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Entre saída e voz: a renda básica na economia política do neorrepublicanismo

Between exit and voice: basic income in the political economy of neo-republicanism

Resumo:

O artigo tem como objetivo avaliar o debate neorrepublicano sobre política de renda básica, enfocando a dimensão normativa das disputas sobre a adequação dessa política a uma economia política destinada a garantir as bases materiais da liberdade como não dominação. Após tratar da conexão entre liberdade e propriedade na tradição republicana e de expor os argumentos dos teóricos neorrepublicanos a favor da renda básica, apresento as principais objeções formuladas por partidários de vertentes mais radicais do republicanismo. Tais objeções baseiam-se nos supostos déficits de reciprocidade e de ação coletiva decorrentes da opção da renda básica pela “saída”, em detrimento da “voz”, em estratégias contenção da dominação. Sem deixar de reconhecer a pertinência dos questionamentos dos críticos, concluo que os possíveis impactos negativos em termos de reciprocidade e ação coletiva não são suficientes para excluir a renda básica da economia política do neorrepublicanismo, uma vez que não há incompatibilidade necessária entre saída e voz na configuração das estratégias contra a dominação. Ao contrário, como regra geral, a ameaça credível de saída funciona como um meio eficiente de aumentar a voz.

Palavras-chave:
Liberdade como não dominação; Renda básica; Reciprocidade; Ação coletiva; Saída; Voz

Abstract:

The article aims to assess the neo-republican debate on basic income policy, focusing on the normative dimension of disputes over the suitability of this policy for a political economy designed to guarantee the material bases of freedom as non-domination. After addressing the connection between freedom and property in the republican tradition and exposing the arguments of neo-republican theorists in favor of basic income, I present the main objections formulated by supporters of more radical strands of republicanism. Such objections are based on the supposed deficits in reciprocity and collective action resulting from the association between basic income and “exit”, to the detriment of “voice”, in strategies to curb domination. Without failing to recognize the pertinence of the critics’ questions, I conclude that the possible negative impacts in terms of reciprocity and collective action are not sufficient for excluding basic income from a republican political economy, since there is no necessary incompatibility between exit and voice in the configuration of the strategies against domination. On the contrary, as a rule, the credible threat of exit operates as an efficient means for empowering voice.

Keywords:
Freedom as non-domination; Basic income; Reciprocity; Collective action; Exit; Voice

Introdução

Há algo de surpreendente na progressiva aceitação das políticas de renda básica nos anos mais recentes. A convergência de opiniões que hoje se observa a propósito da desejabilidade e da viabilidade desse tipo de reforma radical contrasta fortemente com o ceticismo generalizado sobre a expectativa de êxito de poucas experiências do tipo iniciadas há algumas décadas. O que parecia a muitos um experimento comprovadamente falido2 2 As palavras do senador norte-americano Daniel Patrick Moynihan, referindo-se aos experimentos do imposto de renda negativo, uma forma embrionária de renda básica testada nos EUA até meados dos anos 1970, servem como ilustração desse descrédito: “É aparentemente calamitoso. Elevou a dissolução de famílias em algo em torno de 70%, diminuiu o emprego etc. Este é o atual estado da ciência” (apud WIDERQUIST, 2019, p. 313). vem agora se afirmando como uma alternativa não apenas viável, mas também desejável e até inevitável como resposta aos desafios decorrentes do agravamento das desigualdades e da progressiva destruição de postos de trabalho na revolução tecnológica em curso.

Este artigo pretende abordar o tema da renda básica do ponto de vista da teoria política normativa. Trata-se de investigar o debate no interior das fronteiras de uma corrente da teoria política que assumiu considerável importância ao longo das últimas décadas: o neorrepublicanismo. Como toda filosofia pública de consolidada tradição, o republicanismo contém diferentes vertentes que tendem a interpretar de maneira diversa os princípios, valores e conceitos centrais de sua história. Não há uma definição consensual do republicanismo porque, como lembrou Nietzsche, “só é passível de definição aquilo que não tem história” (NIETZSCHE, 1887/1998NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. (Obra original publicada em 1887)., p. 68). Assim, conceitos centrais da tradição republicana, como as noções de liberdade, igualdade, constituição mista, virtude cívica e corrupção, são interpretados de modo diverso - e, inclusive, contraditórios - entre as diversas vertentes do republicanismo.

Não obstante tal diversidade, a análise a seguir se concentra na vertente dominante do neorrepublicanismo, derivada das contribuições de Philip Pettit (1997PETTIT, Philip. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford: Oxford University Press, 1997., 2012PETTIT, Philip. On the people’s terms: a republican theory and model of democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 2012., 2014)PETTIT, Philip. Just freedom: a moral compass for a complex world. New York: W. W. Norton & Company, 2014. e Quentin Skinner (1999SKINNER, Quentin. A liberdade antes do liberalismo. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora da Unesp, 1999., 2002SKINNER, Quentin. A third concept of liberty. Proceedings of the British Academy, London, v. 117, p. 237-268, 2002., 2008)SKINNER, Quentin. Freedom as the absence of arbitrary power. In: LABORDE, Cecile; MAYNOR, John (ed.). Republicanism and political theory. London: Blackwell, 2008. p. 83-101.. O neorrepublicanismo, também frequentemente denominado “republicanismo neorromano” - para indicar que sua gênese remonta à antiga república romana -, defende que a tradição republicana se organiza em torno de um valor (e conceito) central, ao qual devem subordinar-se todos os demais: a liberdade como não dominação.

O debate sobre a renda básica no neorrepublicanismo é parte de uma preocupação mais ampla com a construção de uma economia política orientada pelo ideal da liberdade como não dominação. A principal questão a ser aqui explorada é a seguinte: em que medida a adoção de uma política de renda básica universal e incondicional condiz com a realização desse ideal republicano de liberdade? A resposta é mais complicada do que possa parecer à primeira vista. Assim como há um amplo (provavelmente majoritário) conjunto de teóricos neorrepublicanos, os quais concebem a renda básica como um dos componentes centrais de uma economia política voltada para a minimização da dominação, não são poucos os que põem em dúvida não apenas a viabilidade, mas também a desejabilidade desse instituto na economia política republicana. Para estes, longe de resolver os problemas a que se propõe, a instituição da renda básica pode ocasionar o efeito perverso de agravar a dominação no âmbito das relações socioeconômicas.

Mobilizando a literatura recente, o artigo reconstrói o debate neorrepublicano com o fim de contribuir para a superação do ceticismo dos teóricos da corrente que se opõem à instituição da renda básica. Pode-se concordar que esse instituto não seja condição suficiente para a economia política republicana. Contudo, tendo em vista o estreito leque de alternativas disponíveis e os constrangimentos próprios das economias capitalistas de mercado, a renda básica representa uma condição necessária para a minimização da dependência material e da dominação nas relações econômicas entre os cidadãos.

O argumento desenvolve-se em cinco seções. Na primeira seção, apresento um breve esboço do conceito de liberdade como não dominação, chamando a atenção para a dimensão material do conceito. Na segunda, indico os contornos mais amplos de uma economia política voltada à realização desse ideal republicano de liberdade. Na terceira seção, reconstruo os principais argumentos dos neorrepublicanos que procuram integrar a renda básica na economia política republicana. Na quarta, apresento as objeções dos republicanos que consideram a renda básica insuficiente ou mesmo contraproducente para a realização da não dominação. Na última seção, concluo reagindo às objeções dos céticos e reafirmando o lugar central da política de renda básica na economia política do neorrepublicanismo.

Liberdade e propriedade

O neorrepublicanismo compreende a liberdade como um status jurídico-político que imuniza os indivíduos contra a interferência arbitrária de terceiros, e interferência arbitrária é sinônimo de dominação. Daí a fórmula da “liberdade como não dominação”, que sintetiza a visão da liberdade na vertente neorromana do republicanismo (PETTIT, 1997PETTIT, Philip. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford: Oxford University Press, 1997.). A gênese dessa visão da liberdade se encontra nas instituições e práticas da antiga república romana, bem como nos historiadores e moralistas romanos do período final da república e do início do período imperial, a exemplo de Cícero, Salústio, Tito Lívio e Tácito. Conforme observou Quentin Skinner, a codificação dessa maneira de pensar a liberdade encontra-se expressa no Digesto das leis romanas, elaborado por determinação do Imperador Justiniano em meados do século VI da Era Cristã. Como esclarece o historiador inglês, “o conceito de liberdade é sempre definido no Digesto por contraste com a condição de escravidão” (SKINNER, 1999SKINNER, Quentin. A liberdade antes do liberalismo. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora da Unesp, 1999., p. 42) e a “essência do que significa ser um escravo [...] é estar in potestate, dentro do poder de alguém mais” (SKINNER, 1999SKINNER, Quentin. A liberdade antes do liberalismo. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora da Unesp, 1999., p. 43). Por contraste, a pessoa livre é aquela que vive “sui iuris, dentro de sua própria jurisdição ou direito” (SKINNER, 1999SKINNER, Quentin. A liberdade antes do liberalismo. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora da Unesp, 1999., p. 43). O fundamento do regime de escravidão é a absoluta dependência do escravo da vontade arbitrária de seu senhor, sendo a dependência a consequência prática de se viver sob domínio alheio3 3 Essa visão da liberdade é retomada no Renascimento italiano por pensadores como Maquiavel, desempenhando, no século XVII, importante papel na luta do republicanismo inglês contra a Coroa, como testemunham os legados de pensadores como Harrington, Milton e Sidney (SKINNER, 1999). Depois disso, ela foi mobilizada no século XVIII por autores tão diversos entre si como Rousseau e Montesquieu, além de se fazer presente nos discursos de legitimação da revolução da independência e da constitucionalização dos Estados Unidos. .

Na história do republicanismo, o status de pessoa livre sempre esteve associado à propriedade de meios materiais necessários para assegurar a independência que qualifica um indivíduo à plena cidadania. É sintomático que a figura do escravo, paradigma da ausência de liberdade na tradição republicana, é também a expressão mais radical da dependência material de um indivíduo em relação a outro, uma vez que não apenas carece do estatuto jurídico que lhe permitiria deter alguma propriedade de bens, como ele próprio (seu corpo e suas faculdades) é propriedade de seu mestre. Por isso, como argumenta Daniel Raventós, em um dos primeiros esforços sistemáticos de compreensão republicana da renda básica,

na tradição republicana, a independência conferida pela propriedade não é apenas uma matéria de interesse privado. Ao contrário, ela é de importância política crucial, tanto em termos de exercício da liberdade como para o alcance do autogoverno republicano, porque ter uma base material de existência garantida é indispensável à competência e à independência política (RAVENTÓS, 2007RAVENTÓS, Daniel. Basic income: the material conditions of freedom. London: Pluto Press, 2007., p. 64).

Historicamente, a tradição republicana lidou de duas formas contrastantes com esse imperativo da propriedade como condição para a liberdade, oferecendo uma reposta oligárquica e outra democrática ao problema. Na base da vertente oligárquica, encontra-se a pretensão de limitar aos poucos detentores de propriedade o pleno exercício da cidadania, tornando o republicanismo compatível com a exclusão política de inúmeros grupos (escravos, servos, mulheres e não proprietários em geral) da vida pública. Dat census honores (é a propriedade que confere status), dizia o poeta romano Ovídio no período de decadência da república romana. Na mesma época, Cícero, o grande nome do republicanismo romano, argumentava a favor da inviolabilidade da propriedade privada e da exclusão política dos indivíduos destituídos de bens tangíveis (terra e escravos) ou possuidores de mera capacidade de trabalho manual, a qual alienavam em troca de pagamento em dinheiro. Em sua avaliação dos tipos de trabalho que “devam ser considerados dignos de homens livres”, o senador romano desaprovava como “ignóbeis e sórdidas as remunerações de todos os trabalhadores pagos pelo esforço e não pela habilidade”. Para esses trabalhadores, “o próprio salário é o penhor da servidão” (CÍCERO, 44 a.C./1999CÍCERO, Marco Túlio. Dos deveres. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Obra original publicada em 44 a.C.)., p. 72). A vertente oligárquica predominou, com raras exceções, nas épocas pré-modernas. Certos níveis de propriedade e independência material eram considerados requisitos indispensáveis à plena cidadania, mas a hipótese de estender esses atributos a todos os indivíduos só passou a ser levada em conta em período mais recente.

A vertente democrática do republicanismo também está atenta ao vínculo indissociável entre a propriedade e a independência material necessária à liberdade. Porém, no lugar de circunscrever a cidadania aos proprietários, mantendo inquestionável o instituto da propriedade privada, pensadores republicanos dos séculos XVIII e XIX passaram a considerar a hipótese de atribuir maior amplitude aos direitos de propriedade, quer pela via da redistribuição da propriedade privada, como na proposta da justiça agrária de Thomas Paine, quer pela via mais radical da erradicação da propriedade privada e da coletivização dos meios de produção, como advogada por Marx. Um dos principais corolários do projeto de revitalização do republicanismo nas sociedades contemporâneas consiste na democratização de seus ideais e suas de suas instituições, o que requer a definitiva superação da herança oligárquica que pesa sobre essa tradição. É verdade que não há consenso sobre os requisitos institucionais para a democratização do republicanismo (SILVA, 2015SILVA, Ricardo. Non-domination and political institutions: the contested concept of republican democracy. Brazilian Political Science Review, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 3-38, 2015. ). Seja como for, a universalização das condições materiais da liberdade, expressa na propriedade que cada cidadão deve dispor para suprir suas necessidades básicas e livrar-se da dependência material de terceiros, é um dos desenvolvimentos mais desafiadores do atual republican revival e o principal objetivo de uma economia política republicana.

Economia política do neorrepublicanismo

Ao longo das últimas duas décadas, o programa de pesquisas do neorrepublicanismo ampliou consideravelmente os esforços para a constituição de uma economia política orientada pelo ideal da liberdade como não dominação (PETTIT, 2006PETTIT, Philip. Freedom in the market. Politics, Philosophy & Economics, London, v. 5, n. 2, p. 131-149, 2006.; DAGGER, 2006DAGGER, Richard. Neo-republicanism and civic economy. Politics, Philosophy & Economics, London, v. 5, n. 2, p. 151-173, 2006.; WHITE, 2011WHITE, Stuart. The republican critique of capitalism. Critical Review of International Social and Political Philosophy, Essex, v. 14, n. 5, p. 561-579, 2011.; CASASSAS; WISPELAERE, 2015CASASSAS, Daniel; WISPELAERE, Jurgen de. Republicanism and the political economy of democracy. European Journal of Social Theory, London, v. 19, n. 2, p. 283-300, 2015.; SILVA, 2016SILVA, Ricardo. Liberdade, desigualdade e dominação: a economia política do neorrepublicanismo. In: MIGUEL, Luis Felipe (org.). Desigualdades e democracia: o debate da teoria política. São Paulo: Editora da UNESP, 2016. p. 137-170.; THOMAS, 2017THOMAS, Alan. Republic of equals: predistribution and property-owning democracy. Oxford: Oxford University Press, 2017.). De diagnósticos mais consistentes decorrem novas proposições de reformas e políticas públicas para combater as causas da dependência material comprometedora da liberdade. A gama de soluções é relativamente ampla, comportando a ressignificação de propostas provenientes, em um extremo, do liberalismo econômico, no outro, do socialismo, o que têm ensejado desacordos razoáveis e intensos debates sobre os contornos da economia política republicana.

Não obstante a diversidade das soluções concretas, a economia política decorrente do interesse dos neorrepublicanos na dimensão material da liberdade vem orbitando em torno de três ordens de proposições (CASASSAS; WISPELAERE, 2015CASASSAS, Daniel; WISPELAERE, Jurgen de. Republicanism and the political economy of democracy. European Journal of Social Theory, London, v. 19, n. 2, p. 283-300, 2015.): (i) a garantia de um mínimo de recursos materiais aos cidadãos, abaixo do qual a dependência e a dominação são fenômenos mais do que prováveis; (ii) o estabelecimento de um teto de riqueza aos mais abastados, acima do qual a vantagem econômica converte-se em dominação política; (iii) a democratização do controle das atividades laborativas, de maneira a inibir a dominação no local de trabalho. As proposições referentes ao estabelecimento de um teto de riqueza (ii) e à democratização do ambiente de trabalho (iii) têm raízes profundas na tradição republicana mais radical.

A propósito da necessidade de um teto, é conhecida a afirmação de Rousseau de que, em uma república bem ordenada, “nenhum cidadão seja assaz opulento para poder comprar outro” (ROUSSEAU, 1762/1996ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. São Paulo: Martins Fontes, 1996. (Obra original publicada em 1762)., p. 63). Esta era uma preocupação já presente em Maquiavel, que via no acúmulo desmesurado de riqueza em mãos de particulares uma poderosa fonte de corrupção das repúblicas (MAHER, 2020MAHER, Amanda. The power of “wealth, nobility, and men”: inequality and corruption in Machiavelli’s Florentine Histories. European Journal of Political Theory, London, v. 19, n. 4. p. 512-531, 2020.; SILVA, 2020SILVA, Ricardo. Desigualdade e corrupção no republicanismo de Maquiavel. DADOS - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 63, n. 3, p. 1-37, 2020.). Teóricos contemporâneos comprometidos com a crítica da vertente aristocrática (ou oligárquica) da tradição republicana argumentam, acertadamente, que elevados níveis de desigualdade socioeconômica acabam se convertendo em dominação política devido à irrefreável tendência dos muito ricos mobilizarem seus recursos materiais para preservação e ampliação de seu controle sobre os agentes estatais e as políticas públicas (McCORMICK, 2011McCORMICK, John Paul. Machiavellian democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.; WINTER; PAGE, 2009WINTERS, Jeffrey; PAGE, Benjamin. Oligarchy in the United States? Perspectives on Politics, Cambridge, v. 7, n. 4, p. 731-751, 2009.). É parte da tradição republicana a preocupação com a desigualdade material causada pelo acúmulo, além de certo limite, da riqueza privada. Se o neorrepublicanismo almeja uma economia política voltada à não dominação, fazendo prevalecer o impulso democrático contra a herança oligárquica da tradição, não há como passar ao largo de políticas contra os extremos de desigualdade socioeconômica decorrentes da acumulação irrefreada da riqueza privada.

Também associadas às vertentes mais radicais do republicanismo são as proposições relativas à democratização do controle das decisões econômicas, quer no nível macroeconômico da gestão das políticas públicas, quer no nível microeconômico da gestão das empresas. Para assegurar a liberdade como não dominação, é preciso, no nível macro, “ampliar e aprofundar o escopo da governança econômica incrementando a participação do cidadão na determinação das regras que governam nossa economia” (CASASSAS; WISPELAERE, 2015CASASSAS, Daniel; WISPELAERE, Jurgen de. Republicanism and the political economy of democracy. European Journal of Social Theory, London, v. 19, n. 2, p. 283-300, 2015., p. 293). Mas esse imperativo de participação e controle deve estender-se também ao nível micro, em razão da importância atribuída ao trabalho como fator de florescimento das capacidades humanas e de reconhecimento mútuo entre os cidadãos.

Se as proposições referentes ao estabelecimento de um teto ao acúmulo de riqueza privada e à democratização do local de trabalho são conducentes a fortes dissensos no debate sobre os contornos de uma economia política republicana, as proposições relativas ao estabelecimento de um piso têm revelado maior potencial de consenso. É nessa categoria de proposições que se enquadram as políticas de renda básica. Embora não seja a única modalidade de estabelecimento daquilo que Stuart White denominou o “mínimo cívico”4 4 White define o “mínimo cívico” como “os direitos e obrigações concretas da cidadania econômica, incorporados em instituições e políticas específicas, necessário para tornar a economia de mercado aceitavelmente (embora não absolutamente) justa” (WHITE, 2003a, p. 3). , a política de renda básica tem recebido, nos últimos anos, atenção bem maior do que outras estratégias de fixação de piso, como as de imposto de renda negativo (FRIEDMAN, 1968FRIEDMAN, Milton. The case for the negative income tax: a view from the right. In: BUNZEL, John (ed.). Issues of American public policy. Englewood Cliffs, N. J.: Prentice-Hall, 1968. p. 111-120.) e de dotação de capital (“capital grant”) para a totalidade dos cidadãos compreendidos como acionistas (“stakeholders) da riqueza social (ACKERMAN; ALSTOT, 1999ACKERMAN, Bruce; ALSTOT, Anne. The stakeholder society. New Haven: Yale University Press, 1999.).

Nas seções seguintes, examino os dois lados do argumento na disputa interna ao neorrepublicanismo sobre a incorporação das políticas de renda básica na economia política republicana. Primeiro, apresento os argumentos neorrepublicanos favoráveis a essas políticas, que descrevem a renda básica como estratégia efetiva para a realização da liberdade como não dominação. Em seguida, exponho duas ordens de objeções a esses argumentos, ambas também de extração republicana: a objeção de déficit de reciprocidade e a objeção de déficit de ação coletiva. Concluo relativizando essas objeções e defendendo a plena integração da renda básica na economia política do neorrepublicanismo.

Argumentos republicanos a favor da renda básica

Propostas de reformas ancestrais da renda básica são conhecidas desde, pelo menos, o final do século XVIII, período que coincide com o início da grande transformação das estruturas socioeconômicas resultante da emergência do capitalismo industrial na Europa. O aumento exponencial da riqueza de alguns poucos cidadãos e da pobreza da maioria estimulou a imaginação de reformadores sociais em busca de soluções para os problemas gerados pela difusão do novo modo de produção. Não se tratava de reivindicar necessariamente a completa superação do capitalismo e sua substituição por outro sistema socioeconômico, como passou a ser a bandeira dos movimentos radicais, socialistas e comunistas, surgidos ao longo do século XIX, mas de defender políticas e reformas capazes de corrigir as injustiças e irracionalidades que se avolumavam com a expansão do capitalismo.

Conquanto seja possível identificar em pensadores dos séculos XVIII e XIX - tais como Paine, Skidmore, Browson, Spence, Davenpor, Fourier, Mabel e outros (CUNLIFFE; ERREYGERS, 2004CUNLIFFE, John; ERREYGERS, Guido. (ed.). The origins of universal grants: an anthology of historical writings on basic capital and basic income. New York: Palgrave Macmillan, 2004.) -, propostas voltadas a atribuir um mínimo de renda ou capital à totalidade dos indivíduos de uma comunidade só passaram para o centro das preocupações de estudiosos e autoridades públicas mais recentemente. Dois fatores vêm contribuindo para isso. O primeiro é o aumento exorbitante das desigualdades econômicas nos países centrais ao longo das últimas quatro ou cinco décadas. O segundo é a destruição de postos de trabalho tradicionais e o concomitante aumento do desemprego ou da oferta de postos de trabalho cada vez mais precarizados. Frente a tais realidades, comprometedoras da justiça social e dos direitos dos trabalhadores e cidadãos comuns, a renda básica começa a ser vista mais como um imperativo moral e funcional do sistema do que como uma infundada utopia.

Não obstante a diversidade de modelos de renda básica associados aos experimentos em curso, sobretudo no tocante às formas de financiamento desses modelos, uma definição mínima e praticamente consensual é a seguinte: a renda básica é um pagamento periódico em dinheiro, atribuído individualmente a todos os cidadãos, sem qualquer contrapartida ou condicionalidade. O montante de cada benefício deve idealmente igualar-se ao valor requerido para a satisfação das necessidades básicas desses cidadãos, de acordo com as especificidades das sociedades em que vivem.

Partimos dessa definição amplamente aceita para examinarmos a contribuição do neorrepublicanismo para o debate sobre o tema. A corrente majoritária dos neorrepublicanos tem defendido a integração dessa forma de “mínimo cívico” na economia política da não dominação. Mas, como veremos adiante, esse consenso progressivo também tem sido desafiado, em nome de valores da própria tradição republicana, por autores que veem a renda básica como insuficiente ou mesmo contraproducente para a realização da liberdade.

Há duas formas arquetípicas de se superar ou mitigar uma relação de dominação: a saída do agente dominado da relação ou o fortalecimento de sua voz no âmbito da relação. Pode-se adaptar para o estudo das relações de dominação as definições de “saída” e “voz”, tornada clássicas por Albert Hirschman para compreender as respostas de firmas e organizações para suas crises de desempenho. Pela via da saída,

alguns clientes param de comprar os produtos da firma ou alguns membros deixam a organização [...]. Como resultado, a renda diminui, cai o número de sócios e a direção é obrigada a procurar uma forma de corrigir as causas dessa saída (HIRSCHMAN, 1973HIRSCHMAN, Albert. Saída, voz e lealdade. Tradução de Angela de Assis Melim. São Paulo: Perspectiva, 1973., p. 16).

A saída é uma resposta tipicamente econômica às falhas organizacionais. Ela mobiliza as forças de mercado. Desse modo, “qualquer recuperação de uma empresa em declínio é cortesia da Mão Invisível, fruto não intencionado da decisão de mudança do cliente” (HIRSCHMAN, 1973HIRSCHMAN, Albert. Saída, voz e lealdade. Tradução de Angela de Assis Melim. São Paulo: Perspectiva, 1973., p. 26).

Pela via da voz, por seu turno,

os clientes da firma ou os membros da organização expressam sua insatisfação diretamente à direção ou a alguma autoridade, a uma autoridade à qual a direção esteja diretamente subordinada, ou através de amplos protestos gerais, dirigidos a quem estiver interessado em ouví-los [...] em consequência, a direção decide-se a identificar as causas e a procurar as possíveis soluções para a insatisfação de clientes e sócios (HIRSCHMAN, 1973HIRSCHMAN, Albert. Saída, voz e lealdade. Tradução de Angela de Assis Melim. São Paulo: Perspectiva, 1973., p. 16-17).

A voz é um meio tipicamente político de resposta ao declínio de desempenho, e Hirschman reconhece que seu conceito é, em certo sentido, mais “confuso”, uma vez que “pode ser graduado desde tímidos murmúrios até violentos protestos”. A voz requer a “articulação de opiniões e críticas pessoais” e não um “voto particular, ‘secreto’, no anonimato de um supermercado”. Em vez de contornar a situação e tratar o problema de forma indireta, a voz é “direta e objetiva” (HIRSCHMAN, 1973HIRSCHMAN, Albert. Saída, voz e lealdade. Tradução de Angela de Assis Melim. São Paulo: Perspectiva, 1973., p. 26).

Em suas formulações mais influentes, o neorrepublicanismo sempre esteve voltado à contenção da dominação pela potencialização da voz, quer mediante a estratégia do poder recíproco, quer mediante a estratégia da provisão constitucional5 5 Poder recíproco e provisão constitucional nomeiam duas modalidades distintas de minimização da dominação. Na primeira, a redução da dominação se dá mediante o empoderamento direto do agente dominado, facilitando-lhe recursos de organização e de poder para fazer frente à interferência arbitrária dos agentes dominantes. Aqui, os dominados defendem-se a si próprios. Na segunda, a redução se dá pela via legal e constitucional, com o poder público promovendo reformas e legislações que onerem substancialmente os custos da interferência arbitrária do agente dominante. Aqui, o Estado penaliza os agentes dominantes. Pettit sustenta que o neorrepublicanismo deveria tornar padrão a estratégia do poder constitucional. A razão disso é o seu manifesto ceticismo sobre a efetividade da estratégia de poder recíproco. Conforme argumenta, “o cenário em que não há qualquer provisão constitucional para a proteção universal, e cada um afirma-se na resistência individual, ainda se aproxima de uma guerra civil permanente” (PETTIT, 1997, p. 97). . Mas não há dúvida alguma de que a renda básica consiste em uma estratégia de saída para a minimização da dominação. Esse aspecto revela-se em sua plenitude nas relações de dominação no âmbito do mercado de trabalho6 6 Mas observe-se que estratégias de saída têm sido instituídas para minimizar outras modalidades de dominação. Um bom exemplo é a instituição do divórcio, que exerce papel decisivo para a minimização da dominação em relacionamentos matrimoniais abusivos. Ver, a propósito, Taylor (2017). . Se determinado indivíduo pode contar com uma renda em nível suficiente para satisfazer suas necessidades básicas, isto lhe oferece uma oportunidade plausível de saída de uma relação de trabalho arruinada pela dominação. De outro modo, ele não teria alternativa a não ser submeter-se à interferência arbitrária do patrão. Ser recipiente de uma renda básica facilitaria ao empregado escapar à dominação do patrão, exercendo sua liberdade como o “poder de dizer não” (WIDERQUIST, 2013WIDERQUIST, Karl. Independence, propertylessness and basic income: a theory of freedom as the power to say no. New York: Palgrave Macmillan, 2013.). Numa economia de mercado, haverá sempre a possibilidade de se vender a força de trabalho a outros empregadores. Contudo, os custos da saída de um emprego abusivo, em busca de outro mais satisfatório, seriam extremamente elevados, e mesmo proibitivos, caso o trabalhador não contasse com a independência material assegurada por uma renda básica, pois, como vimos, a dependência material é uma condição facilitadora da dominação.

Sem dúvida, o nível em que se estipula o valor da renda básica é decisivo. Nada impede que, em qualquer circunstância, uma pessoa troque sua liberdade como não dominação no mercado por qualquer outro bem (LOVETT, 2009LOVETT, Frank. Domination and distributive justice. The Journal of Politics, Malden, v. 71, n. 3, p. 817-830, 2009.). Todavia, os teóricos da não dominação preocupam-se apenas com a possibilidade de isso acontecer em uma situação em que a renda da pessoa que aliena sua liberdade esteja aquém do necessário para a satisfação de suas necessidades básicas. É certo que não há uma medida exata e universal para se definir esse nível desejável de renda. Contudo, como observou Frank Lovett:

Se estamos interessados em minimizar a dominação agregada, a conclusão é direta: a justiça como minimização da dominação exige que definamos a renda básica incondicional tão alta quanto possível, de modo a reduzir a dominação evitável ao nível mais baixo possível. Isso pode parecer implausivelmente generoso, mas devemos considerar as gerações futuras, assim como a nossa. Consequentemente, a renda básica “mais alta possível” deve ser entendida como significando a mais alta sustentável: em outras palavras, a geração atual deve escolher um nível de renda básica de modo que as gerações seguintes possam escolher o mesmo nível, ou mais alto (LOVETT, 2009LOVETT, Frank. Domination and distributive justice. The Journal of Politics, Malden, v. 71, n. 3, p. 817-830, 2009., p. 828).

Seja qual for o nível da renda básica efetivamente implementado em tal ou qual sociedade, os seus defensores neorrepublicanos começam a formar uma opinião majoritária sobre a importância de dois outros aspectos definidores desse instituto: a universalidade e a incondicionalidade. Quanto à universalidade, Philip Pettit enumera uma série de razões para “dar o direito à renda básica a todos e não apenas aos necessitados”. Em primeiro lugar, “um direito universal do tipo imaginado resistiria melhor à pressão eleitoral por mudança do que um direito atribuído conforme a necessidade”. Um direito universal representa “um baluarte mais arraigado e mais firme contra a dominação”. Além disso, a universalidade do benefício significa que “aqueles que dependem da renda básica [...] não terão que fazer valer seus direitos sob o fundamento de serem uma classe à parte”, ou seja, uma classe de “pessoas que dependem da boa vontade dos outros e são alvos mais fáceis de controle e dominação”. Por último,

um direito universal simboliza a igualdade fundamental de todos em relação às disposições coletivas do governo; apenas alguns dependerão da renda básica que todos recebem, mas todos podem ver que a renda existe e está a seu alcance, caso eles próprios passem por tempos difíceis (PETTIT, 2007PETTIT, Philip. A republican case to basic income? Basic Income Studies, [Online], v. 2, n. 2, p. 1-8, 2007., p. 5-6)7 7 É digno de nota que um princípio de justificação para esse pleito pela universalidade da renda básica já aparecia no projeto da “justiça agrária”, apresentado por Thomas Paine em 1797. A proposta, endereçada às autoridades da Revolução Francesa, defendia que todo cidadão, ao completar 21 anos, receberia uma determinada soma em dinheiro de modo que pudesse evitar a pobreza e iniciar uma vida independente e produtiva. Os recursos para tal deveriam provir de um imposto sobre a propriedade da terra. Em defesa da universalidade do benefício, Paine se expressa nos seguintes termos: “Propõe-se que os pagamentos, como já disse, sejam feitos a todos, ricos ou pobres. É melhor fazê-los para evitar qualquer distinção entre os indivíduos. Esses pagamentos são um direito que substitui a herança natural, a qual, justamente por ser um direito, pertence a qualquer homem, a despeito da propriedade que ele pode ter adquirido ou herdado. As pessoas que escolherem não receber esta renda podem depositá-la no fundo comum” (PAINE, 1797/2019, p. 51). .

A universalidade da renda básica favorece a igualdade relacional entre os cidadãos, que embasa a liberdade republicana. Como o direito não se limita a um público-alvo específico, sentimentos potencialmente discriminatórios são evitados, facilitando as condições para o êxito no que Pettit denominou “eyeball test”, mediante o qual é possível determinar “um limiar a partir do qual as pessoas deveriam desfrutar de igual liberdade como não dominação umas em relação às outras” (PETTIT, 2012PETTIT, Philip. On the people’s terms: a republican theory and model of democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 2012., p. 295). Se o direito à renda básica é universal, não circunscrito a uma classe específica de indivíduos, ela não lesiona o sentimento de igualdade, permitindo aos cidadãos “olharem uns aos outros nos olhos sem razão para medo ou deferência” (PETTIT, 2012PETTIT, Philip. On the people’s terms: a republican theory and model of democracy. Cambridge: Cambridge University Press, 2012., p. 47).

Tão importante quanto à universalidade da renda básica é a sua natureza incondicional. A corrente principal do neorrepublicanismo opõe-se às propostas que condicionam o recebimento da renda básica a determinadas contrapartidas, como é usual nas políticas de bem-estar tradicionais. Nos modelos tradicionais, os beneficiários precisam preencher certos requisitos, como estar abaixo de determinado nível de renda ou provar que, estando desempregados, continuam envidando esforços à procura de emprego8 8 No Reino Unido, por exemplo, como aponta Bidadanure, beneficiários de seguro-desemprego “podem perder seus benefícios se não se candidatarem a empregos suficientes todas as semanas; se faltarem a uma entrevista ou chegarem atrasados; se recusarem uma oferta de emprego; e se também forem declarados ‘aptos para o trabalho’. A condicionalidade é justificada principalmente pela avaliação de que o trabalho é bom para os indivíduos e necessário para sua comunidade” (BIDADANURE, 2019, p. 484). . Uma das preocupações dos neorrepublicanos é que a condicionalidade pode estimular comportamentos fraudulentos. Como observa Raventós:

A própria lógica de beneficiários e não beneficiários [...] incentivaria pequenas fraudes. Não seria difícil para as pessoas fingirem estar envolvidas em trabalho voluntário, trabalho doméstico, atividades de treinamento ou outras tarefas que lhes conferissem o direito de receber os rendimentos. (RAVENTÓS, 2007RAVENTÓS, Daniel. Basic income: the material conditions of freedom. London: Pluto Press, 2007., p. 148-149).

A proliferação de tais práticas traria graves prejuízos ao florescimento das virtudes necessárias a uma república bem ordenada. Esse tipo de comportamento seria improvável, porque desnecessário, com a incondicionalidade do benefício.

Outra - e mais importante - razão apresentada pelos neorrepublicanos na defesa da incondicionalidade da renda básica é o seu efeito contingente de bloquear a possibilidade de interferência arbitrária, presente sempre que se delega poder discricionário às agências estatais. Sendo desnecessárias quaisquer modalidades de triagem e checagem inerentes ao estabelecimento de condicionalidades, não há sequer justificativa para constituir agências estatais para tais finalidades. O cidadão estaria dispensado de se submeter à discricionaridade e à potencial interferência arbitrária de agentes estatais do bem-estar social. A incondicionalidade da renda básica contribui para a redução do dominium, ao mesmo tempo em que busca afastar o risco do imperium9 9 Pettit argumenta que a liberdade republicana pode ser comprometida por duas modalidades de dominação: o dominium e o imperium. A primeira se refere às relações de dominação que cidadãos ou grupos de cidadãos estabelecem entre si. A segunda se refere à dominação dos governantes sobre os cidadãos. Embora o estado republicano tenha como meta fundamental à redução da dominação associada ao dominium, esta meta não é perseguida sem riscos. “De nada servirá estabelecer instituições ou tomar iniciativas que reduzam a dominação associada ao dominium se esses mesmos instrumentos abrem espaço para o tipo de dominação associada ao imperium; o que é ganho de um lado será perdido, e talvez mais do que perdido, do outro” (PETTIT, 1997, p. 173). .

A completa ausência de condicionalidades para o recebimento da renda básica é defendida pelos neorrepublicanos também com base na constatação de que há inúmeras formas de trabalhos voluntários e não remunerados, porém de indiscutível utilidade social e relevantes para o fortalecimento das virtudes cívicas necessárias a uma república bem ordenada. Uma renda básica atribuída como direito incondicional a cada cidadão auxiliaria no reconhecimento social dessas formas de trabalho. Talvez o principal exemplo seja o trabalho realizado majoritariamente pelas mulheres nos cuidados domésticos e da prole. Como observa Carole Pateman, “se uma sociedade genuinamente democrática em que a liberdade das mulheres é tão importante quanto a dos homens continua sendo uma aspiração, é difícil ver que haja um substituto para uma renda básica incondicional” (PATEMAN, 2004PATEMAN, Carole. Democratizing citizenship: some advantages of basic income. Politics and Society, Thousand Oaks, v. 32, n. 1, p. 89-105, 2004., p. 103).

Em suma, o caso neorrepublicano em favor da renda básica apoia-se na tese de que a independência material de cada cidadão é um dos pré-requisitos do exercício das liberdades básicas e um eficaz antídoto à dominação. Torná-la um direito universal e não um benefício para setores específicos contribui para afastar estigmas e a eventual degradação da autoestima dos beneficiários, reforçando, por outro lado, a igualdade relacional indispensável ao cultivo das virtudes cívicas e à boa ordem republicana. Torná-la incondicional, por seu turno, evita os dispendiosos, discricionários e potencialmente arbitrários meios de testagem próprios das burocracias dos estados de bem-estar tradicionais, além de inibir comportamentos fraudulentos e de promover o reconhecimento dos trabalhos carentes de remuneração, mas socialmente relevantes, a exemplo do trabalho social voluntário e, sobretudo, do trabalho invisível das mulheres no âmbito doméstico.

Objeções republicanas à renda básica

Os argumentos para a integração da política de renda básica universal e incondicional na economia política republicana têm sofrido objeções formuladas com base em princípios e valores do próprio republicanismo. São duas as principais objeções republicanas à renda básica. Ambas decorrem da percepção de dois tipos de déficits gerados pela mobilização de estratégias de saída: o déficit de reciprocidade e o déficit de ação coletiva.

Os críticos do déficit de reciprocidade concentram as suas análises nos riscos éticos provenientes da natureza incondicional da renda básica. Conforme Stuart White, “provavelmente, o mais básico desafio ético [...] aos proponentes da renda básica incondicional [...] é que a renda básica aparentemente permite às pessoas viverem [...] de maneiras que violam o dever da reciprocidade” (WHITE, 2006WHITE, Stuart. Reconsidering the exploitation objection to basic income. Basic Income Studies, [Online], v. 1, n. 2, p. 1-17, 2006., p. 2). Para compreendermos a apreensão dos neorrepublicanos em relação a esses riscos, é preciso ter em mente que a liberdade, embora central, não é o único valor constitutivo do republicanismo. Em algumas de suas vertentes, o republicanismo confere tanto relevo ao valor das virtudes cívicas quanto ao valor da liberdade, postulando mesmo uma equalização entre participação cívica e liberdade. A ênfase na virtude cívica, típica das versões cívico-humanistas, neo-atenienses e comunitaristas do republicanismo (POCOCK, 1975POCOCK, John. The Machiavellian moment: Florentine political thought and the Atlantic republican tradition. Princeton, N. J.: Princeton University Press, 1975.; MACINTYRE, 2001MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. Bauru: Edusc, 2001.; SANDEL, 1996SANDEL, Michael. Democracy’s discontent: America in search of a public philosophy. Cambridge, M. A.: Harvard University Press, 1996.), sugere um nível de envolvimento do indivíduo na produção do bem comum muito mais intenso que aquele requerido quando a ênfase se dá, como no caso dos neorromanos (SKINNER, 1999SKINNER, Quentin. A liberdade antes do liberalismo. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora da Unesp, 1999.; PETTIT, 1997PETTIT, Philip. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford: Oxford University Press, 1997.), no status jurídico-político da liberdade como não dominação. Assim, a hipótese de um indivíduo desfrutar de um bem garantido incondicionalmente pela comunidade, furtando-se de oferecer uma contrapartida em trabalho para o qual está apto é interpretada como uma espécie de “abuso de direitos”, um “direito de explorar” conducente ao “parasitismo” (DONSELAAR, 2008DONSELAAR, Gijs van. The right to exploit: parasitism, scarcity, basic income. Oxford: Oxford University Press, 2008.).

Um dos principais críticos neorrepublicanos da incondicionalidade da renda básica define o princípio da reciprocidade da seguinte maneira: “aqueles que desejam desfrutar dos benefícios econômicos da cooperação social têm a obrigação correspondente de fazer uma contribuição produtiva, se puderem, para a comunidade cooperativa que fornece esses benefícios” (WHITE, 1997WHITE, Stuart. Liberal equality, exploitation, and the case for a basic income. Political Studies, Oxford, v. 45, n. 2, p. 312-326, 1997., p. 317). A intuição fundamental subjacente a tal princípio sugere que, dado um esquema de cooperação em que os indivíduos participam arcando com os custos de uma contribuição, seria injusto admitir que alguém apto a contribuir desfrutasse dos benefícios da cooperação sem de fato contribuir. O indivíduo beneficiário, mas não contribuinte, que decidisse, por exemplo, abandonar, por completo, o trabalho e aproveitar sua renda básica para se entregar, exclusivamente, ao lazer estaria “explorando” seus concidadãos e tratando-os “como se eles fossem apenas instrumentos de seu próprio bem-estar” (WHITE, 1997WHITE, Stuart. Liberal equality, exploitation, and the case for a basic income. Political Studies, Oxford, v. 45, n. 2, p. 312-326, 1997., p. 318). Os defensores de uma república solidária teriam boas razões para se preocuparem com a potencial difusão de comportamentos oportunistas. Não apenas pela corrupção inerente ao próprio comportamento cegamente autointeressado, mas também por suas consequências mais difusas. Assim, “se os objetivos igualitários são perseguidos de uma forma que não dá atenção às preocupações com oportunismo e parasitismo”, há “um risco claro de que as instituições igualitárias em questão provocarão sentimentos de alienação e ressentimento” e acabarão por debilitar o “próprio espírito de solidariedade do qual dependem” (WHITE, 2003bWHITE, Stuart. Fair reciprocity and basic income. In: REEVE, Andrew; WILLIAMS, Andrew (ed.). Real libertarianism assessed. London: Palgrave Macmillan, 2003b. p. 136-160., p. 141).

Além do déficit de reciprocidade, associado à incondicionalidade da renda básica, alguns teóricos republicanos criticam o déficit de ação coletiva inerente à prioridade dada à estratégia de saída sobre o fortalecimento da “voz” para o combate à dominação, especialmente nas relações entre patrões e empregados. Uma linha de crítica republicana ao suposto incremento do “poder de saída” dos trabalhadores garantidos pela renda básica parte da constatação de que, nas condições reais das economias capitalistas de nossos dias, que conferem imenso poder discricionário a empregadores, o efetivo poder de saída é meramente ilusório, algo próximo a uma “miragem” (BIRNBAUM; WISPELAERE, 2016BIRNBAUM, Simon; WISPELAERE, Jurgen de. Basic income in the capitalist economy: the mirage of “exit” from employment. Basic Income Studies, [Online], v. 11, n. 1, p. 61-74, 2016.). O poder de saída só teria efetividade para conter a dominação caso o trabalhador que exercesse sua opção de saída de uma relação de trabalho inibidora de sua liberdade contasse com alternativas efetivas de inserir-se subsequentemente em uma relação de trabalho livre de dominação. Caso contrário, “mesmo se a saída fosse sem custos, as alternativas de trabalho para os trabalhadores podem ser tão despóticas, não regulamentadas e arbitrárias quanto seu trabalho atual” (GONZALES-RICOY, 2014GONZALES-RICOY, Ingo. The republican case for workplace democracy. Social Theory and Practice, Tallahassee, v. 40, n. 2, p. 232-254, 2014., p. 241). Mas esta é a situação da esmagadora maioria dos trabalhadores, cujo leque de opções efetivas consiste numa variada gama de postos de trabalho precarizados. Ou seja, em virtude “das grandes desigualdades características do capitalismo do mundo real, apenas uma pequena minoria pode escolher sem custos sair de uma empresa quando discorda de suas decisões”. Já a maioria dos empregados, em contraste, “pareceria tão fortemente ligada às suas empresas quanto a maioria dos cidadãos está vinculada aos seus estados” (BREEN, 2015BREEN, Keith. Freedom, republicanism, and workplace democracy. Critical Review of International Social and Political Philosophy, Essex, v. 18, n. 4, p. 470-485, 2015., p. 473).

Os críticos do poder de saída prometido pela renda básica põem em relevo a natureza estrutural da dominação dos patrões sobre os trabalhadores. O traço mais característico e imediatamente visível dessa estrutura de dominação manifesta-se no caráter elusivo, na incompletude do contrato de trabalho. Como observa Elisabeth Anderson, o poder de fato para negociar os termos de um contrato de trabalho é um apanágio de poucos trabalhadores. “Apenas trabalhadores de elite [...] e trabalhadores representados por sindicatos, desfrutam de oportunidades significativas para negociar seus contratos” (ANDERSON, 2015ANDERSON, Elizabeth. Equality and freedom on workplace democracy: recovering republican insights. Social Philosophy & Policy, Cambridge, v. 31, n. 2, p. 48-69, 2015., p. 50). Como regra geral, é virtualmente impossível detalhar as especificidades de um contrato de trabalho ao ponto de eliminar a discricionaridade do patrão, que é um aspecto constitutivo, estrutural, das economias capitalistas. Nenhuma estratégia de saída, nem mesmo a renda básica, alteraria essa realidade que está na base da dominação no local de trabalho. O fato é que

a natureza indefinida do contrato de trabalho é particularmente propensa a abusos devido à coordenação contínua, estreita e gerida hierarquicamente, exigindo subordinação pessoal estendida a chefes específicos. Combinado com o tipo de emprego no regime de laissez-faire, o caráter indefinido do contrato de trabalho pode levar - e muitas vezes leva - ao abuso do empregador, especialmente em relação a trabalhadores facilmente substituíveis na base da hierarquia da empresa (ANDERSON, 2015ANDERSON, Elizabeth. Equality and freedom on workplace democracy: recovering republican insights. Social Philosophy & Policy, Cambridge, v. 31, n. 2, p. 48-69, 2015., p. 60).

Para a grande maioria de trabalhadores, o mecanismo de saída da renda básica pode ser não apenas ineficaz, mas até contraproducente em relação ao objetivo de impedir ou mesmo apenas mitigar a dominação a que estão expostos em precárias situações de trabalho. Para a efetividade de ameaça de saída que a renda básica oferece como recurso a esses trabalhadores, faltaria uma característica essencial: a credibilidade. No que concerne ao objetivo de reduzir a dominação nas relações de trabalho, uma ameaça vazia (não credível) pode ser pior que nenhuma ameaça de saída (BIRNBAUM; WISPELAERE, 2020BIRNBAUM, Simon; WISPELAERE, Jurgen de. Exit strategy or exit trap? Basic income and the ‘power to say no’ in the age of precarious employment. Socio-Economic Review, Oxford, v. 0, n. 0, p. 1-19, 2020.). Uma das razões para isso reside no fato de que a renda básica promove a individualização da resistência à dominação. Estratégias de saída competem, em algum nível, com as estratégias baseadas na voz. Se a ameaça de saída é credível, ela pode representar um meio de fortalecimento da voz. O problema, como indicado pelos republicanos atentos à dimensão estrutural da dominação, é que, carecendo de credibilidade, o resultado líquido das estratégias de saída viabilizadas pela renda básica seria apenas o enfraquecimento da voz dos trabalhadores, decorrente do abandono das formas de ação coletiva que historicamente têm servido para aumentar o poder relativo da classe trabalhadora frente aos capitalistas. Como argumenta Gourevitch, “como meio de emancipar os trabalhadores, a renda básica é insuficiente, na verdade potencialmente autodestrutiva, porque se concentra principalmente em aumentar o poder de barganha individual dos trabalhadores” (GOUREVITCH, 2016GOUREVITCH, Alex. The limits of a basic income: means and ends of workplace democracy. Basic Income Studies, [Online], v. 11, n. 1, p. 1-12, 2016., p. 7).

Tudo somado, os críticos republicanos da renda básica sugerem que as formas mais eficazes de combater a dominação nas relações de trabalho passam pelas estratégias de empoderamento da voz dos agentes dominados, não por estratégias de saída da relação de dominação, como se dá com a renda básica. Isso porque incentivar o poder de barganha individual do trabalhador é inútil para “promover a sensação de que ser dominado e explorado é uma posição de classe compartilhada por trabalhadores que podem perseguir melhor seus interesses coletivamente do que individualmente” (GOUREVITCH, 2016GOUREVITCH, Alex. The limits of a basic income: means and ends of workplace democracy. Basic Income Studies, [Online], v. 11, n. 1, p. 1-12, 2016., p. 9). O fortalecimento da voz dos trabalhadores para enfrentar a dominação dos patrões compreende duas estratégias distintas, porém não incompatíveis. A primeira promove a democratização do ambiente de trabalho por meio de leis e regulamentações que aumentem os custos do exercício da interferência arbitrária dos patrões sobre os trabalhadores (HSIEH, 2005HSIEH, Nien-hê. Rawlsian justice and workplace republicanism. Social Theory and Practice, Tallahassee, v. 31, n. 1, p. 115-142, 2005.; ANDERSON, 2015ANDERSON, Elizabeth. Equality and freedom on workplace democracy: recovering republican insights. Social Philosophy & Policy, Cambridge, v. 31, n. 2, p. 48-69, 2015.). Esta via provê “garantias institucionais para os trabalhadores serem capazes de contestar as diretivas gerenciais como parte do processo decisório interno aos empreendimentos econômicos” (HISIEH, 2005, p. 130). Neste caso, o fortalecimento da voz dos trabalhadores obedece à lógica da redução da dominação derivada da estratégia da provisão constitucional (ver nota 4).

A segunda via, tributária de vertentes mais radicais da tradição republicana, opera a redução da dominação recorrendo à estratégia do poder recíproco. Ela se manifesta de modo paradigmático no atual ressurgimento das propostas de ampliação da participação dos trabalhadores no local de trabalho, preferencialmente pela substituição do controle privado das empresas por cooperativistas de trabalhadores (SANDEL, 1996SANDEL, Michael. Democracy’s discontent: America in search of a public philosophy. Cambridge, M. A.: Harvard University Press, 1996.; GOUREVITCH, 2015GOUREVITCH, Alex. From slavery to cooperative commonwealth. Cambridge: Cambridge University Press, 2015.; GONZALES-RICOY, 2014GONZALES-RICOY, Ingo. The republican case for workplace democracy. Social Theory and Practice, Tallahassee, v. 40, n. 2, p. 232-254, 2014.). Como defende Gourevitch, recuperando aportes do labor republicanism, uma vertente do republicanismo radical estadunidense do século XIX, o combate à dominação no local de trabalho exige dos trabalhadores a participação “em organizações políticas, sindicatos industriais e cooperativas autofinanciadas para transformar a ordem social e econômica” (GOUREVITCH, 2016GOUREVITCH, Alex. The limits of a basic income: means and ends of workplace democracy. Basic Income Studies, [Online], v. 11, n. 1, p. 1-12, 2016., p. 9). Embora a alternativa baseada na estratégia da provisão constitucional também requeira a capacidade de organização e de ação coletiva dos trabalhadores, esses requisitos são mais salientes na segunda alternativa, que depende de modo decisivo do fortalecimento da consciência de classe dos trabalhadores.

Considerações finais

Como os defensores da integração da política de renda básica na economia política republicana podem reagir às críticas formuladas segundo princípios caros à própria tradição republicana? Qual a força das objeções baseadas no déficit de reciprocidade e no déficit de ação coletiva da renda básica? Afinal, uma economia política orientada pelo ideal da não dominação deveria incorporar esta e outras estratégias de saída ou, ao contrário, deveria repudiá-las, concentrando o combate à dominação na articulação e potencialização da voz dos agentes econômicos dominados?

É preciso reconhecer que as questões acima não são de fácil e rápida resposta. Enfrentá-las adequadamente exigiria um aprofundamento da pesquisa e um espaço maior do que disponho nesta seção conclusiva. Em parte, a pertinência das críticas só pode ser avaliada com pesquisas empíricas sobre os experimentos de renda básica já realizados e atualmente em curso. Porém, no plano especulativo, o mesmo em que são formuladas as críticas, creio haver motivos para sustentar a hipótese da renda básica como o instituto principal na constituição do mínimo cívico da economia política republicana, que assegura que ninguém seja tão pobre que necessite vender-se a outro.

Não se trata de negar o valor das críticas, fazendo do debate um jogo de soma-zero entre posições antagônicas. Vale, aqui, o alerta de Maquiavel de que “em todas as coisas humanas quem bem examinar verá que nunca se pode anular um inconveniente sem que surja outro [...] nunca há nada que seja de todo nítido e sem suspeitas” (MAQUIAVEL, 1531/2007MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. São Paulo: Martins Fontes, 2007. (Obra original publicada postumamente em 1531)., p. 30). Mas, se as objeções republicanas à renda básica não podem ser integral e liminarmente refutadas, elas podem ser tomadas por legítimas sem serem decisivas, ou seja, sem que resultem em justificativa da exclusão da renda básica do prospecto de uma economia política do neorrepublicanismo. A hipótese subjacente a tal conclusão é que os ganhos que a renda básica entrega em termos de liberdade como não dominação mais do que compensam os eventuais prejuízos no princípio da reciprocidade e no estímulo à ação coletiva.

Mesmo um teórico como Stuart White, um dos primeiros neorrepublicanos a esgrimir o princípio da reciprocidade contra a renda básica, admite há algum tempo que a sua objeção já não lhe parece tão decisiva quanto lhe parecia antes. Ele não recua até o abandono da objeção. Porém, “uma objeção pode ser válida sem ser decisiva”. E a razão disso é que “também há custos éticos associados a condicionar o apoio financeiro ao trabalho ou à disposição para trabalhar”. Sopesando os inconvenientes, White conclui, corretamente a meu ver, que os custos da condicionalidade “são moralmente mais preocupantes do que o afastamento da reciprocidade que a renda básica permite”. No fim das contas, “alguma falha de reciprocidade parece um preço que vale a pena pagar, eticamente, para se livrar ou reduzir significativamente a vulnerabilidade e a dominação” (JOURDAN, 2013JOURDAN, Stanislas. Interview with Stuart White: an objection can be valid without being decisive. Basic Income Earth Network, [Online], 22 Sept. 2013. Disponible at: Disponible at: https://basicincome.org/news/2013/09/stuart-white-an-objection-can-be-valid-without-being-decisive/ . Accessed on: 22 Mar. 2021.
https://basicincome.org/news/2013/09/stu...
, s. p.). Isso explica o esforço recente do autor para neutralizar às críticas à suposta inefetividade do poder de saída conferido aos trabalhadores pela renda básica (WHITE, 2020WHITE, Stuart. Freedom, exit and basic income. In: ELEVELD, Anja; KAMPEN, Thomas; ARTS, Josien (ed.). Welfare to work in contemporary European states: legal, sociological and philosophical perspectives on justice and domination. Chicago: Policy Press, 2020, p. 307-330.).

Podemos ainda acrescentar que a violação do princípio da reciprocidade seria realmente um problema para a ordem republicana se a estratégia de saída consubstanciada na renda básica levasse a uma espécie de massificação do comportamento oportunista. Mas isso parece estar fora de questão. Parece provável que um número limitado de indivíduos opte por uma renda que supra exclusivamente suas necessidades básicas, retirando-se em caráter definitivo do mercado de trabalho para dedicar-se exclusivamente ao lazer, à maneira do surfista de Malibu imaginado por Philippe van Parijs (2014)PARIJS, Philippe van. Por que os surfistas devem ser alimentados: o argumento liberal em defesa de uma renda básica incondicional. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília, n. 15, p. 229-264, 2014.. E parece ainda mais provável que a esmagadora maioria dos cidadãos recipientes da renda básica tomaria outro rumo. Se não por razões éticas ditadas pelo princípio da reciprocidade, certamente por outras razões: porque suas carreiras e seus trabalhos são fatores importantes de autoestima e autorrealização ou porque - e este pode bem ser o caso mais comum - eles desejam realizar um padrão de consumo superior ao que lhe permite a renda básica. Para essas pessoas, mesmo a dedicação do tempo livre ao lazer tende, na maioria dos casos, a exigir mais recursos do que o mínimo para a satisfação de suas necessidades básicas. Paradoxalmente, nas sociedades capitalistas contemporâneas, a violação do princípio republicano da reciprocidade, ao menos no tocante à geração da riqueza material, é freada pela busca de níveis de renda superiores ao básico para atender à crescente propensão ao consumo das massas. A hipótese de uma saída massiva e definitiva dos trabalhadores do mercado de trabalho, motivada pela garantia da renda básica, é tão implausível que, na prática, neutraliza-se a objeção baseada no déficit de reciprocidade.

Resta a preocupação com os eventuais efeitos negativos da renda básica na ação coletiva dos trabalhadores. Aqui também parece haver um receio exagerado dos críticos associados às vertentes mais radicais do republicanismo. O principal temor desses críticos é o de que, por ser uma estratégia de saída, a renda básica impacte negativamente nos mecanismos clássicos de articulação e fortalecimento da voz dos trabalhadores, levando ao declínio de sindicatos e associações coletivas. A suposição é a de que a saída funcionaria como substituta da voz. Esta não é uma preocupação irrelevante quando se têm em mente justificativas neorrepublicanas para a renda básica semelhantes à apresentada por Robert Taylor, para quem os sindicatos devem ser desencorajados por representarem potencial ameaça à liberdade dos empregadores e dos próprios trabalhadores associados (TAYLOR, 2017TAYLOR, Robert. Exit left: markets and mobility in republican thought. Oxford: Oxford University Press, 2017., 2019TAYLOR, Robert. Delaborating republicanism. Public Affairs Quarterly, Bowling Green, v. 33, n. 4, p. 265-280, 2019. ). Esse “republicanismo de mercado”, como observou um de seus críticos (SPITZ, 2017SPITZ, Jean-Fabien. Les impasses du republicanisme de marché. Philosophiques, Québec, v. 44, n. 2, p. 383-399, 2017.), revela uma forte tendência a tomar a saída como substituta da voz. É justificável que tal conclusão cause desconforto aos neorrepublicanos inspirados nas vertentes mais radicais da tradição - para estes, a única saída seria o fortalecimento da voz.

Mas aos republicanos defensores da renda básica resta o argumento de que saída e voz não são mecanismos mutuamente excludentes. Como ensinou Albert Hirschman, a saída pode, em determinadas circunstâncias, ser um fator de potencialização da voz. Se é verdade que “a saída reduz a disposição ao desenvolvimento e uso do mecanismo da voz”, ela, por outro lado, “aumenta a capacidade de usá-lo com eficiência” (HIRSCHMAN, 1973HIRSCHMAN, Albert. Saída, voz e lealdade. Tradução de Angela de Assis Melim. São Paulo: Perspectiva, 1973., p. 87). A eficácia da voz depende fundamentalmente do grau de credibilidade da ameaça de saída. Assim, “quando se espera o máximo de efetividade da voz, é necessário que se acredite na ameaça de saída” (HIRSCHMAN, 1973HIRSCHMAN, Albert. Saída, voz e lealdade. Tradução de Angela de Assis Melim. São Paulo: Perspectiva, 1973., p. 87). Em linha com os neorrepublicanos defensores das políticas de renda básica, acredito que um dos principais efeitos de tais políticas é o incremento dos níveis de ameaça credível de saída de relações de dominação, especialmente no âmbito do mercado de trabalho, o que acaba contribuindo tanto para a potencialização da voz dos dominados como para a ampliação da liberdade republicana.

Referências

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  • 2
    As palavras do senador norte-americano Daniel Patrick Moynihan, referindo-se aos experimentos do imposto de renda negativo, uma forma embrionária de renda básica testada nos EUA até meados dos anos 1970, servem como ilustração desse descrédito: “É aparentemente calamitoso. Elevou a dissolução de famílias em algo em torno de 70%, diminuiu o emprego etc. Este é o atual estado da ciência” (apud WIDERQUIST, 2019WIDERQUIST, Karl. Three waves of basic income support. In: TORRY, Malcolm (ed.) The Palgrave International Handbook of Basic Income. New York: Palgrave, 2019. p. 31-44., p. 313).
  • 3
    Essa visão da liberdade é retomada no Renascimento italiano por pensadores como Maquiavel, desempenhando, no século XVII, importante papel na luta do republicanismo inglês contra a Coroa, como testemunham os legados de pensadores como Harrington, Milton e Sidney (SKINNER, 1999SKINNER, Quentin. A liberdade antes do liberalismo. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora da Unesp, 1999.). Depois disso, ela foi mobilizada no século XVIII por autores tão diversos entre si como Rousseau e Montesquieu, além de se fazer presente nos discursos de legitimação da revolução da independência e da constitucionalização dos Estados Unidos.
  • 4
    White define o “mínimo cívico” como “os direitos e obrigações concretas da cidadania econômica, incorporados em instituições e políticas específicas, necessário para tornar a economia de mercado aceitavelmente (embora não absolutamente) justa” (WHITE, 2003aWHITE, Stuart. The civic minimum: on the rights and obligations of economic citizenship. Oxford: Oxford University Press, 2003a., p. 3).
  • 5
    Poder recíproco e provisão constitucional nomeiam duas modalidades distintas de minimização da dominação. Na primeira, a redução da dominação se dá mediante o empoderamento direto do agente dominado, facilitando-lhe recursos de organização e de poder para fazer frente à interferência arbitrária dos agentes dominantes. Aqui, os dominados defendem-se a si próprios. Na segunda, a redução se dá pela via legal e constitucional, com o poder público promovendo reformas e legislações que onerem substancialmente os custos da interferência arbitrária do agente dominante. Aqui, o Estado penaliza os agentes dominantes. Pettit sustenta que o neorrepublicanismo deveria tornar padrão a estratégia do poder constitucional. A razão disso é o seu manifesto ceticismo sobre a efetividade da estratégia de poder recíproco. Conforme argumenta, “o cenário em que não há qualquer provisão constitucional para a proteção universal, e cada um afirma-se na resistência individual, ainda se aproxima de uma guerra civil permanente” (PETTIT, 1997PETTIT, Philip. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford: Oxford University Press, 1997., p. 97).
  • 6
    Mas observe-se que estratégias de saída têm sido instituídas para minimizar outras modalidades de dominação. Um bom exemplo é a instituição do divórcio, que exerce papel decisivo para a minimização da dominação em relacionamentos matrimoniais abusivos. Ver, a propósito, Taylor (2017)TAYLOR, Robert. Exit left: markets and mobility in republican thought. Oxford: Oxford University Press, 2017..
  • 7
    É digno de nota que um princípio de justificação para esse pleito pela universalidade da renda básica já aparecia no projeto da “justiça agrária”, apresentado por Thomas Paine em 1797. A proposta, endereçada às autoridades da Revolução Francesa, defendia que todo cidadão, ao completar 21 anos, receberia uma determinada soma em dinheiro de modo que pudesse evitar a pobreza e iniciar uma vida independente e produtiva. Os recursos para tal deveriam provir de um imposto sobre a propriedade da terra. Em defesa da universalidade do benefício, Paine se expressa nos seguintes termos: “Propõe-se que os pagamentos, como já disse, sejam feitos a todos, ricos ou pobres. É melhor fazê-los para evitar qualquer distinção entre os indivíduos. Esses pagamentos são um direito que substitui a herança natural, a qual, justamente por ser um direito, pertence a qualquer homem, a despeito da propriedade que ele pode ter adquirido ou herdado. As pessoas que escolherem não receber esta renda podem depositá-la no fundo comum” (PAINE, 1797/2019PAINE, Thomas. Justiça agrária. Tradução de Daniel Gomes de Carvalho. Jundiaí: Paco Editorial, 2019. (Obra original publicada em 1797)., p. 51).
  • 8
    No Reino Unido, por exemplo, como aponta Bidadanure, beneficiários de seguro-desemprego “podem perder seus benefícios se não se candidatarem a empregos suficientes todas as semanas; se faltarem a uma entrevista ou chegarem atrasados; se recusarem uma oferta de emprego; e se também forem declarados ‘aptos para o trabalho’. A condicionalidade é justificada principalmente pela avaliação de que o trabalho é bom para os indivíduos e necessário para sua comunidade” (BIDADANURE, 2019BIDADANURE, Juliana. The political theory of basic income. Annual Review of Political Science, Palo Alto, v. 22, p. 481-501, 2019., p. 484).
  • 9
    Pettit argumenta que a liberdade republicana pode ser comprometida por duas modalidades de dominação: o dominium e o imperium. A primeira se refere às relações de dominação que cidadãos ou grupos de cidadãos estabelecem entre si. A segunda se refere à dominação dos governantes sobre os cidadãos. Embora o estado republicano tenha como meta fundamental à redução da dominação associada ao dominium, esta meta não é perseguida sem riscos. “De nada servirá estabelecer instituições ou tomar iniciativas que reduzam a dominação associada ao dominium se esses mesmos instrumentos abrem espaço para o tipo de dominação associada ao imperium; o que é ganho de um lado será perdido, e talvez mais do que perdido, do outro” (PETTIT, 1997PETTIT, Philip. Republicanism: a theory of freedom and government. Oxford: Oxford University Press, 1997., p. 173).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    25 Jan 2021
  • Aceito
    09 Mar 2021
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