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Demodiversidade: imaginar novas possibilidades democráticas

Demodiversity: imagining new democratic possibilities

RESENHA:. SANTOS, Boaventura de Sousa; MENDES, José Manuel.. (org.). Demodiversidade: imaginar novas possibilidades democráticas. .Belo Horizonte: :. Autêntica Editora, ,2018

O livro Demodiversidade: imaginar novas possibilidades democráticas(2018), organizado por Boaventura de Souza Santos e José Manuel Mendes, oferece uma coletânea com a participação de estudiosos de diversas áreas, em especial da ciência política e da sociologia. Os autores compartilham de um diagnóstico crítico da democracia na atualidade diante de diversos fenômenos como a desigualdade, a exclusão social, a degradação ambiental, a migração e a vulnerabilidade de populações deslocadas. Emerge no campo das ciências humanas a necessidade de reconstruir, formular e legitimar alternativas democráticas para sociedades mais justas e livres. Assim sendo, os autores denominam de “Epistemologias do Sul” para designar o sul global como epistêmico e político, contrapondo-se às propostas estabelecidas pelo norte global, que demonstram ser falíveis em responder às mudanças de ordem política, social, ambiental e econômica do século XXI. A ampliação de temas da agenda internacional e as demandas da contemporaneidade coadunam com a necessidade de transformação social e superação das desigualdades.

Ao defender a necessidade de novas teorias da democracia, busca-se alargar e aprofundar o campo político de todos os espaços estruturais de interação social. Nesse sentido, o referido livro segue a linha de argumentação de Santos (2001) SANTOS, Boaventura de Sousa . A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2001. sobre a democracia participativa que constituiria uma das grandes possibilidades de emancipação social e transformação das desigualdades sociais. A democracia representativa, tal como existe, como determina Celiberti (2005)CELIBERTI, Lilian. Atores, práticas e discursos da participação. In: TEIXEIRA, A. C. (org.). Os sentidos da democracia e participação. São Paulo: Instituto Pólis, 2005, p. 51-58., é incapaz de sustentar a democracia como sistema, senão articulada como uma democracia participativa que amplie o debate sobre os problemas que atingem o mundo contemporâneo. A democracia participativa torna-se a alternativa no campo das teorias não hegemônicas em que o autor defende a emancipação social pela transformação das relações de poder em relações de autoridade compartilhada, com experiências bem-sucedidas abordadas na pesquisa.

O livro é parte da coleção Epistemologias do Sul e resulta do projeto de investigação “ALICE - Espelhos estranhos, lições imprevistas: definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências do mundo”, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação com a coordenação de Boaventura de Sousa Santos. O projeto visa renovar o conhecimento científico-social à luz das Epistemologias do Sul global, tendo como objetivo orientar novos paradigmas teóricos e políticos de transformação social nas sociedades contemporâneas. Os artigos seguem quatro premissas para expor a crítica às questões epistêmicas do norte global: (i) a compreensão de mundo é mais ampla e diversificada do que a compreensão ocidental de mundo; (ii) não há ausência de alternativas no mundo, o que há é a ausência de um pensamento alternativo das alternativas; (iii) a diversidade do mundo é infinita e nenhuma teoria geral pode captar; (iv) a alternativa à teoria geral consiste da promoção da ecologia dos saberes combinada a aspectos culturais, sociais e políticos das sociedades. Na análise dos autores, a democracia assume papel fundamental para identificar princípios e práticas de governança que apontem para experiências democráticas que valorizem conhecimentos suprimidos e grupos sociais invisibilizados.

A demodiversidade é o objeto de análise dos artigos expostos, sendo proposta por Santos e Avritzer (2002)SANTOS, Boaventura de Sousa ; AVRITZER, Leonardo. Para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS, B. S. (org.). Democratizar a Democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 39-82. como a coexistência pacífica ou conflitual de diferentes modelos e práticas democráticas. As expressões da demodiversidade no mundo contemporâneo são retratadas nos artigos expostos com a contribuição de diversas áreas científicas e apresentam uma análise da necessidade de renovação e aprimoramento da democracia.

O livro se estrutura em duas partes. A primeira, de caráter teórico, realiza uma desconstrução da matriz ocidental de democracia, com ênfase na diversidade de experiências democráticas no mundo e propõe as bases de uma democracia intercultural. Na primeira parte, chamada de “Pluriverso da democracia”, onze capítulos estruturam a base teórica.

No capítulo 1, Boaventura de Souza Santos propõe que a Europa precisa aprender com o sul global, pois os países europeus vêm perdendo relevância no cenário político e enfrentam dificuldades em se renovar. Ele sugere que a Europa busque aprender com experiências não europeias. Assim sendo, deve desaprender ideias arraigadas, reaprender e se renovar em quatro áreas: direitos humanos e interculturalidade; alternativas ao desenvolvimento ou outras formas de pensar a economia; democratizar a democracia e a recuperação e reparação de danos históricos.

No capítulo 2, destaca-se o secularismo político. Rajeev Bhargava aponta um secularismo alternativo para além da base religiosa homogênea do cristianismo europeu. As bases para um secularismo alternativo podem ser utilizadas na conciliação e preservação da diversidade religiosa com os princípios de igualdade e liberdade, nos quais contextos políticos podem se tornar mais sensíveis às realidades plurais das sociedades.

No capítulo 3, Richard Pithouse utiliza uma perspectiva crítica do liberalismo, do papel do negro na sociedade e da crítica pós-colonial para analisar a herança colonial da África do Sul, que se estende mesmo após o apartheid.

No capítulo 4, Issa Shivji promove um estudo analítico dos processos democráticos na África desde o período colonial. Segundo o autor, o período pós-colonial e pós-imperial na África é marcado pelo nacionalismo e pela ideologia neoliberal. O autor sugere a possibilidade de redesenhar a democracia na África, visto que culturalmente se pauta em modos de vida popular, participação popular e poder popular. Argumenta-se que tais condições próprias sociais e culturais produzam as experiências democráticas necessárias para a auxiliar na superação das desigualdades.

No capítulo 5, Houria Bouteldja promove uma reflexão sobre os limites impostos pelo pensamento hegemônico, a partir de sua experiência pessoal e política como filha de imigrantes argelinos na França.

No capítulo 6, Silvia Rivera se apropria de conceitos desenvolvidos por intelectuais europeus, como o conceito de micropolítica, a fim de aplicá-los em lutas de menor escala como movimentos de resistência nacionais. A ousadia consiste em utilizar conceitos hegemônicos para explicar movimentos de menor escala e com demandas sociais e políticas tão quanto relevantes, pois mobiliza a formação de redes de contato além do micro e do local, podendo tornar-se global.

No capítulo 7, a partir de estudos de caso na Bolívia e no Equador, Vivian Urquidi investiga o modo como a democracia intercultural deve assentar-se no Estado democrático, para além da noção tradicional de Estado-nação. Ela argumenta que a questão plurinacional trouxe novas problemáticas que se somaram às demandas nacionais vigentes.

No capítulo 8, Juan Carlos Monedero examina estratégias de fazer política após a derrota da noção convencional de política, especificamente na Espanha. Com isso, o autor busca se aprofundar de forma experimental nos princípios e dinâmicas do Estado democrático e propõe três lógicas democráticas como alternativas à democracia representativa. As alternativas são: a lógica do trabalho colaborativo alinhado ao conceito de estado experimental de Boaventura de Souza Santos; a lógica do Fórum Social Mundial (FSM), que garante a universalidade, a deliberação, a resolução pacífica das controvérsias e a fraternidade universal; e a lógica dos indignados e excluídos em todo o mundo que reivindicam sua participação enquanto indivíduos sociais e políticos.

No capítulo 9, Antoni Aguiló aborda as experiências dos indignados e indaga sobre as aprendizagens políticas globais a partir desses movimentos e protestos populares em várias partes do mundo. Tais movimentos conduzem a novas perspectivas para a produção de teorias e práticas democráticas.

No capítulo 10, Rebeca Jasso-Aguilar usa o conceito de antítese em Gramsci e propõe que os governos progressistas da América Latina são parte de processos de transição que emergiram de movimentos sociais. A autora demonstra que as demandas progressistas de justiça social e igualdade são crescentes e podem gerar novas configurações democráticas.

No capítulo 11, Larbi Sadiki aborda a democratização árabe, a experiência democrática no âmbito da Primavera Árabe e as incursões sociais e políticas que são geradas a partir desse movimento.

A segunda parte do livro é de caráter mais empírico, denominada “Democracia: uma sociologia das emergências”. Nesse sentido, demonstra-se experiências e práticas democráticas concretas em vários contextos políticos, sociais e culturais. Ao dar seguimento na abordagem da demodiversidade expressa pelos autores, verifica-se no capítulo 12 o caso dos Dalit na Índia a partir das formas de dominação e discriminação com base na religião e na sociedade de casta. O autor José Manuel Mendes enfatiza o colonialismo interno e a inconstitucionalidade do sistema de castas que se legitima no patriarcado e na religião.

O capítulo 13 é escrito por Leonardo Avritzer e tem como abordagem a experiência democrática no Brasil de 1990 a 2014, na qual o autor apresenta um balanço da participação democrática no Brasil após a transição política.

No capítulo 14, Jesús Sabariego explora o papel das novas tecnologias de informação nas estratégias políticas dos movimentos sociais globais, tendo como base os casos da Espanha e de Portugal. Segundo Jesús Sabariego, a apropriação política e democrática da tecnologia de informação pelos movimentos sociais globais pressupõe uma reconfiguração do papel da tecnologia e das suas possibilidades nos processos políticos. Com isso, a apropriação da tecnologia pelos movimentos sociais conduz a novas formas contra-hegemônicas de projetar a política no cenário internacional.

No capítulo 15, trata-se da ascensão do autoritarismo de direita de base hindu na Índia, que tem como alvo as comunidades minoritárias. A partir da década de 1990, o autoritarismo emerge e promove o nacionalismo xenófobo e a exclusão social na Índia. Ao analisar o autoritarismo na Índia, o autor Kamal Mitra Chenoy argumenta que o nacionalismo conservador de base religiosa e fundamentado na sociedade de castas recorre a diversas formas de violência (física, verbal, simbólica etc.). As violências criam outras formas de exclusão social, gerando um ciclo vicioso de violência e desigualdade humana.

O capítulo 16, de João Alexandre Peschanski, aborda o Movimento Passe Livre com os protestos sociais ocorridos no Brasil em 2013 e indica os limites de uma sociologia convencional dos movimentos sociais. O autor enfatiza a importância das inovações sociais nas instituições, visto que os movimentos sociais de contestação indicam a pretensão de uma nova configuração institucional.

No capítulo 17, Orlando de Aragón Andrade analisa o caso do México, onde a crise do sistema eleitoral propiciou experiências democráticas que conduziram à descolonização da democracia com ênfase no poder democrático comunitário, assente em órgãos representativos e assembleias locais.

A partir de um estudo de caso da Espanha, o capítulo 18 de Antoni Aguiló mostra como as eleições municipais e as candidaturas deslocaram as formas de politização de rua e os protestos para o campo eleitoral e institucional.

No capítulo 19, o autor Cristiano Gianolla estuda o papel dos partidos nos processos de democratização na Índia e na Itália. Ambos os movimentos partidários emergem como resultado de uma crise do sistema de partidos tradicionais, com apoio da sociedade civil e apelo moral anticorrupção.

No capítulo 20, Maria Teresa Zegada aborda a democracia intercultural como síntese das diferenças na proposta de refundação do Estado boliviano. Na Bolívia, objeto de investigação, a demodiversidade está ancorada nas formas de gestão política e de resolução de conflitos com base em democracias comunitárias. Para demonstrar tais questões, o capítulo 20 soma-se aos capítulos 21 e 22 em que os autores se dedicam ao processo de democratização da Bolívia e à consagração da democracia representativa.

No capítulo 21, José Luis Exeni complementa a análise do artigo anterior ao evidenciar os fatores constitucionais e institucionais que marcam a diferença da demodiversidade plurinacional boliviana em exercício. Destaca-se que a reconstrução do Estado boliviano se deu no contraponto da lógica plurinacional contra a monocultura do Estado e se baseou no valor das autonomias contra o centralismo estatal. Desse modo, define-se pluralismo político plurinacional como processo democrático do Estado boliviano que estimula práticas de democracia liberal-representativa e participativa.

O capítulo 22 resulta do trabalho de campo de Mara Bicas no município de Jesús de Machaca na Bolívia. Na pesquisa, a autora busca validar a epistemologia aimará andina que se reflete na concepção do político e da democracia aimará. Assim sendo, a democracia aimará está imersa na filosofia andina que preserva a relação indivíduo-comunidade e sociedade-natureza. A autora indica que a comunidade aimará obteve um equilíbrio de diversidades deliberativas sem subjugação e formou um pluralismo político, resistindo à subjugação e à colonização.

A contribuição das Epistemologias do Sul é verificada no percurso da obra. Práticas democráticas locais, nacionais e globais de resistência contra formas de exclusão, discriminação e desigualdade são retratadas e percorrem todos os espaços estruturais das sociedades contemporâneas. Portanto, busca-se expor que o caráter universalista da teoria democrática ocidental de fato não abrange as possibilidades e alternativas democráticas que podem se integrar em diferentes escalas e espaços estruturais das sociedades.

O desafio proposto em todo o conteúdo do livro é reivindicar e imaginar uma democracia que permita democratizar e descolonizar as relações sociais e políticas que tradicionalmente atendem à lógica da exclusão, da desigualdade e da colonização. Como imaginar os novos processos democráticos que estão para surgir ao longo do século XXI? Como deixar o novo emergir no mundo para que novas concepções efetivas de justiça social tomem forma nos processos democráticos? A ousadia está contida no uso do conceito demodiversidade ao se referir à pluralidade de formas que a democracia assume nas diversas culturas e sociedades.

A proposta questionadora da coletânea de artigos tem como eixo central demonstrar como a democracia deixou de ser algo exclusivo pelas e para as elites. A popularização da democracia ocorre em consequência das lutas realizadas em prol da emancipação, liberdade e igualdade de processos individuais e coletivos de inconformismo ao redor do mundo. A prática do inconformismo político consciente dos cidadãos consolida práticas de democracia real com espaços de emancipação e justiça social que se agregam a perspectivas de valorização da humanidade de todo e qualquer indivíduo. A obra é instigante e promissora no repertório de aprendizagens locais, nacionais e globais em que práticas democráticas assumem um potencial inovador de investigação de processos políticos do sul global. Das experiências expressas na obra, verifica-se a reivindicação de imaginar, promover e construir novas possibilidades democráticas.

Referências

  • CELIBERTI, Lilian. Atores, práticas e discursos da participação. In: TEIXEIRA, A. C. (org.). Os sentidos da democracia e participação. São Paulo: Instituto Pólis, 2005, p. 51-58.
  • SANTOS, Boaventura de Sousa ; MENDES, José Manuel. Demodiversidade: imaginar novas possibilidades democráticas. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018.
  • SANTOS, Boaventura de Sousa ; AVRITZER, Leonardo. Para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS, B. S. (org.). Democratizar a Democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 39-82.
  • SANTOS, Boaventura de Sousa . A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    13 Ago 2019
  • Aceito
    25 Abr 2020
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