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O crime é político: elementos teóricos para uma análise neoinstitucionalista das milícias no Rio de Janeiro

Crime is political: theoretical elements for a neoinstitutional analysis of paramilitary groups in Rio de Janeiro

El crimen es político: elementos teóricos para un análisis neo-institucionalista de las milicias em Rio de Janeiro

Resumo:

O crime organizado depende de permissões de agentes estatais para funcionar. As milícias, nosso objeto específico, vão além da permissividade do Estado e são compostas diretamente pelas instituições estatais. Mas, do ponto de vista da ciência política, o que é o crime organizado ainda não está claro. Nós entendemos a natureza das milícias como essencialmente política e que envolve disputas políticas com instituições estatais. A partir da teoria neoinstitucionalista, notadamente as linhas criativa e histórica, mesclamos explicações do processo de institucionalização das milícias por duas vias: a institucionalização através de uma autoridade prática, isto é, uma legitimidade construída pelas milícias através da sua atuação no campo da segurança pública nos territórios do Rio de Janeiro; o legado institucional dos grupos de extermínio como definidor da sua materialização.

Palavras-chave:
milícias; crime organizado; neoinstitucionalismo; política armada; política eleitoral criminalizada

Abstract:

Organized crime relies on the permission of state agents to operate. Paramilitary groups, our specific focus, are not just permitted by the state, but are directly linked to state institutions. The definition of organized crime is, however, still unclear for political scientists. In this article, we understand paramilitary groups to be essentially political, involving political disputes with state institutions. Drawing from neo-institutional theory, particularly creative and historical approaches, we explain the institutionalization of paramilitary groups as occurring through two pathways: through practical authority, meaning the construction of paramilitary group legitimacy through their involvement in public security within the territories of Rio de Janeiro; and the institutional legacy of death squads as a defining factor in their materialization.

Keywords:
paramilitary groups; organized crime; neoinstitutionalism; armed politics; criminalized electoral politics

Resumén:

El crimen organizado depende de las autorizaciones de agentes estatales para operar. Las milicias, nuestro enfoque específico, van más allá de la permisividad estatal y están directamente compuestas por instituciones estatales. Sin embargo, desde la perspectiva de la ciencia política, aún no está claro qué es el crimen organizado. Percibimos la naturaleza de las milicias como esencialmente política, implicando disputas políticas con las instituciones estatales. Basándonos en la teoría neo-institucional, en particular en las líneas creativas e históricas, integramos explicaciones del proceso de institucionalización de las milicias a través de dos vías: institucionalización a través de una autoridad práctica, es decir, legitimidad construida por las milicias a través de su participación en la seguridad pública en los territorios de Río de Janeiro; el legado institucional de los grupos de exterminio como factor definitorio de su materialización.

Palabras clave:
milicias; crimen organizado; neoinstitucionalismo; política armada; política electoral criminalizada

Introdução

Sem Estado não há crime organizado! Essa constatação não é nova e parte do entendimento de que o crime organizado depende de permissões de agentes estatais para funcionar. As milícias, objeto mais específico desse artigo, vão além apenas da permissividade do Estado e são compostas e nascidas diretamente das instituições estatais, as polícias. O caráter político do crime organizado (e das milícias) não é ignorado por especialistas e pela opinião pública. Nas eleições de 2022, ascenderam acusações que ligavam o então presidente da República, Jair Bolsonaro, e sua família, às milícias. Há, inclusive, um livro de Bruno Paes Manso (2020)MANSO, Bruno Paes. A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020. que denota a ligação, anos antes impensável, entre políticos de nível nacional com o crime organizado.

Apesar da sua forma fortemente organizada e do seu caráter essencialmente político, atestado pela sua participação em processos eleitorais (Lins, 2022LINS, Igor N. A geografia eleitoral das milícias: um estudo exploratório dos candidatos à Câmara Municipal do Rio de Janeiro. 2022. 116 f. Dissertação (Mestrado em Ciência Política) - Universidade de Brasília, Brasília, 2022.; Arias, 2013ARIAS, Enrique Desmond. The impacts of differential armed dominance of politics in Rio de Janeiro, Brazil. Studies in Comparative International Development, v. 48, n. 3, p. 263-284, 2013.; Trudeau, 2022TRUDEAU, Jessie. How criminal governance undermines elections. APSA Preprints, p. 1-65, 2022. [version 3].; Albarracín, 2018ALBARRACÍN, Juan. Criminalized electoral politics in Brazilian urban peripheries. Crime, Law and Social Change, v. 69, p. 553-575, 2018.), a violência e o crime organizado passaram praticamente desapercebidos pela maior parte das pesquisas na ciência política brasileira nos últimos anos - salvos os estudos sobre violência política.

Nós entendemos que a natureza das milícias é essencialmente política e envolve disputas políticas com instituições do Estado (as polícias, outros órgãos reguladores estatais e políticos) pela legitimidade no campo da segurança pública e na gestão da(s) cidade(s). A violência e o ecossistema da economia criminal são mercadorias políticas e seu controle, além do uso estratégico, delimita as formas de ação política na cidade. Como destacou Barnes (2017)BARNES, Nicholas. Criminal politics: an integrated approach to the study of organized crime, politics, and violence. Perspectives on Politics, v. 15, n. 4, p. 967-987, 2017., além da necessidade de estudos empíricos sobre o tema, falta vocabulário na teoria política para lidar com a complexidade da interação entre o Estado, o crime organizado e a política, em termos eleitorais ou não. O crime organizado emerge como ator que compete com as instituições para a construção do espaço público e do próprio Estado, na medida em que captura servidores públicos e a infraestrutura estatal.

Nós enquadramos as milícias enquanto uma instituição política, de maneira desagregada, como atores políticos que transitam entre a formalidade e a informalidade. A governança criminal também regula as relações políticas. A partir do neoinstitucionalismo, notadamente o criativo e o histórico, mesclamos explicações do processo de institucionalização das milícias por duas vias: a institucionalização por meio da autoridade prática, construída pelas milícias com a atuação no campo da segurança pública nos territórios do Rio de Janeiro; e o legado institucional dos grupos de extermínio como definidor da sua materialização no momento pós-recessão democrática.

Na última seção, argumentamos que as milícias adotam estratégias de ação política semelhantes a outras organizações políticas que recebem atenção do campo da ciência política. Sua atuação caminha fluidamente entre os métodos dos movimentos sociais, dos partidos políticos e dos grupos de interesse ao fazer trabalho comunitário e de enfrentamento nos territórios, ao negociar com as instituições estatais nas esferas deliberativas; e inclusive ao participar das eleições.

O conceito de crime organizado

O crime organizado é um fenômeno recente no Brasil. Michel Misse (2011)MISSE, Michel. Crime organizado e crime comum no Rio de Janeiro: diferenças e afinidades. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 19, n. 40, p. 13-25, 2011. [Dossiê Crime, Segurança e Instituições Estatais: Problemas e Perspectivas]. argumenta que as organizações criminosas nasceram durante o período da ditadura militar nos presídios e resultam da interação entre presos “políticos” e “comuns”, entre os anos 1970 e 1980. No período, presos pelo regime e assaltantes de bancos articularam-se para exigir direitos negados pelos militares.

Em cascata, espelhando-se nos movimentos de contestação, outros “criminosos” organizarem-se para reivindicar direitos e dominar o sistema carcerário, originando as principais atividades das quadrilhas. No Rio de Janeiro, o Comando Vermelho (CV), o Terceiro Comando Puro (TCP) e os Amigos dos Amigos (ADA), que depois tornaram-se facções do crime organizado, atuam no sistema penitenciário a partir da oferta de proteção aos presos. Além da relação de lealdade dentro do cárcere, integrou-os em toda a rede econômica da organização. Quando alguém se filia a alguma dessas organizações, o preso passa a trabalhar com ela e para ela (Misse, 2011MISSE, Michel. Crime organizado e crime comum no Rio de Janeiro: diferenças e afinidades. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 19, n. 40, p. 13-25, 2011. [Dossiê Crime, Segurança e Instituições Estatais: Problemas e Perspectivas].).

O Estado é fundamental tanto na formação e viabilidade de empreendimentos criminosos quanto na noção do que será considerado na qualidade de crime organizado.3 3 O crime organizado ter conexões sólidas com a política, a sociedade e o Estado não é um fenômeno exclusivo do Brasil. Adorno (2019) esclarece que é evidente o envolvimento de policiais, políticos e funcionários públicos nos negócios do crime em outros países da América Latina. Dessa maneira, o crime organizado se define pela transição entre ilegalidade e legalidade, nas relações mercadológicas e estatais, e pelo emprego e produção de “mercadorias políticas”, refente ao imbricamento estatal de suas atividades (Misse, 2011MISSE, Michel. Crime organizado e crime comum no Rio de Janeiro: diferenças e afinidades. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 19, n. 40, p. 13-25, 2011. [Dossiê Crime, Segurança e Instituições Estatais: Problemas e Perspectivas].).

Parece haver um entendimento entre Misse (2011)MISSE, Michel. Crime organizado e crime comum no Rio de Janeiro: diferenças e afinidades. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 19, n. 40, p. 13-25, 2011. [Dossiê Crime, Segurança e Instituições Estatais: Problemas e Perspectivas]. e Guaracy Mingardi (2007)MINGARDI, Guaracy. O trabalho da inteligência no controle do crime organizado. Estudos Avançados, São Paulo, v. 21, n. 61, p. 51-69, 2007. sobre a modalidade do negócio não determinar a essência das atividades do crime organizado, ou seja, ter o tráfico varejista de drogas como centro do negócio não estabelece a diferença entre crime “comum” e “organizado”. O que é considerado criminalidade, na verdade, são as atividades ilícitas capturadas pelo sistema penal, em grande medida relacionadas com o comércio varejista de drogas, por isso essa associação do senso comum do tráfico com o crime organizado (Salla; Teixeira, 2020SALLA, Fernando; TEIXEIRA, Alessandra. O crime organizado entre a criminologia e a sociologia. Limites interpretativos, possibilidades heurísticas. Tempo Social, São Paulo, v. 32, n. 3, p. 147-171, 2020.).

Essa é a razão de o comércio varejista de drogas ser associado somente às facções que nasceram dentro do sistema prisional, embora já façam parte do ramo de negócios das milícias e dos bicheiros há anos. Porque são organizações compostas majoritariamente por pessoas pobres e negras, grupo sociodemográfico das prisões, o subtexto da classificação do senso comum sobre o que é crime organizado é o racismo. É inegável a atuação do tráfico varejista nas regiões mais pobres dos grandes centros urbanos, mas também a existência de um mercado consumidor nas regiões mais abastadas. Além disso, outras atividades ilícitas que estão no centro do negócio de organizações criminosas, não envolvidas com o tráfico, podem integrar tanto as atividades das organizações que têm o tráfico como função principal, como organizações que não estão envolvidas com o tráfico de drogas, mas com lavagem de dinheiro, corrupção e outras atividades de “colarinho branco”.4 4 O crime organizado na modalidade empresarial está vinculado com lavagem de dinheiro. Na modalidade endógena, a atividade básica está no aparelho estatal, como lavagem de dinheiro, desvio de verba pública etc. (Mingardi, 2007).

A ilegalidade e informalidade são categorias que explicam a classificação entre “crime” e “não crime”. As considerações sobre ilegalidade, dentro do mercado informal, têm mais peso moral do que normativo e depende das construções sociais. Os “camelôs”, por exemplo, em muitos momentos exercem atividades ilegais, mas são apenas lidos como informais pela sociedade. Já o crime organizado, que transita entre esses dois mundos, é considerado enquanto atividade criminosa (Misse, 2007MISSE, Michel. Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de Janeiro. Estudos Avançados, São Paulo, v. 21, n. 61, p. 139-157, 2007.).

O crime organizado é demasiadamente descentralizado e não é exagerado pensar que praticamente toda cadeia de ilegalidade pressupõe algum relacionamento com o Estado. Consequentemente, a cadeia de negócios do crime é diversa, e muitas das atividades que compõem o seu arsenal econômico apenas são lidas como informais. É falsa a separação dicotômica entre a economia formal e os mercados informais. São mundos entrelaçados. Muitas atividades informais compõem fontes de empreendimentos econômicos formais e, da mesma forma, atividades formais são usadas como “fachadas” para atividades informais. Igualmente operam as noções entre ilegalidade e legalidade no crime organizado (Misse, 2007MISSE, Michel. Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de Janeiro. Estudos Avançados, São Paulo, v. 21, n. 61, p. 139-157, 2007.).

Para além do ilegal e diretamente relacionadas ao tráfico de drogas, Mingardi (2007)MINGARDI, Guaracy. O trabalho da inteligência no controle do crime organizado. Estudos Avançados, São Paulo, v. 21, n. 61, p. 51-69, 2007. apresenta cinco características que separam o funcionamento entre os crimes comuns e o organizado:

  1. hierarquia: diferente das quadrilhas comuns, onde a liderança é fluida, o trabalho é especializado e setorizado e precisa de lideranças e gestores locais muito bem definidos;

  2. previsão de lucros: o crime organizado é capaz de prever a lucratividade do mês com base nos lucros anteriores de maneira continuada, especialmente porque conseguem manter seu trabalho independente da repressão estatal e de conflitos por poder com outras facções;

  3. divisão do trabalho: a divisão é nítida, sobretudo nas organizações maiores, o crime organizado tem várias atividades econômicas no seu negócio;

  4. planejamento empresarial: criminosos comuns atuam de acordo com as oportunidades do momento, o crime organizado planeja em termos de continuidade do seu trabalho em relação ao tempo;

  5. simbiose com o Estado: boa parte dos negócios das organizações criminosas dependem do aval de agentes públicos para serem bem-sucedidas.

Os principais grupos criminosos são definidos como pertencentes à modalidade tradicional de crime, amparada em relação de apadrinhamento5 5 Ou de “parentesco”, como retrata Misse (2011). como forma de recrutamento. As milícias, nosso objeto, são exemplos disso. Mas não só elas, como o PCC, o jogo do bicho e o CV, trabalham na lógica que se funda em diversificar o ramo criminal e, de modo geral, especializarem-se pouco. Esses grupos geralmente nasceram em circunstâncias determinadas, através do cárcere, união de pequenas quadrilhas, laços de sangue ou cartel interessado em monopolizar mercadorias e serviços (Mingardi, 2007MINGARDI, Guaracy. O trabalho da inteligência no controle do crime organizado. Estudos Avançados, São Paulo, v. 21, n. 61, p. 51-69, 2007.).

O crime organizado e o controle territorial

O jogo do bicho despontou como o principal ator no mercado ilícito do Rio de Janeiro e espelho para atuação dos principais grupos “tradicionais” do crime organizado. Ele é constituído de vários pontos de vendas com a presença de “apontador”, camelôs ou pessoas que se dedicam inteiramente a fazer as apostas. O apontador é remunerado por uma comissão sobre os jogos que faz e os prêmios sorteados aos seus apostadores e, em alguns casos, são assalariados. Os “gerentes” coordenam vários “apontadores” e são responsáveis por seus pagamentos, pela estrutura de proteção e pelo recrutamento de “olheiros”. Subindo ao topo da hierarquia, o “banqueiro” é quem controla o território e toda a cadeia. Ele recebe as apostas e paga os prêmios, é o “bicheiro” de fato. E eles, assim como os gerentes, estabeleceram ligações entre o mercado ilícito e a compra de proteção policial (Misse, 2007MISSE, Michel. Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de Janeiro. Estudos Avançados, São Paulo, v. 21, n. 61, p. 139-157, 2007.).

A ligação com o território e o “contorno espacial-comunitário”, principal inovação introduzida pelos bicheiros no estado do Rio de Janeiro, que Misse (2007, p. 144)MISSE, Michel. Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de Janeiro. Estudos Avançados, São Paulo, v. 21, n. 61, p. 139-157, 2007. chama de “territorialização”, adiciona uma dimensão política à cadeia criminal mais profunda do que as atividades criminais pulverizadas porque constituem redes de sociabilidade nascidas das relações de poder que contornam os territórios.

Toda a cadeia criminal foi afetada por esse modelo de negócio e sociabilidade territorial introduzida pelos bicheiros Apesar de ter surgido com o jogo do bicho, a mais forte expressão desse processo foi com o aumento das redes de tráfico de drogas nos conjuntos habitacionais e favelas do Rio de Janeiro na década de 80. A organização do crime mostrou-se necessária para operação e controle dos agentes operadores dos territórios nesse período (Misse, 2007MISSE, Michel. Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de Janeiro. Estudos Avançados, São Paulo, v. 21, n. 61, p. 139-157, 2007.).

O CV, um dos exemplos da sociabilidade territorial do crime organizado, surgiu como uma rede de quadrilhas em meados dos anos 80, entre 1984 e 1986, nos presídios fluminenses. Em síntese, a organização do tráfico de drogas varejista consiste em redes de acordo entre donos de áreas de vendas de drogas de varejo e pequenos traficantes. A organização concede proteção e novas redes de comércio a essas pessoas (Misse, 2007MISSE, Michel. Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de Janeiro. Estudos Avançados, São Paulo, v. 21, n. 61, p. 139-157, 2007.). O acordo é feito na prisão e efetivado nos territórios das periferias.

O “movimento”, como eram chamadas essas facções do crime organizado, baseou sua rede na capitalização de criminosos varejistas e pequenas quadrilhas através de “vínculos de amizade” e “parentesco”. Os grupos se fortaleceram a partir da organização dos presidiários no final dos anos 70. O CV passou a bancar (“botar em movimento”) todo o arsenal necessário para o crime - armas, drogas, contatos, dinheiro - nessa época. Daí vem o termo. Em troca, exigiam respeito às regras do CV e lealdade, e pagavam salários regularmente aos traficantes (Misse, 2007MISSE, Michel. Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de Janeiro. Estudos Avançados, São Paulo, v. 21, n. 61, p. 139-157, 2007.).

A implementação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) modificou o cenário criminal do Rio de Janeiro. Iniciado no Complexo do Alemão no final de 2010, as UPPs aceleraram o processo de perda territorial do Comando Vermelho e de outras facções criminosas. O CV e demais facções descentralizaram sua ocupação nas periferias e intensificaram sua estrutura de poder, incluindo a força bélica, o intercâmbio com agentes da segurança pública e políticos, os valores culturais e até mesmo a “criatividade” de conquista e gestão do território (Alves, 2020ALVES, José Claudio de S. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense. 2. ed. Rio de Janeiro: Consequência, 2020.).

Favelas com presença das UPPs presenciaram o surgimento de atividades milicianas. É dada a largada em uma nova fase das milícias, mais militarizada por conta de seus vínculos com os policiais das UPPs. A milícia é, ao mesmo tempo, uma continuidade da tradição carioca de controle de território por organizações criminosas e a confluência de diferentes formas e estímulos: o vigilantismo, a segurança privada, os baixos salários das corporações, a “polícia mineira” etc. (Manso, 2020MANSO, Bruno Paes. A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020.; Huggins, 1992HUGGINS, Martha. O vigilantismo e o Estado: uma vista para o sul e para o norte. O Alferes, Belo Horizonte, v. 10, n. 33, p. 17-38, 1992.).

As interfaces entre o crime organizado e os agentes das forças repressivas do Estado

O mundo moderno constituiu as polícias como instrumento coercitivo de manutenção da ordem pública. A vigilância privada migrou para o modelo de controle exclusivamente público, em parte devido à urbanização, fenômeno associado ao crescimento exponencial da concentração populacional e ao aumento da classe trabalhadora (Muniz, 1999MUNIZ, Jacqueline. Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser: cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. 1999. 286f. Tese (Doutor em Ciência Política). Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.). Não só as corporações policiais, mas toda a arquitetura de segurança pública, foi tratada como bem público e universal.

Mesmo entre aqueles modelos estatais em que o bem-estar social é mínimo, o vigilantismo foi pensando como política de Estado, estendida a “todos”. Nas democracias liberais, nas quais as políticas sociais restringem-se à transferência de renda a um pequeno grupo de empobrecidos e o Estado encoraja a busca de opções mercadológicas (Esping-Andersen, 1991ESPING-ANDERSEN, Gosta. As três economias políticas do welfare state. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, São Paulo, n. 24, p. 85-116, 1991.), quando se trata de policiamento ostensivo, este é pensado como política universal.

A lógica esperada de ordem pública e de atuação da polícia estão circunscritas em processos políticos determinados (Muniz, 1999MUNIZ, Jacqueline. Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser: cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. 1999. 286f. Tese (Doutor em Ciência Política). Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.). Portanto, faz sentido pensar que elas não foram criadas em um vácuo político e que as atividades políticas “contaminam” a lógica de ação policial. Se a polícia vem da política, por que não esperar que esteja afetada por ela?

As polícias militares não sofreram reformas estruturantes desde a democratização. O Poder Legislativo não se moveu em relação ao tema.6 6 O direito penal foi a maneira de mobilização do tema da segurança pública no Legislativo. Sob a justificativa de combate à criminalidade, não é incomum o aumento de penas e criação de novas tipificações. O modelo policial deu continuidade ao adotado pela ditadura militar, com a política de segurança pública resumida ao direito penal e à gestão da atividade policial, sem espaço para implementação de políticas públicas que democratizem a segurança. Pior ainda, com baixíssima participação social nos espaços deliberativos (Lima; Bueno; Mingardi, 2016LIMA, Renato S.; BUENO, Samira; MINGARDI, Guaracy. Estado, polícias e segurança pública no Brasil. Revista Direito FGV, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 49-85, 2016.).

Esse quadro impede respostas à acelerada mudança das dinâmicas sociais contemporâneas e dificulta o cumprimento das próprias demandas profissionais da corporação. Mas não significa que as organizações policiais não utilizem as brechas de manifestação policial. Greves e motins por melhores condições salariais não são raros pós-democratização (Muniz, 1999MUNIZ, Jacqueline. Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser: cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. 1999. 286f. Tese (Doutor em Ciência Política). Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.). No entanto, foram tratados como problemas de insubordinação policial e falta de controle das polícias de forma geral, apesar das reincidentes anistias pelas casas legislativas estaduais (Araújo; Lima, 2011ARAÚJO, Nayra V. D.; LIMA, Antônia J. D. Policiais militares em greve: oportunidades e restrições à ação coletiva. Emancipação, Ponta Grossa, v. 11, n. 1, p. 73-90, 2011.).

Apesar da gestão policial responder a uma lógica própria, sem necessariamente ser subjugada às políticas de segurança pública, a entrada de novos atores e a proeminência das políticas públicas tensionou a competição profissional sobre as competências do campo. Adicionalmente, a percepção de insuficiência das polícias, a pressão da sociedade civil para melhorias na área e o aumento da participação social no desenho das políticas públicas marcam o movimento de aprofundamento dos conflitos sobre a atuação policial (Lima; Bueno; Mingardi, 2016LIMA, Renato S.; BUENO, Samira; MINGARDI, Guaracy. Estado, polícias e segurança pública no Brasil. Revista Direito FGV, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 49-85, 2016.).

Não só as polícias foram inseridas em novo e complexo ambiente de urbanização e vigilância, mas uma série de outros atores. Assim, a complexificação da dinâmica urbana exigiu a capacidade das polícias de se adequar às mudanças sociais e políticas e de atender, de maneira diferenciada, os diversos grupos e subgrupos da sociedade permeada por tensões, dinâmicas de clientela e hierarquia (Muniz, 1999MUNIZ, Jacqueline. Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser: cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. 1999. 286f. Tese (Doutor em Ciência Política). Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.).

À vista disso, a politização das polícias e a introdução da visão de que as ações precisam ser feitas de uma maneira diferente, não nasceu da reforma legislativa, mas das disputas do campo das políticas de segurança pública e das tensões sobre a gestão policial e as políticas de segurança pública. Internamente, existe um movimento de politização das corporações policiais, o qual é diferente do fenômeno observado no Judiciário, com novas práticas, discursos políticos emergentes e o surgimento de debates sobre reformas nas polícias (Lima; Bueno; Mingardi, 2016LIMA, Renato S.; BUENO, Samira; MINGARDI, Guaracy. Estado, polícias e segurança pública no Brasil. Revista Direito FGV, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 49-85, 2016.).

A politização das polícias ocorreu a partir das redes policiais informais. Boa parte da atuação política das polícias ocorre através das redes profissionais de saberes e informações internos às próprias polícias. Elas se apresentam como meios de resolução e administração de conflitos, autoproteção da classe e fazem a intermediação com criminosos, políticos e atores locais. Trata-se de um sistema de sobrevivência para o corpo policial, no intuito de reduzir a tensão no interior das tropas, e negociar com agentes externos à corporação formas de reduzir embates com outros agentes. Além disso, apesar do notório conflito com a lei, denota-se seu complexo papel de organização do cotidiano policial: organizam o trabalho; definem funções; hierarquizam postos de trabalho e os policiais adequados para cada tipo de tarefa (Lima; Bueno; Mingardi, 2016LIMA, Renato S.; BUENO, Samira; MINGARDI, Guaracy. Estado, polícias e segurança pública no Brasil. Revista Direito FGV, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 49-85, 2016.). As redes e o ganho de experiência policial por meio delas foram decisivos para o sucesso da entrada massiva de policiais nas dinâmicas do crime organizado, apresentado mais a frente com as milícias.

Os policiais fortalecem essa rede como espaços para compartilhar a vida, tanto em termos de demandas profissionais, como de espaço coletivo de vivência. Os policiais aprendem, cotidianamente com colegas e superiores, que devem represar suas experiências e sentimentos e dividir somente com a sua rede de afetos policiais. Por vezes, as experiências são assustadoras demais para compartilhar com o público, por outras, são condenáveis para compartilhar em espaços fora do trabalho (Muniz, 1999MUNIZ, Jacqueline. Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser: cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. 1999. 286f. Tese (Doutor em Ciência Política). Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.).

No dia a dia, o saber constituído pelos policiais vai muito além daquilo que deveria ser sua função. Ele lida com vários tipos de situação e acaba sendo, segundo Jacqueline Muniz (1999)MUNIZ, Jacqueline. Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser: cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. 1999. 286f. Tese (Doutor em Ciência Política). Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999., “faz-tudo” da ordem pública. Desse modo, o saber policial é construído nas ruas, diariamente, com nenhuma regulação formal e pouca mediação das instituições estatais. Esse conhecimento resiste à padronização e às formas experimentadas de regulação da vida policial.

O alto grau de discricionariedade permite o sucesso desse modelo de associação profissional dos policiais, especialmente militares. A discricionariedade faz com que, quanto mais na base piramidal da hierarquia, maior seja o poder discricionário do agente por ter o poderio de ação mais próximo da base, isto é, a “autoridade prática” e não necessariamente institucional.7 7 Nós discutimos o conceito e aplicação da “autoridade prática” adiante, abordando a teorização de Abers e Keck (2017). Não só é menos controlado, mas lida diretamente com as pessoas e pode escolher a maneira de solução dos problemas da rua (Lima; Bueno; Mingardi, 2016LIMA, Renato S.; BUENO, Samira; MINGARDI, Guaracy. Estado, polícias e segurança pública no Brasil. Revista Direito FGV, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 49-85, 2016.).

A atuação da polícia militar impacta diretamente a gestão urbana local, a partir do momento em que os policiais regulam a vida cotidiana: definem toques de recolher, controlam o comércio local e informal, as escolas etc. (Souza, 2015SOUZA, Luis Antonio F. D. Dispositivo militarizado da segurança pública. Tendências recentes e problemas no Brasil. Sociedade e Estado, Brasília, v. 30, n. 1, p. 207-223, 2015.). A complexidade da ação policial e a construção subjetiva e particular do saber policial é a resposta para tamanha discricionariedade da ação policial realizada diretamente na rua (Muniz, 1999MUNIZ, Jacqueline. Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser: cultura e cotidiano da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. 1999. 286f. Tese (Doutor em Ciência Política). Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999.).

O amplo poder discricionário, as redes informais e o trabalho direto nos territórios explicam a possibilidade de os policiais atuarem em grupos do crime organizado, como as milícias. Para além do contexto sócio-político favorável, como a expansão dos grupos de extermínio e o apoio escancarado de atores políticos, um quadro institucional favorável e a agência da polícia militar explicam como o policial torna-se miliciano. As condições de trabalho, salário e a falta de meios formais de associativismo dão pistas sobre as motivações.

As milícias

Para Brama (2019)BRAMA, Leonardo. As diversas milícias do Rio de Janeiro: entre expansões práticas e semânticas. 2019. 119f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019., a discussão sobre as milícias pode ser dividida em dois momentos, cuja marcação decorre da realização da CPI das Milícias, contudo existem comunalidades. Para o autor, “as dinâmicas de ‘grupos de extermínio’, ‘polícia mineira’ e ‘milícias’ como realidades diferentes e pertencentes ao mesmo processo histórico, na verdade não é o diferencial que contrasta com outras análises anteriores pois, na maioria dos autores tratados [...] essa ideia é bastante compartilhada” (Brama, 2019BRAMA, Leonardo. As diversas milícias do Rio de Janeiro: entre expansões práticas e semânticas. 2019. 119f. Dissertação (Mestrado em Sociologia) - Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2019., p. 100).

As milícias representam a maior expressão da interação entre crime organizado, Estado e política dentro do quadro criminal brasileiro (Manso, 2020MANSO, Bruno Paes. A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020.). Iniciaram suas atividades a partir de grupos de extermínios de criminosos8 8 Nos anos 50 e 60, o “Grupo de Diligências Especiais” e a “Scuderie Le Cocq”, compostos pela Polícia do Rio de Janeiro, eram os principais grupos de extermínio. Seu modelo de atuação espalhou-se pelo país (Misse, 2011). composto por policiais militares, outros atores estatais e matadores de aluguel. Os policiais militares aparecem fortemente nesta dinâmica a partir da chamada “polícia mineira”, em que os agentes buscavam informações sobre as atividades ilícitas para depois extorquirem criminosos em Rio das Pedras, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro nos anos 80. O grupo espancava e matava criminosos na região em troca de pagamentos periódicos (Zaluar; Conceição, 2007ZALUAR, Alba; CONCEIÇÃO, Isabel S. Favelas sob o controle das milícias no Rio de Janeiro: Que paz? São Paulo em Perspectiva, v. 21, n. 2, p. 89-101, 2007.; Silva; Fernandes; Braga, 2008SILVA, Jailson D. S. E.; FERNANDES, Fernando L.; BRAGA, Raquel. W. Grupos criminosos armados com domínio de território. In: JUSTIÇA GLOBAL (org.). Segurança, tráfico e milícias no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2008. p. 16-24.).

Alba Zaluar e Isabel Conceição (2007)ZALUAR, Alba; CONCEIÇÃO, Isabel S. Favelas sob o controle das milícias no Rio de Janeiro: Que paz? São Paulo em Perspectiva, v. 21, n. 2, p. 89-101, 2007. e José Claudio Alves (2020)ALVES, José Claudio de S. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense. 2. ed. Rio de Janeiro: Consequência, 2020. ponderam que a milícia é resultante do processo histórico de arrendamento dos grupos de extermínio. Eles fizeram uma série de incrementos, mudaram sua forma de atuação, o rol de arranjos ilegais e até mesmo o modelo de relacionamento com políticos e governos, mas existem como herança de uma conformação antiga dos matadores de aluguel.

Os grupos paramilitares são sinônimos do seu modelo pregresso, os grupos de extermínio da Baixada Fluminense. A diferença é a expansão dos negócios. Os milicianos introduziram a venda de serviços e produtos e o controle do território que não existia anteriormente. As milícias exercem o controle militar sobre os territórios de maneira sistematizada e permanente (Zaluar; Conceição, 2007ZALUAR, Alba; CONCEIÇÃO, Isabel S. Favelas sob o controle das milícias no Rio de Janeiro: Que paz? São Paulo em Perspectiva, v. 21, n. 2, p. 89-101, 2007.; Alves, 2020ALVES, José Claudio de S. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense. 2. ed. Rio de Janeiro: Consequência, 2020.).

O sucesso dos grupos de extermínio se explica pela participação policial, o uso do aparato das corporações, o financiamento de segmentos econômicos e o apoio de políticas que garantiram seu funcionamento e utilizaram seus serviços. O desgaste da imagem dos policiais, no final da ditadura, no início dos anos 80, inseriu os civis na operação das execuções dos grupos de extermínio (Alves, 2020ALVES, José Claudio de S. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense. 2. ed. Rio de Janeiro: Consequência, 2020.).

Os grupos de extermínio nasceram em meados dos anos 50. Houve um apoio estatal imediato na época. O Departamento Federal de Segurança Pública publicou uma portaria com gratificação aos matadores após uma série de mortes de criminosos, a diminuição significativa da taxa de roubos e a percepção de maior seguridade dos cidadãos no Rio de Janeiro. Até então, não era de notório conhecimento a participação de agentes do Estado nesses grupos (Alves, 2020ALVES, José Claudio de S. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense. 2. ed. Rio de Janeiro: Consequência, 2020.).

A extinta Polícia Especial deixou evidente a participação dos policiais nos grupos de extermínio. A caça e a morte de criminosos praticadas pela corporação foi a inspiração para a Scuderie Le Cocq, que ganhou força na segunda fase dos grupos de extermínio, mais militarizada que a anterior. A terceira fase foi marcada pela entrada de policiais e militares expulsos de suas respectivas corporações (Alves, 2020ALVES, José Claudio de S. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense. 2. ed. Rio de Janeiro: Consequência, 2020.).

A forma de atuação e as características dos assassinatos dos esquadrões da morte deixavam claras sua ligação com a polícia, incluindo práticas de tortura militar, uso de algemas e armas de exclusividade da polícia. Por isso, existem apontamentos da participação de policiais militares da ativa nesses grupos de extermínio pelo menos desde 1964 (Alves, 2020ALVES, José Claudio de S. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense. 2. ed. Rio de Janeiro: Consequência, 2020.).

Os esquadrões da morte tinham interesses e conexões muito maiores do que a rede de policiais militares que participavam dessas atividades. Se, de início, os casos eram de violência policial desmedida, a dinâmica passou a ser de mortes por interesses de terceiros: traficantes, comerciantes e outros; e mais estratégicas, com o intento de desvincular a imagem das polícias com o esquadrão da morte, com a finalidade de ganhar autonomia. A malha de interesses relacionados aos esquadrões da morte juntou vários setores do crime organizado. A estrutura de poder dos esquadrões não somente focou-se em eliminar prefeitos oposicionistas ou outros políticos, mas também na prestação de serviço aos grupos locais, como as milícias nos anos 90 e 2000 (Alves, 2020ALVES, José Claudio de S. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense. 2. ed. Rio de Janeiro: Consequência, 2020.).

As milícias nasceram da “polícia mineira” e dos grupos de extermínio. O conhecimento aprofundado dos policiais da dinâmica criminal nos bairros de periferia do Rio de Janeiro foi o que possibilitou sua conformação (Manso, 2020MANSO, Bruno Paes. A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020.). Elas são chamadas assim pela prática de “minerar” ou “garimpar” as favelas em busca de criminosos ricos o suficiente para fazer algum tipo de aliança ou extorqui-los. Por meio da segurança privada e da exploração de criminosos da região, a “polícia mineira” passou a atuar nos bairros do Rio de Janeiro e este foi o pontapé da formação das milícias. Ela angariou policiais pistoleiros, lideranças políticas e a atividade associativa local. Essa foi a origem da “Liga da Justiça” e o que a imprensa e os pesquisadores passaram a chamar, desde 2006, de milícias (Misse, 2011MISSE, Michel. Crime organizado e crime comum no Rio de Janeiro: diferenças e afinidades. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 19, n. 40, p. 13-25, 2011. [Dossiê Crime, Segurança e Instituições Estatais: Problemas e Perspectivas].).

Rio das Pedras foi controlada pela “polícia mineira” nos anos 80. A Associação de Moradores de Rio das Pedras intermediou o relacionamento dos “mineiros” e a comunidade. A ligação das lideranças locais e dos “mineiros” foi tão intensa que se chegou a confundir os dois. A estrutura da associação e da “polícia mineira” era simbiótica, não era possível fazer uma distinção entre as estruturas de poder. O trabalho realizado pela associação de moradores surtiu efeito para minimizar problemas sociais, como enchentes e os desabrigados em sua decorrência na região de Rio das Pedras. E assim adquiriram legitimidade e respeito com a população (Zaluar; Conceição, 2007ZALUAR, Alba; CONCEIÇÃO, Isabel S. Favelas sob o controle das milícias no Rio de Janeiro: Que paz? São Paulo em Perspectiva, v. 21, n. 2, p. 89-101, 2007.).

Ascensão de lideranças comunitárias, aumento de políticas locais assistencialistas e novas práticas da regulação do território, consideravelmente menos repressiva que a “polícia mineira”, ajudaram a formar um modelo novo de periferia. Rio das Pedras era um bairro modelo em termos de ordem. O grupo que substituiu a “polícia mineira” tinha uma postura menos autoritária e se comportava menos como grupo de extermínio em um primeiro momento (Zaluar; Conceição, 2007ZALUAR, Alba; CONCEIÇÃO, Isabel S. Favelas sob o controle das milícias no Rio de Janeiro: Que paz? São Paulo em Perspectiva, v. 21, n. 2, p. 89-101, 2007.).

Por prover serviços de segurança privada aos comerciantes locais, o primeiro passo dos milicianos foi de organizarem-se em áreas de influência. Desse modo, sem necessariamente ter um espaço territorialmente bem definido, mas com uma ligação geográfica muito forte, os milicianos adotaram a estratégia de contínua expansão de seu domínio de influência territorial, a partir da ideia de “fronteira”, isto é, com limites claros para impedir a atuação de outros grupos, mas com seu espaço de dominação em constante progresso. No entanto, os milicianos não têm conexão com o contexto social das regiões que estão dominando, diferentemente do modelo iniciado em Rio das Pedras (Silva; Fernandes; Braga, 2008SILVA, Jailson D. S. E.; FERNANDES, Fernando L.; BRAGA, Raquel. W. Grupos criminosos armados com domínio de território. In: JUSTIÇA GLOBAL (org.). Segurança, tráfico e milícias no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2008. p. 16-24.).

Os milicianos encontraram uma oportunidade para expandir sua rede econômica-política com domínio do território. Grilagem de terras públicas, exploração clandestina de TV a cabo (chamado de “gatonet”), comércio de botijões de gás, controle e taxação de serviços de transporte irregular (conhecido como transporte “pirata”) e imposto por segurança privada de moradores foram algumas das atividades assumidas por esses grupos armados. A ocupação das favelas pela milícia era precedida por ações policiais que mapeavam o território e enfraqueciam as redes locais dos traficantes (Silva; Fernandes; Braga, 2008SILVA, Jailson D. S. E.; FERNANDES, Fernando L.; BRAGA, Raquel. W. Grupos criminosos armados com domínio de território. In: JUSTIÇA GLOBAL (org.). Segurança, tráfico e milícias no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2008. p. 16-24.; Zaluar; Conceição, 2007ZALUAR, Alba; CONCEIÇÃO, Isabel S. Favelas sob o controle das milícias no Rio de Janeiro: Que paz? São Paulo em Perspectiva, v. 21, n. 2, p. 89-101, 2007.).

Além de moldar o projeto urbanístico do Rio de Janeiro, a ocupação e forte controle armado de territórios possibilitou aos milicianos aprofundarem suas relações ilícitas com setores da economia criminal, como os traficantes varejistas, mas também adquirir apoio de deputados estaduais e vereadores (Silva; Fernandes; Braga, 2008SILVA, Jailson D. S. E.; FERNANDES, Fernando L.; BRAGA, Raquel. W. Grupos criminosos armados com domínio de território. In: JUSTIÇA GLOBAL (org.). Segurança, tráfico e milícias no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2008. p. 16-24.).

As milícias simbolizam a superação do modelo de economia política do crime que são os grupos de extermínio e a reconfiguração do crime organizado no Rio de Janeiro. Os policiais eliminaram os intermediários e assumiram o crime enquanto empreendimento seu, relacionam-se diretamente com o tráfico de armas, sequestros, jogo do bicho e roubos: uniram o aparato policial ao tráfico (Alves, 2020ALVES, José Claudio de S. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense. 2. ed. Rio de Janeiro: Consequência, 2020.).

Aqui se encontra a principal novidade das milícias: organizados em grupos paramilitares, agentes estatais disputam mercados ilegais e territórios com facções criminosas. Antes, os criminosos pagavam policiais para ter anuência em diversas atividades criminosas. Agora, os próprios servidores públicos eliminam e substituem o crime organizado civil na gestão político-criminal de regiões conquistadas (Manso, 2020MANSO, Bruno Paes. A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020.).

A criação da cadeia de economia ilícita, envolvendo segurança privada e outros serviços, fez com que os milicianos demandassem e fossem procurados por outros agentes do Estado e até civis para fazer negócios. Os milicianos conseguiram avançar seu poderio político no Executivo, Legislativo e até no Judiciário, construindo uma verdadeira rede no poder público. A aliança entre milicianos, empresas, políticos e população é algo nunca visto antes na dinâmica do crime organizado no Rio de Janeiro. O apoio popular veio porque livrou jovens de serem reféns do Comando Vermelho; e da diminuição inicial dos índices de criminalidade e do volume de ações policiais (Alves, 2020ALVES, José Claudio de S. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense. 2. ed. Rio de Janeiro: Consequência, 2020.; Zaluar; Conceição, 2007ZALUAR, Alba; CONCEIÇÃO, Isabel S. Favelas sob o controle das milícias no Rio de Janeiro: Que paz? São Paulo em Perspectiva, v. 21, n. 2, p. 89-101, 2007.).

Agentes da segurança privada, bombeiros, policiais civis, agentes penitenciários e membros das forças armadas foram recrutados para operar a rede de negócios da milícia. Eles treinam e são treinados com táticas militares e desviam armamento das próprias corporações. São eles também que interagem diretamente com outros agentes públicos e com os políticos locais (Zaluar; Conceição, 2007ZALUAR, Alba; CONCEIÇÃO, Isabel S. Favelas sob o controle das milícias no Rio de Janeiro: Que paz? São Paulo em Perspectiva, v. 21, n. 2, p. 89-101, 2007.; Silva; Fernandes; Braga, 2008SILVA, Jailson D. S. E.; FERNANDES, Fernando L.; BRAGA, Raquel. W. Grupos criminosos armados com domínio de território. In: JUSTIÇA GLOBAL (org.). Segurança, tráfico e milícias no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2008. p. 16-24.).

Hoje, pesquisadores apontam para o crescimento acentuado do recrutamento de civis. Apesar de não aprofundar o perfil do “miliciano civil”, Manso (2020)MANSO, Bruno Paes. A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020. destaca os civis que têm relação com o mercado de segurança privada no Rio de Janeiro. Os policiais mantêm-se na posição de inteligência e estratégia política, enquanto os “recrutados” estão mais envolvidos com o trabalho de extorsão dos moradores e asseguramento da dominação dos territórios. Esse contexto circunscreve os agentes estatais como mentores políticos da relação entre o crime, o Estado e a comunidade.

Os policiais militares são chave na atuação das milícias. Pelo conhecimento grande das dinâmicas sócio territoriais, afinal os policiais são burocratas de rua e estão imiscuídos no dia a dia da população, eles conseguem sustentar tanto o relacionamento com o Estado quanto com outros atores do crime. É uma via de mão dupla, as milícias ajudam os policiais a lograrem uma forma alternativa de renda e melhorar sua qualidade de vida, e os policiais possibilitam o exercício da atividade criminal com menos repressão.

É na polícia militar o contexto institucional em que as milícias se constituem enquanto organização política. Por mais que tenha conexões com civis, policiais civis e agentes das forças armadas, eles estão umbilicalmente ligados aos policiais militares. Em seguida, pela autoridade constituída junto aos policiais, outros grupos foram recrutados e hoje fazem parte efetivamente das milícias.

O crime enquanto político: institucionalização e possibilidades institucionais das milícias

As milícias são fruto de um processo histórico e possui em suas origens tanto a marca dos grupos de extermínio quanto a “polícia mineira”. A milícia se constitui historicamente a partir dos incentivos do ambiente. As vantagens econômicas, percebidas por agentes policiais sobre o potencial de exploração econômica do modelo de gestão criminal adotado pelas facções criminosas para o controle das comunidades, estão no cerne da conjuntura crítica que promove as condições para colocar em movimento a trajetória que resultaria no atual formato de organização das milícias.

A atuação econômica dos milicianos está concatenada com sua projeção política no Rio de Janeiro.9 9 Em outras palavras, as milícias ganham dinheiro e potencializam seus lucros por conta do seu envolvimento na política. Seja porque vendem influência política, ocupam cargos políticos e públicos, ou pela diminuição de entraves estatais para a economia criminal. E, nesse sentido, o crime organizado já está sendo pensado enquanto instituição por uma série de autores que são trabalhados aqui10 10 Como, por exemplo, as abordagens de Misse (2011), Alves (2020) e Manso (2020). . Pelo ponto de vista mais tradicional das instituições enquanto conjunto de regras comumente aceitas (Abers; Keck, 2017ABERS, Rebecca N.; KECK, Margaret. E. Autoridade prática, construção institucional e entrelaçamento. In: ABERS, Rebecca N.; KECK, Margaret. Autoridade prática, ação criativa e mudança institucional na política das águas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017. p. 29-61.), o caso brasileiro ilustra, com os milicianos, uma situação muito próxima ao conceito. Em Rio das Pedras, por exemplo, berço das milícias, existe um conjunto de regras e formatos específicos de atuação para o funcionamento do crime e para gestão de seu relacionamento continuado com o Estado, com os outros atores criminais e com os moradores da região (Manso, 2020MANSO, Bruno Paes. A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020.). Em outras palavras, as milícias operam através de instituições existentes e criam suas instituições.

O conceito de instituição está em disputa. O mais forte deles persiste sendo o de instituições como uma conjunção entre normas comumente aceitas. Autoras como Rebecca Abers e Margaret Keck (2017)ABERS, Rebecca N.; KECK, Margaret. E. Autoridade prática, construção institucional e entrelaçamento. In: ABERS, Rebecca N.; KECK, Margaret. Autoridade prática, ação criativa e mudança institucional na política das águas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017. p. 29-61. sofisticam essa concepção ao trazer os conceitos de ação e ideias às instituições que, de acordo com elas, seria “o modo como as pessoas realmente agem sobre o mundo”. Assim, a disseminação e a criação de ideias fazem parte da construção das instituições, onde a ação humana tem papel de protagonista.

Antes de tratar sobre instituições, é necessário refletir sobre o processo de formação dessas, tratar sobre o processo de institucionalização. A ideia aqui não é retirar a faceta de “crime organizado” dos milicianos, mas de pensar as milícias em termos de seu caráter organizacional. Panebianco (2005)PANEBIANCO, Angelo. A ordem organizativa. In: PANEBIANCO, Angelo. Modelos de partido: organização e poder nos partidos políticos. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 3-39. pondera, dentre outras explicações, a institucionalização enquanto processo de evolução da organização política para um modelo consolidado de atuação. As organizações modificam-se ao longo do tempo, buscando a adaptação ao ambiente no qual atuam. Isso implica dilemas tanto quanto à interação com o ambiente externo à organização, mas também no contato com agentes externos. As redes de incentivos à manutenção da organização, no caso das milícias, estão no retorno econômico que os milicianos conseguem obter a partir da dominação por meio da comunhão entre autoridade estatal e autoridade comunitária.

O uso das ideias como caminho para a institucionalização possibilita observar a formação de milícias, e como milicianos construíram influência como ator político e buscaram oportunidades de usufruir de bens materiais a partir de vantagens devido a sua posição privilegiada junto ao Estado. O que se dá, em particular, devido ao seu trânsito com o principal burocrata de rua, o policial, e a participação dos próprios burocratas em seus quadros.

As milícias desempenham um papel dual na tentativa de se institucionalizar. São legitimadas para atuação prática de conflitos no cotidiano, ao passo que já estão inseridas no seio do Estado enquanto agentes da segurança pública (os policiais, bombeiros e militares), porém não encontram entre suas atribuições o agendamento das políticas públicas, elas não fazem parte dos processos de formulação de políticas públicas e decisão política a priori. Com a discricionariedade, os policiais são capazes de ignorar determinações legais e construir a base institucional das milícias.

A teorização de Panebianco (2005)PANEBIANCO, Angelo. A ordem organizativa. In: PANEBIANCO, Angelo. Modelos de partido: organização e poder nos partidos políticos. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 3-39. leva às perguntas a serem respondidas por outras pesquisas. Os milicianos tiveram ganhos reais com a institucionalização? Esse processo de institucionalização foi intencional? Ao passo que a institucionalização pode aumentar a rigidez de sua atuação e talvez potencializar seus lucros com estruturas transparentes de relacionamento e operação, atualmente os paramilitares são alvos claros das instituições governamentais enquanto entidade do crime organizado.11 11 É uma situação controversa. O sistema de justiça teve altivez anticrime quando se trata das milícias. Quando se fala do governo estadual, a situação se inverte por conta da presença de policiais militares e apoio de políticos locais. As regiões dominadas por milícias representam 25% dos bairros da cidade do Rio de Janeiro, maior grupo do crime organizado, porém apenas 6% das operações policiais são realizadas nesses bairros, de acordo com o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos e Observatório das Metrópoles.

Uma forma de tratar sobre a organização das milícias e sua relação com as práticas políticas pode ser observado por Albarracín (2018)ALBARRACÍN, Juan. Criminalized electoral politics in Brazilian urban peripheries. Crime, Law and Social Change, v. 69, p. 553-575, 2018., para o qual é possível diferenciar relações entre a dinâmica de violência do crime organizado e o formato da política clientelista que se estabelece. Para o autor, a política eleitoral criminalizada pode se manifestar desde formas mais letais, expressa pelo extermínio de autoridades políticas locais, mas também em formatos de baixa letalidade, priorizando a lógica cooperação e formação de alianças entre organizações criminosas e o corpo político. Aspectos contextuais das localidades e momentos históricos específicos afetarão a maneira como as milícias irão variar enquanto um pêndulo por essas práticas. Essa leitura permite atualizar ao contexto urbano as discussões sobre mandonismo e clientelismo elaboradas por Carvalho (1997)CARVALHO, José Murilo de. Mandonismo, coronelismo, clientelismo: uma discussão conceitual. Dados, Rio de Janeiro, v. 40, n. 2, p. 229-250, 1997..

Dentre outras explicações para se construir enquanto instituição, Bruno Paes Manso (2020)MANSO, Bruno Paes. A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020. argumenta que os milicianos se aproveitaram do ideal coletivo de defesa, isto é, um ideal de ordem coletiva que só pode ser conservado por meio da violência. Aqui está uma diferença fundamental do restante do crime organizado, os milicianos utilizam da violência, muitas vezes do assassinato de criminosos, com a finalidade de produzir ordem e defender a população do crime. E a sociedade incorpora esse discurso, que tem apoio de políticos e da mídia, afinal os milicianos se colocam como oposição aos pequenos traficantes e aos criminosos locais e oferecem uma espécie de serviço, a partir de uma estrutura de clientela.

As milícias contam com o poder de matar como fonte primária de autoridade política. O clientelismo das milícias, chamado de clientelismo homicida por Rodrigues (2018)RODRIGUES, André L. Homicídios na Baixada Fluminense: estado, mercado, criminalidade e poder. In: PENALVA, A., CORREIA, A. F., MARAFON, G. J., SANT’ANNA, M. J. G. (eds.). Rio de Janeiro: uma abordagem dialógica sobre o território fluminense. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2018. [online]. p. 116-142., emerge como forma de controle territorial. Eles se envolvem em dinâmicas que se apropriam da coisa pública e que colocam o poder da morte como recurso de poder primário. O clientelismo homicida miliciano segue em operação com as dinâmicas dos mercados ilegais e é a mercadoria da política subnacional miliciana.

Os milicianos se aproveitaram da estrutura de grupos de extermínio que existiam nos bairros mais pobres do Rio de Janeiro, como Rio das Pedras (Alves, 2020ALVES, José Claudio de S. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense. 2. ed. Rio de Janeiro: Consequência, 2020.). Esses grupos se autonomeavam, e assim eram chamados por políticos, de autodefesa comunitária. Esse uso linguístico-narrativo foi essencial para ter aval da população de outros bairros para o domínio dos milicianos e foi buscado pelos grupos criminosos a fim de serem reconhecidos como organização legítima.

O processo de institucionalização das milícias não precisava necessariamente passar pelo Estado. Apesar de apoio evidente de políticos, as milícias buscaram o reconhecimento de sua posição social e política enquanto ator no cenário da segurança pública. Havia uma busca ativa, para além do Estado, de acumular habilidades e respeito para ter legitimidade de influenciar o processo de tomada de decisão e atuar efetivamente na segurança pública. É o que Abers e Keck (2017)ABERS, Rebecca N.; KECK, Margaret. E. Autoridade prática, construção institucional e entrelaçamento. In: ABERS, Rebecca N.; KECK, Margaret. Autoridade prática, ação criativa e mudança institucional na política das águas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017. p. 29-61. classificam como “autoridade prática”, um tipo de poder possibilitador para a tomada de decisão com base no reconhecimento de sua capacidade e especialização.

As ideias influenciam o acúmulo de “autoridade prática” e a autoridade leva ao caminho da institucionalização. A institucionalidade, assim, perpassa a informalidade. Ser instituição para um grupo do crime organizado não é buscar a legalidade ou o reconhecimento de seu poder por parte do Estado, mas poderio efetivo para tomada de decisão e apoio de segmentos específicos da sociedade, no caso dos paramilitares, de políticos locais e moradores das regiões dominadas que pudessem facilitar seu trabalho. Nesta conjuntura, para os agentes do crime organizado que querem ser lidos como legítimos atores na segurança pública e ter um relacionamento estruturado tanto com o Estado quanto com a sociedade, as ideias e a materialidade importam simultaneamente.

Não só ideias influenciam na criação de instituições, mas a maneira que elas são transmitidas, como os discursos. É claro que nem toda ideia é capaz de ter um discurso que resulte em alguma mudança institucional ou criação de uma nova instituição, mas o discurso é fator central para romper com a visão estática e determinística das instituições, especialmente quando se fala sobre crime organizado, onde as instituições são ilegais e informais, ainda que reconhecidas pelo Estado.

Vivien Schmidt (2008)SCHMIDT, Vivien A. Discursive institutionalism: the explanatory power of ideas and discourse. Annual Review of Political Science, v. 11, n. 1, p. 303-326, 2008. define o discurso como processo interativo de transmissão de ideias. Isso significa que o discurso é uma representação das ideias e uma forma de interação social dentro de determinados contextos. Indivíduos conectados compartilham ideias para acesso à formulação de políticas ou para a criação de novas instituições, e o fazem por meio de discursos. No caso dos paramilitares, e em consonância com a maior parte dos discursos do populismo penal (Lins; Ferreira, 2022LINS, Igor N.; FERREIRA, João V. B. Populismo penal no discurso parlamentar: o debate da violência policial na Câmara dos Deputados (2019-2021). Revista Eletrônica de Ciência Política, Curitiba, v. 13, n. 1, p. 106-125, 2022. [on-line].), eles tendem a reforçar e se aproveitar da realidade existente para ter sucesso.

Argumentamos que as ideias têm dupla função quando se fala da institucionalização das milícias. A primeira é de impulsionador da institucionalização de grupos de extermínio para milícias, com regras de convívio social e maneiras próprias de atuação política. E aqui as ideias viram discursos bem-sucedidos, ao ponto de conformar uma instituição, por meio dos próprios paramilitares, mas também por agência discursiva de atores do Estado que buscam constantemente o endurecimento penal e apoiaram reincidentemente a ação paramilitar (Lins; Ferreira, 2022LINS, Igor N.; FERREIRA, João V. B. Populismo penal no discurso parlamentar: o debate da violência policial na Câmara dos Deputados (2019-2021). Revista Eletrônica de Ciência Política, Curitiba, v. 13, n. 1, p. 106-125, 2022. [on-line].; Silva; Fernandes; Braga, 2008SILVA, Jailson D. S. E.; FERNANDES, Fernando L.; BRAGA, Raquel. W. Grupos criminosos armados com domínio de território. In: JUSTIÇA GLOBAL (org.). Segurança, tráfico e milícias no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2008. p. 16-24.). E, em segundo lugar, que o discurso de ordem atua como legitimador da atuação institucional dos milicianos.

A atuação dos milicianos é facilitada por uma série de encaixes institucionais.12 12 A adequação institucional refere-se aos espaços que fornecem acesso à esfera estatal ou aos processos pelos quais os atores políticos obtêm acesso para influenciar a formulação de políticas, os processos de tomada de decisão ou a entrada em cargos estatais (Carlos; Dowbor; Albuquerque, 2017). Ainda que a literatura não apresente uma lista aglutinada dos espaços de permeabilidade institucional, Luiz Eduardo Soares (2019)SOARES, Luiz Eduardo. Desmilitarizar. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2019. diz que o formato das polícias militares facilita a atuação paralela de policiais. Ele utiliza um argumento típico do institucionalismo histórico (Mahoney; Thelen, 2009MAHONEY, J.; THELEN, K. A theory of gradual institutional change. In: MAHONEY, J.; THELEN, K. Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. p. 1-37.), ao enxergar na ditadura militar o legado institucional das polícias, já que elas foram mantidas intocadas, mesmo com a abertura democrática. A transição democrática lenta deu continuidade ao modelo policial em que a guerra contra o crime e o combate à subversão foram instrumentos para assegurar a estabilidade do poder e a ordem (Pinheiro, 1982PINHEIRO, Paulo S. Polícia e crise política: o caso das polícias militares. In: PAOLI, Maria Célia; BENEVIDES, Maria Vitoria; PINHEIRO, Paulo Sérgio; DAMATTA, Roberto. A violência brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982. p. 57-92.).

O Exército mantém o controle e a coordenação das PMs.13 13 Foi o regime de 1964, em 1969, que integrou as policiais estaduais ao Exército como forma de ampliar o vigilantismo militar nos grandes centros urbanos (Pinheiro, 1982). Elas são consideradas forças reservas e auxiliares do Exército pela Constituição Federal e devem seguir o programa militar disciplinar administrativo. A cadeia se divide em duas, uma de disciplina e administração ligada ao comando militar e outra de planejamento e orientação subjugada ao poder civil. Soares (2019)SOARES, Luiz Eduardo. Desmilitarizar. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2019. afirma que a cadeia de comando mais forte é a ligada ao Exército pelo poder de chancelar o nome indicado ao comando geral da PM. Em tese, não deveria haver choque de comando, o poder de planejamento das secretarias estaduais deveria imperar e garantir autonomia para atuação dos secretários, mas essa divisão garante a possibilidade de as PMs atuarem fora do controle dos governadores.

Existem indícios, conforme teoriza Blyth (2001)BLYTH, Mark. The transformation of the swedish model. Economic ideas, distributional conflict, and institutional change. World Politics, v. 54, n. 1, p. 1-26, 2001., de que as ideias foram usadas como instrumentos para reafirmação institucional e implementadas como projetos para novas instituições. Se as milícias são resultado da “polícia mineira” e dos grupos de extermínio, fala-se em uma inovação, em algum grau, mas também de transformação, reedição e reforço institucional. A ideologia da segurança pública militarizada e empregada como arma para contenção de inimigos externos é o instrumento ideário para configuração e transformação institucional.14 14 O uso político do medo como forma de mobilização de políticas de endurecimento penal, vigilantismo e militarização não é um evento exclusivo do Brasil Ver: Doran e Burgess (2012).

Esse processo veio por um exercício topdown, a partir das possibilidades institucionais da ditadura brasileira. Todavia, não se impediu, dado o empenho político, que fossem enraizadas de tal modo a se naturalizarem enquanto prática política para além das instituições estatais. É uma contribuição por parte das instituições políticas enquanto ideias, práticas e discurso, como forma de atuação política de grupos criminosos que se espelham no modo de atuação militar e na ideologia das instituições do sistema de justiça. Uma inovação institucional herdada de um legado institucional histórico.

Os fatores estrutural, discursivo e de ideias convergem para a criação institucional de instituições paramilitares. Ainda que, hoje, parte dos formuladores de políticas públicas e das autoridades políticas se oponham formalmente aos milicianos e colaborem com ações para desarticulação dos criminosos, após institucionalmente implementadas como projetos para novas instituições, as ideias podem ter efeitos independentes dos agentes e estruturas que as implementaram originalmente, conforme elabora Blyth (2001)BLYTH, Mark. The transformation of the swedish model. Economic ideas, distributional conflict, and institutional change. World Politics, v. 54, n. 1, p. 1-26, 2001..

Ao pensar os paramilitares enquanto instituições em um contexto de vigilantismo, o institucionalismo histórico oferece contribuições para entender a sua institucionalização, apesar das divergências com autores da linha da criatividade e do institucionalismo discursivo. Em seu trabalho, Mahoney e Thelen (2009)MAHONEY, J.; THELEN, K. A theory of gradual institutional change. In: MAHONEY, J.; THELEN, K. Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. p. 1-37. acreditam que há margem de criatividade para assimilar novas regras e criar instituições, sem que o legado histórico seja desprezado. No Brasil, a interseccionalidade entre o Estado e os milicianos denotam que esses grupos foram criados a partir da extensão de instituições já existentes, como as polícias e o Exército. Neste sentido, inclusive, os paramilitares são nomeados dessa maneira pelo uso da lógica militar em sua forma de organização e atuação.

Os grupos fortes são capazes de projetar instituições que cumprem a função de reafirmar suas preferências (Mahoney; Thelen 2009MAHONEY, J.; THELEN, K. A theory of gradual institutional change. In: MAHONEY, J.; THELEN, K. Explaining institutional change: ambiguity, agency, and power. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. p. 1-37.), e os grupos paramilitares são instituições que reforçam a lógica da ostensividade policial. Logo, o que explica seu sucesso é não somente o poder de agência policial, a criatividade ou o apoio discursivo, mas a conexão e a origem estatal que garantem recursos para sua atuação e preservação frente às ofensivas institucionais de desmantelamento de setores dentro do próprio Estado: o legado institucional.

A novidade das milícias não são propriamente sua atuação enquanto grupos de extermínio ou de “polícia mineira”, mas suas fortes conexões com a política, sua politização. É notória a participação dos policiais militares e de outros agentes estatais. Isso, de certa maneira, dita as formas de ação política, as redes informais de conexão política e como as milícias serão utilizadas para encapar demandas políticas.

A abordagem da “política armada” descrita por Barnes (2017)BARNES, Nicholas. Criminal politics: an integrated approach to the study of organized crime, politics, and violence. Perspectives on Politics, v. 15, n. 4, p. 967-987, 2017. em relação ao crime organizado, oferece uma oportunidade para interpretação da interação entre as organizações criminosas, a política e o Estado. Em vez de categorizar os grupos armados com base em suas alegadas motivações, o autor compreende o acúmulo de recursos de violência, mesmo quando não se destina à busca de uma hegemonia territorial completa. Isso representa um projeto político, centrado na projeção de poder, e colide diretamente com a suposta exclusividade do Estado no uso da violência. Todas as organizações que empregam a violência no espectro político-criminal estão envolvidas em interações estratégicas com o Estado, que moldam as “regras do jogo” e a natureza da autoridade política em um contexto específico. O uso, a ameaça e o controle da violência são elementos inerentes a esse processo.

As milícias, ao editarem instituições com a finalidade de criar uma ordem política local (Arias, 2013ARIAS, Enrique Desmond. The impacts of differential armed dominance of politics in Rio de Janeiro, Brazil. Studies in Comparative International Development, v. 48, n. 3, p. 263-284, 2013.), se integram ao Estado. Na tipologia editada por Barnes (2017)BARNES, Nicholas. Criminal politics: an integrated approach to the study of organized crime, politics, and violence. Perspectives on Politics, v. 15, n. 4, p. 967-987, 2017., isso coloca-os na forma mais elevada de colaboração, na qual o crime organizado é incorporado diretamente ao aparato estatal, permitindo que os criminosos se envolvam em atividades violentas e ilegais com impunidade, diferentemente de facções criminosas como o Comando Vermelho e o PCC que foram criadas a partir da própria repressão e mantêm uma relação por horas de competição ou de repressão com o Estado. Os milicianos sobrevivem de maneira autônoma, adaptando-se aos momentos em que os agentes públicos decidem enfrentá-los, sem que isso impeça a colaboração com frações deles, fluindo entre a cooperação e a integração com as instituições.

A tipologia de Barnes (2017)BARNES, Nicholas. Criminal politics: an integrated approach to the study of organized crime, politics, and violence. Perspectives on Politics, v. 15, n. 4, p. 967-987, 2017., disposta na tabela 1 abaixo, apoia a interpretação de como as milícias se comportam como instituições, já que os agentes estatais procuram estabelecer vínculos para obter acesso aos recursos de ordem financeira, eleitoral e política que têm sido acumulados pelas milícias. Esta integração é prevalente em duas esferas do aparato estatal: os partidos políticos e o setor de segurança pública. Essas formas de colaboração culminaram na instituição de entidades estatais que, apesar de formalmente subordinadas ao domínio do Estado, encontram-se suscetíveis a uma extensa influência oriunda do espectro do crime organizado.

Tabela 1.
Tipologia das relações crime-Estado no contexto brasileiro

Organizações criminosas comercializam seus serviços de intermediários a candidatos que necessitam angariar votos. A governança criminal transcende a simples presença de uma organização criminosa em um determinado território; ela implica que esta exerça a função de autoridade regulatória e disponibilize outros serviços governamentais ou institucionais aos residentes sob seu domínio, especialmente à nível político (Trudeau, 2022TRUDEAU, Jessie. How criminal governance undermines elections. APSA Preprints, p. 1-65, 2022. [version 3].).

Ação política das milícias

A militarização das PMs impede, em tese, qualquer tipo de ação política por militares. O texto constitucional, no artigo 142, proíbe o associativismo político ou sindical, seja das forças armadas ou das PMs. A proibição à sindicalização, à greve e à filiação partidária são questões centrais para entender a dinâmica do entrelaçamento entre polícia e Exército. A possibilidade de reivindicação das demandas é limitada frente aos baixos salários da corporação na maior parte das unidades federativas. Não existe, sequer, um piso salarial para a categoria.

Não poder encampar demandas políticas, como melhores salários e condições de trabalho, afeta o quadro político subnacional da segurança pública de todo o país.15 15 Baixos salários, falta de qualificação profissional, condições de trabalho desumanas, códigos disciplinares rígidos e falta de apoio psicológico são alguns dos problemas enfrentados por policiais militares (Soares, 2019). Nos últimos anos, não é raro os veículos da imprensa noticiarem os motins de policiais militares e a formação de milícias em outros estados além do Rio de Janeiro, como no Pará. Os policiais vão a busca de formas ilícitas de complementação da renda, principalmente com a segurança privada. Quando não, adentram redes informais de associativismo ligadas às atividades criminosas.

Sidney Tarrow (2009)TARROW, Sidney. O poder em movimento: movimentos sociais e confronto político. Petrópolis: Editora Vozes, 2009., ao pensar sobre as formas de ação dos movimentos sociais, diz que os atores se juntam com determinado objetivo quando compartilham problemas em comum. Esse é o caso dos policiais militares que participam de milícias. A ação coletiva é motivada pela identificação entre os atores políticos. Então, o objetivo em comum, melhores condições econômicas e abertura de espaços de sociabilidade policial, somados aos problemas cotidianos, são aglutinadores das experiências dessas pessoas em função da criação de um tipo de organização e uma ação coletiva.

As milícias assumem, por vezes, as formas de fazer política própria dos movimentos sociais. Os movimentos sociais destacam-se de outras organizações políticas por fazer “política contenciosa” ou “política de confronto”, explica Charles Tilly (2006)TILLY, Charles. Regimes and repertoires. 1. ed. Chicago: The University of Chicago Press, 2006.. Isso quer dizer que desafiam de forma contínua e duradoura os detentores do poder e a maneira considerada legítima do fazer político. Os policiais militares, apesar da chancela de parte do sistema político, desafiam o texto constitucional que os afasta da política e o fazem, por vezes, por meio da demonstração de capilaridade e apoio popular; das suas exibições públicas de poder; da demonstração de sua unidade e engajamento dos seus membros; e da apresentação do seu compromisso com a população; repertório16 16 O repertório refere-se a rotinas de reivindicações entre reclamante (movimento social) e objeto de reclamação. Todas as representações que caracterizam a interação entre atores coletivos e o alvo de sua reivindicação constituem um tipo de repertório de “confronto” (Tilly, 2006). Repertório é um condensado de instrumentos de ação para a busca de interesses, uma linguagem (Alonso, 2012). típico dos movimentos sociais.

Em Rio das Pedras, a Associação de Amigos e Moradores de Rio das Pedras teve como presidente um miliciano (Arias, 2013ARIAS, Enrique Desmond. The impacts of differential armed dominance of politics in Rio de Janeiro, Brazil. Studies in Comparative International Development, v. 48, n. 3, p. 263-284, 2013.). A milícia utiliza da associação como forma de receber dinheiro e controlar o associativismo político local. As associações de moradores eram utilizadas como a forma legal de se fazer ativismo político. Assim, as milícias não só assumem as formas de ação política dos movimentos sociais como capturam os espaços de expressão política dessas organizações nos territórios em que controlam para benefício próprio. O que não é assimilado, por outro lado, é fortemente reprimido.

Por meio de uma pesquisa de campo no momento pré-eleitoral de 2020, a Rede Fluminense de Pesquisas Sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos divulgou a nota técnica “Controle Territorial Armado no Rio de Janeiro” (Rede Fluminense..., 2020Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança Pública e Direitos. Controle territorial armado no Rio de Janeiro. O Globo. 26 out. 2020. Disponível em: Disponível em: https://estaticog1.globo.com/2020/10/26/textodaredesobremiliciaversaoampliadafinal.pdf . Acesso em: 04 nov. 2023.
https://estaticog1.globo.com/2020/10/26/...
), chamando a atenção para a ocupação de associações de moradores por parte das milícias. No documento, os pesquisadores mencionam que os milicianos utilizaram essas associações para acionar a Defensoria Pública e assegurar o acesso de moradores ao programa de habitação “Minha Casa, Minha Vida”. Milicianos não se abstêm de se relacionar com o Estado. Essas formas são múltiplas e estão transpassando o nível da “ilegalidade” ao usar instrumentos aparentemente legais para ativismo político.

Ainda em seu trabalho sobre as milícias, Arias (2013)ARIAS, Enrique Desmond. The impacts of differential armed dominance of politics in Rio de Janeiro, Brazil. Studies in Comparative International Development, v. 48, n. 3, p. 263-284, 2013. diz que as milícias se empenham no envolvimento com a política formal. Os paramilitares controlam, hegemonicamente, os grupos cívicos, mobilizam atores armados das regiões onde atuam, influenciam diretamente nos processos eleitorais e, conforme supracitado, influenciam diretamente nas políticas públicas.

As escassas válvulas de manifestação política dos policiais militares, aliadas a sua posição de negociação continuada em territórios17 17 Como descrito, por conta da discricionaridade e autonomia do militar enquanto burocrata de rua. , levaram os policiais a pensar formas alternativas não só de complementação de renda, mas de expressão política, que há muito pode ter deixado de se relacionar a seus interesses individuais, vide demandas salariais, mas passam a focar em aspectos para a manutenção e favorecimento de suas atividades ilícitas. A proibição não significa abstinência das atividades políticas. Adicionalmente, a estrutura policial está constitucionalizada, o que, de acordo com Soares (2019)SOARES, Luiz Eduardo. Desmilitarizar. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2019., dificulta as mudanças estruturais na corporação e na vida dos próprios policiais.

Considerar o quadro de ilegalidade da atuação política dos policiais militares pode recair à leitura moralista, numa dicotomia entre maus (corruptos) e bons (honestos) agentes. A partir dessa ótica, aspectos relacionados aos incentivos e às possibilidades institucionais para a atuação policial são relegados a um plano secundário e somente o lado formal da ilegalidade é enxergado. Os mecanismos de incentivo ao envolvimento com as milícias são apagados enquanto uma questão estrutural. Nós abordamos distintamente. Seguindo o entendimento de que as limitações legais resultantes da constitucionalização e militarização da Polícia Militar freia as possibilidades do repertório político policial, entendemos a atuação das milícias como modo de expressão política e resultado das redes informais profissionais dos agentes da segurança pública.

Se o status quo determina que a atividade política dos policiais militares é ilegal e que milícias são grupos do crime organizado, a resposta desses grupos não é necessariamente buscar legalização das suas ações, mas construir condições materiais e de legitimidade para perpetuar a atividade criminal como fonte lucrativa e modo de representação política.

Existe interesse em perenizar a ação criminal. A depender do determinado tipo de regulação das políticas públicas locais, os entraves para ação dos policiais militares (e milicianos, sobretudo) podem ser menores e o ganho econômico e político potencializado. Vedação da política aos policiais e criminalização das milícias não quer dizer que meios institucionais não serão utilizados para alçar interesses políticos e econômicos, entretanto, será difícil apontar nuances deste processo.

Para Tarrow (2009)TARROW, Sidney. O poder em movimento: movimentos sociais e confronto político. Petrópolis: Editora Vozes, 2009., ação política está ligada a oportunidades enxergadas por referência a um espaço para a ação coletiva, não condicionada necessariamente à legalidade. As oportunidades são dimensões que incentivam a ação. Então, a proposta é pensar a milícia, para além de um agente do crime organizado, mas como organização política, que não necessariamente defende seus interesses de classe dos policiais militares, porém, funciona, em larga medida, como forma de encamparem demandas na política.

A atuação das milícias caminha fluidamente entre as estratégias de ação política adotada: pelos movimentos sociais, ao fazer política de confronto; pelos partidos políticos ao disputar diretamente o pleito; e pelos grupos de pressão ao fazer lobby por demandas salariais e contestações institucionais dos processos políticos e das políticas públicas das regiões em que têm domínio. A forte ligação com o território e o seu emprego como “mercadoria política” diferencia-os dessas demais organizações políticas e torna especialmente relevante olhar para as formas de uso político do território dominado.

Conclusões

As milícias emergem em um cenário de empoderamento da atividade policial no contexto do poder local. Os milicianos estruturam-se justamente a partir do trabalho policial e da grande discricionariedade burocrática das suas atividades. Sua participação no crime organizado não é nova. Seu histórico de entrada nas milícias advém da participação nos grupos de extermínio e na “polícia mineira”.

Além do grau de inovação trazido pela forma de atuação das milícias, sua atuação é uma herança dos grupos de extermínio. A permeabilidade nas instituições do Estado e a conformação de novas instituições milicianas são devidas às estruturas prévias que possibilitam sua atuação, como a arquitetura da segurança pública e a existência dos esquadrões da morte com participação de políticos e agentes das forças repressivas do Estado.

O endereçamento de ideias para criar instituições foi essencial para o que classificamos como “institucionalização das milícias”. Apesar de sua infiltração estatal, os milicianos ainda se constituem como agentes do crime organizado e precisam construir as instituições a partir da disseminação de ideias na sociedade, como o punitivismo e o medo do crime, e do seu reconhecimento enquanto autoridade no campo da segurança pública, isto é, da sua “autoridade prática”.

A autoridade prática criminal constituída bebeu de duas fontes. A primeira, e mais importante, é o reconhecimento da autoridade dos milicianos nos territórios pelo controle cotidiano da vida social e política. O controle real do dia a dia, na prática, conflui para o reconhecimento de sua autoridade como legítima para parte da sociedade e das instituições. Os grupos que não reconhecem sua legitimidade ainda assim podem reconhecer sua autoridade prática, porque é um fato constituído materialmente. Em segundo lugar, a participação dos policiais, que já são atores legitimados pelas instituições e pela sociedade para controlar parte dos territórios, é uma segunda fonte constitutiva.

A concepção das milícias enquanto criadora e reguladora de instituição política, mesmo que informal, pavimenta o entendimento de que ela utiliza os modos de ação de organizações políticas. Assumir que as milícias utilizam formas de ação política de outros tipos de organização não é tirar o foco de sua especificidade enquanto organização criminosa, mas entender que existe uma apropriação de formas de ação de outros grupos e de que os enquadramentos analíticos da ciência política podem ser úteis para explicar a atuação política das milícias. É necessário reconhecer o braço de atuação política das milícias enquanto parte do seu rol de economia ilícita, já que a política é parte de sua mercadoria econômica-criminal.

O tema precisa de pesquisas teóricas e empíricas aprofundadas. Portanto, trata-se de uma caracterização com os achados do campo até aqui que identificam o uso fluido de estratégias políticas dos movimentos sociais, dos partidos políticos e, por vezes, dos grupos de pressão. Pela limitação constitucional de encampar demandas políticas, as milícias apresentam-se como alternativa para representação política dos policiais militares. Isso não equivale a dizer que as milícias são uma associação trabalhista dos policiais, mas que a limitação a participação política é uma tese explicativa da atuação policial nas milícias.

Dado que as milícias conseguem fazer intermediação política com atores da burocracia e com os espaços de representação política, é mais viável que o policial faça contatos e atue politicamente através desse espaço. Os milicianos sequestraram os espaços de participação política local, como as associações de moradores. Sua incidência política foi tão forte que não se poderia distinguir sua atuação das associações de moradores de alguns bairros do Rio de Janeiro. O objetivo foi, por um lado, controlar a população e limitar o confronto político dos moradores (diminuindo os custos de ação) e, por outro, atender as demandas locais e seus objetivos de relacionamento político com as instituições políticas formais.

A ligação intensa com o território rememora as formas de atuação dos movimentos sociais. As milícias atuam quase como um serviço comunitário. O distanciamento entre os milicianos e os moradores é reduzido por esse método de atuação política. Além disso, o relacionamento com parlamentares é frequente e não é raro a tentativa de influenciar na própria formulação de políticas públicas locais. Um padrão que aponta o aspecto de atuação política apropriada dos grupos de pressão.

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  • TRUDEAU, Jessie. How criminal governance undermines elections. APSA Preprints, p. 1-65, 2022. [version 3].
  • SCHMIDT, Vivien A. Discursive institutionalism: the explanatory power of ideas and discourse. Annual Review of Political Science, v. 11, n. 1, p. 303-326, 2008.
  • ZALUAR, Alba; CONCEIÇÃO, Isabel S. Favelas sob o controle das milícias no Rio de Janeiro: Que paz? São Paulo em Perspectiva, v. 21, n. 2, p. 89-101, 2007.
  • 3
    O crime organizado ter conexões sólidas com a política, a sociedade e o Estado não é um fenômeno exclusivo do Brasil. Adorno (2019)ADORNO, Sérgio. Fluxo de operações do crime organizado: questões conceituais e metodológicas. Revista Brasileira de Sociologia, Porto Alegre, v. 7, n. 17, p. 35-54, 2019. esclarece que é evidente o envolvimento de policiais, políticos e funcionários públicos nos negócios do crime em outros países da América Latina.
  • 4
    O crime organizado na modalidade empresarial está vinculado com lavagem de dinheiro. Na modalidade endógena, a atividade básica está no aparelho estatal, como lavagem de dinheiro, desvio de verba pública etc. (Mingardi, 2007MINGARDI, Guaracy. O trabalho da inteligência no controle do crime organizado. Estudos Avançados, São Paulo, v. 21, n. 61, p. 51-69, 2007.).
  • 5
    Ou de “parentesco”, como retrata Misse (2011)MISSE, Michel. Crime organizado e crime comum no Rio de Janeiro: diferenças e afinidades. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 19, n. 40, p. 13-25, 2011. [Dossiê Crime, Segurança e Instituições Estatais: Problemas e Perspectivas]..
  • 6
    O direito penal foi a maneira de mobilização do tema da segurança pública no Legislativo. Sob a justificativa de combate à criminalidade, não é incomum o aumento de penas e criação de novas tipificações.
  • 7
    Nós discutimos o conceito e aplicação da “autoridade prática” adiante, abordando a teorização de Abers e Keck (2017)ABERS, Rebecca N.; KECK, Margaret. E. Autoridade prática, construção institucional e entrelaçamento. In: ABERS, Rebecca N.; KECK, Margaret. Autoridade prática, ação criativa e mudança institucional na política das águas no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2017. p. 29-61..
  • 8
    Nos anos 50 e 60, o “Grupo de Diligências Especiais” e a “Scuderie Le Cocq”, compostos pela Polícia do Rio de Janeiro, eram os principais grupos de extermínio. Seu modelo de atuação espalhou-se pelo país (Misse, 2011MISSE, Michel. Crime organizado e crime comum no Rio de Janeiro: diferenças e afinidades. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 19, n. 40, p. 13-25, 2011. [Dossiê Crime, Segurança e Instituições Estatais: Problemas e Perspectivas].).
  • 9
    Em outras palavras, as milícias ganham dinheiro e potencializam seus lucros por conta do seu envolvimento na política. Seja porque vendem influência política, ocupam cargos políticos e públicos, ou pela diminuição de entraves estatais para a economia criminal.
  • 10
    Como, por exemplo, as abordagens de Misse (2011)MISSE, Michel. Crime organizado e crime comum no Rio de Janeiro: diferenças e afinidades. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 19, n. 40, p. 13-25, 2011. [Dossiê Crime, Segurança e Instituições Estatais: Problemas e Perspectivas]., Alves (2020)ALVES, José Claudio de S. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense. 2. ed. Rio de Janeiro: Consequência, 2020. e Manso (2020)MANSO, Bruno Paes. A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020..
  • 11
    É uma situação controversa. O sistema de justiça teve altivez anticrime quando se trata das milícias. Quando se fala do governo estadual, a situação se inverte por conta da presença de policiais militares e apoio de políticos locais. As regiões dominadas por milícias representam 25% dos bairros da cidade do Rio de Janeiro, maior grupo do crime organizado, porém apenas 6% das operações policiais são realizadas nesses bairros, de acordo com o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos e Observatório das Metrópoles.
  • 12
    A adequação institucional refere-se aos espaços que fornecem acesso à esfera estatal ou aos processos pelos quais os atores políticos obtêm acesso para influenciar a formulação de políticas, os processos de tomada de decisão ou a entrada em cargos estatais (Carlos; Dowbor; Albuquerque, 2017CARLOS, Euzeneia; DOWBOR, Monika; ALBUQUERQUE, Maria do Carmo Alves. Movimentos sociais e seus efeitos nas políticas públicas: balanço do debate e proposições analíticas. Civitas: Revista De Ciências Sociais, Porto Alegre, v. 17, n. 2, p. 360-378, 2017.).
  • 13
    Foi o regime de 1964, em 1969, que integrou as policiais estaduais ao Exército como forma de ampliar o vigilantismo militar nos grandes centros urbanos (Pinheiro, 1982PINHEIRO, Paulo S. Polícia e crise política: o caso das polícias militares. In: PAOLI, Maria Célia; BENEVIDES, Maria Vitoria; PINHEIRO, Paulo Sérgio; DAMATTA, Roberto. A violência brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1982. p. 57-92.).
  • 14
    O uso político do medo como forma de mobilização de políticas de endurecimento penal, vigilantismo e militarização não é um evento exclusivo do Brasil Ver: Doran e Burgess (2012)DORAN, Bruce J.; BURGESS, Melissa. B. Putting fear of crime on the map. New York: Springer, 2012..
  • 15
    Baixos salários, falta de qualificação profissional, condições de trabalho desumanas, códigos disciplinares rígidos e falta de apoio psicológico são alguns dos problemas enfrentados por policiais militares (Soares, 2019SOARES, Luiz Eduardo. Desmilitarizar. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2019.).
  • 16
    O repertório refere-se a rotinas de reivindicações entre reclamante (movimento social) e objeto de reclamação. Todas as representações que caracterizam a interação entre atores coletivos e o alvo de sua reivindicação constituem um tipo de repertório de “confronto” (Tilly, 2006TILLY, Charles. Regimes and repertoires. 1. ed. Chicago: The University of Chicago Press, 2006.). Repertório é um condensado de instrumentos de ação para a busca de interesses, uma linguagem (Alonso, 2012ALONSO, Angela. Repertório, segundo Charles Tilly: história de um conceito. Sociologia & Antropologia, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 21-41, 2012.).
  • 17
    Como descrito, por conta da discricionaridade e autonomia do militar enquanto burocrata de rua.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Fev 2023
  • Aceito
    03 Nov 2023
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