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A Sociologia de Roberto Campos e a construção de uma ordem liberal no Brasil2 2 Agradeço aos pareceristas anônimos da Revista Brasileira de Ciência Política pelas críticas e sugestões que visaram à qualificação do artigo.

The Sociology of Roberto Campos and the construction of a liberal order in Brazil

Resumo:

Este artigo tem como objeto o ideário social do diplomata, economista e político Roberto Campos (1917-2001). Com assumido viés ensaístico, e tendo-se como principal norte metodológico a análise conceitual, pretende-se tecer o entrecho desta peça textual indagando-se sobre o caráter da Sociologia desse ideólogo. Fundamenta-se esta escritura em face (i) da distância entre o notório relevo público e o (até agora) quase desprezo acadêmico-universitário conferidos a esse intelectual; (ii) de Campos ser reconhecido antes como um pensador do Estado. A resposta à indagação que preside o enredo deste artigo deverá auxiliar no esclarecimento: (i) de seus juízos - quiçá uniformes em toda a sua trajetória - sobre os elementos constituintes da sociedade brasileira, com destaque aos mecanismos conducentes, ou limitadores, à sua incorporação de uma ordem liberal burguesa; (ii) da exegese que busca descerrar as vestes ideológicas dos dois principais projetos que mobilizaram os economistas desde a metade do século XX no Brasil - o desenvolvimentista e o liberal (vertente econômica).

Palavras-chave:
Roberto Campos; Sociologia; Desenvolvimentismo; Liberalismo

Abstract:

This article examines the social ideology of the diplomat, economist and politician, Roberto Campos (1917-2001). With an explicit essayistic bias and a methodological focus on conceptual analysis, we intend to weave together the narrative of his work through an inquiry into the sociology of this ideological thinker. The argument of this article is based on (i) the distance between the public notoriety and the (until now) virtual contempt conferred on this intellectual by scholars; (ii) the fact that Campos was once recognized as a thinker of the state. The answer to the question that guides this article should help clarify: (i) his judgments - perhaps uniform throughout his career - on the constituent elements of Brazilian society, with emphasis on the mechanisms leading, or limiting, to the creation of a bourgeois liberal order; (ii) the ideological underpinnings of the two main projects that have mobilized economists since the mid-twentieth century in Brazil - developmentalism and economic liberalism.

Keywords:
Roberto Campos; Sociology; Developmentalism; Liberalism

Dos grandes países da América Latina, o Brasil é o único que não chegou a decidir-se por uma integração mais completa na economia internacional e pela adoção de uma economia mais livre e tutelada pelo Estado. (CAMPOS; FERNANDEZ, 1993CAMPOS, Roberto; FERNANDEZ, Oscar Lorenzo. Economia, Estado, Modernidade - uma crítica liberal. Revista USP, n. 17, p. 62-73, mar./maio 1993. (Dossiê Liberalismo/Neoliberalismo)., p. 62).

Introdução

Já se vão mais de quatro décadas desde que um cientista social brasileiro, em erudita compilação da produção nativa na área das Ciências Sociais - com foco em temáticas de conteúdo político - afirmava de forma categórica: desde a inauguração da nossa nacionalidade, a grande questão teórica e prática enfrentada pelas nossas elites teria sido “de que modo implantar e garantir eficiente funcionamento da ordem liberal burguesa” por essas bandas (SANTOS, 1978SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Ordem burguesa e liberalismo político. São Paulo: Duas Cidades, 1978., p. 50)3 3 O teor desse questionamento não é acolhido pacificamente na academia. Para um incisivo contraponto, com ênfase ao autoritarismo notado em algumas de nossas tradições reflexivas, ver Lamounier (2006). . De lá para cá, quando nos aproximamos do final da segunda década do século XXI, não obstante todas as mudanças experimentadas pelo Brasil - incluída uma frutífera democracia pós-regime militar -, e a notória e profícua produção acadêmica consolidada na área (LYNCH, 2016LYNCH, Christian Edward Cyril. Cartografia do pensamento político brasileiro: conceito, história, abordagens. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 19, p. 75-119, jan./abr. 2016. ), aquela questão insiste em remanescer e perturbar - e, para os tempos contemporâneos, de forma induvidosa. Aqui, a imagem do atraso tem como referência positiva as nações cêntricas e a sua condição desenvolvida.

Neste trabalho, tem-se como objetivo o exame das ideias deste autor fascinado pelo processo de modernização - e mais ainda pelo seu telos, o estatuto moderno: Roberto de Oliveira Campos (1917-2001), que tem sido considerado antes pela sua acuidade analítica do ponto de vista institucional4 4 A importância de Campos é reconhecida publicamente pelas elites brasileiras. Veja-se, por exemplo, o seminário ocorrido quando da comemoração dos cem anos de seu nascimento (em 18 de abril de 2017, no Palácio Itamaraty/RJ), organizado pelo ministro Paulo Roberto de Almeida, e intitulado Roberto Campos: o homem que pensou o Brasil. Naquela mesma época, foram publicadas duas obras que homenagearam a trajetória do pensador: ALMEIDA, Paulo Roberto de. (org.). O homem que pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos. Curitiba/PR: Appris, 2017; e MARTINS, Ives Gandra da Silva; CASTRO, Paulo Rabello de. (org.) Lanterna na proa: Roberto Campos Ano 100. São Luís: Resistência Cultural, 2017. Em todos esses casos tratou-se de palestras e/ou depoimentos/artigos sobre o personagem Campos. No ambiente universitário, em sentido estrito, é de se notar o silêncio sobre o intelectual. Uma das honrosas exceções foi o evento organizado pelos professores Maurício Vaz Bittencourt (UFPR) e Carlos Eduardo Gasparini (UFPB), ocorrido nas dependências da UFPR, em 24 e 25 de abril de 2010, e nomeado Seminário Nacional de Desenvolvimento Econômico ‘Cátedra Roberto Campos - Contribuições para o desenvolvimento do Brasil’. . Aqui, pretende-se, mesmo que de modo seletivo, examinar algumas de suas teorizações sobre a vida social brasileira. Em específico, indaga-se sobre o caráter de sua Sociologia. À resposta da indagação, com o auxílio de sintéticas anotações históricas e de recomendações da análise conceitual (BOBBIO; BOVERO, 1987BOBBIO, Norberto; BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na filosofia política moderna. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.), examinar-se-ão, em especial, alguns artigos de teor acadêmico do autor5 5 Explicação: Campos publicou, em regra, artigos para jornais; depois, esses artigos eram compilados em livros. Ocorre que o intelectual publicou poucos artigos de conteúdo estritamente acadêmico - e menos ainda que tivessem como objeto específico temas afeitos à Sociologia. Entretanto, é evidente que os temas versados, sendo assuntos de Economia, também diziam respeito a questões de ordem sociológica. Portanto, os poucos artigos da lavra de Campos referidos neste paper, fato mitigado pela citação de suas copiosas Memórias, respondem a esses limites e se pretendem representativos de seu pensamento para a delimitação aqui proposta. , situados em tempos distantes (meio século), mas que podem sinalizar elementos de continuidade - o que subsidiaria a hipótese aqui aventada: se Campos alterou os seus juízos acerca do Estado, nos quais foi do positivo ao negativo6 6 “Com a ressurreição do liberalismo dos anos 80 [1980], percebeu-se que o Estado é um grande ‘predador’, com limitada capacidade de fazer o bem e ilimitada capacidade de fazer o mal” (CAMPOS, 1991, p. 213). , não o teria feito tanto em relação à sociedade brasileira. O pensador seria, e continuaria sendo, inconformado com os traços prevalecentes e definidores da nossa cultura7 7 Aprecie-se a definição minimalista deste conceito proposta por Campos, nos anos 1950: “Interpreto a cultura como sendo o modo de sentir e de agir de uma sociedade. Abrange, de um lado, um sistema de valores. De outro, formas de comportamento” (CAMPOS, 1976a, p. 103). : o que aqui teria faltado, e ainda faltaria, seria uma sociedade cuja interação interna conferisse sustentação a uma economia de mercado dotada de eficiência sistêmica.

Abre-se um breve parêntese teórico-metodológico. São salientes os sinais de que o ensaísmo, abordagem adotada neste texto, encontra-se démodé - ao menos quando vislumbrado de certa perspectiva. Diante da rigorosa disciplina metodológica, que recaiu sobre a prolífica produção nas Ciências Sociais nas últimas décadas como condição à sua cientificidade, decaíram as liberdades construtivas próprias do ensaio8 8 Para um recenseamento da produção sobre interpretações do Brasil contemporâneo, com fundamentações em favor do ensaio, ver Chaloub; Lima (2018). . Tal fenômeno pode ser especialmente observado na Ciência Política brasileira. Os debates têm sido intensos entre as perspectivas hard [constituída pelo mainstream neoinstitucionalista e teóricos da escolha racional, hegemônicos na área (LIMONGI; ALMEIDA; FREITAS apud AVRITZER; MILANI; BRAGA, 2016LIMONGI, Fernando; ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de; FREITAS, Andrea. Da Sociologia política ao (neo)institucionalismo. 30 anos que mudaram a Ciência Política no Brasil. In: AVRITZER, Leonardo; MILANI, Carlos; BRAGA, Maria do Socorro. (org.). A ciência política no Brasil: 1960-2015. Rio de Janeiro: Editora FGV, [Cap. 2, versão digital, paginação irregular], 2016. Disponível em: Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5665798/mod_resource/content/1/Aula%207%20-%20Leonardo%20Avritzer%2C%20Carlos%20R.%20S.%20Milani%2C%20Maria%20do%20Socorro%20Braga%20%28organizadores%29%20-%20A%20ciencia%20pol%C3%ADtica%20no%20brasil%20-%201960-2015.pdf . Acesso em: 17 de jan. 2021.
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), e os beletristas que perfazem os estudos, por exemplo, do pensamento político (LYNCH, 2016LYNCH, Christian Edward Cyril. Cartografia do pensamento político brasileiro: conceito, história, abordagens. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 19, p. 75-119, jan./abr. 2016. ). A esse respeito, e lançando luzes sobre essas altercações, Lessa (2011)LESSA, Renato. Da interpretação à ciência: por uma história filosófica do conhecimento político no Brasil. Lua Nova, São Paulo n. 82, p. 17-60, maio 2011. lamenta que a Ciência Política tenha se apartado de seus radicais comuns às demais Ciências Sociais - e, ao tentar substituir a interpretação (instituto cognitivo próprio do ensaísmo fundador das Ciências Sociais por essas paragens) pela explicação (figura típica das Ciências Naturais), tenha sofrido mais perdas do que ganhos.

Fecha-se o parêntese. Em paralelo às licenciosidades requeridas pelo ensaio, catapulta-se outra figura a constituir um quadro de humildade epistêmica - aglutinando-se à interpretação: a decomposição conceitual. Segundo Norberto Bobbio (1987, p. 7)BOBBIO, Norberto; BOVERO, Michelangelo. Sociedade e Estado na filosofia política moderna. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987., quando se cuida do “[...] estudo dos autores do passado, jamais [ele teria sido] atraído pela miragem do enquadramento histórico, que eleva[ria] as fontes a precedentes, as ocasiões a condições, detém-se por vezes nos detalhes até perder de vista o todo”. E conclui: “[...] [dedicou-se ele], ao contrário, com particular interesse, ao delineamento de temas fundamentais, ao esclarecimento dos conceitos, à análise dos argumentos, à reconstrução do sistema”. À exceção da “reconstrução do sistema”, eis os fundamentos (e instrumentos) mobilizados ao exame - seletivo, repise-se - do pensar sociológico de Campos e de seu conceito de sociedade idealizado para o caso brasileiro.

Defina-se, liminarmente, uma ordem liberal. Trata-se de uma institucionalidade em que o Poder Público (limitado e disciplinado pela lei) convive com uma sociedade de direitos (NEUMANN, 1979NEUMANN, Franz. O conceito de liberdade jurídica. In: CARDOSO, F. H.; MARTINS, C. E. Política & Sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. v. 1, p. 112-128.). No mesmo sentido, pode-se identificar uma axiologia liberal sendo complementada por procedimentos democráticos (BOBBIO, 1990BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.). No interior desse relacionamento, funciona uma economia de mercado, cujo baldrame é a propriedade privada. Sincronizam-se, por conseguinte, sem o desprezo de algumas severas tensões, princípios liberais propulsores da liberdade (KÜHNL, 1979KÜHNL, Reinhard. O modelo liberal do exercício do poder. In: CARDOSO, F. H.; MARTINS, C. E. Política & Sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. v. 1, p. 242-256.), com valores democráticos tendentes à igualdade. A fundamentação ideológica de tal modelo remonta a pensadores modernos (séculos XVI e XVII), tais como Thomas Hobbes e John Locke - este tendo capital importância à constituição de uma sociedade liberal; perpassa o século seguinte pelas lavras de Barão de Montesquieu e de Jean-Jacques Rousseau, este último tisnando o projeto liberal perante questões democráticas (MANENT, 1990MANENT, Pierre. História intelectual do liberalismo: dez lições. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Imago, 1990.). Finalmente, já na 19ª centúria, as formas de uma institucionalidade liberal-democrática são trazidas pela pena de John Stuart Mill, quando se coadunam racionalidade e representação. Eis, em apertadíssima síntese, a ordem liberal em sua arquitetura básica (MACPHERSON, 1978MACPHERSON, Crawford Brough. A democracia liberal: origens e evolução. Tradução de Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.).

Vejam-se, a seguir, os caracteres específicos de uma sociedade burguesa. De primeiro, é necessário que se tenha uma sociedade. Explique-se: impõe-se uma formação social societária com identidade. E, nesse quesito, não parece haver referência mais apropriada do que a sociedade americana. Destaca-se a leitura que lhe é feita por Alexis de Tocqueville - resultado de estudos decorrentes de uma viagem àquele país no início dos anos 1830. Em sua clássica obra, A democracia na América, descrevem-se os traços de uma ordenação social cultivadora da liberdade, isto é, instituída de modo exógeno às peias do Estado (e de outras influências substantivas). Entretanto, o primeiro requisito à existência de uma sociedade com aquelas características seria o compartilhamento de alguns valores - o que Tocqueville chama de base moral comum -, que poderiam, no limite, ser impostos aos incapazes de aceitá-los voluntariamente. Evidente a necessidade de consideração de outros atributos - o reconhecimento de seus próprios limites, por exemplo -, mas o desenho de uma vida social que se responsabilizava pela estruturação da institucionalidade já havia sido identificada: indivíduos semelhantes (não iguais, por impossível) interagindo; o sentido do movimento sendo conferido por uma axiologia específica e negativa em relação ao Poder Público - o seu norte é a liberdade; a propriedade (e sua latente acumulação ilimitada) como meio de trabalho/sobrevivência e suporte existencial (TOCQUEVILLE, 1987TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Tradução de Neil Ribeiro da Silva. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia/Editora USP, 1987.). Essa é a sociedade liberal-democrática, a qual delibera que as trocas materiais, derivando-se delas as simbólicas e institucionais, são o seu núcleo (ARON, 1987ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. Tradução de Sérgio Bath. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes; Brasília: Editora UnB, 1987., p. 205-252); nela, o mercado é subconjunto de algo mais abrangente.

Neste artigo, deverá restar esclarecido se essa particular vida societária é a referência de Campos para o Brasil. O pensador sub examine neste breve tecido textual nasceu, em 1917, nas profundezas do Mato Grosso. Na década de 1920, desloca-se para seminário católico no interior de Minas Gerais para fins de estudo e conclui sua formação básica (Humanidades e Filosofia) no início da década seguinte; perambula pelo interior de São Paulo lecionando humanidades e, em 1938, presta concurso público para o Itamaraty - aprovado, acaba sendo designado para um setor desimportante, o almoxarifado. Em 1942, viaja para Washington para trabalhar como terceiro-secretário na Embaixada brasileira - e lá experimenta o american way of life e conclui o Mestrado em Economia na George Washington University; retorna ao Brasil em 1949 e inicia as suas intervenções públicas - seja como funcionário de Comissões, seja como policy maker em empresas públicas (BNDE). A partir de 1950 publicaria artigos em revistas acadêmicas ou em jornais regularmente - e de 1956 a 1961 exerceria carreira docente na então Universidade do Brasil. Ademais, nesse período desempenha outras importantes funções públicas - o que finda por ser interrompido em função de convite para assumir, como titular, em 1961, a Embaixada brasileira em Washington. Permanece naquele posto até 1963, quando retorna a um Brasil já convulsionado pela crise que culminaria no movimento civil-militar de 1964. É convidado para comandar o Ministério do Planejamento do governo Castello Branco e, juntamente a todo o “grupo sorbonista”, deixa o poder em 1967. Logo depois, licencia-se do serviço público e envolve-se em atividades privadas, até ser convidado, no governo Geisel, para ser embaixador em Londres (1975), onde ficaria até 1982, ano em que retorna ao Brasil e candidata-se, elegendo-se, ao Senado, representando o seu estado natal. Cumpre o seu mandato e, no final, altera o seu domicílio eleitoral para o Rio de Janeiro, onde se elege em duas legislaturas (1990-1994/1994-1998) para a Câmara dos Deputados. Por fim, falece em 9 de outubro de 20019 9 O entrelaçamento da vida pessoal de Campos com comentários sobre a sua copiosa produção intelectual - o que inclui os debates sobre as temáticas com que se envolveu, ou teve contato como estudioso - encontra-se em CAMPOS, Roberto. Lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. A partir de agora, neste artigo, tal obra será referida apenas como Memórias. A fase desenvolvimentista - ou iliberal - de Campos, que compreende o primeiro período de sua produção intelectual, é apresentada com sóbria erudição por Bielschowsky (1988); sem embargo às suas reflexões econômicas, o pensamento político de Campos, em toda a sua trajetória, encontra-se em Perez (1999). Uma literatura que estudou as ideias de Roberto Campos em termos menos analítico-descritivos e mais avaliativos, igualmente respeitável do ponto de vista acadêmico, será nomeada adiante. .

Tratar-se-á, na sequência, da ratio lançada pelo autor em comento sobre a vida social em geral - e, particularmente, sobre a brasileira. Considere-se recepcionada a interpretação de autor que identificou duas fases distintas ao longo das reflexões camposianas - em seus diagnósticos e prognósticos para o caso brasileiro: a primeira, de feição iliberal, foi designada de “razão do Estado” (1950-1970); a segunda, de perfil liberal, foi definida como “razão do mercado” (1980-2000) (PEREZ, 1999PEREZ, Reginaldo Teixeira. O pensamento político de Roberto Campos: da razão do Estado à razão do mercado. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999.). Ali, ainda que, por óbvio, esteja subentendida, permaneceu em segundo plano a exploração, per si, do caráter dessa sociedade necessária à cimentação de uma ordem liberal burguesa. Este será o objetivo primeiro dos itens que se seguem: de plano, e invertendo-se a sequência temporal, serão identificadas as Sociologias subjacentes às duas grandes modelações de Campos - repita-se: as racionalidades de mercado e de Estado; a seguir, buscar-se-ão os fundamentos de sua rationale, que, se existirem, poderão ser tomados como elementos de continuidade na ruptura. Não parece haver dúvidas de que o propósito último do pensador jamais se alterou: o engenho de uma economia de mercado sistemicamente eficiente no Brasil, o que evidencia e catapulta a reivindicada ordem liberal burguesa para lhe dar guarida.

O Brasil no final do século XX: um caso de modernidade frustrada

Nos finais do século XX, o diagnóstico de Roberto Campos sobre o Brasil é desalentador. Findo o regime militar, promulgada uma Constituição chamada de “cidadã”, consubstanciadas as regras do jogo democrático - inclusive com a destituição legalmente processada de um presidente da República -, persistia a instabilidade traduzida pela inflação. Algo permanecia errado. O crescimento aqui promovido, no decorrer do século que findava, notadamente entre as décadas de 1930 e 1970, apontado por não poucos como “significativo” (LEFT, 1977LEFT, Nathaniel H. Política econômica e desenvolvimento no Brasil (1947-1964). Tradução de Roberto Borges Martins. São Paulo: Perspectiva, 1977.), não havia logrado o desenvolvimento, e muito menos um equilíbrio razoável. O Brasil teria alcançado “pouco além de uma retórica da ‘modernização’ que não se traduziu em uma ação concreta eficaz, e que qualquer perturbação do quadro político ameaça[ria] com um refluxo da maré ideológica dos anos 60 [1960] e 70 [1970]” (CAMPOS; FERNANDEZ, 1993CAMPOS, Roberto; FERNANDEZ, Oscar Lorenzo. Economia, Estado, Modernidade - uma crítica liberal. Revista USP, n. 17, p. 62-73, mar./maio 1993. (Dossiê Liberalismo/Neoliberalismo)., p. 62). Bem compreendido, à exceção de alguns estados - destacadamente, São Paulo -, o que nesses cantos predominava, grosso modo, era o arcaico. Mais ainda: considerando-se as manifestações de incisivos setores antiliberais, os riscos de um trauma institucional seriam reais.

No artigo que ora se resenha - um dos últimos de veio acadêmico de Campos10 10 CAMPOS, Roberto; FERNANDEZ, Oscar Lorenzo. Economia, Estado, Modernidade - uma crítica liberal. Revista USP, São Paulo, n. 17 (Dossiê Liberalismo/Neoliberalismo), p. 62-73, mar./maio 1993. A escolha deste trabalho, ao exame do pensar de Campos em sua segunda fase (liberal), deu-se em função de seu caráter sintético e exemplificativo para esse período. , além de suas Memórias, evidentemente -, compara-se a situação do Brasil com algumas nações latino-americanas e, principalmente, com o restante do mundo desenvolvido. A linha de raciocínio desfilada baseia-se no nosso tracejado histórico: em paralelo às “massas subqualificadas e subocupadas”, a dimensão moderna de nossa economia seria “algo de especial, de certo modo configurada para uma fase do passado já esgotada, desde as concepções do nacionalismo autárquico do fascismo dos anos 30 [1930], à industrialização por substituição de importações, até meados dos anos 60 [1960], sob a direção do Estado e em condições de extremo protecionismo” (CAMPOS; FERNANDEZ, 1993CAMPOS, Roberto; FERNANDEZ, Oscar Lorenzo. Economia, Estado, Modernidade - uma crítica liberal. Revista USP, n. 17, p. 62-73, mar./maio 1993. (Dossiê Liberalismo/Neoliberalismo)., p. 62-64). Ao revés, nas nações desenvolvidas teria prevalecido, além das preocupações com (e investimentos em) ciência e tecnologia, uma outra dinâmica - essa, sim, respondente a uma verdadeira economia de mercado, cuja lógica assentar-se-ia “sobre uma consulta permanente e ininterrupta às preferências dos indivíduos, que se reflete[ria] objetiva e automaticamente nos preços relativos dos fatores e produtos, nos níveis de consumo e poupança, e assim por diante” (Ibidem, p. 67). A seguir, adverte o autor, ainda comentando acerca de uma economia de mercado: “Não é um processo à prova de efeitos tendenciais nem de imperfeições várias e, por isso mesmo, não exclui a eventual necessidade de medidas corretivas por parte da sociedade”. Ao final, acusando as influências de seu liberalismo de corte hayekiano da segunda fase, a saber, do aceite de um intervencionismo limitado e seletivo, Campos reconhece: “E nem todas as interações ou transações efetuadas dentro do espaço social podem ser propriamente ‘de mercado’. Numerosos bens, pela sua natureza, têm de ser oferecidos por intermédio do setor público” (Ibidem, p. 66-67). Observe-se que, com isso, confirma-se a não equivalência entre sociedade e mercado para o economista: aquela compreende algo mais amplo em relação a este.

As diferenças entre o Brasil e as nações que se desenvolveram possuiriam raízes profundas e deveriam ser buscadas nas nossas tradições. Continuaríamos a viver “numa realidade ‘antiga’, com características herdadas do patrimonialismo português via Colônia: cartorialismo, corporativismo, clientelismo” (CAMPOS; FERNANDEZ, 1993CAMPOS, Roberto; FERNANDEZ, Oscar Lorenzo. Economia, Estado, Modernidade - uma crítica liberal. Revista USP, n. 17, p. 62-73, mar./maio 1993. (Dossiê Liberalismo/Neoliberalismo)., p. 64). Na sequência, o articulista torna público o que considera ser um dos dilemas dos fautores do liberalismo econômico em sociedades com grandes parcelas da população em situação de precariedade material - a política e as ideologias como fatores de instabilidade: “Uma forte participação quantitativa de carentes faz-se sentir, através do processo eleitoral, em um populismo imediatista de esfaimados, ou num discurso distributivista liderados pelas parcelas ressentidas da intelligentsia e ideologicamente ligado às esquerdas do período de 30 [1930] a 60 [1960]” (Ibidem, p. 64).

A ênfase conferida por Campos aos aspectos simbólico-culturais de nossa história - e que seriam condicionantes decisivos à nossa condição de país periférico - não deve elidir elementos de natura, componente universal e elemento basilar quando se trata de seres humanos:

[...] a escassez é uma condição objetivamente inevitável e porque, além disso, os homens possuem disposições menos fraternas e altruísticas do que seria desejável, e competem entre si, disputando uns aos outros bens materiais, posição na escala social, poder, e tudo o mais de que se possam apropriar de alguma forma. (CAMPOS; FERNANDEZ, 1993CAMPOS, Roberto; FERNANDEZ, Oscar Lorenzo. Economia, Estado, Modernidade - uma crítica liberal. Revista USP, n. 17, p. 62-73, mar./maio 1993. (Dossiê Liberalismo/Neoliberalismo)., p. 71)11 11 Impossível deixar de se comparar essa passagem com certa tradição do pensamento político que posiciona a negatividade humana nas suas fundações: perpassando as figuras de Maquiavel e Hobbes, essa representação alcança um de seus pontos mais elevados com a lavra de dois pais fundadores norte-americanos: [Os homens] são “ambiciosos, vingativos e rapaces”, afirmará Hamilton [The Federalist, Paper n. 6], p. 21; “Mas o que é o governo, senão o maior de todos os reflexos da natureza humana? Se os homens fossem anjos, não haveria a necessidade de governos. Se anjos governassem os homens, nem controles externos e internos seriam necessários”, dirá Madison [The Federalist, op. cit., Paper n. 51], p. 268/269. Tradução livre .

Destaque-se que o realismo camposiano - seja em sua perspectiva metodológica, seja como juízo acerca das coisas do mundo - jamais deixa de estar acompanhado pelo pessimismo. Entretanto, o ecletismo do pensador desnuda uma de suas facetas neste momento: o seu conservadorismo político12 12 À diferença de outros conservadores, o conceito diretor do pensar de Campos desta última fase, fautor do liberalismo econômico, é o de racionalidade - projetando-se daí um sujeito universal. Outros conservadores, igualmente sofisticados, interseccionam essa forma de representar o mundo com o liberalismo político - defluindo-se daí a prédica dos valores à razão - derivando-se disso os particularismos; nessa perspectiva, ver Coutinho (2014). Sobre o pensamento conservador, ver, por todos, Mannheim (1968) e Hirschman (1992). , que coexiste com o seu liberalismo econômico, não obstaculiza a construção - ao contrário, serve para qualificá-la.

Campos, em sua fase liberal, procura uma sociedade em países como o Brasil. “As sociedades ‘atrasadas’ são também, por motivos vários compreensíveis, frequentemente muito mal integradas e corruptas - não raro, tendo muito pouco de ‘sociedades’ e mais de aglomerações com escassos pontos de referência comum” (CAMPOS; FERNANDEZ, 1993CAMPOS, Roberto; FERNANDEZ, Oscar Lorenzo. Economia, Estado, Modernidade - uma crítica liberal. Revista USP, n. 17, p. 62-73, mar./maio 1993. (Dossiê Liberalismo/Neoliberalismo)., p. 72). Ao denunciar o que seriam as nossas carências identitárias, o autor não encontra uma sociedade e, de imediato, acusa a política:

Em tais condições, ocorre facilmente a adoção de capas ideológicas de pura aparência, inautênticas e falsas, que servem para dar cobertura a interesses corporativos ou clientelísticos de alguma forma simbióticos com os grupos dominantes, ou a forma populista que funcionam, de certo modo, como as distribuições de alimentos e aos jogos circenses [...]. (CAMPOS; FERNANDEZ, 1993CAMPOS, Roberto; FERNANDEZ, Oscar Lorenzo. Economia, Estado, Modernidade - uma crítica liberal. Revista USP, n. 17, p. 62-73, mar./maio 1993. (Dossiê Liberalismo/Neoliberalismo)., p. 72).

Para o autor, portanto, a racionalidade desejável a ser conferida em tecidos sociais frágeis não se encontra nas virtualidades da política - afeita a manobras e falsificações -, mas na lógica implacável do mercado. Em síntese, aqui a ordem seria excessivamente instável, cujas responsabilidades seriam, de uma parte, da política; de outra, da falta de qualidade burguesa vis-à-vis à tibieza social.

O Brasil nos meados do século XX: à procura de uma nação

Roberto Campos tornou-se um pensador liberal entre os finais dos anos 1970 e o início dos anos 1980, mas, no começo de sua longa trajetória, muito embora não pudesse ser classificado como antiliberal, deveria ser definido como iliberal. Esclareça-se: o economista participou dos debates na década de 1950 como pertencente ao grupo “desenvolvimentista” - corrente ideológica que defendia a industrialização planejada e a intervenção do poder público como meios à modernização do Brasil13 13 Segundo Bielschowsky (1988), havia cinco correntes disputando espaços na esfera pública entre os anos 1930 e 1960: A “neoliberal”, capitaneada por Eugênio Gudin, um dos primeiros e mais importantes economistas brasileiros; a “desenvolvimentista”, que se subdividiria em três correntes - “setor público (não nacionalista)”, liderada por Roberto Campos, “setor privado”, que tinha como corifeu Roberto Simonsen, e “setor público (nacionalista)”, cujo principal nome era Celso Furtado; a “socialista”, com Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré como destaques; e, finalmente, tem-se o “pensamento independente” de Ignácio Rangel. . O consenso estava no diagnóstico: a nossa condição era a de uma país retardado - enfatize-se: muito retardado. Nesse quadro, ao alcance do desenvolvimento, a indústria antepunha-se à agricultura, e a urbanização seria o contraponto ao rural. Os desenvolvimentistas venceram os debates quando se consideram as opções aqui adotadas: prevaleceram as teses que defendiam o poder público como organizador e disciplinador das vidas social e econômica.

Nesse primeiro momento - o da designada “razão do Estado” -, são três as fases do pensar do autor identificadas por pesquisador: no intervalo 1952/1953, Campos encontra-se muito próximo às posições de seus colegas “estruturalistas”, preocupados, sobretudo, com o crescimento econômico; defende a industrialização planejada e a proeminência do Estado. No entanto, diferencia-se dos demais pelo aceite do capital alienígena e pela pouca ênfase na dimensão emocional do nacionalismo. As mudanças têm início a partir de 1955, quando lança suspeitas acerca da capacidade de o poder público ser o agente da racionalização modernizante e sobre a parcimônia com a inflação; já, a partir de 1957, mas ainda de forma seminal, iniciam-se os questionamentos no que tange ao planejamento - algo que somente seria arrefecido pela sua assunção como ministro de pasta homônima do governo Castello Branco, em 1964 (PEREZ, 1999PEREZ, Reginaldo Teixeira. O pensamento político de Roberto Campos: da razão do Estado à razão do mercado. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999., p. 89-136).

A partir de 1930, o gênio político de Getúlio Vargas apercebe-se de que uma nova fase estava se iniciando. O Brasil adotava o “modelo Ocidental” de interação social - entenda-se, o modo de produção capitalista -, e o arguto presidente cercava-se de “conselheiros técnicos” (MONTEIRO; CUNHA, 1974MONTEIRO, Jorge Vianna; CUNHA, Luiz Roberto Azevedo. Alguns aspectos da evolução do planejamento econômico no Brasil (1934-1963). Pesquisa e Planejamento Econômico, [Online], v. 4, n. 1, p. 1-23, fev. 1974.; SKIDMORE, 1992SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco (1930-1964). Tradução de Ismênia Tunes Dantas. 10. ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1992.). Nessa quadra, a Economia dava os seus primeiros passos como ciência do mundo social por aqui, inovando e constituindo uma nova gramática. Nos próximos 20 anos, constituir-se-ia uma pequena, mas brilhante, comunidade de intelectuais que inovaria, também, no plano da linguagem: a lógica - sustentada por fortes bases indutivas - começava a disputar com a retórica as preferências intelectuais à racionalização do mundo público. Os juristas não detinham mais o (quase) monopólio reflexivo acerca das coisas do Brasil14 14 Para a consideração da linguagem como critério de aferição de maturidade científica, ver Sartori (1981); os economistas e a sua trajetória profissional no Brasil são estudados por Loureiro (1992); o emprego da retórica pelos juristas - e também como chave interpretativa de leitura - é examinado por Carvalho (2000). . Nesse contexto de surgimento de uma “comunidade de economistas”, destacam-se, por exemplo, Eugênio Gudin (com suas teses liberais de defesa do livre-mercado e do anti-intervencionismo), Celso Furtado (estruturalista de perfil cepalino, defensor do planejamento e da industrialização com cores nacionalistas) e Roberto Simonsen (posições semelhantes às de Furtado e porta-voz dos interesses da FIESP). Por fim, sobrepõe-se a figura cujas ideias aqui se manipulam, merecedor de atenção não apenas pelo jaez de suas articulações: “Campos apostou na industrialização pela via da internacionalização de capitais e do apoio do Estado e venceu” (BIELSCHOWSKY, 1988BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1988., p. 124).

Autor muito frequentado naquele período (anos 1950) era Joseph Alois Schumpeter (1883-1950), sociólogo e economista austro-húngaro, cujas teorias sobre o desenvolvimento econômico ativavam as mentes da intelligentsia brasileira. A sua fórmula sociológico-econômica envolve empresários, massas e Estado. Na perspectiva schumpeteriana, a figura do empresário empreendedor e inovador - diferente da do capitalista, simples detentor de capital -, com os seus incessantes movimentos em direção à acumulação ilimitada e predisposto à “destruição criadora”, seria fundamental à dinamização do capitalismo (SCHUMPETER, 1982SCHUMPETER, Joseph Alois. Teoria do desenvolvimento econômico: uma investigação sobre lucros, capital, crédito, juro e o ciclo econômico. Tradução de Maria Sílvia Possas. São Paulo: Abril Cultural, 1982. (Coleção Os Economistas).)15 15 Assinalem-se as fortes semelhanças entre as figuras do empresário schumpeteriano e as características especiais narradas por Vilfredo Pareto, quando de sua definição de elites econômicas - destacadamente, a sua caracterização da teoria dos resíduos; e, nela, a classe do “instinto das combinações” (ARON, 1987, p. 400 e seguintes). . Acerbo crítico das elites econômicas brasileiras, que seriam acomodadas e sujeitas ao consumo predatório, Campos postulava que aqui não haveria empresários. Desse modo, propõe uma alteração da equação de Schumpeter: quem deveria fazer o papel do empresário aqui nessas terras seria o Estado, então dotado de “faculdade telescópica” (CAMPOS, 1963CAMPOS, Roberto. Economia, planejamento e nacionalismo. Rio de Janeiro: APEC, 1963., p. 14). Bem entendido, a equação propugnada pelo Campos da primeira fase - e vencedor do debate quando se consideram as políticas efetivamente implementadas no Brasil - encontra-se afiliada às lições keynesianas, orientadoras de seu grupo intelectual: o poder público deveria construir e organizar a sociedade e o mercado. Advirta-se: não mais pelo padrão racionalizante de períodos anteriores, na esteira das teses retóricas dos juristas (liberais ou autoritários), mas pelo veio do indutivismo e da lógica da linguagem econômica.

Mais evidente ainda é a constatação dos óbices sociais projetados pela lente sociológica do economista brasileiro: a carência de empresários era a fotografia de uma sociedade muito frágil, talvez inexistente. Nesse molde, compreensível o fascínio dos intelectuais pelos debates em torno da “questão nacional” (PECAUT, 1990PECAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. Tradução de Maria Júlia Goldwasser. São Paulo: Ática, 1990. ) - o que documenta, mesmo de forma indireta, que Campos não estava sozinho nos seus reclamos por um sinergismo social mais intenso. Em adição, deve-se rememorar que é na redemocratização pós-Estado Novo, nos meados dos anos 1940, que o primeiro desenho de uma democracia de massas aqui se observa, e não apenas em face dos processos acentuados de industrialização e urbanização. Inobstante não se devam desprezar os manuseios pelo Estado na forja dos partidos políticos do período de 1945 a 1964 (SOUZA, 1976SOUZA, Maria do Carmo Campello de. Estado e partidos políticos no Brasil (1930 a 1964). São Paulo: Alfa-Ômega, 1976.), não parece ser impróprio identificar naquela dinâmica institucional aspectos autonomizantes (SOARES, 1974SOARES, Gláucio Ary Dillon. Sociedade e política no Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974.): se pertinente a afirmação da existência de um duplo e paralelo movimento - grupos sociais versus identificação partidária -, as tensões que dali nasceram traduziriam um dinamismo social que apontaria a um esboço de sociedade que se refletia. Em outros termos, por obra da política, a massa se transformava em povo - que, em tese, parecia sinalizar à formação de uma nação. Mas, na leitura de Campos, esse povo, em sua complexa e tensa interação, não parece lograr se constituir em uma sociedade16 16 Alguns exemplares de produções críticas às ideias e/ou ações de Campos nas décadas de 1950/1960: Serra (1979), Madi (1985), Moraes (1987), Gennari (1990). Os significados de “incompetência técnica” (Serra), “subordinação” e “conservadorismo” (Madi e Gennari) e, por fim, “autoritarismo” (Moraes) compõem um conjunto fortemente negativo.

Os fundamentos sociológicos da ratio camposiana

No peculiar approach adotado neste paper em que, de forma ensaística, foi-se do depois ao antes, achega-se ao princípio - ou melhor, aos princípios -, para se perguntar sobre os fundamentos sociológicos, se existirem, da ratio camposiana. Haveria elementos comuns - de continuidade, portanto - nas razões do Estado (1950/1970) e do mercado (1980/2000)? Explicitem-se, de primeiro, as notórias diferenças entre as ideologias - enfatize-se o termo ideologias - desenvolvimentista e liberal (vertente econômica): da primeira, sobrevêm a organicidade, o construtivismo planificador, o protagonismo do poder (e a sincronia entre governo e Estado), o futuro como positivo, a circulação simbólica horizontalizada e, por fim, mas não menos importante, a consideração do social como público; da segunda, sobressaem-se o individualismo, o anti-intervencionismo, a clivagem entre governo (com poderes) e Estado (hipofuncional), a política como negativo, o império do presente, a prevalência da verticalização e, finalmente, a tomada do social como privado. Exsurgem, por conseguinte, duas Sociologias daquelas molduras ideológicas - mas é possível que se vislumbre alguma intersecção entre ambas.

Detalhamentos. Campos não deve ser situado, precisamente, em qualquer uma dessas quadraturas ideológicas. A melhor de suas definições parece ser aquela que o enxerga como um pensador “eclético” (BIELSCHOWSKY, 1988BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1988., p. 132). O economista encaminhou-se, sim, de uma maneira geral, de um organicismo aristotélico para um liberalismo de recorte hayekiano - e, em decorrência, alterou substantivamente o escopo de suas formulações. No entanto, em complemento, podem ser identificados pontos em comum: relembre-se que o fim permaneceu o mesmo, o constructo de uma economia de mercado, e os meios foram sempre presididos por uma racionalidade de substância encorpada. Ademais, Campos jamais foi um estruturalista típico, a la Celso Furtado, por exemplo - e muito menos se identificou com as teses da Cepal. O seu acolhimento pragmático do capital externo à promoção do crescimento nativo documenta o quanto o seu nacionalismo era destituído de emoções. Enfim, já na sua primeira fase havia alguns (poucos) traços identificados com o liberalismo econômico. Evidente que Campos mudou o seu pensar; e, por isso, a afirmação ex post de que os liberais estavam corretos - mormente, que “Gudin teve razão”, em suas Memórias (CAMPOS, 1994CAMPOS, Roberto. A lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994., p. 241). A sua autonomia pode ser mensurada quando da sua adesão - e as suas qualificações conferidas - ao liberalismo de matiz econômico, ideário de assumido veio universalista, porquanto o pensador não deixou de se preocupar com o Brasil.

Buscam-se, a seguir, os fundamentos que sustentam a afirmação de que há sinais de continuidade na mudança do pensamento camposiano. Quando estudante de pós-graduação em Economia em Washington, nos finais dos anos 1940, Campos redige um artigo para uma disciplina sob a responsabilidade de Karl Polanyi, autor do clássico A Grande Transformação (CAMPOS, 1976bCAMPOS, Roberto. Uma interpretação institucional das leis medievais da usura. In: CAMPOS, Roberto. Ensaios de história econômica e sociologia. 3. ed. Rio de Janeiro: APEC, 1976b. p. 7-34.). O ex-seminarista e atual funcionário diplomático habilitava-se a ser um economista através de um exercício tipicamente sociológico. Ali, refletindo sobre as condições emergenciais do capitalismo moderno, já aparecem as características intelectuais que formariam a mente daquele que viria a ser considerado um dos mais importantes pensadores brasileiros da segunda metade do século XX: ajustam-se erudição, lógica, reflexividade e, destacadamente, potência erística. Campos convence pela consistência argumentativa, cujo fundamento é a - suposta ou efetiva - realidade; em sua textualidade, as coisas sincronizam-se com e pelas palavras. Completa-se: a sua retórica - termo impróprio quando se trata da lavratura de Campos, consoante à frente se verá - traveste-se da própria realidade. Eis o primeiro dos componentes da Sociologia do autor: o realismo.

E é com ela - a realidade - que o penseur brasileiro se paramenta para enfrentar a tese de um dos corifeus das Ciências Sociais, senão o maior deles: Max Weber. Sobejamente conhecido, o argumento deste sociólogo e economista alemão sobre a aparição do capitalismo - um singular ethos religioso, que ele nomina de ética protestante - teria sido o fiat da ação de empresamento generalizado (WEBER, 1987WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução de M. Irene de Q. F. Szmrecsányi e Tamás J. M. K. Szmrecsányi. 5. ed. São Paulo: Pioneira Editora, 1987.). Com isso, uma certa axiologia religiosa - o protestantismo -, mais presente em alguns lugares do que em outros, teria sido o fator decisivo ao surgimento e à consolidação do capitalismo. Em tom respeitoso, Campos repropõe os termos da fórmula weberiana: a profusão do capitalismo em alguns lugares não teria decorrido da ocorrência desta particularidade valorativa, uma certa ética religiosa; a contrario sensu, aquele fenômeno decorreria do exílio desta (ou de qualquer outro elemento revestido de moralidade). Amplie-se o raciocínio: para o futuro economista brasileiro, a fundamental referência era a libertação do indivíduo pari passu à libertação do capital. Enfim, reivindica-se uma cultura específica: a da liberdade. Ou seja, ao surgimento do mundo moderno - cuja condição foi o perecimento do medievo -, impunham-se: (i) o descerramento da individualidade de suas vestimentas transcendentes; e (ii) a autonomização do dinheiro em relação às leis da usura. Enfim, trata-se de perorações maquiavélicas anticristãs, em sua Sociologia de bases estritamente realistas, indicadora de uma razão política que almeja taquigrafar a verdade objetiva das coisas (NAMER, 1982NAMER, Gérard. Maquiavel: ou as origens da sociologia do conhecimento. Tradução de Armando Ribeiro Pinto. São Paulo: Cultrix, 1982.).

Tomando-se o core da Sociologia de Campos, no qual se amoldam palavras e coisas, potencializa-se o alcance de sua linguagem. Nessa moldura, sobreleva-se a racionalidade do autor - lançando-se ela sobre a sociedade que albergará uma ordem liberal burguesa. Ciência e poder se confundem. A Sociologia que subsidia a política de Campos, independentemente de possuir cores desenvolvimentistas ou liberais, é absolutamente realista na sua configuração - daí as reconhecidas consistência e radicalidade de seu construtivismo. Campos foi um debatedor de sucesso em consequência dessas características: a coexistência perfeitamente alinhada do diagnóstico com o prognóstico, a sincronia entre o pragma e o dogma. Consoante sugestão de sociólogo (ELSTER, 1994ELSTER, Jon. Peças e engrenagens das Ciências Sociais. Tradução de Antônio Trânsito. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.), podem ser mitigadas as diferenças entre os dois sujeitos cognitivos de ambas as formações ideológicas das quais Campos participa - a coordenação, no caso do desenvolvimentismo, e a indução, no caso do liberalismo -, desde que sejam devidamente precedidas e constituídas por uma robusta razão.

Notas finais: uma Sociologia em busca de uma sociedade

Roberto Campos é uma persona tipicamente moderna17 17 A modernidade reclamada por Roberto Campos para o Brasil é, evidentemente, uma entre outras possíveis. Sem prejuízo a debates ou representações literárias anteriores, em 1922 o tema foi merecedor de um movimento que empregava o signo explicitamente - Semana da Arte Moderna. No meio daqueles intelectuais/escritores/pintores, artistas, enfim, eventuais peculiaridades da nossa cultura - somos uma espécie de “imundície de contrastes”, diria Mário de Andrade - não deveria nos afastar da busca por alguma modernidade (BRANDÃO, 2005). De lá até cá, com quase um século de trajetória, a flexuosidade de nossos movimentos não impediu que autor afirmasse ainda nos anos 1980: “[re]ingressar em águas democratizantes, ao embalo deste século [XX], equivale a alternar turbulências. Se, no caso brasileiro, à opressão autoritária do vintênio posterior a 1964 somou-se a imprevisibilidade de acelerada acumulação capitalista, a reinstalação democrática em curso enfrentará dificuldades não menos complexas. O Brasil pós-autoritarismo é altamente moderno, do ponto de vista econômico. Trogloditamente atrasado, entretanto, em matéria social e em instituições políticas. E é assim despreparado que está sendo rapidamente atraído pela dinâmica contraditória característica dos países democráticos contemporâneos” (SANTOS, 1988, p. 12). Esse diagnóstico não parece ter perdido o seu vigor após quatro décadas: a díade contemporânea a orientar a nossa institucionalidade - uma democracia política administrando uma economia de mercado - remanesce destilando contradições. E o conteúdo social da nossa democracia - ou, melhor dizendo, a sua carência - parece motivar intelectuais de estirpe distinta da de Campos a reclamar: as desigualdades são arestas incontornáveis na constituição dessa modernidade. Nos últimos anos, um dos mais incisivos críticos da forma pela qual o Brasil alcançou a sua particular modernidade, porquanto defensor de uma outra modernidade, foi Souza (2000). Crítico acerbo de algumas exegeses, que poderiam ser definidas como “liberais” (Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Roberto da Matta), o combativo sociólogo as qualifica como “sociologia/s da inautenticidade”. Bem entendido, as posições de Campos, ou mesmo próximas a elas, foram/são passíveis de ataques. O economista, cujo pensar é objeto deste artigo, exigia radicalização sistêmica por meio do mercado; uma intelectualidade posicionada em outros quadrantes ideológicos - vislumbrando sentido na afirmação “trogloditamente atrasado em matéria social” - postula: não há modernidade sustentável nos termos propostos pelos liberais, haja vista a sua “seletividade”, com as diferenciações sociais por aqui observadas. . E projeta essa condição para a sociedade idealizada. Foi qualificado por estudioso das nossas tradições intelectuais como um “americanista” (VIANNA, 1991VIANNA, Luiz Werneck. Americanistas e iberistas: a polêmica de Oliveira Vianna com Tavares Bastos. DADOS - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 34, n. 2, p. 145-189, 1991., p. 183, nota 7). A confirmar essa avaliação, reveja-se o parágrafo (item inicial deste artigo) em que a Sociologia de Tocqueville situa na vida social da recém-independente América as causas de suas virtuosidades institucionais. Compreende-se: foi lá que o capitalismo funcionou a pleno e projetou aquela nação como Império do mundo na última centúria. Reitere-se que, lá, adaptaram-se uma esfera privada dinâmica e igualitária (ao menos na sua alvorada) com uma institucionalidade liberal-democrática, sendo a primeira o esteio da segunda. Resultado: é aceitável que o pensador brasileiro, que naquelas terras se formou, tenha delas a imagem adequada e positiva de uma ordem liberal burguesa. Juízo oposto seria o formado em relação ao Brasil: segundo ele, nossos valores predominantes teriam três raízes: “a cultura ibérica, que é a cultura do privilégio; a cultura africana, que é a cultura da magia; e a cultura indígena, que é a cultura da indolência. Com esses três ingredientes, [...], o desenvolvimento é [seria] uma parada” (CAMPOS, 1991CAMPOS, Roberto. Reflexões do crepúsculo. Rio de Janeiro: Topbooks, 1991. apud VIANNA, 1991).

As ideações de Campos poderão vir a ser reconhecidas pelo universo acadêmico no curso do tempo. Sem prejuízo a outros motivos, a identificação de sua Sociologia de bases maquiavélicas sugere um caminho uniforme na mudança de seu pensar: a razão foi o seu eixo. A densidade de seu raciocínio, estribada por um realismo que jamais obstaculizou a construção, teve forte sentido científico. Nele, estrutura e ação encontram-se equilibradas; natureza e cultura são conciliadas. E, desse lugar, lançou-se, a la Pareto, a uma cruzada contra as ideologias (BOBBIO, s/d, p. 127-155BOBBIO, Norberto. Pareto e a crítica das ideologias. In: BOBBIO, N. Ensaios escolhidos: história do pensamento político. Tradução de Sérgio Bath. São Paulo: C. H. Cardim Ed., [s. d.]. p. 127-155.) que qualificava como sendo “do atraso”, ou dos “ismos” - o socialismo, o nacionalismo, o populismo, o estatismo, entre outros. Nessa perspectiva, o economista arvora-se em uma espécie de gestor racional das ideologias - em que a expressão objetividade não parece ser exagerada quando ativada a explicar o escopo de sua cognição.

Ao se ambientar crescentemente no interior do projeto liberal, Campos virou alvo de seus críticos. Mas as flechas potencialmente mais certeiras contra o seu pensar - que, no caso deste trabalho, sublinhou o seu conceito de sociedade -, teriam origens em autores que vislumbraram nos liberais uma imensa preocupação positiva com a vida social - e, no entanto, diante do pipocar de suas tensões constitutivas, recuariam, apreciando-a negativamente (KERVEGAN, 1989KERVEGAN, Jean-François. Existirá uma filosofia liberal? Observações sobre as obras de J. Rawls e F. Hayek. In: BARBOSA FILHO, Balthazar et al. (org.). Filosofia política. Tradução de Beatriz Sidou, Márcio Oliveira Dornelles e Sônia Martins. Porto Alegre: L&PM, 1989. v. 6 (O Poder), p. 31-62.). Em chave interpretativa sumária, as coisas funcionariam da seguinte maneira (para os liberais): em abstrato, as sociedades seriam as fontes das energias institucionais; na realidade, comportariam as verdadeiras e últimas causas das tensões. Sobre as ideações de Campos, uma em especial pode ser maculada, porquanto poderia produzir feridas no tecido democrático: da hiper-racionalidade que conforma a sua Sociologia poderia advir uma hipossociabilidade a definir a sociedade requerida. Em outros termos, o logos, mais do que compreender, se sobreporia ao social. Quando Campos já estava recolhendo o reconhecimento público acerca da importância de suas elaborações liberais18 18 Ver, por exemplo, Folha de São Paulo - Caderno Mais, edição de 11 de abril de 1993, cujo título, em letras garrafais na capa, estampava: “Ok, Bob, você venceu”. - e não somente em função da débâcle do socialismo real, mas sobretudo em virtude de uma força simbólica que homologava, por exemplo, o “fim da História” (FUKUYAMA, 1992FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.) -, vozes indignadas questionam os termos dessa prevalência, identificando e denunciando naquele corpus ideológico omissões, contradições e outros elementos negativos (MARTINS, 2003MARTINS, Carlos Estevam. Liberalismo. O direito e o avesso. DADOS - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 46, n. 4, p. 619-660, 2003.). É possível que o pensador brasileiro, com a sua habitual virtuosidade, conseguisse contraditar a todos esses apontamentos denegatórios.

E foi com esse olhar fortemente crítico que Campos, lastimando, observou - e lutou desesperadamente contra - a fraqueza societária brasileira. Assevera, com farta ironia, nos anos 1990: “O Brasil atual oferece-nos um surpreendente fundo de pensamento mágico [...]. Combina-se, assim, a concepção mágica do mundo com o formalismo político-jurídico ibérico-colonial numa fórmula que poderíamos chamar de ‘maná por decreto’” (CAMPOS; FERNANDEZ, 1993CAMPOS, Roberto; FERNANDEZ, Oscar Lorenzo. Economia, Estado, Modernidade - uma crítica liberal. Revista USP, n. 17, p. 62-73, mar./maio 1993. (Dossiê Liberalismo/Neoliberalismo)., p. 73). Juntamente à sua busca por uma sociedade que promovesse um modelo de mercado, Campos procurou simplesmente uma sociedade e, lamentando, não a encontrou. Acossa-se o pensador, dessa forma, a uma certa tradição sociológica definida pelo “desgosto” com as coisas brasileiras (LYNCH, 2011LYNCH, Christian Edward Cyril. Saquaremas & Luzias. A sociologia do desgosto com o Brasil. Insight Inteligência, [Online], ano XIV, n. 55, p. 20-37, out./dez. 2011. ). Figura complexa e mimética, o economista foi também “Luzia” quando “Saquarema” (1ª fase) - e vice-versa (2ª fase); tal conformação homenageou as mais finas tradições do pensamento político brasileiro ao representar as nossas instituições, indefinidas no entorno do conceito de “Liberalismo de Estado”.

Um Campos eternamente inconformado - e reconhecidamente vitorioso em tempos pretéritos - habilita-se, no período contemporâneo, a ser igualmente chancelado como ganhador: com ele na condição de seu corifeu, o liberalismo e a sua hegemonia, nas últimas três décadas em terras brasileiras, atestam-no. Admita-se: os liberalismos (incluído nos seus moldes o professado por Roberto Campos), que por aqui vicejaram - ou não o conseguiram, dependendo da leitura que a eles se dê -, carregam o peso da desconfiança da inautenticidade, seja pela chaga das nossas desigualdades sociais, seja pelo suporte não tão velado a elevadas vozes de autoridades antidemocráticas19 19 Com o emprego de linguagem menos eufemística, outro pensador de linhagem liberal um tanto distinta da de Campos, vaticinou com proverbial ironia sobre o ponto: “O regime político, retoricamente liberal [no Brasil], acolheu-se, repetidamente, ao primeiro susto, mais fictício do que real, debaixo da proteção das baionetas” (FAORO, 1992, p. 21). , o que, por esses sítios, não foi algo infrequente. Entretanto, como tipo ideal, e associado ao sucesso das nações desenvolvidas, sem embargo a interesses que a ele sejam conexos, não deixa de ser um corpus sedutor e irmanado à modernidade - ou, ao menos, a uma particular modernidade.

Como efeito, apresenta-se o caminho ao retorno à epígrafe deste paper - com o economista autorizado a afirmar: o país não desejou se integrar em um universo material mais amplo, não ousou se libertar de seus grilhões e nem optou por abandonar as garras do Leviatã. Deflui-se dessas assertivas que a Sociologia de Campos carece de objeto, notadamente em virtude de nossa tibieza social, o que impossibilita (ou pelo menos dificulta severamente) a custódia de um mercado. O estabelecimento de uma ordem liberal burguesa nesses trópicos, obsessão da vida de Campos, independentemente de suas vitórias ideológicas, continuaria sendo obra para o futuro - e também para depois dele.

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  • 2
    Agradeço aos pareceristas anônimos da Revista Brasileira de Ciência Política pelas críticas e sugestões que visaram à qualificação do artigo.
  • 3
    O teor desse questionamento não é acolhido pacificamente na academia. Para um incisivo contraponto, com ênfase ao autoritarismo notado em algumas de nossas tradições reflexivas, ver Lamounier (2006)LAMOUNIER, Bolívar. Formação de um pensamento político autoritário na Primeira República. Uma interpretação. In: FAUSTO, Boris; PINHEIRO, Paulo Sérgio et al. (org.). História geral da civilização brasileira. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. p. 371-404. t. 3: O Brasil republicano, v. 9: Sociedade e instituições (1889-1930)..
  • 4
    A importância de Campos é reconhecida publicamente pelas elites brasileiras. Veja-se, por exemplo, o seminário ocorrido quando da comemoração dos cem anos de seu nascimento (em 18 de abril de 2017, no Palácio Itamaraty/RJ), organizado pelo ministro Paulo Roberto de Almeida, e intitulado Roberto Campos: o homem que pensou o Brasil. Naquela mesma época, foram publicadas duas obras que homenagearam a trajetória do pensador: ALMEIDA, Paulo Roberto de. (org.). O homem que pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos. Curitiba/PR: Appris, 2017ALMEIDA, Paulo Roberto de (org.). O homem que pensou o Brasil: trajetória intelectual de Roberto Campos. Curitiba: Appris, 2017. ; e MARTINS, Ives Gandra da Silva; CASTRO, Paulo Rabello de. (org.) Lanterna na proa: Roberto Campos Ano 100. São Luís: Resistência Cultural, 2017MARTINS, Ives Gandra da Silva; CASTRO, Paulo Rabello de (org.). Lanterna na proa: Roberto Campos Ano 100. São Luís: Resistência Cultural, 2017.. Em todos esses casos tratou-se de palestras e/ou depoimentos/artigos sobre o personagem Campos. No ambiente universitário, em sentido estrito, é de se notar o silêncio sobre o intelectual. Uma das honrosas exceções foi o evento organizado pelos professores Maurício Vaz Bittencourt (UFPR) e Carlos Eduardo Gasparini (UFPB), ocorrido nas dependências da UFPR, em 24 e 25 de abril de 2010, e nomeado Seminário Nacional de Desenvolvimento Econômico ‘Cátedra Roberto Campos - Contribuições para o desenvolvimento do Brasil’.
  • 5
    Explicação: Campos publicou, em regra, artigos para jornais; depois, esses artigos eram compilados em livros. Ocorre que o intelectual publicou poucos artigos de conteúdo estritamente acadêmico - e menos ainda que tivessem como objeto específico temas afeitos à Sociologia. Entretanto, é evidente que os temas versados, sendo assuntos de Economia, também diziam respeito a questões de ordem sociológica. Portanto, os poucos artigos da lavra de Campos referidos neste paper, fato mitigado pela citação de suas copiosas Memórias, respondem a esses limites e se pretendem representativos de seu pensamento para a delimitação aqui proposta.
  • 6
    “Com a ressurreição do liberalismo dos anos 80 [1980], percebeu-se que o Estado é um grande ‘predador’, com limitada capacidade de fazer o bem e ilimitada capacidade de fazer o mal” (CAMPOS, 1991CAMPOS, Roberto. Reflexões do crepúsculo. Rio de Janeiro: Topbooks, 1991., p. 213).
  • 7
    Aprecie-se a definição minimalista deste conceito proposta por Campos, nos anos 1950: “Interpreto a cultura como sendo o modo de sentir e de agir de uma sociedade. Abrange, de um lado, um sistema de valores. De outro, formas de comportamento” (CAMPOS, 1976aCAMPOS, Roberto. Ensaios de história econômica e sociologia. 3. ed. Rio de Janeiro: APEC, 1976a., p. 103).
  • 8
    Para um recenseamento da produção sobre interpretações do Brasil contemporâneo, com fundamentações em favor do ensaio, ver Chaloub; Lima (2018)CHALOUB, Jorge; LIMA, Pedro Luiz. Interpretações do Brasil contemporâneo. Mediações, Londrina, v. 23, n. 2, p. 14-39, maio/ago. 2018. (Dossiê Interpretações do Brasil contemporâneo)..
  • 9
    O entrelaçamento da vida pessoal de Campos com comentários sobre a sua copiosa produção intelectual - o que inclui os debates sobre as temáticas com que se envolveu, ou teve contato como estudioso - encontra-se em CAMPOS, Roberto. Lanterna na popa: memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. A partir de agora, neste artigo, tal obra será referida apenas como Memórias. A fase desenvolvimentista - ou iliberal - de Campos, que compreende o primeiro período de sua produção intelectual, é apresentada com sóbria erudição por Bielschowsky (1988)BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1988.; sem embargo às suas reflexões econômicas, o pensamento político de Campos, em toda a sua trajetória, encontra-se em Perez (1999)PEREZ, Reginaldo Teixeira. O pensamento político de Roberto Campos: da razão do Estado à razão do mercado. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999.. Uma literatura que estudou as ideias de Roberto Campos em termos menos analítico-descritivos e mais avaliativos, igualmente respeitável do ponto de vista acadêmico, será nomeada adiante.
  • 10
    CAMPOS, Roberto; FERNANDEZ, Oscar Lorenzo. Economia, Estado, Modernidade - uma crítica liberal. Revista USP, São Paulo, n. 17 (Dossiê Liberalismo/Neoliberalismo), p. 62-73, mar./maio 1993. A escolha deste trabalho, ao exame do pensar de Campos em sua segunda fase (liberal), deu-se em função de seu caráter sintético e exemplificativo para esse período.
  • 11
    Impossível deixar de se comparar essa passagem com certa tradição do pensamento político que posiciona a negatividade humana nas suas fundações: perpassando as figuras de Maquiavel e Hobbes, essa representação alcança um de seus pontos mais elevados com a lavra de dois pais fundadores norte-americanos: [Os homens] são “ambiciosos, vingativos e rapaces”, afirmará Hamilton [The Federalist, Paper n. 6], p. 21HAMILTON, Alexander. Concerning dangers from war between the states. [Paper n. 6]. In: HAMILTON, A.; JAY, J.; MADISON, J. The federalist. Gideon edition - edited with an introduction, reader’s guide, constitutional cross reference & glossary by George W. Carey, James McClellan. Indianapolis: Liberty Fund, p. 20-26, 2001.; “Mas o que é o governo, senão o maior de todos os reflexos da natureza humana? Se os homens fossem anjos, não haveria a necessidade de governos. Se anjos governassem os homens, nem controles externos e internos seriam necessários”, dirá Madison [The Federalist, op. cit., Paper n. 51], p. 268/269MADISON, James. The same subject, with the same view, and conclude. [Paper n. 51]. In: HAMILTON, A.; JAY, J.; MADISON, J. The federalist. Gideon edition - edited with an introduction, reader’s guide, constitutional cross reference & glossary by George W. Carey, James McClellan. Indianapolis: Liberty Fund, p. 267-272, 2001.. Tradução livre
  • 12
    À diferença de outros conservadores, o conceito diretor do pensar de Campos desta última fase, fautor do liberalismo econômico, é o de racionalidade - projetando-se daí um sujeito universal. Outros conservadores, igualmente sofisticados, interseccionam essa forma de representar o mundo com o liberalismo político - defluindo-se daí a prédica dos valores à razão - derivando-se disso os particularismos; nessa perspectiva, ver Coutinho (2014)COUTINHO, João Pereira. As ideias conservadoras: explicadas a revolucionários e reacionários. São Paulo: Três Estrelas, 2014.. Sobre o pensamento conservador, ver, por todos, Mannheim (1968)MANNHEIM, Karl. Ideologia e utopia. Tradução de Sérgio M. Santeiro. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1968. e Hirschman (1992)HIRSCHMAN, Albert O. A retórica da intransigência: perversidade, futilidade, ameaça. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1992..
  • 13
    Segundo Bielschowsky (1988)BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1988., havia cinco correntes disputando espaços na esfera pública entre os anos 1930 e 1960: A “neoliberal”, capitaneada por Eugênio Gudin, um dos primeiros e mais importantes economistas brasileiros; a “desenvolvimentista”, que se subdividiria em três correntes - “setor público (não nacionalista)”, liderada por Roberto Campos, “setor privado”, que tinha como corifeu Roberto Simonsen, e “setor público (nacionalista)”, cujo principal nome era Celso Furtado; a “socialista”, com Caio Prado Jr. e Nelson Werneck Sodré como destaques; e, finalmente, tem-se o “pensamento independente” de Ignácio Rangel.
  • 14
    Para a consideração da linguagem como critério de aferição de maturidade científica, ver Sartori (1981)SARTORI, Giovanni. A política: lógica e método nas Ciências Sociais. Tradução de Sérgio Bath. Brasília: Editora UnB, 1981.; os economistas e a sua trajetória profissional no Brasil são estudados por Loureiro (1992)LOUREIRO, Maria Rita. Economistas e elites dirigentes no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 7, n. 20, p. 47-69, out. 1992.; o emprego da retórica pelos juristas - e também como chave interpretativa de leitura - é examinado por Carvalho (2000)CARVALHO, José Murilo de. História intelectual no Brasil: a retórica como chave de leitura. Topoi, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 123-152, 2000..
  • 15
    Assinalem-se as fortes semelhanças entre as figuras do empresário schumpeteriano e as características especiais narradas por Vilfredo Pareto, quando de sua definição de elites econômicas - destacadamente, a sua caracterização da teoria dos resíduos; e, nela, a classe do “instinto das combinações” (ARON, 1987ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. Tradução de Sérgio Bath. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes; Brasília: Editora UnB, 1987., p. 400 e seguintes).
  • 16
    Alguns exemplares de produções críticas às ideias e/ou ações de Campos nas décadas de 1950/1960: Serra (1979)SERRA. José. As desventuras do economicismo: três teses equivocadas sobre a conexão entre autoritarismo e desenvolvimento. DADOS - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, n. 20, p. 3-45, 1979., Madi (1985)MADI, Maria Alejandra Caporale. A vanguarda do pensamento conservador. Um estudo sobre as ideias econômicas de Roberto Campos no período de 1950-1964. 1985. Dissertação (Mestrado em Economia) - Instituto de Economia, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1985., Moraes (1987)MORAES, Reginaldo Carmello Corrêa de. Planejamento: democracia ou ditadura? Intelectuais e reformas socioeconômicas no Pós-Guerra. 1987. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1987. (Texto mímeo)., Gennari (1990)GENNARI, Adilson Marques. A lógica da subordinação. Aspectos do conservantismo brasileiro - as ideias de Roberto de Oliveira Campos. 1990. Dissertação (Mestrado em Economia) - Programa de Estudos Pós-Graduados em Economia, Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 1990. . Os significados de “incompetência técnica” (Serra), “subordinação” e “conservadorismo” (Madi e Gennari) e, por fim, “autoritarismo” (Moraes) compõem um conjunto fortemente negativo.
  • 17
    A modernidade reclamada por Roberto Campos para o Brasil é, evidentemente, uma entre outras possíveis. Sem prejuízo a debates ou representações literárias anteriores, em 1922 o tema foi merecedor de um movimento que empregava o signo explicitamente - Semana da Arte Moderna. No meio daqueles intelectuais/escritores/pintores, artistas, enfim, eventuais peculiaridades da nossa cultura - somos uma espécie de “imundície de contrastes”, diria Mário de Andrade - não deveria nos afastar da busca por alguma modernidade (BRANDÃO, 2005BRANDÃO, Gildo Marçal. Linhagens do pensamento político brasileiro. DADOS - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 48, n. 2, p. 231-269, 2005.). De lá até cá, com quase um século de trajetória, a flexuosidade de nossos movimentos não impediu que autor afirmasse ainda nos anos 1980: “[re]ingressar em águas democratizantes, ao embalo deste século [XX], equivale a alternar turbulências. Se, no caso brasileiro, à opressão autoritária do vintênio posterior a 1964 somou-se a imprevisibilidade de acelerada acumulação capitalista, a reinstalação democrática em curso enfrentará dificuldades não menos complexas. O Brasil pós-autoritarismo é altamente moderno, do ponto de vista econômico. Trogloditamente atrasado, entretanto, em matéria social e em instituições políticas. E é assim despreparado que está sendo rapidamente atraído pela dinâmica contraditória característica dos países democráticos contemporâneos” (SANTOS, 1988SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Paradoxos do liberalismo: teoria e história. São Paulo: Vértice, Editora Revista dos Tribunais; Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988., p. 12). Esse diagnóstico não parece ter perdido o seu vigor após quatro décadas: a díade contemporânea a orientar a nossa institucionalidade - uma democracia política administrando uma economia de mercado - remanesce destilando contradições. E o conteúdo social da nossa democracia - ou, melhor dizendo, a sua carência - parece motivar intelectuais de estirpe distinta da de Campos a reclamar: as desigualdades são arestas incontornáveis na constituição dessa modernidade. Nos últimos anos, um dos mais incisivos críticos da forma pela qual o Brasil alcançou a sua particular modernidade, porquanto defensor de uma outra modernidade, foi Souza (2000)SOUZA, Jessé. A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília: Editora UnB, 2000.. Crítico acerbo de algumas exegeses, que poderiam ser definidas como “liberais” (Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Roberto da Matta), o combativo sociólogo as qualifica como “sociologia/s da inautenticidade”. Bem entendido, as posições de Campos, ou mesmo próximas a elas, foram/são passíveis de ataques. O economista, cujo pensar é objeto deste artigo, exigia radicalização sistêmica por meio do mercado; uma intelectualidade posicionada em outros quadrantes ideológicos - vislumbrando sentido na afirmação “trogloditamente atrasado em matéria social” - postula: não há modernidade sustentável nos termos propostos pelos liberais, haja vista a sua “seletividade”, com as diferenciações sociais por aqui observadas.
  • 18
    Ver, por exemplo, Folha de São Paulo - Caderno Mais, edição de 11 de abril de 1993, cujo título, em letras garrafais na capa, estampava: “Ok, Bob, você venceu”.
  • 19
    Com o emprego de linguagem menos eufemística, outro pensador de linhagem liberal um tanto distinta da de Campos, vaticinou com proverbial ironia sobre o ponto: “O regime político, retoricamente liberal [no Brasil], acolheu-se, repetidamente, ao primeiro susto, mais fictício do que real, debaixo da proteção das baionetas” (FAORO, 1992FAORO, Raymundo. A questão nacional: a modernização. Estudos Avançados, São Paulo, v. 6, n. 14, p. 7-22, 1992., p. 21).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2018
  • Aceito
    12 Out 2020
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