade de sujeitos, pensamentos e interesses do povo brasileiro” (FEITOSA, 2017FEITOSA, Cleyton. Barreiras à ambição e à representação política de LGBT no Brasil. Ártemis, João Pessoa, v. 24, n. 1, p. 120-131, 2017., p. 121), tem agenciado exclusões concernentes às demandas de pessoas trans. Para esta população, em particular, questões que até então eram somente objeto de negligência, passaram a ser dificultadas por outros representantes eleitos (SANTOS, 2016aSANTOS, Gustavo. Diversidade sexual e política eleitoral: analisando as candidaturas de travestis e transexuais no Brasil contemporâneo. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 23, p. 58-96, 2016a.). A proliferação de discursos de ódio de políticos nacionais é uma das barreiras, em âmbito legislativo, que tem respaldo no não-reconhecimento às pessoas trans (MACHADO, 2017MACHADO, Maria. Pentecostais, sexualidade e família no Congresso Nacional. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 23, n. 47, p. 351-380, 2017.).

Destaca-se, ainda, a coalizão estabelecida entre o conservadorismo em âmbito dos valores e costumes e a perspectiva econômica neoliberal, como marcante em termos de agenda política desde a redemocratização, segundo alerta o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP, 2018DIAP - DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ASSESSORIA PARLAMENTAR. Radiografia do Novo Congresso: Legislatura 2019-2023. Brasília, DF: DIAP, 2018.). Como dito por Santos (2016b)SANTOS, Gustavo. Diversidade sexual, partidos políticos e eleições no Brasil contemporâneo. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 21, p. 147-186, 2016b., a atuação conservadora busca obstruir a promoção da cidadania de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT). Há resistência quanto às pautas de reconhecimento e de garantia de direitos a pessoas trans, principalmente pela bancada defensora da família, a partir do cruzamento entre religião e Estado, demonstrando que essa orientação ideológica tem se tornado hegemônica (MACHADO, 2017MACHADO, Maria. Pentecostais, sexualidade e família no Congresso Nacional. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 23, n. 47, p. 351-380, 2017.).

Assim, sobre a significação social da luta por reconhecimento, propagada pelo ativismo trans, e especialmente dirigida à demanda por maior representação política, é que este artigo se debruça, recorrendo aos pressupostos inerentes às teorias do reconhecimento social (HONNETH, 2009HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009.) e da representação descritiva (PHILLIPS, 1995PHILLIPS, Anne. The politics of presence. Oxford: Oxford University Press, 1995.; YOUNG, 2000YOUNG, Iris Marion. Inclusion and democracy. Oxford: Oxford University Press, 2000.; FRASER, 2009FRASER, Nancy. Reenquadrando a justiça em um mundo globalizado. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, v. 77, p. 11-39, 2009.). Sua contribuição se dá ainda na proposição do conceito “transcis-rexistência”, que se refere à aliança entre pessoas trans e pessoas cis estabelecida sob o princípio da solidariedade, tendo por base, principalmente, o confronto da noção de estima social como dimensão do reconhecimento, segundo Honneth (2009)HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009., com a concepção de perspectivas sociais, como norteadora para a representação descritiva, conforme Phillips (1995)PHILLIPS, Anne. The politics of presence. Oxford: Oxford University Press, 1995. e Young (2000)YOUNG, Iris Marion. Inclusion and democracy. Oxford: Oxford University Press, 2000..

Nesse sentido, o conceito de “transcis-rexistência” contribui enquanto estratégia para avaliar empiricamente as possibilidades de ampliar a voz e o repertório do ativismo trans. O argumento é o de que a “transcis-rexistência” consiste não só em um mecanismo para se superar a sub-representação das demandas de indivíduos trans em âmbito da cidadania e da política, mas ainda pode ser um dos caminhos para se incrementar o reconhecimento social das pessoas trans. Assim, toma-se como evidência contemporânea da “transcis-rexistência”, no cenário da representação política, o mandato coletivo, instrumento pelo qual o laço com pessoas cis possibilita, de modo compartilhado, o acesso de candidatas trans às instâncias políticas, geralmente no contexto do Poder Legislativo.

Entende-se que, com isso, o artigo inova ao fomentar a discussão sobre reconhecimento social a partir do levantamento de possibilidades de alianças para promoção do sentimento de estima social, na medida em que se encontre indissociável a essa tarefa a valorização da autonomia de pessoas trans. Isso implica dizer que a resistência contra as formas de não-reconhecimento social e exclusão da representação política não é, portanto, um encargo somente de vereadores/as e deputados/as trans. Mesmo porque o debate deve ir além das minorias estarem ou não presentes nesses espaços; envolve o fortalecimento de alianças que, sensíveis às demandas desta população, possam lhes dar seguimento e assumir sua agenda, mesmo quando políticos e políticas trans estiverem ausentes desses espaços decisórios.

O texto estrutura-se em outros quatro momentos. Primeiro, aborda-se que a violência, a ausência de direitos e a cidadania precária das pessoas trans no Brasil, teoricamente, admitem uma leitura fundamentada nos preceitos do binômio (não)reconhecimento e (sub)representação. Em termos de inclusão social e igualdade política, propõe-se a conexão entre o debate sobre reconhecimento e a busca por representação, a partir da noção de perspectivas sociais, uma política que conecte ideias e presença. Em seguida, recupera-se um panorama histórico das principais tentativas, da parte do ativismo trans, em superar a exclusão social e política, enfatizando-se como a representação, estratégia crescentemente adotada, culmina num marco para o ativismo trans: os mandatos coletivos. Subsequentemente, conceitua-se a “transcis-rexistência” como forma de entender estas lutas, assim como proposta empírica para se pensar a possibilidade de se alcançar reconhecimento. Por fim, o artigo, nas considerações finais, apresenta a conclusão e oferece sugestões para o aprofundamento de pesquisas futuras.

(Não) reconhecimento social e (sub)representação política: a população trans em questão

Reconhecimento é uma categoria cara à filosofia contemporânea e que pode designar tanto um parâmetro normativo para justiça (FRASER, 2007FRASER, Nancy. Mapeando a imaginação feminista: da redistribuição ao reconhecimento e à representação. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 15, n. 2, p. 291-308, 2007.; FRASER, 2009FRASER, Nancy. Reenquadrando a justiça em um mundo globalizado. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, v. 77, p. 11-39, 2009.) quanto uma condição inerente à autorrealização dos indivíduos inseridos na sociedade (TAYLOR, 1994TAYLOR, Charles. The politics of recognition. Princeton University Press, 1994.; HONNETH, 2009HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009.). A discussão sobre reconhecimento tem perpassado campos como a ciência política, mostrando-se um útil recurso interpretativo para análises calcadas nos conflitos que engendram múltiplos movimentos sociais. Nesse sentido, é notório um interesse recente por tal categoria na literatura que problematiza tanto as expressões do não-reconhecimento como as lutas coletivas da população trans no Brasil (BENTO, 2014BENTO, Berenice. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Contemporânea, São Carlos, v. 4, n. 1, p. 165-182, 2014. ; CARVALHO, 2015CARVALHO, Mário. “Muito Prazer, Eu Existo!” Visibilidade e reconhecimento no ativismo de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.; CARVALHO, 2017CARVALHO, Mário. Nossa esperança é ciborgue? Subalternidade, reconhecimento e “tretas” na internet. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n.1, p. 347-363, 2017.; CARVALHO; CARRARA, 2015CARVALHO, Mario; CARRARA, Sérgio. Ciberativismo trans: considerações sobre uma nova geração militante. Contemporânea, São Carlos, v. 13, n. 2, p. 382-400, 2015.; BUNCHAFT, 2016BUNCHAFT, Maria. Transexualidade no STJ: desafios para a despatologização à luz do debate Butler-Fraser. Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, v. 21, n. 1, p. 343-376, 2016.; SARMENTO, 2016SARMENTO, Rayza. Feminismo, reconhecimento e mulheres trans*: expressões online de tensões. Pensamento Plural, Pelotas, n. 17, p. 129-150, 2016.).

Com o objetivo de demonstrar como indivíduos e grupos sociais se inserem na sociedade contemporânea e concebendo reconhecimento como autorrelação prática positiva, Honneth (2009)HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009. defende em Luta por Reconhecimento a ideia de que os indivíduos constituem suas identidades pessoais ao serem reconhecidos como sujeitos em processos intersubjetivos. Para tal, o autor pontua requisitos para o reconhecimento social segundo três esferas: 1) afetiva (esfera que demanda integridade física e psíquica e que promove autoconfiança;); 2) jurídico-moral (esfera que demanda integridade social do indivíduo como membro de uma comunidade político-jurídica e que promove autorrespeito); e 3) estima social (esfera que pressupõe o sentimento compartilhado de dignidade enquanto membro de uma comunidade cultural, com respeito solidário, e que promove a auto estima).

A violação a quaisquer dessas três expectativas, além de interferir negativamente na autorrelação prática dos indivíduos, incita-os à luta coletiva moralmente motivada, com fins de restabelecer condições de reconhecimento recíproco, desencadeando a mudança social. Assim, o potencial explicativo e a abrangência empírica da teoria de reconhecimento social fundamentam-se nas experiências de não-reconhecimento correspondentes às três esferas apresentadas: 1) maus tratos e violação (esfera afetiva); 2) privação de direitos e exclusão (esfera jurídico-moral); 3) degradação moral e ofensas (esfera da estima social) (HONNETH, 2009HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009.).

Autores como Bento (2014)BENTO, Berenice. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Contemporânea, São Carlos, v. 4, n. 1, p. 165-182, 2014. , Bunchaft (2016)BUNCHAFT, Maria. Transexualidade no STJ: desafios para a despatologização à luz do debate Butler-Fraser. Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, v. 21, n. 1, p. 343-376, 2016. e Carvalho (2015)CARVALHO, Mário. “Muito Prazer, Eu Existo!” Visibilidade e reconhecimento no ativismo de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. colocam que a privação de direitos e a exclusão (esfera jurídico-moral) têm suscitado uma luta, junto ao Estado, contra o não reconhecimento da identidade de gênero, o que levou esta questão, nas duas últimas décadas, ao centro do debate sobre a cidadania de pessoas trans (COACCI, 2018COACCI, Thiago. Conhecimento precário e conhecimento contra-público: a coprodução dos conhecimentos e dos movimentos sociais de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.). No Brasil, o direito à identidade de gênero ainda se encontra estabelecido sob a premissa da autorização parcial em determinados espaços (universidades e outras instituições públicas), o que Bento (2014)BENTO, Berenice. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Contemporânea, São Carlos, v. 4, n. 1, p. 165-182, 2014. compreende como “cidadania precária”. Na prática, tal direito é atravessado por um vácuo legal, que dá lugar a atos administrativos e jurisdicionados (resoluções, portarias, decretos, etc.), os quais, sem perspectiva universal de inclusão, e até sob risco de serem revogados a qualquer momento, efetivam uma condição de mínima cidadania (BENTO, 2014BENTO, Berenice. Nome social para pessoas trans: cidadania precária e gambiarra legal. Contemporânea, São Carlos, v. 4, n. 1, p. 165-182, 2014. ).

Trata-se da negação de um direito que viola a autonomia de toda uma população, resultando em “morte social” - metáfora utilizada por Honneth (2009, p. 218)HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009. para a “elaboração coletiva da privação de direitos e da exclusão social”. Contudo, Carvalho (2017, p. 348)CARVALHO, Mário. Nossa esperança é ciborgue? Subalternidade, reconhecimento e “tretas” na internet. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n.1, p. 347-363, 2017., considera que, em âmbito da luta por reconhecimento, a demanda jurídica da identidade de gênero da população trans “está circunscrita a apenas um aspecto do processo de privação de direitos e, portanto, não daria conta de formas de desrespeito que afetam mais diretamente a ‘dignidade’; como a ofensa, a agressão física e o assassinato”.

Ou seja, por um lado, no que tange à integridade individual de pessoas trans no Brasil (esfera afetiva), constata-se um recorrente desrespeito perpetrado pela via dos maus-tratos e das violências cotidianas, sendo a radicalização do não-reconhecimento a própria morte física, banalizada. O país é o que mais mata transexuais, segundo dados da ONG Transgender Europe, de 1º de janeiro de 2008 a 30 de setembro de 2020 (TGEU, 2020 TGEU - TRANSGENDER EUROPE. Atualização TMM: Trans Day of Remembrance 2020. TGEU, 11 de novembro de 2020. Disponível em: Disponível em: https://transrespect.org/en/tmm-update-tdor-2020/ . Acesso em: 07 fev. 2021.
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). No Brasil, apesar de não existirem dados oficiais sobre assassinatos de pessoas trans, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) tem feito esse levantamento a partir de matérias de jornais e mídias veiculadas na internet. No último dossiê, referente ao ano de 2020, foram registrados 175 assassinatos de travestis e mulheres trans. Este número foi o segundo maior, quando considerada a série histórica desde 2008, ficando atrás apenas de 2017, ano cujo registro foi o de 179 assassinatos dessas pessoas. Além disso, conforme o mesmo dossiê, mulheres trans negras e pobres compõem mais do que 78% das vítimas (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2021BENEVIDES, Bruna; NOGUEIRA, Sayonara. Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020. São Paulo, 2021. Disponível em: Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/01/dossie-trans-2021-29jan2021.pdf . Acesso em: 07 fev. 2021.
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).

De outro lado, degradações e ofensas (esfera da estima social) afetam indivíduos trans no plano da aceitação recíproca de suas qualidades individuais, enquanto membros de uma comunidade de valores (CARVALHO, 2015CARVALHO, Mário. “Muito Prazer, Eu Existo!” Visibilidade e reconhecimento no ativismo de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.; CARVALHO, 2017CARVALHO, Mário. Nossa esperança é ciborgue? Subalternidade, reconhecimento e “tretas” na internet. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n.1, p. 347-363, 2017.), resultando em vexação, “degradação cultural de uma forma de vida” (HONNETH, 2009HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009., p. 218). Este desrespeito é explícito nas transfobias cotidianas. Entre tais violências, estão “formas institucionalizadas de discriminação, criminalização, patologização e estigmatização que se manifestam de várias maneiras, variando desde violência física, discurso de ódio, insultos e cobertura de mídia hostil até formas mais difusas de opressão e exclusão social” (BERREDO et al., 2018BERREDO, Lukas et al. Perspectivas trans globais sobre saúde e bem estar: relatório comunitário TvT. Transrespeito versus Transfobia no Mundo. TGEU, 2018. Disponível em: Disponível em: https://transrespect.org/wp-content/uploads/2018/12/TvT-PS-Vol20-2018_PT.pdf . Acesso em: 29 abr. 2020.
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, p. 14). Tomando a exclusão de pessoas trans do mercado de trabalho como exemplo, segundo Irigaray (2012)IRIGARAY, Hélio. Travestis e transexuais no mundo do trabalho. In: FREITAS, M. E.; DANTAS, M. (orgs). Diversidade sexual e trabalho. São Paulo: Cengage, 2012. p.121-148., quem entra nesse mercado, geralmente assume funções operacionais e, ainda assim, experimenta situações de violência, inclusive em empresas que possuem políticas de diversidade.

Salienta-se que dentro de um grupo que não é reconhecido socialmente, a situação das pessoas trans negras tem ainda mais camadas. Essas pessoas, em âmbito interseccional, são afetadas por violências transfóbicas e racistas (MENEZES, 2018MENEZES, Lincoln. Transfobia e racismo: articulação de violências nas vivências de trans. BIS: Boletim do Instituto de Saúde, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 62-76, 2018.; BENEVIDES; NOGUEIRA, 2021BENEVIDES, Bruna; NOGUEIRA, Sayonara. Dossiê dos assassinatos e da violência contra travestis e transexuais brasileiras em 2020. São Paulo, 2021. Disponível em: Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2021/01/dossie-trans-2021-29jan2021.pdf . Acesso em: 07 fev. 2021.
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), sendo que a manifestação racista, articula-se pela aversão à “aparência física, cor da pele, tipo de cabelo etc., em que se pressupõe a ideia de superioridade de uma raça (a branca) sobre a outra (a negra)” (MENEZES, 2018MENEZES, Lincoln. Transfobia e racismo: articulação de violências nas vivências de trans. BIS: Boletim do Instituto de Saúde, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 62-76, 2018., p. 74). Menezes (2018)MENEZES, Lincoln. Transfobia e racismo: articulação de violências nas vivências de trans. BIS: Boletim do Instituto de Saúde, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 62-76, 2018. considera que toda esta dimensão interseccional entre transfobia, racismo e classe social, são ideais estruturantes do Brasil que efetivam a permanente violência contra pessoas trans negras, destituindo-as de plena existência e cidadania.

Diante disso, segundo Honneth (2009)HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009., é especialmente na relação entre as esferas jurídico-normativa e de estima social que conflitos sociais com tensão moral se manifestariam enquanto busca generalizada por reconhecimento. Em outras palavras, a luta por reconhecimento depende de modificações sociais que historicamente compreendem uma semântica comum que seja ela própria a base motivacional política a vários indivíduos, sendo uma resposta que vai muito além dos desrespeitos perpetrados contra um só indivíduo (esfera afetiva); envolve a mudança social, a partir do sentimento de violação que atravessa outros humanos: ou seja, a negação de direitos (esfera jurídico-moral) com a degradação moral (esfera da estima social) (HONNETH, 2009HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009.).

Porém, como acrescenta Fraser (2007FRASER, Nancy. Mapeando a imaginação feminista: da redistribuição ao reconhecimento e à representação. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 15, n. 2, p. 291-308, 2007., 2009)FRASER, Nancy. Reenquadrando a justiça em um mundo globalizado. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, v. 77, p. 11-39, 2009., a análise dos conflitos sociais deve deslocar sua atenção para o grau de injustiça dispensado aos grupos excluídos. Para tal, o potencial analítico de uma teoria nesse campo está em uma condição tripartite que integre essa dimensão do reconhecimento social (a qual, em sua perspectiva, mobiliza reivindicações apenas culturais) com outras duas dimensões fundamentais para a justiça: a econômica (redistribuição da riqueza material produzida) e a política (representação paritária nas instâncias decisórias).

Nesse sentido, guardada a dimensão da distribuição dos recursos de maneira mais equânime (não por sua irrelevância frente às outras duas, mas por extrapolar os fins deste artigo no momento), argumenta-se que uma análise da luta por reconhecimento de pessoas trans, que se oriente para a garantia universalizada dos direitos de tal população e o incremento da dignidade e da estima social, no plano teórico, não deve se deter apenas em compreender a dimensão social do reconhecimento, mas considerar como o não-reconhecimento também decorre, em alguma medida, de uma condição de sub-representação política.

Não é só a ausência de políticas públicas que interfere no efetivo exercício da cidadania da população trans. A própria falta de representação na instância política consiste também em entrave aos direitos destas pessoas, o que coaduna com as reflexões de Santos (2016a)SANTOS, Gustavo. Diversidade sexual e política eleitoral: analisando as candidaturas de travestis e transexuais no Brasil contemporâneo. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 23, p. 58-96, 2016a. e de Feitosa (2017)FEITOSA, Cleyton. Barreiras à ambição e à representação política de LGBT no Brasil. Ártemis, João Pessoa, v. 24, n. 1, p. 120-131, 2017.. Estes autores propõem, seguindo as trilhas do conceito de representação descritiva (PITKIN, 1967PITKIN, Hannah. The concept of representation. Berkeley: University of California Press, 1967.), que a ocupação das instâncias legislativas por vereadores/as ou deputados/as trans seria um efetivo meio para se tornar presente as demandas por reconhecimento desse público nos meandros da política institucional.

Em princípio, “a função de representação política significa participar de processos de tomada de decisão em nome de outros [...], mas também participar da confecção da agenda pública e do debate público em nome de outros” (MIGUEL, 2003MIGUEL, Luis Felipe. Representação política em 3-D: elementos para uma teoria ampliada da representação política. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 18, n. 51, p. 123-140, 2003., p. 133). Em âmbito teórico, Pitkin (1967)PITKIN, Hannah. The concept of representation. Berkeley: University of California Press, 1967., com o paradigmático The Concept of Representation, retomou o conceito de representação descritiva, segundo o qual se enfatiza a similitude de características entre representantes e representados, numa relação em que se idealiza a composição das casas legislativas obedecendo à distribuição proporcional das mesmas características encontradas na sociedade.

Todavia, Pitkin (1967)PITKIN, Hannah. The concept of representation. Berkeley: University of California Press, 1967. considera que esta é uma concepção problemática, devido à ênfase colocada nas características dos representantes e sua relação com determinados grupos, em detrimento do foco na ação e na possibilidade de responsabilização do representante, sugerindo então o conceito de representação substantiva (política de ideias), visto que neste se atenderia aos requisitos de autorização e responsividade. O primeiro porque, por ele, o sujeito, impossibilitado de se fazer presente, transfere sua autoridade de realização de atos para outro, que age em seu nome; o segundo, por propiciar responsabilização e posterior prestação de contas das ações do representante para com o representado (PITKIN, 1967PITKIN, Hannah. The concept of representation. Berkeley: University of California Press, 1967.).

Porém, ao constatarem que, se comparadas aos homens, as mulheres, historicamente, têm obtido baixa inserção em instâncias decisórias como as casas legislativas, estudiosas afins ao tema da paridade de gênero na política (PHILLIPS, 1995PHILLIPS, Anne. The politics of presence. Oxford: Oxford University Press, 1995.; YOUNG, 2000YOUNG, Iris Marion. Inclusion and democracy. Oxford: Oxford University Press, 2000.) têm defendido a representação mais equânime nesses espaços, resgatando a representação descritiva como fundamento norteador. Esse retorno tem influenciado discussões sobre a sub-representação de grupos minoritários, a exemplo de pessoas LGBT na política (SANTOS, 2016aSANTOS, Gustavo. Diversidade sexual e política eleitoral: analisando as candidaturas de travestis e transexuais no Brasil contemporâneo. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 23, p. 58-96, 2016a.; FEITOSA, 2017FEITOSA, Cleyton. Barreiras à ambição e à representação política de LGBT no Brasil. Ártemis, João Pessoa, v. 24, n. 1, p. 120-131, 2017.).

A partir da representação descritiva, Phillips (1995)PHILLIPS, Anne. The politics of presence. Oxford: Oxford University Press, 1995. propõe o conceito de política de presença, defendendo maior presença de representantes de grupos ausentes dos espaços de representação. Propõe ainda que, para as mulheres, as cotas de participação são um mecanismo democrático para se reduzir tal desigualdade. Nesse sentido, a ideia é a de que grupos desfavorecidos necessitam de oportunidades que possibilitem a geração de políticas públicas que revertam suas realidades negativas (DOVI, 2012DOVI, Suzanne. Moving beyond descriptive representation. In: DOVI, S. L. The good representative. Oxford: Wiley-Blackwell, 2012. p 27-51.).

Porém, assim como ocorre com a representação descritiva, a política de presença é uma concepção contestável, muito em função dos riscos de certo essencialismo identitário. Subjaz à política de presença a noção de que grupos excluídos portariam identidades unificadas, em que seus interesses seriam supostamente homogêneos, o que é algo bastante criticado. Isso porque ser de um grupo não quer dizer representar os interesses do mesmo. Aliás, estes podem até ter interesses e posicionamentos conflitantes. Ainda, ter representantes de um grupo não necessariamente minimiza a distância dos indivíduos representados. Nem mesmo quer dizer que o representante automaticamente articula e negocia suas demandas no espaço político (DOVI, 2012DOVI, Suzanne. Moving beyond descriptive representation. In: DOVI, S. L. The good representative. Oxford: Wiley-Blackwell, 2012. p 27-51.).

Phillips (1995)PHILLIPS, Anne. The politics of presence. Oxford: Oxford University Press, 1995., visando transpor a armadilha identitária inerente ao conceito outrora ofertado, sugere então uma noção mais relacional de representação, em que coexistem diferentes posições, as quais ela denomina como perspectivas sociais. Posteriormente, Young (2000)YOUNG, Iris Marion. Inclusion and democracy. Oxford: Oxford University Press, 2000., em Inclusion and Democracy, aprimora essa noção de perspectivas sociais, destacando que o cerne dessas perspectivas não é uma identidade homogênea. As perspectivas sociais não são sobre interesses, mas pontos de partida compartilhados, a partir do qual os indivíduos podem deliberar ao incorporar as perspectivas sociais no debate sobre representação. Não por uma questão de identidade, mas pelo esforço de contemplar as ideias presentes na ampla diversidade que é constitutiva da própria sociedade. Representação é, portanto, sobre diferença entre representantes e representados e, para Young (2006)YOUNG, Iris Marion. Representação política, identidade e minorias. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, v. 67, p. 139-190, 2006., uma pessoa pode ser representada a partir de três modos gerais: interesses, opiniões e perspectivas.

Desse modo, o conceito de perspectivas sociais contribui para repensar a teoria de representação descritiva, a partir da defesa de uma representação diferenciada, na qual a convergência de interesses não ocorre a priori do processo representativo. Nesse pensamento, não há identidade intrínseca a interesses. No lugar, existe uma base, que são os pontos de partida como meio para resolução da desigualdade de representação política. Assim, em vez de se restringir o debate à mera presença, opta-se por um compromisso com uma expressão plural no corpo legislativo, o que pode se tornar a expressão máxima da própria democracia (YOUNG, 2000YOUNG, Iris Marion. Inclusion and democracy. Oxford: Oxford University Press, 2000.).

Diante dessas colocações, para os fins deste trabalho, deve-se considerar a junção entre dois aspectos: um arcabouço jurídico-legal que propicie ofertar tal reconhecimento à pessoa trans; e uma política de presença (PHILLIPS, 1995PHILLIPS, Anne. The politics of presence. Oxford: Oxford University Press, 1995.), cuja representação, a partir da ocupação de pessoas trans no legislativo, possibilite tornar presentes demandas e perspectivas sociais dessa população, eminentemente sub-representada. Além da sub-representação das pessoas e movimentos trans, é preciso considerar que a sobrerrepresentação de grupos conservadores têm aumentado a invisibilidade de pessoas LGBT (SANTOS, 2016aSANTOS, Gustavo. Diversidade sexual e política eleitoral: analisando as candidaturas de travestis e transexuais no Brasil contemporâneo. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 23, p. 58-96, 2016a.; SANTOS, 2016bSANTOS, Gustavo. Diversidade sexual, partidos políticos e eleições no Brasil contemporâneo. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 21, p. 147-186, 2016b.; FEITOSA, 2017FEITOSA, Cleyton. Barreiras à ambição e à representação política de LGBT no Brasil. Ártemis, João Pessoa, v. 24, n. 1, p. 120-131, 2017.), e gerado desafios para o reconhecimento de pessoas trans em âmbito político.

Na próxima seção, caracteriza-se o ativismo trans em seus repertórios de ação e regimes de visibilidade, “isto é, entre as formas como, por um lado, o sujeito coletivo do movimento se representa e, por outro, como esse sujeito coletivo e indivíduos são representados por outros atores que não são ativistas” (COACCI, 2018COACCI, Thiago. Conhecimento precário e conhecimento contra-público: a coprodução dos conhecimentos e dos movimentos sociais de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018., p. 222). Enfatiza-se a questão da sub-representação política da população trans em cargos no Legislativo, alinhando as discussões que envolvem o ativismo trans ao longo das três últimas décadas e em múltiplos espaços sociais, desde sua relação com os movimentos homossexuais até sua interlocução com o Estado, culminando nas recentes conquistas em termos de ocupação das instâncias de representação política.

Ativismos trans: os múltiplos repertórios de ação e a inserção na política de representação

Ativismo trans é uma expressão mobilizada para designar a rede que tem se estabelecido entre atores trans, geralmente inseridos em movimentos sociais, buscando reivindicar direitos, denunciar violências e adentrar à cena política, a partir de diversos regimes de visibilidade. O uso dessa expressão está amparado no que Carvalho (2015, p. 25)CARVALHO, Mário. “Muito Prazer, Eu Existo!” Visibilidade e reconhecimento no ativismo de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. observou: “a categoria movimento abarca apenas uma parte do elenco”. Assim, o ativismo trans abarca “novas formas disponíveis de construção política para além, mas não excluindo, as já desenvolvidas pelas redes e suas ONGs” (CARVALHO, 2015CARVALHO, Mário. “Muito Prazer, Eu Existo!” Visibilidade e reconhecimento no ativismo de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015., p. 26). Ele compreende as múltiplas formas de organização política e de resistência, tais como a militância em coletivos, a participação em associações e organizações não-governamentais (vinculadas ou não a outros movimentos sociais), a interlocução com órgãos governamentais e, dentre as mais recentes, o ciberativismo trans, o ativismo trans na academia e a representação política (CARVALHO, 2015CARVALHO, Mário. “Muito Prazer, Eu Existo!” Visibilidade e reconhecimento no ativismo de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.; CARVALHO, 2017CARVALHO, Mário. Nossa esperança é ciborgue? Subalternidade, reconhecimento e “tretas” na internet. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n.1, p. 347-363, 2017.; CARVALHO; CARRARA, 2015CARVALHO, Mario; CARRARA, Sérgio. Ciberativismo trans: considerações sobre uma nova geração militante. Contemporânea, São Carlos, v. 13, n. 2, p. 382-400, 2015.; COACCI, 2018COACCI, Thiago. Conhecimento precário e conhecimento contra-público: a coprodução dos conhecimentos e dos movimentos sociais de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.; LINS; MESQUITA, 2020LINS, Carolina; MESQUITA, Marcos. A compreensão da política por militantes do movimento trans alagoano. Psicologia: teoria e prática, São Paulo, v. 22, n. 1, p. 251-269, 2020.).

Segundo Carvalho e Carrara (2015)CARVALHO, Mario; CARRARA, Sérgio. Ciberativismo trans: considerações sobre uma nova geração militante. Contemporânea, São Carlos, v. 13, n. 2, p. 382-400, 2015., Prado (2016)PRADO, Marco Aurélio. Representação local e política partidária: candidaturas transexuais e travestis no Brasil. Sexuality policy watch, Rio de Janeiro, v. 18, 2016. Disponível em: Disponível em: https://sxpolitics.org/ptbr/representacao-local-e-politica-partidaria-candidaturas-transexubais-e-travestis-no-brasil/6884 . Acesso em: 08 set. 2021.
https://sxpolitics.org/ptbr/representaca...
e Coacci (2018)COACCI, Thiago. Conhecimento precário e conhecimento contra-público: a coprodução dos conhecimentos e dos movimentos sociais de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018., a década de 90 sinaliza a emergência dos ativismos de travestis e transexuais, cada qual com demandas distintas. No conjunto de reivindicações das travestis encontravam-se a resistência à violência policial (agressões e prisões injustificadas), bem como a busca pela prevenção ao HIV/AIDS - Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. A partir de maior interlocução com o Estado, o qual passou a fomentar programas de combate às DST/AIDS e destinar recursos para organizações da sociedade civil, surgem, capilarizados, os primeiros grupos organizados de ativistas travestis.

Nesse mesmo período, além do Estado, estas ativistas relacionam-se, em meio a tensões, com o movimento homossexual (CARVALHO; CARRARA, 2015CARVALHO, Mario; CARRARA, Sérgio. Ciberativismo trans: considerações sobre uma nova geração militante. Contemporânea, São Carlos, v. 13, n. 2, p. 382-400, 2015.; CARVALHO, 2017CARVALHO, Mário. Nossa esperança é ciborgue? Subalternidade, reconhecimento e “tretas” na internet. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n.1, p. 347-363, 2017.; COACCI, 2018COACCI, Thiago. Conhecimento precário e conhecimento contra-público: a coprodução dos conhecimentos e dos movimentos sociais de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.). O conflito se dava por conta de “uma estratégia do movimento gay em construir uma imagem respeitável que dissociasse a figura do homossexual da figura da travesti, identidade marcadamente estigmatizada” (COACCI, 2018COACCI, Thiago. Conhecimento precário e conhecimento contra-público: a coprodução dos conhecimentos e dos movimentos sociais de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018., p. 126). Ademais, destaca-se que “foi apenas em 1995 que o termo ‘travesti’ passou então a fazer parte oficialmente da sigla, no VIII Encontro Brasileiro de Gays e Lésbicas. Em seu âmbito criava-se a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis (ABGLT)” (CARVALHO; CARRARA, 2015CARVALHO, Mario; CARRARA, Sérgio. Ciberativismo trans: considerações sobre uma nova geração militante. Contemporânea, São Carlos, v. 13, n. 2, p. 382-400, 2015., p. 384). Carvalho e Carrara (2015)CARVALHO, Mario; CARRARA, Sérgio. Ciberativismo trans: considerações sobre uma nova geração militante. Contemporânea, São Carlos, v. 13, n. 2, p. 382-400, 2015. ressaltam que esse modelo de organização possibilitou ao então ativismo de travestis um primeiro espaço para o qual poderiam se referir como instância representativa. Concernente às reivindicações de ativistas transexuais, somente em 1997 “houve o estabelecimento de um compromisso estratégico entre lideranças do Coletivo Nacional de Transexuais e segmentos progressistas do universo acadêmico” (BUNCHAFT, 2016BUNCHAFT, Maria. Transexualidade no STJ: desafios para a despatologização à luz do debate Butler-Fraser. Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, v. 21, n. 1, p. 343-376, 2016., p. 361). Segundo Carvalho e Carrara (2015)CARVALHO, Mario; CARRARA, Sérgio. Ciberativismo trans: considerações sobre uma nova geração militante. Contemporânea, São Carlos, v. 13, n. 2, p. 382-400, 2015., o intuito da aliança era o de se fomentar o acesso a políticas públicas para demandas de transexuais (direito à cirurgia de transgenitalização e modificação de documentos), o que as diferenciaria dos grupos de travestis.

Na década de 2000, há expansão dos ativismos trans pelo país e de organizações nacionais como ANTRA e Coletivo Nacional de Transexuais (CNT), que se tornam referência para organização política. Com a ascensão do PT ao Poder Executivo em 2003 e a institucionalização do Programa Brasil sem Homofobia (BSH), acrescenta-se, às reivindicações anteriores, a de se induzir políticas públicas para tal população, o que leva o processo transexualizador e a adoção do nome social a se tornarem questões centrais, sobretudo para mulheres transexuais (COACCI, 2018COACCI, Thiago. Conhecimento precário e conhecimento contra-público: a coprodução dos conhecimentos e dos movimentos sociais de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.). Nesse processo, mecanismos de participação social são fomentados pelo Estado, como as conferências LGBT, ao longo dos mandatos do governo Lula, e a criação do Conselho Nacional LGBT, o qual amplia a interlocução desses ativismos (FEITOSA, 2017FEITOSA, Cleyton. Barreiras à ambição e à representação política de LGBT no Brasil. Ártemis, João Pessoa, v. 24, n. 1, p. 120-131, 2017.; COACCI, 2018COACCI, Thiago. Conhecimento precário e conhecimento contra-público: a coprodução dos conhecimentos e dos movimentos sociais de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.).

Em termos de relações contíguas aos ativismos trans, as contendas não se dissipam. Por um lado, promove-se uma maior articulação com o movimento feminista. Mas é nessa década que se aprofunda a disputa em torno do modelo identitário para nomear pessoas trans. Isso porque no início da década difunde-se a proposta de se aglutinar essas categorias sob o rótulo do internacionalizado transgênero, o que é rechaçado pelo movimento de travestis. Quanto ao movimento homossexual, apesar de maior aproximação favorecida por conta do clima político e institucional criado desde a década anterior, há a queixa de que as questões de pessoas trans seriam frequentemente deixadas em último plano (COACCI, 2018COACCI, Thiago. Conhecimento precário e conhecimento contra-público: a coprodução dos conhecimentos e dos movimentos sociais de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.).

A última década (2010-2019) demarca uma crise no modelo de organização política até então adotado pelo ativismo trans. O contexto é de crescente tensão política entre o Executivo e o Legislativo, dada a ascensão do conservadorismo no parlamento e a crise política nos governos Dilma Rousseff. Há também um declínio no financiamento de programas relativos à diversidade sexual e de gênero, o que promove rupturas entre associações como a ANTRA e o Estado (CARVALHO; CARRARA, 2015CARVALHO, Mario; CARRARA, Sérgio. Ciberativismo trans: considerações sobre uma nova geração militante. Contemporânea, São Carlos, v. 13, n. 2, p. 382-400, 2015.; COACCI, 2018COACCI, Thiago. Conhecimento precário e conhecimento contra-público: a coprodução dos conhecimentos e dos movimentos sociais de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.).

É nesse quadro, porém, que há uma efervescência de repertórios de ação política ainda maior, com modos de organização política não institucionalizados, como coletivos informais. Há a emergência do ciberativismo trans, ativismo autônomo e efêmero na internet, que, segundo Carvalho e Carrara (2015)CARVALHO, Mario; CARRARA, Sérgio. Ciberativismo trans: considerações sobre uma nova geração militante. Contemporânea, São Carlos, v. 13, n. 2, p. 382-400, 2015. e Carvalho (2017)CARVALHO, Mário. Nossa esperança é ciborgue? Subalternidade, reconhecimento e “tretas” na internet. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n.1, p. 347-363, 2017., propicia o levantamento de discussões dos assuntos relativos à visibilidade trans, geralmente denunciando episódios de transfobia (agressões físicas, assassinatos e construções estigmatizantes que as relacionam à criminalidade e/ou as identificam com o gênero incorreto). O ativismo em âmbito acadêmico também se consolida neste período como locus para visibilidade às pessoas trans e exemplifica-se na criação de núcleos e grupos de estudos nas universidades, bem como em eventos e congressos universitários (COACCI, 2018COACCI, Thiago. Conhecimento precário e conhecimento contra-público: a coprodução dos conhecimentos e dos movimentos sociais de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.).

No aspecto identitário, adota-se a categoria trans como aglutinadora de outros sujeitos, como homens trans e não-binários/as. As tensões com o movimento homossexual são persistentes a partir de denúncias de transfobia. Quanto ao movimento feminista, com a ampliação das correntes feministas, as questões trans passam a ser um eixo de debate cada vez mais necessário, ainda que haja tensões com a ala do feminismo radical, que não as acolhe como sujeito político do feminismo identificado com o sexo biológico (CARVALHO; CARRARA, 2015CARVALHO, Mario; CARRARA, Sérgio. Ciberativismo trans: considerações sobre uma nova geração militante. Contemporânea, São Carlos, v. 13, n. 2, p. 382-400, 2015.; CARVALHO, 2017CARVALHO, Mário. Nossa esperança é ciborgue? Subalternidade, reconhecimento e “tretas” na internet. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 25, n.1, p. 347-363, 2017.; COACCI, 2018COACCI, Thiago. Conhecimento precário e conhecimento contra-público: a coprodução dos conhecimentos e dos movimentos sociais de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.).

Acerca do repertório de ação eleitoral como peça para o ativismo trans, considera-se que, embora, num primeiro momento, a redemocratização tenha propiciado abertura, ainda que pequena, de alguns partidos políticos (especialmente de esquerda, centro-esquerda e de centro) às candidaturas de lésbicas e gays (mesmo com questões pró diversidade sexual subordinadas a aspirações maiores dos partidos) (PRADO, 2016PRADO, Marco Aurélio. Representação local e política partidária: candidaturas transexuais e travestis no Brasil. Sexuality policy watch, Rio de Janeiro, v. 18, 2016. Disponível em: Disponível em: https://sxpolitics.org/ptbr/representacao-local-e-politica-partidaria-candidaturas-transexubais-e-travestis-no-brasil/6884 . Acesso em: 08 set. 2021.
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; SANTOS, 2016aSANTOS, Gustavo. Diversidade sexual e política eleitoral: analisando as candidaturas de travestis e transexuais no Brasil contemporâneo. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 23, p. 58-96, 2016a.; SANTOS, 2016bSANTOS, Gustavo. Diversidade sexual, partidos políticos e eleições no Brasil contemporâneo. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 21, p. 147-186, 2016b.), foi apenas no decurso da última década (2010-2019) que a representação política, expressa pelas candidaturas de pessoas trans, se intensificou (ANTRA, 2016ANTRA - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS. Candidaturas trans 2016. Salvador, 2016. Disponível em: Disponível em: https://antrabrasil.org/eleicoes2016/ . Acesso em: 07 fev. 2021.
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, 2018ANTRA - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS. Candidaturas trans 2018. Salvador, 2018. Disponível em: Disponível em: https://antrabrasil.org/candidaturas2018/ . Acesso em: 28 abr. 2020.
https://antrabrasil.org/candidaturas2018...
, 2020ANTRA - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS. Mapeamento de candidaturas de travestis, mulheres transexuais, homens trans e demais pessoas trans em 2020. Salvador, 2020. Disponível em: Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/11/lista-final-15nov2020-1.pdf . Acesso em: 07 fev. 2021.
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; PRADO, 2016PRADO, Marco Aurélio. Representação local e política partidária: candidaturas transexuais e travestis no Brasil. Sexuality policy watch, Rio de Janeiro, v. 18, 2016. Disponível em: Disponível em: https://sxpolitics.org/ptbr/representacao-local-e-politica-partidaria-candidaturas-transexubais-e-travestis-no-brasil/6884 . Acesso em: 08 set. 2021.
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; COACCI, 2018COACCI, Thiago. Conhecimento precário e conhecimento contra-público: a coprodução dos conhecimentos e dos movimentos sociais de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.).

Assim, são cada vez mais frequentes, no processo eleitoral, as candidaturas de pessoas trans, principalmente com vistas a ocupar os espaços de representação política em âmbito legislativo (CARVALHO, 2015CARVALHO, Mário. “Muito Prazer, Eu Existo!” Visibilidade e reconhecimento no ativismo de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.; SANTOS, 2016aSANTOS, Gustavo. Diversidade sexual e política eleitoral: analisando as candidaturas de travestis e transexuais no Brasil contemporâneo. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 23, p. 58-96, 2016a.; COACCI, 2018COACCI, Thiago. Conhecimento precário e conhecimento contra-público: a coprodução dos conhecimentos e dos movimentos sociais de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018.; PEDRA, 2018PEDRA, Caio. Acesso à cidadania por travestis e transexuais no Brasil: um panorama da atuação do Estado no enfrentamento das exclusões. Dissertação (Mestrado em Administração Pública) - Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho, Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte, 2018.). Essa tendência é confirmada por dados como os da ANTRA (2016ANTRA - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS. Candidaturas trans 2016. Salvador, 2016. Disponível em: Disponível em: https://antrabrasil.org/eleicoes2016/ . Acesso em: 07 fev. 2021.
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; 2018ANTRA - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS. Candidaturas trans 2018. Salvador, 2018. Disponível em: Disponível em: https://antrabrasil.org/candidaturas2018/ . Acesso em: 28 abr. 2020.
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; 2020)ANTRA - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS. Mapeamento de candidaturas de travestis, mulheres transexuais, homens trans e demais pessoas trans em 2020. Salvador, 2020. Disponível em: Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/11/lista-final-15nov2020-1.pdf . Acesso em: 07 fev. 2021.
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, que sugerem um salto de 6 para 53 no número de candidaturas para deputados/as (eleições gerais de 2014 e 2018), e de 80 para 291 para vereadores/as (eleições municipais de 2016 e 2020).

A crescente inserção de pessoas trans já havia sido identificada entre 2002 e 2012 (SANTOS, 2016aSANTOS, Gustavo. Diversidade sexual e política eleitoral: analisando as candidaturas de travestis e transexuais no Brasil contemporâneo. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 23, p. 58-96, 2016a.). Tais dados contrariam não só a concepção de que o ativismo trans nutriria forte descrença em relação às instituições oficiais de representação política - preferindo mobilizar-se politicamente pela via dos movimentos sociais (LINS; MESQUITA, 2020LINS, Carolina; MESQUITA, Marcos. A compreensão da política por militantes do movimento trans alagoano. Psicologia: teoria e prática, São Paulo, v. 22, n. 1, p. 251-269, 2020.) -, como também contrariam explicações focadas no contexto político e nos recursos de atores para explicar as possibilidades de representação, haja vista: a escassez de recursos financeiros e falta de apoio partidário; a baixa abertura dos partidos e coligações às demandas de diversidade sexual e de gênero, mesmo no espectro ideológico de esquerda; a grande predominância de homens-cis-heterossexuais nos partidos, com culturas altamente masculinizadas/heterossexualizadas; a baixa escolaridade; a dependência por algumas travestis e transexuais da atividade sexual em condições precárias; e até mesmo a auto-exclusão decorrente do receio de reduzidas chances de vitória (SANTOS, 2016aSANTOS, Gustavo. Diversidade sexual e política eleitoral: analisando as candidaturas de travestis e transexuais no Brasil contemporâneo. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 23, p. 58-96, 2016a.; FEITOSA, 2017FEITOSA, Cleyton. Barreiras à ambição e à representação política de LGBT no Brasil. Ártemis, João Pessoa, v. 24, n. 1, p. 120-131, 2017.; PEDRA, 2018PEDRA, Caio. Acesso à cidadania por travestis e transexuais no Brasil: um panorama da atuação do Estado no enfrentamento das exclusões. Dissertação (Mestrado em Administração Pública) - Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho, Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte, 2018.).

Conforme discorrem Carvalho (2015)CARVALHO, Mário. “Muito Prazer, Eu Existo!” Visibilidade e reconhecimento no ativismo de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015. e Santos (2016aSANTOS, Gustavo. Diversidade sexual e política eleitoral: analisando as candidaturas de travestis e transexuais no Brasil contemporâneo. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 23, p. 58-96, 2016a.; 2016b)SANTOS, Gustavo. Diversidade sexual, partidos políticos e eleições no Brasil contemporâneo. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 21, p. 147-186, 2016b., a disputa de pessoas trans no processo eleitoral, enquanto estratégia mais ampla e organizada de ativismo, é algo recente, muito embora a candidatura de uma pessoa trans não seja novidade, já que a primeira delas, para vereadora, ocorreu na cidade de Colônia do Piauí, ainda em 1992. A vereadora Kátia Tapety obteve êxito, sendo inclusive reeleita três vezes. Salienta-se que somente em 2018, a partir de decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pessoas trans puderam exercer alguns direitos: votar nas urnas a partir de seu nome social presente no título eleitoral; utilizar o nome social nos partidos ou coligações enquanto candidato/a; e, no caso das mulheres trans, serem contabilizadas dentro das cotas de candidaturas femininas (BRASIL, 2018BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 23.562, de 22 de março de 2018. Acrescenta e altera dispositivos da Res.-TSE 21.538, de 14 de outubro de 2003, para inclusão do nome social no cadastro e atualização do modelo de título eleitoral. Brasília: Tribunal Superior Eleitoral, 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2018/resolucao-no-23-562-de-22-de-marco-de-2018 . Acesso em: 07 fev. 2021.
https://www.tse.jus.br/legislacao/compil...
, 2019BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Resolução n. 23.609, de 18 de dezembro de 2019. Dispõe sobre a escolha e o registro de candidatos para as eleições. Brasília: Tribunal Superior Eleitoral, 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.tse.jus.br/legislacao/compilada/res/2019/resolucao-no-23-609-de-18-de-dezembro-de-2019 . Acesso em: 07 fev. 2021.
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; PEDRA, 2018PEDRA, Caio. Acesso à cidadania por travestis e transexuais no Brasil: um panorama da atuação do Estado no enfrentamento das exclusões. Dissertação (Mestrado em Administração Pública) - Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho, Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte, 2018.; SOARES, 2018SOARES, Douglas. Transgêneros e o direito ao voto cidadão de 2018 no Brasil. Bagoas - Estudos gays: gêneros e sexualidades, Natal, v. 12, n. 19, p. 240-270, 2018.).

É digno de nota que os poucos avanços em âmbito jurídico se deem muito em função da responsividade que os Poderes Executivo e Judiciário têm ante à pressão exercida pelo movimento LGBT, na medida em que o parlamento, quando não se omite, obstrui as tratativas concernentes ao reconhecimento da diversidade sexual e de gênero, principalmente em decorrência da inclinação a pautas antagônicas à cidadania LGBT, muitas das quais são fundamentadas no conservadorismo político (SANTOS, 2016aSANTOS, Gustavo. Diversidade sexual e política eleitoral: analisando as candidaturas de travestis e transexuais no Brasil contemporâneo. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 23, p. 58-96, 2016a.; SANTOS, 2016bSANTOS, Gustavo. Diversidade sexual, partidos políticos e eleições no Brasil contemporâneo. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 21, p. 147-186, 2016b.; FEITOSA, 2017FEITOSA, Cleyton. Barreiras à ambição e à representação política de LGBT no Brasil. Ártemis, João Pessoa, v. 24, n. 1, p. 120-131, 2017.; MACHADO, 2017MACHADO, Maria. Pentecostais, sexualidade e família no Congresso Nacional. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 23, n. 47, p. 351-380, 2017.; PEDRA, 2018PEDRA, Caio. Acesso à cidadania por travestis e transexuais no Brasil: um panorama da atuação do Estado no enfrentamento das exclusões. Dissertação (Mestrado em Administração Pública) - Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho, Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte, 2018.).

Outrossim, foi em meio a essa atmosfera de crescente reprovação por grupos conservadores, como também de aumento da visibilidade política conferida aos movimentos LGBT, que, em 2018, foram eleitas 3 deputadas estaduais trans e negras para cargos de representação relevantes: Erica Malunguinho (Deputada individual pelo partido PSOL com quase 150 mil votos, no Estado de São Paulo) e Erika Hilton (Codeputada em mandato coletivo com legislatura pela Bancada Ativista no partido PSOL com mais de 50 mil votos), para a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP); e Robeyonce Lima (Codeputada em mandato coletivo pelo partido PSOL com mais de 38 mil votos) para a Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco (ALEPE) (ANTRA, 2018ANTRA - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS. Candidaturas trans 2018. Salvador, 2018. Disponível em: Disponível em: https://antrabrasil.org/candidaturas2018/ . Acesso em: 28 abr. 2020.
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). A eleição via mandato coletivo e bancada ativista reforça as estratégias dos movimentos sociais independentes e pluripartidários na luta por representação política.

Já nas eleições municipais de 2020, 30 candidatas foram eleitas vereadoras individualmente, sendo que 7 integram o rol das mais votadas em suas cidades: Linda Brasil (Partido PSOL - Aracaju); Dandara (Partido MDB - Patrocínio Paulista); Tieta Melo (Partido MDB - São Joaquim da Barra); Lorim de Valéria (Partido PDT - Pontal); Duda Salabert (Partido PDT - Belo Horizonte); Titia Chiba (Partido PSB - Pompeu); e Paullete Blue (Partido PSDB - Bom Repouso) (ANTRA, 2020ANTRA - ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS. Mapeamento de candidaturas de travestis, mulheres transexuais, homens trans e demais pessoas trans em 2020. Salvador, 2020. Disponível em: Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2020/11/lista-final-15nov2020-1.pdf . Acesso em: 07 fev. 2021.
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). Quanto aos candidatos e candidatas trans eleitos/as vereadoras/as por via de mandato coletivo, foram quatro: Carolina Iara (Co-vereadora pela Bancada Feminista/Partido PSOL - São Paulo); Heitor Gabriel (Co-vereador pelo Dialogue/PODEMOS - Araçatuba); Rafa Bertolucci (Co-vereadora pelo Dialogue/PODEMOS - Araçatuba); Samara Sostenes (Co-vereadora pelo Quilombo Periférico/PSOL - São Paulo). Salienta-se que a maior incidência de candidatos/as trans nas eleições municipais provavelmente seja atribuída ao fato de esta ser a esfera política que requer menor capital político/financeiro, face a uma maior visibilidade eleitoral (SANTOS, 2016aSANTOS, Gustavo. Diversidade sexual e política eleitoral: analisando as candidaturas de travestis e transexuais no Brasil contemporâneo. Sexualidad, Salud y Sociedad, Rio de Janeiro, n. 23, p. 58-96, 2016a.; PEDRA, 2018PEDRA, Caio. Acesso à cidadania por travestis e transexuais no Brasil: um panorama da atuação do Estado no enfrentamento das exclusões. Dissertação (Mestrado em Administração Pública) - Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho, Fundação João Pinheiro, Belo Horizonte, 2018.).

O caso da eleição de Erica Malunguinho é considerado uma vitória do ponto de vista do ativismo trans, ao fomentar, com a sua eleição, a presença positiva e propositiva de uma pessoa trans em luta por direitos LGBTs. Ela foi eleita como referência transexual na esfera pública, representante da população “T” e com o compromisso discursivo de gênero e raça, o que movimentou a sua campanha política de modo positivo (GONZALEZ, 2021GONZALEZ, Mariana. Erica Malunguinho: “trans tem mais a oferecer do que apenas pautas LGBTs”. UNIVERSIA, São Paulo, 01 jan., 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2021/01/01/erica-malunguinho.htm . Acesso em: 30 mar. 2021.
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). Isso representa “a luta contra a discriminação por orientação sexual, gênero e suas identidades, assim como contra a violência racial. A deputada também reivindica a importância na valorização da ‘educação como mudança” (SOARES, 2018SOARES, Douglas. Transgêneros e o direito ao voto cidadão de 2018 no Brasil. Bagoas - Estudos gays: gêneros e sexualidades, Natal, v. 12, n. 19, p. 240-270, 2018., p. 268).

Segundo informações do departamento de comunicação da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP) (2021)ALESP - ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Departamento de Comunicação. Biografia de Erica Malunguinho. 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/deputado/?matricula=300625 . Acesso em: 29 mar. 2021.
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, tal postura política de Erica Malunguinho advém da sua trajetória de militância, considerando desde a sua formação familiar - de militantes orgânicos de movimentos populares - à sua atuação no campo da arte, cidadania, educação e no movimento das relações raciais. O Aparelha Luzia é exemplo da construção de quilombo urbano, espaço de discussão coletiva, para promoção de cultura e política. A sua campanha política e atuação na ALESP voltam-se à luta atirracista e à promoção de educação, saúde e cultura em prol de uma sociedade mais justa, que reconheça os direitos dos povos tradicionais, das comunidades de terreiro, mulheres, população LGBT e população carcerária. Como informado por Erica Malunguinho, em entrevista concedida a Gonzalez (2021)GONZALEZ, Mariana. Erica Malunguinho: “trans tem mais a oferecer do que apenas pautas LGBTs”. UNIVERSIA, São Paulo, 01 jan., 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2021/01/01/erica-malunguinho.htm . Acesso em: 30 mar. 2021.
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, diversas questões sociais são defendidas para além das pautas LGBTs. Esse ativismo advindo dos movimentos foi um passo importante para construir reconhecimento, visibilidade política e representação, com tendência a estimular diversas estimas e conquistas de direitos a partir da participação política.

Além disso, segundo indica Dearo (2018)DEARO, Guilherme. Mandatos coletivos conquistam vagas em assembleias; entenda como funcionam. Exame, São Paulo, 14 out. 2018. Disponível em: Disponível em: https://exame.com/brasil/mandatos-coletivos-conquistam-vagas-em-assembleias-entenda-como-funcionam/ . Acesso em: 28 mar. 2021.
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, uma estratégia política adotada em comum por Erika Hilton e Robeyonce Lima, ambas negras, na campanha de 2018, foi a de integrar um mandato coletivo. Proposta em franca emergência em diferentes democracias contemporâneas, conforme apontam Secchi et al. (2020)SECCHI, Leonardo et al. As candidaturas coletivas nas eleições municipais de 2020: análise descritiva e propostas para uma agenda de pesquisa sobre mandatos coletivos no Brasil. Zenodo, Brasília, 2020. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.5281/zenodo.4423739 . Acesso em: 12 set. 2021.
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, os mandatos coletivos demandam em sua composição ao menos duas pessoas e têm como compromisso a divisão do poder do representante com um grupo de cidadãos. Algumas candidaturas são coletivas desde a campanha, outras se tornam coletivos após as eleições. Apesar de ainda não dispor de previsão legal no país (visto que para a lei apenas o porta-voz do mandato é o candidato oficial e, caso eleito, aquele que deterá o mandato), trata-se de uma tática em que as premissas são a diversidade do mandato e que este, por sua vez, seja participativo. Salienta-se que, apesar de a aproximação com os representados não ser algo necessariamente automático, essa tática, enquanto estratégia da luta política, pode se mostrar útil para grupos (sub)representados e ausentes das políticas públicas, como é o caso da população trans (SECCHI et al., 2020SECCHI, Leonardo et al. As candidaturas coletivas nas eleições municipais de 2020: análise descritiva e propostas para uma agenda de pesquisa sobre mandatos coletivos no Brasil. Zenodo, Brasília, 2020. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.5281/zenodo.4423739 . Acesso em: 12 set. 2021.
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). Outro ponto que confirma a ênfase na diversidade dos mandatos, segundo um relatório publicado por Secchi et al. (2020)SECCHI, Leonardo et al. As candidaturas coletivas nas eleições municipais de 2020: análise descritiva e propostas para uma agenda de pesquisa sobre mandatos coletivos no Brasil. Zenodo, Brasília, 2020. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.5281/zenodo.4423739 . Acesso em: 12 set. 2021.
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, é o de que as candidaturas coletivas em 2020 mobilizaram de maneira proporcional mais candidatos autodeclarados da cor preta do que as eleições gerais para vereadores no país.

Em suma, o mandato coletivo é uma tática que permite a grupos não reconhecidos contornarem as dificuldades inerentes ao processo eleitoral. Ou seja, propõe-se um grupo que, ao invés de dividir voto entre si, trabalha conjuntamente em prol de uma mesma campanha. Neste sentido, ter transexuais negras eleitas para o cargo de deputadas e de vereadoras significa um direito performativo de visibilidade e luta por justiça.

Em virtude do exposto nesta seção, pode-se afirmar que para lutar contra o não reconhecimento, o ativismo trans vem buscando canais de representação política. As ativistas, para além do reconhecimento social, e da condição de justiça, vêm constantemente reivindicando demandas que perpassam a população trans e inclusão de suas perspectivas sociais pelas vias institucionais e democráticas da representação política descritiva. Porém, para além da representação descritiva e de perspectivas sociais destes grupos, a luta por novas agendas sociais pode ser ampliada, a partir do potencial da formação de alianças solidárias para o alcance de estima mútua, na esfera da solidariedade (HONNETH, 2009HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009.), a partir do engajamento não somente de pessoas trans, mas também de cisgêneras, para além de pessoas LGBs, o que será aprofundado a seguir com o conceito de “transcis-rexistência”.

Ativismo trans à luz do reconhecimento e da representação: a “transcis-rexistência”

Em Honneth (2009)HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009., toda luta por reconhecimento passa pelo não-reconhecimento. A mobilização política é um processo fundamentado nos sentimentos de não-reconhecimento articulados dentro de uma semântica comum. Negar esse reconhecimento à pessoa é, nessa perspectiva de pensamento, a geração da morte psíquica, morte social e vexação. Para Butler (2018)BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018., é ameaçar a possibilidade de existir e persistir, ou seja, a própria viabilidade da vida entra em questão. Definitivamente, a luta por reconhecimento é, em primeiro plano, uma luta por sobrevivência, considerada por Butler (2018, p. 229)BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. “precondição para todas as outras formas de reivindicações que fazemos”.

É sabido também que, a partir do reconhecimento recebido, novas dimensões são acionadas, já que o processo de reconhecimento nunca acaba (HONNETH, 2009HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009.). Nesse aspecto, a luta por representação política também se mostra como um dos passos a esse alcance do reconhecimento, uma vez que a representação se compõe pela junção de distintas perspectivas, opiniões e interesses (YOUNG, 2000YOUNG, Iris Marion. Inclusion and democracy. Oxford: Oxford University Press, 2000.).

A efetiva ocupação das “cadeiras” de poder legislativo por transexuais nos estados e nos municípios do Brasil é sinal de que houve luta devido ao não-reconhecimento e à não-legitimação desses corpos na cena política e, posteriormente, houve, de certo modo, vitória, pelo reconhecimento recebido, tanto de eleitoras trans como de cisgêneras, que votaram e proporcionaram visibilidade à diversidade, afirmando a existência da diferença, como reivindicação de oportunidades iguais. Sendo assim, o ativismo trans, que até então mobilizava repertórios de ação e regimes de visibilidade, geralmente fazendo interlocução com o Estado (principalmente o Poder Executivo) e/ou com outros movimentos sociais, em uma luta ampla, passou, nessa última década, a investir no repertório eleitoral e a disputar também a representação política. Uma luta despertada e transformada em movimento, especialmente frente à ascensão do conservadorismo e à pressão por pautas caras a grupos religiosos, fazendo com que haja, inclusive, a necessidade em se ater às ameças ao Estado laico.

Lembramos que as pautas políticas dessas representantes contemplam toda a diversidade, e não somente as necessidades das existências trans. Isso porque com base em discussões como as de Phillips (1995)PHILLIPS, Anne. The politics of presence. Oxford: Oxford University Press, 1995. e Young (2000)YOUNG, Iris Marion. Inclusion and democracy. Oxford: Oxford University Press, 2000., um debate dessa natureza não deve se restringir somente à mera presença de sujeitos nas esferas decisórias, pois envolve a articulação de múltiplas questões que estão permanentemente de fora do processo político, das decisões e discussões de políticas públicas. Ainda, a eleição de representantes descritivos de grupos historicamente desfavorecidos possibilita a ampliação dos possíveis papeis aceitáveis, o que implica reconhecer uma abertura de caminhos, contradizendo presunções de que alguns espaços políticos não devem ser ocupados por determinados grupos (DOVI, 2012DOVI, Suzanne. Moving beyond descriptive representation. In: DOVI, S. L. The good representative. Oxford: Wiley-Blackwell, 2012. p 27-51.).

É importante destacar que a presença dos grupos marginalizados não implica a confiança do avanço da pauta, aliás são espaços de luta que são pouco permeáveis e, frequentemente, as mudanças políticas ocorrem lentamente. Assim, é ainda mais necessário manter ativa a defesa da representação por estes grupos, sem desconsiderar a importância de se garantir a responsividade direta aos grupos representados, o que deve ser avaliado a partir destas experiências de mandatos trans. Outrossim, a representação descritiva, dada em termos de perspectivas sociais, apesar de não ser isenta de questionamentos, ainda é uma aposta importante para promover a inclusão e a diversidade.

O ativismo trans e seus diferentes repertórios, incluindo a disputa pela representação, são vistos neste artigo como formas de lutas coletivas por reconhecimento e, portanto, uma ponte para que haja também solidariedade no grupo e estima mútua (HONNETH, 2009HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009.). Nesse sentido, nos vínculos coletivos que se unem em prol dessa luta, pode-se dizer que a estima social desperta relações solidárias, não somente no campo da tolerância ao outro, mas no campo da afetividade (HONNETH, 2009HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009.). Esse é o adágio dessas redes sociopolíticas e solidárias entre LGBTs, por exemplo, que se propagam na contemporaneidade e que conferem sentido à vida de pessoas, que sempre foram alvo de violência, no contexto das mais diversas instituições, inclusive o Estado. Mas aqui se defende a continuidade do movimento político a partir da formação de alianças sob o princípio da estima social, não somente com pessoas trans, como também com pessoas cisgêneras para além de pessoas LGBTs (HONNETH, 2009HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009.), de modo que a resistência possa multiplicar vozes por meio de alianças potenciais.

Diante disso, é proposto o conceito “transcis-rexistência”, que é a força da aliança entre pessoas transgêneras e cisgêneras, uma forma de compreender o sentido da luta, o lugar da subalternidade e a condição precária vivenciada por pessoas trans. Trata-se de uma justaposição entre pessoas cis e trans, refletindo os ideais de alianças cis/trans em uma gramática una, sem desconsiderar a morfologia de “rexistência”, como a que conjuga existir com resistir enquanto pauta de vida trans e de movimentos trans, perfazendo-se como uma reação à exclusão transfóbica e ao desrespeito/não-reconhecimento, por meio de ações políticas de enfrentamento à exclusão de grupos minorizados.

Portanto, a criação deste termo advém da união e entrelaçamento dos afixos e significados das palavras “transgêneras”, “cisgêneras”, “resistência” e “existência”. “Transcis-rexistência” é uma forma de solidariedade coletiva de pessoas transgêneras e cisgêneras que lutam por novos discursos e gramáticas sociais a fim de se contrapor e resistir a tudo o que visa obstaculizar o reconhecimento de quem luta para viver e existir diante da gestão da morte em tempos de não-reconhecimento. É uma performance política do saber e do poder, a fim de desestabilizar estruturas históricas de poder sob princípios sociais, morais e éticos, de privilégios interseccionais quanto à gênero, sexualidade, raça e classe consolidados. “Transcis-rexistência” é, portanto, reação e luta social.

Acredita-se que é por meio da interdependência mútua que se pode pensar “em um mundo social e político comprometido com a superação da precariedade em nome de vidas vivíveis” (BUTLER, 2018BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018., p. 231). Isso depende de reconhecimento intersubjetivo e de relações éticas bem estabelecidas em um nível evolutivo, para que emerjam novas formas de reconhecimento (HONNETH, 2009HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009.). Afinal, nenhum ser humano consegue sê-lo sozinho, independente do outro que o constitui, mesmo que o outro busque aniquilar a sua humanidade (BUTLER, 2018BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.).

A “transcis-rexistência” é também uma proposta para análise empírica das possibilidades de resistência com vistas a alcançar o reconhecimento, mesmo diante da ameaça à luta e da vulnerabilidade dos direitos. Os mandatos coletivos podem se constituir como um exemplo de “transcis-rexistência” na disputa pela representação política, ao incluírem atores individuais e coletivos, pessoas trans e cisgêneras, mulheres, negros, ou seja, um coletivo de ativismos que lutam em conjunto, em solidariedade coletiva, contra a sub-representação de minorias políticas. Embora seja cedo para dizer se essa modalidade de representação irá redundar em inclusão política, ela aponta para um quadro de luta coletiva que pode contribuir para estreitar progressivamente os laços com aliados no combate à sub-representação e à falta de reconhecimento. Coadunando com Sarmento (2016)SARMENTO, Rayza. Feminismo, reconhecimento e mulheres trans*: expressões online de tensões. Pensamento Plural, Pelotas, n. 17, p. 129-150, 2016., que discute o potencial da solidariedade no ciberativismo virtual entre mulheres trans e mulheres cis, importante lembrar que a estima não se detém numa “compaixão” de um grupo para com segmentos mais específicos, com hierarquia entre a pauta geral e aquela que concerne a certo grupo. E sim uma relação em que ambos se fortalecem, inclusive em termos interseccionais.

Para além da luta por reconhecimento via representação política, argumenta-se que esta orientação analítica da “transcis-rexistência” pode contribuir para avaliar os ativismos trans e suas conexões com atores sociais e políticos múltiplos, buscando elementos que nos ajudem a compreender em que medida as alianças se constroem para além dos grupos trans e fortalecem ou enfraquecem as lutas por reconhecimento e representação.

O período após a eleição do atual presidente em 2018 sinaliza que direitos conquistados, principalmente quanto às pautas dos ativistas trans, estão ameaçados. Materialmente, já foram retirados alguns reconhecimentos, como a nova estrutura organizacional do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, a qual não contempla pasta específica para as demandas LGBTs, assim como a imediata retirada da cartilha “Homens Trans: vamos falar sobre prevenção de infecções sexualmente transmissíveis” do site do Ministério da Saúde (BENTO, 2019BENTO, Berenice. A (mal-disfarçada) ideologia de gênero de Damares. Outras Palavras, São Paulo, 14 jan. 2019. Disponível em: Disponível em: https://outraspalavras.net/feminismos/a-mal-disfarcada-ideologia-de-genero-de-damares/ . Acesso em: 17 jan. 2020.
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). Ocorreu também a reestruturação e o enfraquecimento da representação da sociedade civil no Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT), que discute políticas e formula proposições ao governo federal. A partir de 2019, o CNCD continua sua atuação sem fazer menção à comunidade LGBT. Na nova composição, ele tem a participação de sete integrantes, sendo quatro do governo federal e apenas três da sociedade civil (POMPEU; MOTTER, 2020POMPEU, Cláudio; MOTTER, Juliana. Conselho nacional de combate à discriminação e promoção dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais: agenda política e atividades executadas. In: AVELINO, D. P. de.; FONSECA, I. F. da.; POMPEU, J. C. B. (orgs.), Conselhos nacionais de direitos humanos: uma análise da agenda política. Brasília: IPEA, 2020. p.135-156.).

Também em 2019, a deputada Erica Malunguinho, ao argumentar contra o teor de um projeto de lei que estabelece o sexo biológico como único critério para definição de gênero de competidores em partidas oficiais no estado de São Paulo, foi alvo de discurso de ódio explícito de um dos parlamentares (CERIONI, 2019CERIONI, Clara. Erica Malunguinho abrirá processo após fala transfóbica de deputado do PSL. Exame, São Paulo, 04 abr. 2019. Disponível em: Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/erica-malunguinho-abrira-processo-apos-fala-transfobica-de-deputado-do-psl/ . Acesso em: 30 abr. 2019.
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). Outro episódio: religiosos na área externa da ALESP disseram que Paulo Freire fazia com que as pessoas se tornassem “aberrações transexuais”. A deputada se dirigiu à presidência da casa para que a polícia legislativa atuasse contra tal violência (GONZALEZ, 2021GONZALEZ, Mariana. Erica Malunguinho: “trans tem mais a oferecer do que apenas pautas LGBTs”. UNIVERSIA, São Paulo, 01 jan., 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2021/01/01/erica-malunguinho.htm . Acesso em: 30 mar. 2021.
https://www.uol.com.br/universa/noticias...
). Segundo compreende relatório de violência contra pessoas LGBTs, durante e após o período eleitoral de 2018, houve o aumento do discurso de ódio, de agressões físicas ou verbais contra pessoas LGBT+ tendo como motivação questões políticas e eleitorais. Contra pessoas trans, as principais violências cometidas foram verbais. Além disso, há uma incidência maior contra pessoas trans negras (BULGARELLI; FONTGALAND, 2019BULGARELLI, Lucas; FONTGALAND, Arthur. Violência contra LGBTs+ nos contextos eleitoral e pós-eleitoral. São Paulo: Gênero e Número, 2019.).

O cenário atual evidencia a importância de continuar avaliando as “transcis-rexistências”. E isso demonstra que, diante de pequenos avanços, há mais retrocessos, o que confirma a importância da luta conjunta.

Considerações finais

Este trabalho refletiu sobre a luta política de ativistas trans por reconhecimento no campo da representação política do país. Buscou-se expandir a compreensão do significado que é essa conquista, a de ter transexuais eleitas como deputadas e vereadoras em âmbito do poder legislativo, frente à lógica não só de transfobia, mas também da política de gênero e da luta por reconhecimento, em um contexto político marcado por racismo e sub-representação.

Foi possível perceber que persistem violências de toda ordem às existências trans e demais minorias, não-contempladas nas políticas do Estado, o que aponta que não é só a luta que está ameaçada. É a própria vida, é circular, é aparecer, é resistir e persistir. Entretanto, consciente de que reconhecimento é luta, e por mais que seja arriscado, a “transcis-rexistência” se faz imprescindível como meio para solidariedade coletiva (HONNETH, 2009HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009.). Na política de gênero, essa proposta representa o direito performativo de visibilidade e luta por justiça social, vidas mais vivíveis e libertação da precariedade (BUTLER, 2018BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.). Na luta por reconhecimento, novas alianças, sob princípios de solidariedade e estima social, têm o poder de mudar a configuração da atual resistência, a partir da (re)união de pessoas trans e cisgêneras (muito além de pessoas LGB, que possuem afinidade com as pautas), do ativismo coletivo, de modo que o motivo da luta seja comum a ambos, ao ponto de se mobilizarem para produzirem novas formas de reconhecimento - novas gramáticas morais - no espaço político de poder (HONNETH, 2009HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2009.). Um exemplo disso é a integração de candidaturas em mandatos coletivos, possibilitando assim, incrementos em nível legislativo na cena política brasileira, ou seja, uma “transcis-rexistência”. Nas políticas de representação descritiva, a interlocução entre diversos atores coletivos aliados ao ativismo político é um passo importante para o movimento de reconhecimento intersubjetivo, a partir de uma política que conecte ideias e presença (perspectivas sociais), ou seja, as demandas por cidadania e políticas públicas com a ocupação de pessoas esquecidas do contexto da política institucional e de representação.

“Transcis-rexistência” é, portanto, um conceito em aberto para nomear essa luta social unificada para forçar reivindicações de direitos amplos a todos, que têm sido abandonados e/ou manipulados a favor de uma parcela privilegiada, tendo em vista que não são outorgados voluntariamente pelo Estado. A força da atuação das candidaturas e mandatos coletivos pode sinalizar a disputa da “transcis-rexistência” ao desafiar o sistema político brasileiro, especialmente, considerando por um lado a condição de sub-representação política de pessoas trans e, por outro, a política de presença. O conceito aqui proposto pode, inclusive, vir a ser objeto de reflexões futuras, em estudos empíricos, para saber em qual medida os mandatos coletivos, como exemplo de “transcis-rexistência”, irão conseguir mudar o cenário de não-reconhecimento, a partir de geração de políticas de compromisso com o Estado. Pode ainda vir a ser um conceito útil para a avaliação de outros ativismos.

Sugere-se como aprofundamento deste estudo a realização de estudo teórico-empírico que contemple a possibilidade de ouvir as transexuais eleitas como deputadas nos estados de São Paulo, Pernambuco (assim como outras que têm disputado por representação nos espaços institucionalizados da democracia), assim como vereadoras eleitas em diversos municípios brasileiros; e a percepção delas sobre o que significa a conquista de ter transexuais dentro de um contexto de exclusões e transfobias, além de compreender, também, o que pensam sobre a ideia de “transcis-rexistência” e quais são as suas estratégias de ação possíveis para lutar por novas gramáticas e novas agendas políticas, em um momento político tão singular, de tensão e ameaça para as próprias existências trans.

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  • 4
    Agradecemos aos pareceristas anônimos da Revista Brasileira de Ciência Política pelos comentários e sugestões fundamentais para aprimorar o artigo. Informamos que o presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
  • 5
    O uso do termo “trans” é uma expressão guarda-chuva para pessoas transgêneras, abrangendo todas as manifestações que ultrapassam as barreiras de gênero (CARVALHO, 2015CARVALHO, Mário. “Muito Prazer, Eu Existo!” Visibilidade e reconhecimento no ativismo de pessoas trans no Brasil. Tese (Doutorado em Saúde Coletiva) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.). Travestis e transexuais, entre outras posições identitárias, são consideradas/os transgêneras/os (BENTO, 2006BENTO, Berenice. A (re) invenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond/Clam, 2006.).
  • 6
    Salienta-se que a crítica acerca da ausência das pessoas transexuais negras na política é contemplada sob perspectiva interseccional (CRENSHAW, 2002CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002. ), em que atributos como a raça e gênero, correlacionados, acentuam as exclusões existentes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    24 Ago 2020
  • Aceito
    14 Out 2021
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