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Bíblia, farda, empreendedorismo e luta contra o “sistema”: a cosmovisão das candidaturas bolsonaristas à prefeitura de Macapá em 2020

Bible, uniform, entrepreneurship, and fight against the “system”: the worldview of Bolsonarista mayoral candidates in Macapá in 2020

Resumo:

O objetivo deste artigo consiste na identificação dos principais elementos que compõem a cosmovisão das candidaturas mais claramente vinculadas ao bolsonarismo à Prefeitura de Macapá em 2020. A partir da realização de entrevistas semiestruturadas com os três candidatos e a candidata que, ao longo da campanha, buscaram vincular sua trajetória à imagem do Presidente da República, seus enunciados foram analisados e organizados em três campos semânticos principais: neoliberalismo, conservadorismo moral e retórica antissistema. A análise desses campos semânticos evidenciou dois elementos importantes: em primeiro lugar, a robusta coesão ideológica e discursiva do bolsonarismo, mesmo quando considerada sua manifestação local em um município distante, geográfica e institucionalmente, do centro hegemônico do país; e, em segundo lugar, o maior peso relativo dado a duas facetas da cosmovisão bolsonarista, o militarismo e o conservadorismo moral de corte pentecostal.

Palavras-chave:
bolsonarismo; Macapá; novas direitas; conservadorismo liberal

Abstract:

The goal of this paper consists in identifying the key elements that constitute the worldview of 2020 candidates for mayor of the city of Macapá who are connected to bolsonarismo. The study was based on semi-structured interviews with the four candidates who sought to associate their backgrounds to the image of the President. The article analyzes their affirmations, organizing them into three semantic groupings: neoliberalism, moral conservatism and anti-establishment rhetoric. The analysis of these semantic groupings highlighted two important elements: first, the robust ideological and discursive cohesion of bolsonarismo, even considering its local manifestation in a city that is geographically and institutionally far from the hegemonic center of the country; and second, the larger relative role played by two facets of the bolsonarista worldview, militarism and pentecostal moral conservatism.

Keywords:
bolsonarism; Macapá; new right; liberal conservatism

Introdução

O objetivo deste artigo é compreender, em linhas gerais, os fundamentos ideológicos que estruturaram o discurso das candidaturas abertamente bolsonaristas à prefeitura de Macapá em 2020, partindo da seguinte questão de pesquisa: qual é a cosmovisão que organiza politicamente o campo bolsonarista na capital amapaense? Assume-se, aqui, o conceito de ideologia segundo a clássica definição gramsciana, ou seja, uma concepção de mundo que se manifesta em todas as expressões da vida individual e coletiva, e que opera como força organizadora no sentido de moldar o terreno no qual os indivíduos atuam e lutam (GRAMSCI, 1991GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.). A hipótese que norteia esta investigação é que os conteúdos discursivos e ideológicos das candidaturas bolsonaristas em Macapá podem ser aglutinados a partir de três pilares: neoliberalismo, conservadorismo moral e retórica antissistema.

Além de compreender uma região em que o bolsonarismo parece ter conseguido empreender um grau considerável de enraizamento social, a Amazônia - e, em especial, o caso específico do Amapá - ainda carece de análises mais aprofundadas a respeito do fenômeno das novas direitas. Macapá se destaca, ainda, porque, diferentemente do que ocorreu em praticamente todas as demais capitais do país - em que houve uma cisão entre uma direita bolsonarista e uma direita não bolsonarista -, na capital amapaense o bolsonarismo foi, em grande medida, hegemônico.

A análise da cosmovisão das candidaturas à Prefeitura de Macapá abertamente identificadas com o bolsonarismo em 2020 foi feita a partir do próprio discurso dos atores analisados, sistematizado por intermédio de entrevistas semiestruturadas realizadas em novembro de 2020. O discurso é lido, aqui, segundo Maingueneau (1993)MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Pontes, 1993., ou seja, como uma organização reguladora e construtiva dos sentidos e dos próprios sujeitos. Os dados coletados por intermédio das entrevistas foram sistematizados em campos semânticos, estruturados em torno de ideias-força que aparecem de modo sistemático no discurso dos(as) entrevistados(as) (MESSENBERG, 2017MESSENBERG, Débora. A direita que saiu do armário: a cosmovisão dos formadores de opinião dos manifestantes de direita brasileiros. Revista Sociedade e Estado, v. 32, n. 3, p. 621-647, 2017.). A estruturação dos campos semânticos organizada neste trabalho parte das contribuições de Messenberg (2017)MESSENBERG, Débora. A direita que saiu do armário: a cosmovisão dos formadores de opinião dos manifestantes de direita brasileiros. Revista Sociedade e Estado, v. 32, n. 3, p. 621-647, 2017..

Foram escolhidos três candidatos e uma candidata para a realização das entrevistas: Guaracy Júnior (PSL), Patrícia Ferraz (PODEMOS), Cirilo Fernandes (PRTB) e Haroldo Iran (PTC). A escolha desses se deve à sua vinculação mais evidente com o campo bolsonarista: embora todos os candidatos declaradamente identificados com a direita na eleição municipal de 2020 em Macapá - Josiel Alcolumbre (DEM), Antônio Furlan (CIDADANIA), Guaracy Júnior (PSL), Patrícia Ferraz (PODEMOS), Cirilo Fernandes (PRTB) e Haroldo Iran (PTC) - tenham apoiado Jair Bolsonaro nas eleições de 2018, e, ainda que Josiel Alcolumbre tenha recebido o apoio direto do próprio ex-Presidente no segundo turno, os candidatos analisados aqui foram os únicos a reivindicarem seu pertencimento ao campo bolsonarista - tanto estética quanto programaticamente. Esse esforço de vinculação imagética de suas candidaturas ao campo bolsonarista também aparece por várias vezes nas entrevistas.

As entrevistas foram realizadas de maneira presencial (com duração média de uma hora), em Macapá, e possuíram, como roteiro estruturante, as seguintes questões: 1) O(a) senhor(a) se considera politicamente de direita, de centro ou de esquerda? Por quê? 2) Quais os principais problemas econômicos em Macapá e as possíveis soluções para eles? 3) Ainda em relação à economia, o(a) senhor(a) acredita que o mercado funciona melhor sem a intervenção do Estado ou com maior regulação estatal? 4) Quais os principais problemas da educação em Macapá e as possíveis soluções para eles? 5) Quais os principais problemas de violência e segurança pública em Macapá e as possíveis soluções para eles? 6) Na sua opinião, qual é o principal problema de Macapá hoje, e como lidar com ele? 7) Qual deve ser o papel dos militares (da religião e da família) na sociedade, na política e na educação? 8) Quais seriam as suas políticas para as mulheres (juventude, população negra e população LGBT)? 9) Como o(a) senhor(a) avalia as gestões do Prefeito Clécio Luis (sem partido), do Governador Waldez Góes (PDT) e do Presidente Jair Bolsonaro (sem partido)? 10) Como o(a) senhor(a) avalia o modo como a Prefeitura, o Governo Estadual e o Governo Federal agiram em relação à pandemia de COVID-19?

A entrevista semiestruturada foi escolhida como técnica de pesquisa dada a possibilidade de, ao mesmo tempo em que se estabelece um roteiro geral que guie a entrevista, dar ao(à) entrevistado(a) a liberdade para discorrer mais sobre determinados assuntos que forem surgindo, além de verticalizar a coleta de dados e permitir a produção de uma melhor amostra do grupo de interesse (BONI; QUARESMA, 2005BONI, Valdete; QUARESMA, Sílvia Jurema. Aprendendo a entrevistar: como fazer entrevistas em Ciências Sociais. Revista Eletrônica dos Pós-Graduandos em Sociologia Política da UFSC, v. 2, n. 1, p. 68-80, 2005.). Ademais, essa técnica de pesquisa permite que os fenômenos políticos e sociais possam ser escrutinados não apenas a partir de um olhar de fora, mas possibilita que os próprios atores elaborem discursos sobre as suas ações (BOLTANSKI, 2000BOLTANSKI, Luc. El Amor y la Justicia como competencias: tres ensayos de sociología de la acción. Buenos Aires: Amorrortu, 2000.).

A análise da manifestação local (situada em uma região periférica do país) de um fenômeno nacional (e, em grande medida, internacional) permite uma melhor compreensão não apenas da dinâmica intrínseca à política local, mas, sobretudo, permite que o próprio bolsonarismo seja melhor compreendido a partir de seu potencial de espraiamento discursivo e ideológico: a forte presença, no nível local, de eixos discursivos centrais à ideologia das novas direitas brasileiras (sistematizados nos campos semânticos identificados nas entrevistas) sugere não apenas a capacidade de enraizamento social desse campo, mas, sobretudo, que essa capacidade está intimamente vinculada à sua própria coesão ideológica. O fato de que a manifestação local do bolsonarismo em Macapá replique em grande medida as mesmas diretrizes ideológicas (e, por extensão, discursivas) de sua expressão nacional - embora com um peso relativo maior por parte da questão religiosa, como será explorado ao longo do texto - evidencia um traço fundamental desse fenômeno no Brasil: em um país marcado por forças políticas estadualizadas, e poucos partidos efetivamente nacionais e dotados de coesão ideológica, o bolsonarismo apresenta uma capilaridade bastante singular (sobretudo no campo da direita) e que se expressa não apenas imageticamente, mas, sobretudo, do ponto de vista ideológico.

O artigo está estruturado da seguinte maneira: de início, o esforço de reflexão reside em uma breve definição do fenômeno das novas direitas e de alguns fundamentos de sua inserção na Amazônia; em seguida, a análise é verticalizada para o caso específico do Amapá - com foco para a dinâmica política e institucional da sua capital, Macapá -, e estruturada em grande medida a partir dos dados coletados nas entrevistas, organizados analiticamente em campos semânticos; depois, as ideias-força que aglutinam discursivamente a cosmovisão dessas candidaturas são analisadas à luz dos elementos ideológicos estruturantes das novas direitas brasileiras; por fim, nas considerações finais, são apresentadas as principais características da cosmovisão das candidaturas bolsonaristas à Prefeitura de Macapá em 2020, além de breves notas a respeito de sua especificidade em relação aos elementos nacionais do campo.

Bolsonarismo e novas direitas na Amazônia

A eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência da República, em 2018, representou não apenas o retorno da direita (lato sensu) ao Executivo federal pela via eleitoral pela primeira vez desde 1998 - quando da reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso pelo PSDB, um partido de centro-direita - mas, sobretudo, o desaguadouro institucional do surgimento e da ascensão de novos grupos políticos no Brasil: as novas direitas (SILVA, 2021aSILVA, Ivan Henrique de Mattos e. Da Nova República à nova direita: o bolsonarismo como sintoma mórbido. Revista Sociedade e Cultura, v. 24, p. 1-37, 2021a.).

O conceito de novas direitas se refere aos novos movimentos sociais e grupos políticos surgidos, na arena pública brasileira, em meados da década de 2010, na esteira de manifestações de grande magnitude, como as Jornadas de Junho de 2013 e as marchas pelo impeachment da Presidenta Dilma Rousseff em 2015 e 2016 (ROCHA, 2018ROCHA, Camila. “Menos Marx, mais Mises”: uma gênese da nova direita brasileira (2006-2018). São Paulo, 2018. 233f. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.). Sua condição de novidade se justifica a partir da conjugação de cinco características fundamentais: um framework metapolítico, ou seja, a compreensão da arena cultural como lócus privilegiado de disputa política e a sua hegemonia nela uma condição ex ante para a disputa de espaços institucionais; o anti-intelectualismo, compreendido tanto como a rejeição aberta e frontal das instâncias tradicionais de produção, legitimação e reprodução dos regimes de verdade - notadamente, as universidades, centros de pesquisa e escolas -; o antielitismo, politicamente traduzido como a valorização ética, estética e epistemológica do cidadão médio e do senso comum como instrumento de apreensão do real; a instrumentalização do discurso politicamente incorreto como arma de uma retórica antissistema; e a síntese entre neoliberalismo e conservadorismo moral, aglutinados a partir da elevação da família patriarcal ao posto de categoria ordenadora do mundo social (SILVA, 2021bSILVA, Ivan Henrique de Mattos e. “Liberal na economia e conservador nos costumes”: uma totalidade dialética. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 36, n. 107, p. 1-19, 2021b.).

Embora as novas direitas componham um aglomerado plural e multifacetado (a despeito dos elementos comuns, elencados anteriormente) - que vai de ultraliberais até monarquistas, passando por militaristas, tradicionalistas e fundamentalistas cristãos -, o campo encontrou na candidatura liderada por Jair Bolsonaro, em 2018, o seu desaguadouro eleitoral. Entende-se aqui, por bolsonarismo, a expressão institucional das novas direitas no Brasil organizadas a partir da liderança (estratégica e, sobretudo, simbólica) do ex-Presidente da República, em relação a quem orbitam - inclusive do ponto de vista partidário.

Ainda que a Amazônia seja uma região constituída por uma pluralidade de trajetórias políticas e institucionais, além de distintos padrões de competição eleitoral e estruturação partidária, há, desde 2002 (e, de modo mais evidente, a partir de 2014), um traço aglutinador importante: a despeito das suas especificidades, todos os nove estados da região observaram um robusto realinhamento eleitoral, com os seus padrões de voto caminhando cada vez mais rumo à direita do espectro ideológico para todos os cargos e em todos os pleitos (SANTOS, 2022SANTOS, Fabiano Guilherme Mendes. A dinâmica eleitoral nos estados da Amazônia Legal: um quadro sintético e comparativo. Laboratório de Estudos Geopolíticos da Amazônia Legal (LEGAL), 6 set. 2022. Disponível em: Disponível em: https://legal-amazonia.org/a-dinamica-eleitoral-nos-estados-da-amazonia-legal-um-quadro-sintetico-e-comparativo/ . Acesso em: 4 jan. 2023.
https://legal-amazonia.org/a-dinamica-el...
). Em 2018, das quatro maiores vantagens eleitorais de Bolsonaro no segundo turno, três foram na Amazônia (região em que foi derrotado apenas no Pará) - Acre, Rondônia e Roraima -, e, em 2022, esses estados representaram suas maiores vantagens no país.

Essa trajetória encontra seu ápice em 2018, na esteira da eleição de Jair Bolsonaro (então no PSL) para a Presidência da República: dos nove governadores eleitos naquele momento, sete se vincularam abertamente ao campo bolsonarista, inclusive governadores de partidos de centro-esquerda e com tradição de alinhamento ao campo nacional petista. Ademais, doze dos(as) dezoito senadores(as) que conquistaram um mandato estavam alinhados ao candidato então pertencente ao PSL.

Se, por um lado, as eleições de 2022 representaram um pequeno recuo na trajetória de conversão conservadora do padrão de voto na Amazônia, por outro, a robustez do voto bolsonarista novamente ficou evidente. Desta vez, seis dos nove governadores eleitos cerraram fileiras com Bolsonaro, contra dois lulistas. Além disso, quatro dos(as) nove senadores(as) o apoiaram abertamente, contra três lulistas e dois neutros. Vale ressaltar que até mesmo o governador Wilson Lima (PSC), do Amazonas, conseguiu ser reeleito com forte apelo bolsonarista, apesar do trauma vivido por Manaus no ápice da pandemia de Covid-19.

O caso do Amapá é bastante emblemático do sucesso eleitoral e simbólico do bolsonarismo na Amazônia: com trajetória de voto mais à esquerda, o estado seguiu a tendência verificada pela região e passou por um reordenamento ideológico do voto para todos os cargos. Dois deles chamam a atenção: os votos para o Governo do Amapá e para a Presidência da República. Em 2002 e 2006, a direita praticamente não recebeu votos nas disputas pelo governo estadual, e, desde 2010, verificou um crescimento sistemático, alcançando mais de 30% dos votos totais no primeiro turno de 2018:

Gráficos 1 e 2.
Votos para o GEA por perfil ideológico (primeiro turno)

Para a Presidência da República, o salto é ainda mais significativo e abrupto. Não à toa o então candidato à reeleição ao Governo do Amapá, Waldez Góes (PDT) - que havia tentado visitar Lula (de quem é, hoje, Ministro da Integração e do Desenvolvimento Regional) na prisão, em Curitiba, antes do primeiro turno de 2018, decide apoiar Jair Bolsonaro no segundo turno contra Fernando Haddad (PT), mirando os votos conservadores no estado:

Gráficos 3 e 4.
Votos para a Presidência da República por perfil ideológico (primeiro turno)

Em 2018 e 2020, vincular-se à imagem de Bolsonaro parecia significar um importante trunfo eleitoral no Amapá. Várias são as variáveis apontadas na literatura como explicação para o forte apelo eleitoral de Jair Bolsonaro: o antipetismo, o peso do voto evangélico (sobretudo de matrizes pentecostal e neopentecostal), a crise econômica após 2015, o ressentimento de parcelas das classes médias frente à ascensão de grupos subalternos, a crise da centro-direita, o papel dos militares etc. Duas dessas variáveis são cruciais para a compreensão do fenômeno na Amazônia, de um modo geral, e no Amapá, de modo mais específico (e aparecem, de modo sistemático, nas entrevistas): o peso do voto evangélico (BURITY, 2018BURITY, Joanildo. A onda conservadora na política brasileira traz o fundamentalismo ao poder? In: ALMEIDA, Ronaldo de; TONIOL, Rodrigo (orgs.). Conservadorismos, Fascismos e Fundamentalismos - Análises conjunturais. Campinas: Editora da Unicamp, 2018. p. 15-66.) e a posição estratégica ocupada pelas Forças Armadas na região (LEIRNER, 2020LEIRNER, Piero. O Brasil no espectro de uma guerra híbrida: militares, operações psicológicas e política em uma perspectiva etnográfica. São Paulo: Alameda, 2020.).

O censo de 2010 já apontava a Região Norte do país - junto com o Centro-Oeste - com uma população evangélica relativa superior à média nacional, dados corroborados por uma pesquisa do Datafolha, de 2020 (SPYER, 2020SPYER, Juliano. Povo de Deus: quem são os evangélicos e por que eles importam. São Paulo: Geração Editorial, 2020.), que indicava que o Norte possuía a maior porcentagem de evangélicos do país (39%), seguido pelo Centro-oeste (33%):

Figura 1.
Concentração de evangélicos no Brasil (2010)

Há algumas hipóteses importantes, na literatura, a respeito da relação entre pobreza e precarização do trabalho (que atingem, de modo bastante agudo, a Amazônia) e o avanço das igrejas evangélicas (sobretudo, pentecostais e neopentecostais). Segundo Spyer (2020)SPYER, Juliano. Povo de Deus: quem são os evangélicos e por que eles importam. São Paulo: Geração Editorial, 2020., para além do seu aspecto transcendente e sobrenatural, há, também, no processo de conversão de parcelas expressivas das classes populares um elemento bastante concreto: indivíduos convertidos, em geral, ascendem econômica e socialmente (seja pela superação do alcoolismo, pela sistematização de uma disciplina laboral etc.). Ademais, a teologia pentecostal fornece novos significados para o sofrimento e a precariedade, assumidos como a ordem natural do mundo material (FELTRAN, 2020FELTRAN, Gabriel. Formas elementares da vida política: sobre o movimento totalitário no Brasil (2013- ). Blog Novos Estudos CEBRAP, 2020. Disponível em: Disponível em: http://novosestudos.com.br/formas-elementares-da-vida-politica-sobre-o-movimento-totalitario-no-brasil-2013/ . Acesso em: 10 jan. 2023.
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), fortalece os laços comunitários e de afirmação da dignidade (BURITY, 2018BURITY, Joanildo. A onda conservadora na política brasileira traz o fundamentalismo ao poder? In: ALMEIDA, Ronaldo de; TONIOL, Rodrigo (orgs.). Conservadorismos, Fascismos e Fundamentalismos - Análises conjunturais. Campinas: Editora da Unicamp, 2018. p. 15-66.), e, ao ensejar a produção de uma disposição empreendedora individualista, não apenas dá sentido às ações dos indivíduos, mas, também, motiva pragmaticamente o fiel: a questão não é desconstruir as desigualdades - assumidas como inerentes ao mundo material -, mas ascender individualmente em meio às desigualdades (ALMEIDA, 2019ALMEIDA, Ronaldo de. Deus acima de todos. In: Democracia em Risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. p. 35-51.).

Em 2010, o número de evangélicos representava 28% da população do Amapá - com destaque para a Assembleia de Deus (AD) (REIS; MANDUCA; CARMO, 2018REIS, Marcos Vinícius de Freitas; MANDUCA, Vinícius; CARMO, Arielson Teixeira do. O campo religioso amapaense: uma análise a partir do Censo do IBGE 2010. In: BASTONE, Paula; REIS, Marcos Vinícius de Freitas (orgs.). Religião e religiosidade na Amazônia e na contemporaneidade. Macapá: Editora da UNIFAP, 2018. p. 156-178.) -, e ele tem apresentado um crescimento bastante significativo, que se expressa, também, de um ponto de vista institucional: em 2017, o Governo do Amapá sancionou uma lei (aprovada na Assembleia Legislativa do Amapá por unanimidade) que tornou o dia 27 de junho (aniversário da AD no estado) Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial para o Estado do Amapá, e, em 2018, foi instituído no Amapá o Dia do Evangélico, a ser comemorado no dia 30 de novembro.

Quanto à centralidade que as Forças Armadas ocupam no imaginário político e social da Amazônia, algumas questões devem ser consideradas, para além da forte presença de militares na política da região ao longo do século XX (o primeiro governador do Amapá, por exemplo, indicado por Vargas - Janary Nunes - era Coronel do Exército Brasileiro): em primeiro lugar, o próprio perfil das unidades do Exército na Amazônia está configurado para que se dediquem, prioritariamente, a ações cívico-sociais (MARQUES, 2007MARQUES, Adriana Aparecida. Amazônia: pensamento e presença militar. São Paulo, 2007. 233f. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.); em segundo lugar, porque fornecem uma perspectiva de ascensão social a partir de uma carreira de Estado, em meio a índices de pobreza mais elevados que a média nacional (SANTOS ET AL., 2019SANTOS, Andreza Aruska de Souza et al. Dataset on the perceptions of Brazilian youth toward a military career post-Covid-19. University of Oxford - Brazilian Studies Programme (preprint), 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.lac.ox.ac.uk/sites/default/files/lac/documents/media/pre_print_final_de_souza_santos_et_al._20.06.pdf?time=1655902520529 . Acesso em: 17 jun. 2023.
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); e, por fim, pela própria constituição da Amazônia como uma área de fronteira estratégica no conjunto doutrinário das Forças Armadas após a década de 1980 (LEIRNER, 2020LEIRNER, Piero. O Brasil no espectro de uma guerra híbrida: militares, operações psicológicas e política em uma perspectiva etnográfica. São Paulo: Alameda, 2020.).

A próxima seção tem como objetivo central realizar essa mediação entre um fenômeno mais amplo e a sua configuração no contexto específico da capital amapaense.

As novas direitas e a eleição de 2020 em Macapá

O Amapá é um estado bastante jovem: Território Federal entre 1943 e 1988, a recente estruturação do seu sistema partidário foi hegemonizada, em grande medida (sobretudo considerando as disputas pelo Executivo), por dois partidos: o PDT e o PSB. Há, aqui, um dado importante: o predomínio desses dois partidos na política amapaense também traduz o domínio de duas das principais famílias políticas do estado, a família Capiberibe (PSB) e a família Góes (PDT) - entre 1994 e 2018, os dois partidos elegeram todos os governadores. A crítica à centralidade política das duas famílias e de seus partidos compôs um elemento estruturante de novas forças políticas no estado, tanto à esquerda - como no caso do ex-Prefeito Clécio Luís (eleito, pela primeira vez, pelo PSOL) - quanto à direita - como no caso dos três candidatos e da candidata que participaram das entrevistas analisadas aqui.

Também é preciso considerar o peso que Macapá possui na dinâmica política estadual: 60% da população do Amapá vive na capital, e, embora PDT e PSB tenham elegido apenas três prefeitos entre 1988 e 2020, as articulações vitoriosas passaram, em grande medida, pelo aval das famílias Capiberibe e Góes - hegemonia quebrada, no município, com a vitória do candidato do PSOL em 2012 (reeleito em 2016, dessa vez pela REDE).

As eleições de 2020 em Macapá contaram com dez candidaturas no primeiro turno: João Capiberibe (PSB), Gianfranco (PSTU), Paulo Lemos (PSOL) e Professor Marcos (PT), pela esquerda; e Josiel Alcolumbre (DEM), Antônio Furlan (CIDADANIA), Guaracy Júnior (PSL), Patrícia Ferraz (PODEMOS), Cirilo Fernandes (PRTB) e Haroldo Iran (PTC), pela direita. De início, chama atenção a profusão de candidaturas identificadas com a direita ideológica: considerados apenas os votos válidos, as candidaturas abertamente identificadas com a direita receberam 78,95% dos votos.4 4 Cálculo feito pelos autores a partir da base de dados disponibilizada pelo TSE. Outro elemento merece atenção: a despeito de candidaturas vinculadas a partidos que poderiam ser incluídos - sob várias categorias - no espectro do centro (tais como o Cidadania e o Podemos), os(as) candidatos(as) buscaram uma identificação direta com um dos dois polos ideológicos. A eleição de 2020, em Macapá, ainda esteve em grande medida vinculada aos ecos da eleição presidencial de 2018, e a polarização (ideológica e discursiva) foi elevada ao centro da disputa.

Duas variáveis intervenientes compõem o pano de fundo da disputa eleitoral de 2020 no Amapá: a pandemia, por um lado (nesse caso, fator que impactou as eleições em todo o país), e a crise energética de novembro de 2020. Durante 22 dias, o estado viveu uma crise energética que atingiu 13 dos 16 municípios do estado, sendo quatro dias de um apagão completo que iniciou uma reação em cadeia, impossibilitando o fornecimento de água - o que acarretou um aumento dos casos de diarreia e intoxicação entre crianças, que, por sua vez, pressionou ainda mais o sistema público de saúde (já bastante afetado por uma nova onda da pandemia) - e colocando em risco a segurança alimentar de centenas de milhares de amapaenses, dada a especulação inflacionária e a constante ameaça de desabastecimento.

A primeira candidata cuja entrevista será mobilizada aqui é Patrícia Lima Ferraz. Dentista e natural de Belo Horizonte (MG), chegou ao Amapá em 2002, passando a trabalhar como odontóloga do Programa Saúde da Família (PSF) - posição a partir da qual conseguiu sedimentar certa visibilidade. Em 2014, disputou as eleições para uma cadeira como deputada federal pelo Amapá, pelo PSC, obtendo um total de 9.678 votos (2,51%), ocasião em que não foi eleita, ficando apenas na condição de suplente.

Já em 2018, disputando novamente o legislativo federal, só que dessa vez pelo PR, foi eleita suplente, recebendo um total de 12.950 votos (3,55%). Assumiu, na condição de suplente, o mandato de deputada federal no período de 5 de dezembro de 2019 até 22 de junho de 2020, ano em que disputou a eleição para a prefeitura de Macapá.

Seu crescente desempenho eleitoral, enfatizado pelo aumento no número de votos obtidos entre 2014 e 2018 - 3.272 votos a mais entre um pleito e outro - a motivou a concorrer ao executivo municipal de Macapá. Agora filiada ao PODEMOS, Patrícia Ferraz disputou a eleição para prefeitura de Macapá, em 2020 - com forte apoio discursivo na insatisfação generalizada decorrente da crise energética -, e obteve 22.761 votos, o que representou 11,27% dos votos totais no primeiro turno, ficando em quinto lugar na disputa eleitoral.

Haroldo Iran Gomes da Silva é policial rodoviário federal, natural de Macapá, e foi um dos candidatos à prefeitura nas eleições municipais de 2020. Não foi, contudo, o primeiro pleito em que ele concorreu a uma vaga, tendo já disputado nas eleições anteriores (2018) uma vaga na Assembleia Legislativa, quando se candidatou pelo PTC, contabilizando apenas 324 votos (0,08%). Já em 2020, ainda pelo PTC, Haroldo Iran se candidatou à Prefeitura Municipal de Macapá, tendo obtido 4.022 votos (1,99%), o que lhe rendeu a oitava colocação entre os dez candidatos à prefeitura. Na esteira da ascensão bolsonarista, sua projeção política se deu, em grande medida, nas redes sociais, a partir de suas três páginas no Facebook: Direita Tucuju, Acorda Amapá e Parasitas do Amapá.

Antônio Cirilo Fernandes Borges é servidor público, natural de Macapá, e concorreu pela primeira vez na eleição municipal de 2008, pelo PTB, ao cargo de vereador. Em 2010 - ainda pelo PTB -, disputa uma vaga na Câmara dos Deputados. Em 2012, concorre a mais uma eleição municipal ao cargo de vereador, dessa vez pelo PSOL (concorrendo, pela primeira vez, por um partido de esquerda), e em 2014 concorre pelo PPS à vaga de Deputado Estadual.

Na esteira do paulatino enraizamento social do bolsonarismo, em 2018, Cirilo Fernandes se filia ao PSL, buscando uma candidatura ao Governo do Estado do Amapá. Frente a nomes tradicionais na política amapaense, como Waldez Góes (PDT), João Capiberibe (PSB) e Davi Alcolumbre (DEM), sua candidatura se destacou por ter conquistado o posto de quarta maior força nas eleições estaduais.

A visibilidade política e eleitoral que sua campanha conquistou em 2018 colocou-o como forte indicado a uma candidatura à prefeitura de Macapá em 2020. Como o PSL já contava com outros planos para as eleições de 2020 em Macapá, Cirilo Fernandes se filiou ao PRTB - buscando, novamente, vincular-se à retórica e estética bolsonaristas - para concorrer à prefeitura da capital, encerrando o pleito com 23.558 votos no primeiro turno (quarto colocado). Embora tenha sido candidato em diversos pleitos - e por vários partidos -, Cirilo só conseguiu alguma projeção a partir de sua vinculação com a campanha de Jair Bolsonaro, em 2018.

Guaracy Batista da Silveira Júnior é pastor (e principal liderança) da Igreja do Evangelho Quadrangular (IEQ) no Amapá e empresário. Natural de Belém, teve seu primeiro registro de candidatura na Justiça Eleitoral para concorrer ao cargo de deputado estadual pelo estado de Tocantins pelo PSC em 2006, embora tenha optado por renunciar posteriormente ao pleito. Sua primeira disputa eleitoral dá-se em 2018, pelo PTC, quando concorreu a uma vaga de Senador da República pelo Amapá, com forte apoio discursivo e ideológico no bolsonarismo - tendo recebido, então, 40. 558 votos.

Em 2020, Guaracy Júnior se filiou ao PSL para concorrer à prefeitura de Macapá. Sua estratégia foi disputar o eleitorado conservador no município a partir da ideia de que, se eleito prefeito, seria a personificação de Jair Bolsonaro na gestão municipal. Apesar do forte apelo conservador e religioso, sua candidatura terminou na sexta colocação, com 17.182 votos. Ainda que a sua enfática reivindicação das pautas bolsonaristas tenha, desde 2018, rendido um relativo crescimento eleitoral, seu capital deriva, antes disso, de sua posição à frente da IEQ no estado.

Com a exceção de Cirilo, todos os candidatos possuem trajetória partidária junto a partidos da direita fisiológica, e com pouca ou nenhuma clareza ideológica, o que indica certo cálculo político conjuntural em sua adesão à retórica bolsonarista. A exceção, aqui, parece confirmar a regra: o candidato do PRTB - embora também tenha iniciado sua trajetória em um partido da direita fisiológica (o PTB) - fez uma trajetória de conversão ideológica bastante profunda, saindo do PSOL até chegar ao partido do então vice-Presidente Hamilton Mourão, também sempre fortemente pautado pelos ventos da conjuntura - sua filiação ao PSOL deu-se em meio ao sucesso eleitoral do ex-Prefeito de Macapá (primeiro prefeito eleito pelo PSOL em uma capital, em 2012).

A seguir, serão esmiuçados os conteúdos discursivos dos candidatos, organizados em campos semânticos que aglutinam boa parte dos enunciados emitidos ao longo das entrevistas.

Neoliberalismo, conservadorismo moral e retórica antissistema

Foram identificados três campos semânticos principais que aglutinaram, em grande medida, os enunciados proferidos pelos candidatos entrevistados: neoliberalismo, conservadorismo moral e retórica antissistema. Cada um desses campos está estruturado em torno de ideias-força mobilizadas como chaves discursivas organizadoras das suas falas.

Quadro 1.
Campos Semânticos

É importante que sejam feitas, aqui, algumas definições conceituais: se, por liberalismo, entende-se o campo (surgido como contraponto ao Estado absolutista) ancorado no tripé individualismo, jusnaturalismo e contratualismo, que sustenta uma concepção de Estado cujos poderes e funções são limitados (BOBBIO, 2017BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia. Tradução de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Edipro, 2017.), e que possui na República (compreendida em sua chave rousseauniana) seu horizonte normativo (KERSTENETZKY, 2005KERSTENETZKY, Celia Lessa. Progresso e pobreza na economia política clássica. Texto Para Discussão 184. Niterói: Faculdade de Economia - UFF, 2005. 19p.), o conceito de neoliberalismo corresponde tanto a uma redefinição intelectual do campo liberal, na esteira da crise (econômica, política e epistemológica) do final do século XIX e início do século XX (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016.), quanto a uma reorganização do próprio regime de acumulação no capitalismo pós-fordista (DARDOT; LAVAL; 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016.; HARVEY, 2005HARVEY, David. A brief history of neoliberalism. Nova Iorque: Oxford University Press, 2005.), que compreende: uma defesa do papel ativo do Estado na constante reposição dos fundamentos da competição de mercado (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016.), a elevação do mercado à condição de lócus privilegiado (ou, mesmo, único) de realização da vida social (HARVEY, 2005HARVEY, David. A brief history of neoliberalism. Nova Iorque: Oxford University Press, 2005.), e a estruturação de um modelo específico de racionalidade, ancorado na subjetivação de um “governo de si mesmo” enquanto empresa (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016.).

Por conservadorismo moral, assume-se o conjunto de valores que organiza, ideologicamente, a cosmovisão conservadora - ou seja, um modelo patriarcal de família, a centralidade ontológica da religião, o militarismo como elemento constitutivo da vida social, a heteronormatividade e a cristalização das desigualdades compreendidas como a ordem natural do mundo (NETTO; CAVALCANTE; CHAGURI, 2019NETTO, Michel Nicolau; CAVALCANTE, Sávio Machado; CHAGURI, Mariana Miggiolaro. O homem médio e o conservadorismo liberal no Brasil contemporâneo: o lugar da família. In: Encontro Anual da ANPOCS, 43., Caxambu. Anais [...] Caxambu: ANPOCS, 2019. p. 1-18.; PINHEIRO-MACHADO, 2019PINHEIRO-MACHADO, Rosana. Amanhã vai ser maior - o que aconteceu com o Brasil e possíveis rotas de fuga para a crise atual. São Paulo: Editora Planeta, 2019.; SILVA, 2021bSILVA, Ivan Henrique de Mattos e. “Liberal na economia e conservador nos costumes”: uma totalidade dialética. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 36, n. 107, p. 1-19, 2021b.) -; e, por fim, a retórica antissistema corresponde à estruturação de uma retórica disruptiva e performática, típica dos contrapúblicos (ROCHA, 2018ROCHA, Camila. “Menos Marx, mais Mises”: uma gênese da nova direita brasileira (2006-2018). São Paulo, 2018. 233f. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.), que foi fundamental para a própria constituição das novas direitas, por um lado, e para a captura de uma insatisfação difusa e crescente no Brasil após 2013 em um sentido conservador (SILVA, 2021aSILVA, Ivan Henrique de Mattos e. Da Nova República à nova direita: o bolsonarismo como sintoma mórbido. Revista Sociedade e Cultura, v. 24, p. 1-37, 2021a.).

Os dois primeiros campos identificados, aqui, reproduzem os dados encontrados por Messenberg (2017)MESSENBERG, Débora. A direita que saiu do armário: a cosmovisão dos formadores de opinião dos manifestantes de direita brasileiros. Revista Sociedade e Estado, v. 32, n. 3, p. 621-647, 2017. em relação ao conteúdo discursivo dos formadores de opinião das manifestações conservadoras de 2015, e traduzem, ainda, um elemento central da constituição ideológica das novas direitas no Brasil contemporâneo: a síntese entre neoliberalismo e conservadorismo moral (SILVA, 2021bSILVA, Ivan Henrique de Mattos e. “Liberal na economia e conservador nos costumes”: uma totalidade dialética. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 36, n. 107, p. 1-19, 2021b.), que Netto, Cavalcante e Chaguri (2019)NETTO, Michel Nicolau; CAVALCANTE, Sávio Machado; CHAGURI, Mariana Miggiolaro. O homem médio e o conservadorismo liberal no Brasil contemporâneo: o lugar da família. In: Encontro Anual da ANPOCS, 43., Caxambu. Anais [...] Caxambu: ANPOCS, 2019. p. 1-18. definem como o novo conservadorismo liberal.

As menções a princípios neoliberais aparecem de modo transversal nas entrevistas de todos os candidatos, sobretudo em três eixos argumentativos: a crítica à “economia do contracheque” (o peso ocupado pelo serviço público na composição da renda da população amapaense, pari passu com o baixo dinamismo do setor privado local); o papel da iniciativa privada na criação de empregos e, por extensão, de renda para a população; e a defesa do empreendedorismo como estratégia de emancipação econômica das classes populares.

O primeiro eixo aparece de modo direto nas falas da candidata Patrícia Ferraz e dos candidatos Haroldo Iran e Cirilo Fernandes. Quando perguntada a respeito dos principais problemas econômicos na cidade de Macapá, Patrícia Ferraz apontou exatamente a dependência dos cargos públicos e, por outro lado, a existência de monopólios:

Monopólios, né? A gente precisa ter uma cidade com incentivos fiscais, com liberalismo econômico. Cobertura do comércio não só do Brasil, mas do exterior. Nós somos aqui um estado que tem uma divisa com a Guiana Francesa, que é a porta de entrada para a Europa, para primeiro mundo. E a gente precisa ter um município, né? Uma capital de um estado, que é Macapá, que tem aí mais de 500 mil habitantes, que detém grande parte da população do estado. E essas pessoas precisam de geração de emprego e renda. Sair da dependência do contracheque, sair da dependência dos contratos e cargos comissionados, e virar uma cidade modelo, com infraestrutura e com atrativos fiscais para que novas empresas e novas indústrias venham para o Amapá5 5 Os trechos das entrevistas utilizados aqui passaram por pequenas modificações de forma, sem, todavia, qualquer alteração de conteúdo, para suprimir repetições de palavras e hesitações, por exemplo, tornando, assim, o texto mais fluido. (Patrícia Ferraz, PODEMOS, novembro de 2020).

Quando a mesma pergunta foi feita ao candidato Haroldo Iran, a resposta dada foi no mesmo sentido. O desemprego aparece como o principal drama político, econômico e social da cidade, e, por outro lado, o empreendedorismo (segundo eixo das ideias-força identificadas na pesquisa) surge como possível solução:

Em 2020, segundo o IBGE e segundo a Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios, a PNAD, nós ficamos em segundo lugar no primeiro trimestre de 2020, só perdemos para o estado da Bahia. Um dos maiores índices de desemprego. Nós temos o quê? Que melhorar nossas condições de infraestrutura, seja lá de saneamento básico, educacional, de saúde pública, de pavimentação das nossas vias, acessibilidade, transporte público, para poder trazer grandes investimentos para essa geração de emprego aqui pra o estado do Amapá e fomentar as políticas públicas, né? Incentivar o pequeno empreendedor a sair da ‘’saia’’ do poder público, né? Essa é a saída para gerar emprego e renda, sair dessa economia do contracheque (Haroldo Iran, PTC, novembro de 2020).

A crítica à “economia do contracheque” aparece em dois momentos da entrevista com o candidato Cirilo Fernandes. A primeira vez, quando perguntado a respeito de como ele se definia ideologicamente, e, a segunda vez, na sequência de uma pergunta sobre quais seriam as suas políticas para a população negra, para as mulheres, e para a população LGBTQIA+, em que Cirilo Fernandes indicou a importância do empreendedorismo:

Então, o que é que a gente percebe? O município de Macapá tem uma das maiores taxas de desemprego. A economia gera mais da economia de contracheque, dos governos federal, estadual e municipal, e um pouco do comércio, né? Onde tem emprego. O sonho de todo jovem é fazer um concurso público, é ser concursado para ter estabilidade. Infelizmente, é uma realidade que não vai ser para todos. A máquina está inchada, nós precisamos diminuir os custos com a máquina pública para poder investir, e o que vai gerar emprego e renda é o setor produtivo, é o setor primário, é o setor privado (Cirilo Fernandes, PRTB, novembro de 2020).

Ainda que a crítica ao papel do Estado na economia apareça na fala do candidato Guaracy Júnior, suas respostas foram menos voltadas ao contexto específico da cidade de Macapá ou mesmo do Estado do Amapá, e mais vinculadas a comentários mais gerais sobre a realidade brasileira. Ao justificar que se considerava um candidato de direita e liberal na economia, essa crítica foi parte central da sua argumentação:

Por que liberal? Porque até hoje o que nós temos visto no mundo é que o único sistema que deu certo é quando o governo tira a mão. Tudo o que o governo põe a mão, tenta controlar, quanto mais impostos se cobra, mais o povo sofre e vira uma hipocrisia, vira um Estado viciado. Qual o problema, hoje, no Brasil? Algumas pessoas discordam quando eu digo que o Brasil virou um país comunista. Dizem: “o Brasil está longe do comunismo”. O que acontece? O nosso maior sócio é o Estado. Olha, tu estás com este álcool em gel aqui. Este álcool, para chegar aqui, saiu de uma fábrica, chegou a um distribuidor, passou por um frete que foi de um para o outro - talvez ele tenha chegado a uma distribuidora no centro-oeste, em São Paulo ou até mesmo no Pará -, daí foi enviado para uma farmácia ou um comércio qualquer. Quando ele chegou até você, ele saiu de lá por sessenta centavos e vai chegar aqui por nove reais, dez reais. Por quê? Houve uma incidência de imposto em cascata, aqui (Guaracy Júnior, PSL, novembro de 2020).

A crítica à “economia do contracheque”, quanto ao caso específico do Amapá - nas falas de Patrícia Ferraz, Haroldo Iran e Cirilo Fernandes -, ou, de modo mais geral, ao papel nocivo do Estado na economia - como no caso da fala de Guaracy Júnior -, é sempre contraposta ao potencial dinamizador representado pela iniciativa privada. Em boa parte dos casos, a defesa do setor privado como eixo dinamizador das atividades econômicas assume especificamente a forma da defesa do empreendedorismo - sempre vinculado, retoricamente, a uma superioridade ética e moral da ação empreendedora quando comparada à dependência do Estado.

Esse argumento aparece na fala de Haroldo Iran, ao apontar o empreendedorismo como a via pela qual os indivíduos poderiam deixar a “saia do Estado”. Aparece, também, na fala de Cirilo Fernandes, que aponta como uma de suas estratégias de governo a introdução no currículo escolar de disciplinas sobre mercado financeiro e empreendedorismo, “para, também, a criança começar a crescer com aquela vontade de ser empreendedor, de poder crescer a economia, de desenvolver economicamente o nosso município” (Cirilo Fernandes, PRTB, novembro de 2020). Por fim, aparece na fala de Guaracy Júnior como estratégia de combate à criminalidade, dando, aos(às) jovens um caminho ético e digno como alternativa à criminalidade:

Eu perguntei para um grande industrial brasileiro por que ele não vai se instalar no Amapá. Ele disse que já foi expulso de lá. Daí, eu perguntei, depois, eu tentei voltar, mas eu me deparei com insegurança jurídica. Enche de político em volta do cara pedindo aquilo que a gente falou, achacando ou chantageando: ‘me dá tanto que tu vais ter tudo aquilo que tu queres’, e o cara não vai se vender por isso. Para a nossa juventude, nós precisamos ter um parque industrial grande, nós precisamos ter uma educação de boa qualidade, aí eu digo com ensino empreendedor, com ensino vocacional, para que ele descubra. Eu acredito que cada pessoa nasceu com um objetivo, nasceu para realizar algo grande na face da terra. Um Deus grande criou uma humanidade perfeita, nós somos filhos de Deus e cada pessoa nasceu com a sua vocação. Se a pessoa quer descobrir o sucesso, ela precisa descobrir a sua vocação. Ela precisa fixar nela. As escolas não estão ensinando isso, a maioria dos nossos jovens está sem direção (Guaracy Júnior, PSL, novembro de 2020).

A adesão a valores conservadores aparece nas entrevistas como um elemento estrutural da maneira pela qual os próprios candidatos buscam se vincular eticamente com o campo da direita política (colocado, frequentemente, lado a lado com os princípios neoliberais), e apareceu de modo mais direito em resposta à questão sobre como o(a) entrevistado(a) se identificava ideologicamente - direita, centro ou esquerda:

De direita que adora projetos sociais, que valoriza os direitos dos trabalhadores, que direito adquirido é direito a ser cumprido, né? Que pensa numa política de igualdade. Que é a favor da família. Que é a favor dos alicerces de uma vida cristã. Temente a Deus. Então, se esses são os conceitos de ser de direita, eu sou de direita. Eu sou a favor de protestos, mas eu não sou a favor de anarquia. Então, é bem diferente disso. Eu acho que você tem que lutar pelos seus direitos, valorizar o que você já adquiriu, mas com responsabilidade, com respeito. Então eu me sinto uma cidadã de direita (Patrícia Ferraz, PODEMOS, novembro de 2020).

Da direita, né? Conservo os princípios da família, pátria. Então, os princípios são: Deus, pátria e família. E a gente busca também o desenvolvimento econômico. Não de dar o peixe, mas de ensinar a pescar. Então, nós somos por essa ala, de buscar o desenvolvimento econômico, de ser um empreendedor. Hoje a gente vive uma economia de contracheque, então, a gente precisa motivar as pessoas a empreender, a serem novos empresários, novos empreendedores, geradores de emprego e renda (Cirilo Fernandes, PRTB, novembro de 2020).

Eu posso dizer o seguinte, alguém me diz assim: ‘ah, direita, esquerda, centro... Guaracy, você se considera de centro?’ Não, eu tenho posições bem firmadas e fortalecidas na direita conservadora, mas não na direita extremista. Eu acho que todo extremismo é negativo. Todo extremismo é negativo! Mas me coloco, sim, como direita, defendo os valores cristãos, defesa da família, defesa da pátria, e digo que sou liberal no que tange à economia (Guaracy Júnior, PSL, novembro de 2020).

No caso de Haroldo Iran, os argumentos mobilizados para justificar sua vinculação ao campo da direita estiveram mais ligados aos princípios neoliberais do que, especificamente, aos valores conservadores - diminuição do Estado, defesa da iniciativa privada, meritocracia etc. -, e sua adesão a valores conservadores aparece de modo mais direto em três momentos: quando perguntado a respeito de qual deveria ser o papel da família na sociedade, na política e na educação, e qual o papel dos militares e da religião nesses três campos.

Quanto ao papel da religião, diz Haroldo Iran:

Quem nós somos? Nós somos direita, como eu estou te falando. Nós somos cristãos, né? Pregamos, aí, pelo conservadorismo, né? Pelos métodos tradicionais, né? Pelo comportamento tradicional. Acho mais importante a pessoa ter uma religião, né? (Haroldo Iran, PTC, novembro de 2020).

A defesa da família como núcleo ordenador das sociedades aparece de modo difuso, embora transversal, em todas as entrevistas, mas é em relação ao papel dos militares que há um maior consenso entre eles: todos os quatro entrevistados defendem a adoção das escolas cívico-militares como estratégia de qualificação do ensino público.

Eu sou a favor de militarizar as escolas municipais e estaduais. Eu sou a favor de disciplina, eu sou a favor de regra. A vida tem que ter regra, regras são feitas para serem cumpridas. Disciplina, organização. Não dá para ter escolas na base de cada um faz o que quer. Toda pessoa tem que ter disciplina na vida para ela ser uma grande pessoa, né? Então eu sou a favor disso, de militarizar as escolas (Patrícia Ferraz, PODEMOS, novembro de 2020).

Com relação à educação, eu acho mais importante essa parceria pelas escolas cívico-militares, né? Esse novo regimento, esse novo comportamento nas escolas. Atualmente, as escolas, e até mesmo as universidades, estão tomadas! Eu sou engenheiro mecânico, me formei na UFPA. Não sei se já ouviu falar, tem o “vadião” ali, fica bem na beira do rio Guamá. O pessoal deixa de estudar e vai para lá. É igual aqui a nossa orla. O “vadião” fica bem na beira do rio Guamá, uma beira-rio, um quebra-mar. Final de tarde, lá, tem tráfico de droga tomando conta, gente utilizando drogas ilícitas, bebidas alcoólicas, né? Prostituição. Ocorre de tudo, ali, dentro da nossa Universidade Federal do Pará, onde fui estudante de engenharia mecânica. Tem que mudar essa situação (Haroldo Iran, PTC, novembro de 2020).

Na educação, aqui no Amapá, foram implantadas as escolas cívico-militares, né? São duas em Macapá, uma no Pantanal, outra no Zerão, Santana tem uma, também. E aí, o que é que se percebeu? Que o aprendizado melhorou com os alunos, né? Eles conseguem colocar, lá, o respeito, formar realmente futuros cidadãos. Então, essa experiência no estado foi positiva, né? E aquilo que é positivo a gente consegue melhorar, tanto é que na escola do município, a gente está querendo colocar uma escola cívico-militar. A gente percebe que a população almeja por esse tipo de escola, onde realmente se tem um respeito, onde se põe lá o respeito à pátria, os valores éticos que a gente vai perdendo, talvez não por culpa dos professores, mas pela própria falta de infraestrutura ou de uma formação adequada, e faz com que se tenha uma diferença das escolas normais para as escolas militares (Cirilo Fernandes, PRTB, novembro de 2020).

Agora, com relação às escolas, é necessário implantar uma gestão democrática, okay? Onde não haja uma indicação política, porque, de repente, quem está aqui é do vermelho, quem está ali é do amarelo - na verdade aqui é azul e amarelo -, daí, troca o funcionário. Às vezes, o cara é bom! Tem que ser pela questão da meritocracia. Se o cara é bom, continua lá, mas não por indicação política. Nós entendemos que Macapá já deveria ter umas três escolas cívico-militares! (Guaracy Júnior, PSL, novembro de 2020).

Outro aspecto consensual entre os candidatos bolsonaristas nas eleições de 2020 em Macapá é a centralidade dos valores cristãos como elemento ético organizador da vida pública: Patrícia Ferraz diz que defende os alicerces de uma vida cristã; Haroldo Iran vincula o cristianismo aos valores e “métodos” tradicionais, e, portanto, importante para a formação dos indivíduos; e Cirilo Fernandes afirma que os princípios organizadores da sua configuração ideológica são: Deus, Pátria e Família. No caso de Guaracy Júnior - pastor e líder da Igreja do Evangelho Quadrangular no Amapá -, a mobilização dos valores cristãos compõe o núcleo duro da sua fala - vinculados, aliás, a um forte anticomunismo, que se manifesta em vários momentos da entrevista:

Você pode reparar que os católicos se uniram a nós para defender essas bandeiras de Deus, Pátria e Família. Os representantes católicos começaram a levantar essa bandeira. Por quê? Porque a família brasileira estava sendo destruída. Estava sendo destruída. Então, eu creio que todo o avivamento, antes de acontecer, primeiro ele traz união entre denominações. Uma quebra da barreira, “ah, eu sou da Quadrangular, eu sou da Batista, sou da Assembleia, sou da Presbiteriana, sou da Adventista”. Existe um ideal de união, todo avivamento é precedido de uma grande união em torno da fé e acredito que é isso que está acontecendo no Brasil e no mundo (Guaracy Júnior, PSL, novembro de 2020).

Richard Wurmbrand se tornou muito famoso no mundo quando escreveu “Torturado por Amor a Cristo”. Eu era um menino de oito anos de idade, e ele, na cama dos meus pais, sentado. E ele mostrava as marcas no corpo dele dos açoites, das torturas que ele passou na União Soviética, na época, por pregar o evangelho. Eu digo que o que ele me mostrou mudou a minha forma de pensar, mudou a minha história. (Guaracy Júnior, PSL, novembro de 2020).

E esse é comunismo na verdade. O comunismo traz essa mensagem de bonzinho e ataca as famílias. Trouxe, com isso, o marxismo cultural, a ideologia de gênero, erotização de crianças, defesa da pedofilia. Digamos, é um mundo inverso porque o objetivo deles é simplesmente a destruição da família. Por quê? Porque, segundo os cálculos deles, lá, a família constitui a propriedade privada, e a propriedade privada gera as oligarquias (Guaracy Júnior, PSL, novembro de 2020).

Dos três campos semânticos identificados, o que mais aglutinou os enunciados das entrevistas foi a retórica antissistema. E há, aqui, novamente, um elemento consensual entre os candidatos - compartilhados, em grande medida, com as novas direitas no âmbito nacional. Esse campo parte de uma premissa fundamental: haveria uma conspiração entre elites políticas e econômicas corruptas, entranhadas no Estado, que - por intermédio do controle da máquina pública -, manteriam a população numa situação de submissão social e econômica, eternamente condenada à miséria e às privações mais variadas, como forma de operar o enriquecimento dessas próprias elites (SILVA, 2021bSILVA, Ivan Henrique de Mattos e. “Liberal na economia e conservador nos costumes”: uma totalidade dialética. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 36, n. 107, p. 1-19, 2021b.). Esse seria, em suma, o sistema - ideologicamente identificado com o campo da esquerda, vista como hegemônica, há décadas, no Estado do Amapá, pelos entrevistados.

Nós vivemos em um Estado Democrático de Direito, e não em uma monarquia, e não em uma ditadura, que tem um rei, e que dita as regras conforme seus próprios interesses. A gente precisa mudar isso, né? E, hoje, eu me coloco como a única pessoa capaz de mudar o sistema, de enfrentar o Davi Alcolumbre, porque o Josiel ele é apenas um fantoche do irmão. E a Patrícia é a única capaz de enfrentar e acabar com esse sistema corrupto, e monárquico, que está tentando se perpetuar no nosso estado (Patrícia Ferraz, PODEMOS, novembro de 2020).

Por mais que Amapá seja um estado atípico, em que ainda prevalecem os métodos nada republicanos, métodos da velha politicagem para se eleger, nós estamos indo em frente! Em passos bem lentos, mas estamos avançando. Bem pouco, mas estamos avançando. Se Deus quiser, uma hora esse povo vai se esclarecer e a gente vai chegar aonde quer e mudar totalmente esse sistema corrupto que impera por quase 30 anos aqui no estado do Amapá (Haroldo Iran, PTC, novembro de 2020)

Não, eu já entrei na política antes, mas é que, no município de Macapá e no estado, a gente só via mais os partidos de esquerda: PDT e PSB eram os dois mais fortes. Tanto é que são os únicos dois que estão no poder há 30 anos, fazem só revezamento. Clécio veio pela Rede, primeiro o PSOL - mas o PSOL veio do PT, também de esquerda. Rede, lá na esquerda. O próprio Roberto Góes, que foi prefeito, também, tudo da esquerda. Então, a gente só tinha esses partidos aqui, ou era um ou era o outro, mas todos do mesmo segmento: da esquerda. E, em 2018, a gente conseguiu ir para o PSL, fazer uma formatação. Então, na verdade, ali era eu, da direita, contra todo o sistema de esquerda, que hoje não é muito diferente (Cirilo Fernandes, PRTB, novembro de 2020).

O resto, grande parte do nosso povo está vivendo ou da “rachadinha” de algum político que faz aí uma distribuição - chega um cara: “ah, tu ganhas dez mil reais? Okay, tu ficas com dois. Tem oito mil, divide quatro para cada um”. Nosso povo está sendo escravo desse sistema viciado e podre. E se não fosse o governo federal nessa hora, pandemia, o nosso povo estaria vivendo um verdadeiro caos (Guaracy Júnior, PSL, novembro de 2020).

Como diz a Bíblia: “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”. O nosso povo tem sido escravo desse velho sistema, mas eu entendo que está chegando uma grande libertação e um novo tempo, e é para esses que quero levar minha mensagem e pedir o voto, que votem Guaracy 17. (Guaracy Júnior, PSL, novembro de 2020).

Se, por um lado, as elites compõem o sistema, dominado pela esquerda, a identificação com o campo da direita passa, na visão dos candidatos, também por uma identificação deles próprios com o signo do mundo popular: são os candidatos do povo, sem padrinhos políticos ou empresariais, lutando, sozinhos, contra todo um sistema corrupto e autoritário:

São todas as pessoas que me encontram na rua e me dão um abraço. Essas pessoas fazem parte da minha família. Fazem parte da família que quer transformar Macapá. Então, essas pessoas são a base por eu estar aqui. Porque você pensa: uma mulher divorciada, que foi vítima de violência, que sofre preconceito, enfrentando todo o sistema, tem que ter uma base forte, e a base é a minha família. A base é meu filho e são as pessoas que acreditam em mim (Patrícia Ferraz, PODEMOS, novembro de 2020).

Patrícia vai ser prefeita do povo de Macapá. Eu não tenho nenhum apoio político, nenhum político me apoia, nenhum político está por trás da nossa candidatura! Então, a gente está aqui para governar para os que mais precisam, que hoje é toda a população de Macapá (Patrícia Ferraz, PODEMOS, novembro de 2020).

E, para mim, não funciona dessa maneira! Eu quero combater a corrupção, então, não tenho padrinhos políticos, sou livre para nomear quem eu quero e exonerar na hora que eu quero. Então, não tem ninguém pra dizer “ah, eu sou apadrinhado de fulano, quem me defende é ciclano”, comigo não tem dessa! Então, é para trabalhar! É para trabalhar! (Cirilo Fernandes, PRTB, novembro de 2020).

Nós somos, hoje, o único candidato do povo! A nossa candidatura nasceu da necessidade e da indignação do povo. Eu percebi, em 2018, que não era só eu, a única pessoa que estava indignada com o sistema, com as formas de política que eram praticadas no nosso estado, no nosso município. E, ali, eu não poderia só reclamar, eu tive que ter uma reação, e a minha reação foi ser candidato a governador em 2018, mesmo sabendo que lutaria contra todas as máquinas, sem recursos! (Cirilo Fernandes, PRTB, novembro de 2020).

O candidato Guaracy Júnior é o único que não buscou vincular sua imagem imediatamente ao campo popular: sua ligação com o povo aparece, sempre, mediada pela sua função pastoral:

Esse é o nosso contato com o povo, porque, como pastor, eu tenho que entender as questões sociais, e a minha vida como empresário me deu experiência como gestor, só que eu também sou gestor da igreja (Guaracy Júnior, PSL, novembro de 2020).

O presidente, o supervisor da igreja. E isso acaba nos colocando em contato com o povo, um contato com a liderança. É impossível um pastor não estar em contato com o povo! (Guaracy Júnior, PSL, novembro de 2020).

Na próxima seção, os conteúdos discursivos identificados e catalogados, aqui, serão analisados à luz do arcabouço ideológico das novas direitas.

O sistema, como ameaça, e o novo conservadorismo liberal, como resistência

Para além da busca dos próprios entrevistados de construir, simbolicamente, uma vinculação com a direita, de um modo geral, e com o bolsonarismo, em particular, três elementos os colocam, de modo inequívoco, no diapasão das novas direitas: a síntese entre neoliberalismo e conservadorismo moral; a defesa de um conservadorismo esteticamente popular; e uma retórica disruptiva, vinculada, semanticamente, com o escopo de uma resistência antissistema.

Apontada no início do artigo como um pilar estruturante do arcabouço ideológico das novas direitas no Brasil (CHALOUB; PERLATTO, 2015CHALOUB, Jorge; PERLATTO, Fernando. Intelectuais da “nova direita” brasileira: ideias, retórica e prática política. In: Encontro Anual da ANPOCS, 39., Caxambu. Anais [...] Caxambu: ANPOCS, 2015. p. 1-29.; ROCHA, 2018ROCHA, Camila. “Menos Marx, mais Mises”: uma gênese da nova direita brasileira (2006-2018). São Paulo, 2018. 233f. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.; NETTO; CAVALCANTE; CHAGURI, 2019NETTO, Michel Nicolau; CAVALCANTE, Sávio Machado; CHAGURI, Mariana Miggiolaro. O homem médio e o conservadorismo liberal no Brasil contemporâneo: o lugar da família. In: Encontro Anual da ANPOCS, 43., Caxambu. Anais [...] Caxambu: ANPOCS, 2019. p. 1-18.; SILVA, 2021bSILVA, Ivan Henrique de Mattos e. “Liberal na economia e conservador nos costumes”: uma totalidade dialética. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 36, n. 107, p. 1-19, 2021b.), a síntese entre neoliberalismo e conservadorismo moral é, também, um traço distintivo desses novos grupos políticos que emergem no Brasil entre meados da década de 2000 e meados da década de 2010. Para além da aparente contradição ensejada pelo amálgama, a referida síntese se assenta em uma fusão bastante orgânica entre as duas gramáticas políticas, tornada possível a partir da elevação da família patriarcal à condição de categoria ordenadora das relações sociais (BROWN, 2019BROWN, Wendy. In the ruins of neoliberalism - the rise of antidemocratic politics in the west. Nova Iorque: Columbia University Press, 2019.). Não apenas ambas as gramáticas aparecem de modo complementar na própria justificativa dos candidatos bolsonaristas em Macapá quanto à sua identificação com o campo ideológico da direita, mas, também, a família se apresenta como categoria transversal nos seus enunciados, equacionada na expressão “a base de tudo”.

A centralidade assumida pela defesa do empreendedorismo não é à toa: se o neoliberalismo contempla, como afirmam Dardot e Laval (2016)DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016., mais do que uma reorganização do modo de produção capitalista após os anos 1970, mas, também, um tipo específico de governamentalidade, o empreendedorismo aparece como a expressão por excelência de um novo tipo de subjetivação dos indivíduos enquanto empresas (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo Editorial, 2016.). Dada a nova configuração das classes trabalhadoras no padrão de acumulação pós-fordista - marcada pela flexibilização das relações de trabalho, pela precarização e pela atomização -, a lógica empreendedora assume a condição de uma ideologia com profunda capilaridade e enraizamento social.

Embora o conservadorismo componha um dos campos semânticos aglutinadores dos discursos mobilizados pelos candidatos, não há, aqui, qualquer composição retórica com uma concepção elitista ou aristocrática da política ou da vida social. Com exceção do candidato Guaracy Júnior, os três outros candidatos buscaram vincular suas imagens diretamente ao campo popular, evidenciando outro traço das novas direitas apontado por Alonso (2019)ALONSO, Angela. A comunidade moral bolsonarista. In: Democracia em Risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras , 2019. p. 52-70.: seu antielitismo. Ao contrário de boa parte da tradição do pensamento conservador (de Burke a Ortega y Gasset, de Pareto a Scruton etc.), a virtù do líder não derivaria de atributos distintivos em relação ao conjunto social, mas, sim, do fato de o líder ser a própria representação arquetípica do indivíduo médio (ALONSO, 2019ALONSO, Angela. A comunidade moral bolsonarista. In: Democracia em Risco? 22 ensaios sobre o Brasil hoje. São Paulo: Companhia das Letras , 2019. p. 52-70.; NETTO; CAVALCANTE; CHAGURI, 2019NETTO, Michel Nicolau; CAVALCANTE, Sávio Machado; CHAGURI, Mariana Miggiolaro. O homem médio e o conservadorismo liberal no Brasil contemporâneo: o lugar da família. In: Encontro Anual da ANPOCS, 43., Caxambu. Anais [...] Caxambu: ANPOCS, 2019. p. 1-18.; SILVA, 2021bSILVA, Ivan Henrique de Mattos e. “Liberal na economia e conservador nos costumes”: uma totalidade dialética. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 36, n. 107, p. 1-19, 2021b.).

O terceiro elemento é justamente o campo semântico que teve o maior potencial de aglutinação dos enunciados proferidos pelos candidatos nas entrevistas: a retórica de resistência antissistema. Segundo Rocha (2018)ROCHA, Camila. “Menos Marx, mais Mises”: uma gênese da nova direita brasileira (2006-2018). São Paulo, 2018. 233f. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018., um tipo específico de retórica disruptiva foi um componente central do próprio processo de constituição das novas direitas, primeiro enquanto contrapúblico, e, depois, como ator político fundamental em meados da década de 2010 no Brasil. Em grande medida apoiada - seja estética ou conceitualmente - no exemplo de Olavo de Carvalho, as novas direitas constituíram a sua linguagem política a partir de uma posição de resistência e sublevação contra a ordem vigente (CHALOUB; PERLATTO, 2015CHALOUB, Jorge; PERLATTO, Fernando. Intelectuais da “nova direita” brasileira: ideias, retórica e prática política. In: Encontro Anual da ANPOCS, 39., Caxambu. Anais [...] Caxambu: ANPOCS, 2015. p. 1-29.; ROCHA, 2018ROCHA, Camila. “Menos Marx, mais Mises”: uma gênese da nova direita brasileira (2006-2018). São Paulo, 2018. 233f. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.), hegemonizada pela esquerda, e em parceria com elites políticas e econômicas encasteladas no Estado. O mesmo argumento está presente, de modo transversal, nas entrevistas de todos os candidatos - com maior ou menor ênfase ao papel da esquerda. O sistema é identificado pelos candidatos como sendo composto pelas elites políticas tradicionais do Amapá (identificadas com a esquerda), e seria o principal responsável pela longa permanência de problemas estruturais no estado.

Ao sistema, os candidatos contrapõem essa síntese entre neoliberalismo e conservadorismo moral como instrumento de superação e resistência dos de baixo contra os poderosos. O novo conservadorismo liberal (NETTO; CAVALCANTE; CHAGURI, 2019NETTO, Michel Nicolau; CAVALCANTE, Sávio Machado; CHAGURI, Mariana Miggiolaro. O homem médio e o conservadorismo liberal no Brasil contemporâneo: o lugar da família. In: Encontro Anual da ANPOCS, 43., Caxambu. Anais [...] Caxambu: ANPOCS, 2019. p. 1-18.) aparece, assim, como a genuína expressão política do povo em seu processo de libertação, da mesma maneira em que Bolsonaro aparece como o principal líder dessa resistência, no âmbito nacional - constantemente atrapalhado e impedido pelo mesmo sistema:

O Presidente Jair foi boicotado, praticamente, por esse Presidente do Senado Federal, por conseguinte, Presidente do Congresso, Davi Alcolumbre, que é da velha politicagem toma lá, dá cá. Sempre querendo boicotar o Presidente, com certos projetos de lei, juntamente com o sr. Rodrigo Maia, que é presidente da Câmara Federal, né? Aliado ao Presidente do Supremo Tribunal Federal, que já não é mais. Agora é o Fux, antes era o Dias Toffoli. Esse trio aí, né? Atrasou demais, né? Várias políticas públicas que iriam favorecer o povo brasileiro, entendeu? Juntamente aí, também, coloca o sr. Senador Randolfe Rodrigues, que também atrapalhou demais, né? O pleno desenvolvimento, a plena política do Bolsonaro para o Brasil (Haroldo Iran, PTC, novembro de 2020).

O governo Bolsonaro está tentando fazer uma gestão, mas, infelizmente, no regime que a gente vive no Brasil, democrático, presidencialismo, ele tem também os três poderes: o Congresso Nacional, Legislativo, e o Judiciário. Há muitas interferências! (...) Então, Jair Bolsonaro, para mim, está fazendo um bom governo, não consegue fazer melhor porque, para você ter governabilidade, você tem que ter a maioria comprometida com o povo! (Cirilo Fernandes, PRTB, novembro de 2020).

Presidente Jair Bolsonaro é um homem em quem eu acredito, um homem que eu ponho muita fé nele. Briguei pela eleição dele! Não é perfeito, é um homem com muitas imperfeições. Assim como qualquer outro, mas é uma pessoa que não se vende à corrupção. É alguém que luta pelo Brasil. É alguém que está enfrentando ao tentar mudar, ao tentar quebrar o sistema, ao não permitir corrupção (Guaracy Júnior, PSL, novembro de 2020).

A busca de instrumentalização de uma insatisfação difusa, embora generalizada, em um sentido conservador é, também, um traço distintivo das novas direitas em âmbito nacional. Essa estratégia foi central para o próprio processo de constituição do campo em dois sentidos: em primeiro lugar, porque foi exatamente a partir da consolidação de uma retórica disruptiva e insurgente (fortemente ancorada, como mencionado anteriormente, na obra de Olavo de Carvalho) que importantes parcelas da sociedade brasileira puderam se reconhecer enquanto um grupo, ainda que na condição de contrapúblico (ROCHA, 2018ROCHA, Camila. “Menos Marx, mais Mises”: uma gênese da nova direita brasileira (2006-2018). São Paulo, 2018. 233f. Tese (Doutorado em Ciência Política) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.); e, em segundo lugar, porque, também, a partir dessa mesma retórica, foi possível a esse campo capturar o signo da revolta e da insatisfação e canalizá-lo em um sentido ultraconservador, saindo, assim, da condição de contrapúblico e passando a disputar os rumos da própria esfera pública nacional (BIANCHI; MELO, 2018BIANCHI, Álvaro; MELO, Demian. Donald Trump é fascista? In: ALMEIDA, Ronaldo de; TONIOL, Rodrigo (orgs.). Conservadorismos, Fascismos e Fundamentalismos - Análises conjunturais. Campinas: Editora da Unicamp, 2018. p. 67-86.). Ao se vincularem a essa mesma matriz retórica, as candidaturas bolsonaristas em Macapá também se colocaram na condição de porta-vozes dos “revolucionários da contrarrevolução”.

Considerações finais

A reprodução no nível local de teses centrais tanto para as novas direitas, em sentido amplo, quanto para o bolsonarismo, de modo mais específico, mostra um importante grau de enraizamento social do campo a partir de relativa coesão ideológica - elemento simbolicamente importante na própria construção das candidaturas e de sua busca por vínculo com o eleitorado de Bolsonaro. Os três campos semânticos identificados a partir das entrevistas - neoliberalismo, conservadorismo moral e retórica antissistema - como estruturantes do discurso do bolsonarismo macapaense também são centrais para a retórica política nacional do bolsonarismo - seja por parte do ex-Presidente ou de vários de seus porta-vozes ideológicos e doutrinários.

Se, como argumenta Quentin Skinner em sua sistematização do contextualismo linguístico como método de análise do pensamento político, o caráter ilocucionário dos enunciados é aquele que mais interessa às análises políticas - ou seja, mais do que compreender se, de fato, quem profere um discurso determinado defende, de modo orgânico, o que diz, ou, ainda, se de fato quis implicar aquele exato significado com o discurso proferido, o objetivo essencial é compreender qual a intencionalidade pretendida ao enunciar tal enunciado -, é fundamental considerar o esforço discursivo feito pelos candidatos na tentativa de emular a estética e a retórica bolsonaristas. Isso fica evidente tanto a partir do caráter aparentemente oportunista ou episódico das suas vinculações com as pautas de uma direita marcadamente reacionária, quanto a partir da inclusão calculada de certas palavras-chave nas entrevistas - às vezes, inclusive, de modo bastante desconexo (deus, pátria, família, militarização etc.).

Há, todavia, um traço específico no caso macapaense: a crítica à familização da política, a partir da identificação de dinastias políticas encasteladas nos partidos, disputando a hegemonia no estado, como o sistema a ser combatido. Embora a existência de famílias políticas não seja um traço exclusivamente amazônico, há, na região, especificidades importantes, fortemente vinculadas à formação de suas estruturas políticas e partidárias, em que o poder econômico familiar várias vezes se traduz e se confunde como poder político e partidário. Não apenas esse tema não aparece no jargão nacional do bolsonarismo, como a própria família Bolsonaro está profundamente vinculada à política a partir de laços familiares e consanguíneos, com filhos, parentes e ex-companheiras do ex-Presidente que se lançaram às disputas eleitorais a partir da vinculação simbólica com o sobrenome Bolsonaro.

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  • 4
    Cálculo feito pelos autores a partir da base de dados disponibilizada pelo TSE.
  • 5
    Os trechos das entrevistas utilizados aqui passaram por pequenas modificações de forma, sem, todavia, qualquer alteração de conteúdo, para suprimir repetições de palavras e hesitações, por exemplo, tornando, assim, o texto mais fluido.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2022
  • Aceito
    15 Maio 2023
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