Acessibilidade / Reportar erro

Os usos do conceito de populismo no debate contemporâneo e suas implicações sobre a interpretação da democracia

The uses of the concept of populism in contemporary debates and their implications for the interpretation of democracy

Los usos del concepto de populismo em el debate contemporâneo y sus implicaciones para la interpretación de la democracia

Resumo:

O objetivo do presente artigo é oferecer uma interpretação de algumas das leituras recentes sobre o populismo, detendo-se em dois aspectos fundamentais dos usos do conceito: (i) distinguir que tipo de processos políticos o populismo pretende explicar e se seu uso é suficiente para diferenciá-lo analiticamente de outros fenômenos semelhantes; e (ii) entender como tais interpretações articulam o populismo com uma compreensão do funcionamento e da eventual crise da democracia. A tese aqui é a de que os usos do conceito de populismo sempre se definem a partir de uma determinada concepção de democracia e, por conseguinte, do tipo de conflito que a ação política populista desperta em seu interior. Usos diversos do conceito de populismo pressupõem leituras diferentes e expectativas distintas sobre a interação entre representação e democracia e, portanto, estão relacionados com concepções diferentes sobre os limites da relação entre legitimidade democrática e instituições políticas.

Palavras-chave:
Populismo; Democracia; Ideologia; Representação; Soberania do Povo; Crise

Abstract:

The purpose of this article is to offer an interpretation of some of the recent literature on populism, focusing on two fundamental aspects of how the concept has been used: (i) to identify the kind of political processes that populism intends to explain and whether it’s the concept is adequate for analytically differentiating a specific phenomenon and (ii) to understand how such interpretations articulate populism with an understanding of the functioning and possible crisis of democracy. The thesis here is that the uses of the concept of populism are always based on a certain conception of democracy and, therefore, on the type of conflict that populism is believed to awakens within a given system. Different uses of the concept of populism presuppose different readings and different expectations about the interaction between representation and democracy and, therefore, are related to different conceptions about the limits of the relationship between democratic legitimacy and political institutions.

Keywords:
Populism; Democracy; Ideology; Representation; Popular Sovereignty; Crisis

Resumen:

El propósito de este artículo es ofrecer uma interpretación de algunas de la bibliografia reciente sobre el populismo, centrándose em dos aspectos fundamentales de los usos del concepto: (i) distinguir que tipo de processos políticos pretende explicar el populismo y si su uso es suficiente para diferenciarlo analiticamente de otros fenómenos similares y (ii) compreender cómo tales interpretaciones articulan el populismo com uma comprensión del funcionamento y eventual crisis de la democracia. La tesis aqui es que los usos del concepto de populismo se definen siempre a partir de uma determinada concepción de la democracia y, por lo tanto, del tipo de conflito em el que despierta el populismo. Los diferentes usos del concepto presuponen distintas lecturas y expectativas sobre la interacción entre representación y democracia y, por lo tanto, se relacionan com diferentes concepciones sobre los limites de la relación entre legitimidade democrática e instituciones políticas.

Palabras clave:
Populismo; Democracia; Ideologia; Representación; Soberania popular; Crisis

Introdução

Não deve ter passado despercebido para a maioria dos cientistas sociais que a hipótese de uma crise da democracia gerou, nos últimos anos, uma ampliação notável de publicações e usos no debate público da ideia de “populismo” como chave explicativa de diversos processos sintomáticos da crise: nacionalismo, crítica da globalização, discursos excludentes de identidades minoritárias, lideranças carismáticas contra o sistema político, para citarmos alguns exemplos. Em artigo recente, publicado pela Annual Review of Political Science, os autores informam que a média anual de papers e livros sobre o tema do populismo na base de dados do Web of Science subiu de 95 entre os anos de 2000 e 2015 para 615 do mesmo período inicial até 2018 (NOURY; ROLAND, 2020NOURY, Abdul; ROLAND, Gerard. Identity politics and populism in Europe. Annual Review of Political Science, Palo Alto, v. 23, p. 421-439, 2020., p. 422). Como aponta a socióloga Mabel Berezin, não se pode dizer que as contribuições com destaque e amplo apelo desta “mini-indústria” editorial do populismo são necessariamente acompanhadas de rigor analítico e empírico (BEREZIN, 2019BEREZIN, Mabel. Fascism and populism: are they useful categories for comparative sociological analysis? Annual Review of Sociology, Palo Alto, v. 45, n. 18, p. 1-18, 2019., p. 183). Elas tendem muitas vezes a englobar uma grande diversidade de movimentos, partidos e lideranças sob uma mesma categoria, ocultando diferenças específicas. Nesse sentido, poderíamos nos questionar sobre a eficiência explicativa e analítica de um conceito esticado a ponto de englobar experiências politicamente tão distintas3 3 Seria impossível recuperarmos aqui o debate brasileiro sobre o populismo. Remetemo-nos a alguns trabalhos de análise ampla do conceito e de seus processos de disputa nas ciências sociais brasileiras: FERREIRA, 2001; SWAKO; ARAÚJO, 2019. .

No geral, é possível dizer que os usos do conceito de populismo remetem à necessidade de expressar alguma “disfunção” na prática da democracia. Esta poderia ter origem em razões puramente institucionais - derivadas da insuficiência da participação ou do baixo nível de reconhecimento por parte dos eleitores da eficiência do governo (FUKUYAMA, 2015FUKUYAMA, Francis. Why is Democracy Performing So Poorly? In: DIAMOND, Larry; PLATTNER (eds). Democracy in Decline?. Chicago: John Hopkins University Press, 2015. p. 11-24.), cujas dificuldades seriam sanadas pelo aperfeiçoamento e o reestabelecimento do bom funcionamento das instituições democráticas ou da formulação de novas formas de participação e controle do cidadão sobre a política (ROSANVALLON, 2006ROSANVALLON, Pierre. La contre-democratie. Paris: Seuil, 2006.). Também são apontadas razões internas aos processos de produção de identidades políticas no capitalismo globalizado. Nesse sentido, para algumas leituras, como a de Nancy Fraser, “o populismo reacionário” seria uma contraface do “neoliberalismo progressista”, cujo “ideal truncado” de emancipação, misturado a formas letais de financeirização da economia, teria produzido uma reação por parte de setores excluídos das identidades sociais hegemônicas no capitalismo contemporâneo (FRASER, 2017FRASER, Nancy. Progressive Neoliberalism versus Reactionary Populism: A Hobson’s Choice. In: GEISELBERGER, Hans (ed.). The great regression. Cambridge: Polity Press, 2017. p. 54-60.). Por fim, hipóteses mais recentes apresentam o populismo como uma forma de “transição” diante do esgotamento da democracia liberal para uma nova forma política “pós-liberal, pós-deliberativa e pós-inclusiva” (APPADURAI, 2017APPADURAI, Arjun. Democracy Fatigue. In: DIAMOND, Larry; PLATTNER (eds). Democracy in Decline?. Chicago: John Hopkins University Press, 2015. p. 16-27.). Em suma, a despeito do tipo de explicação oferecida, todas elas apontam para algum tipo de relação complexa e conflituosa entre populismo e democracia.

O objetivo deste artigo é oferecer uma interpretação de algumas das leituras recentes sobre o populismo, detendo-se em dois aspectos fundamentais dos usos do conceito: (i) em primeiro lugar, quais os tipos de processos políticos os usos do populismo pretendem explicar. Por ser a bibliografia tão ampla e oferecer caracterizações muitas vezes semelhantes do fenômeno populista, os autores escolhidos são aqueles que, em nossa consideração, oferecem um conceito bem definido e suficientemente diferente de outros intérpretes e que realizam um esforço de explicar o que o populismo é; (ii) em segundo lugar, interessa-nos entender como as interpretações do populismo estão relacionadas com os problemas de compreensão do funcionamento da democracia. A tese aqui é a de que os usos do conceito de populismo sempre articulam uma determinada concepção do que a democracia é e que tipo de conflito a prática populista desperta em seu interior. Assim, é impossível dissociar o esforço teórico de formular um conceito para o populismo sem que haja - explicita ou pressuposta - certa compreensão da sua interação com a democracia. Usos distintos do conceito de populismo pressupõem leituras diferentes sobre a relação entre representação, identidades, instituições e democracia que, por sua vez, expressam interpretações sobre os fundamentos democráticos e as expectativas com relação ao futuro da democracia (daí, portanto, a sua relação com a ideia de crise).

Populismo como ideologia

Duas interpretações têm recebido maior atenção quando se trata de associar o conceito de populismo ao problema das ideologias políticas: a de Cas Mudde e Cristóbal Kaltwasser (MUDDE; KALTWASSER, 2012MUDDE, Cass; KALTWASSER, Cristóbal Rovira. Populism: a very short introduction. New York: Oxford University Press, 2017., 2017MUDDE, Cass; KALTWASSER, Cristóbal Rovira. Populism: a very short introduction. New York: Oxford University Press, 2017.), cujos trabalhos sobre o populismo têm origem no estudo da extrema-direita no leste europeu e no populismo latino-americano, respectivamente; e os trabalhos mais recentes de Margaret Canovan (2002)CANOVAN, Margaret. Taking politics to the people: populism as the ideology of democracy. In: MÉNY, Yves; SUREL, Yves (ed.). Democracies and the populist challenge. New York: Pallgrave, 2002. p. 25-44.. No caso de Canovan, a explicação do populismo como ideologia surge tardiamente, não aparecendo em seus primeiros e mais influentes trabalhos sobre o tema (CANOVAN, 1981CANOVAN, Margaret. Populism. Nova York: Harcourt Brace Janovitz, 1981., 1999CANOVAN, Margaret. Trust the people! Populism and the two faces of democracy. Political Studies, Oxford, v. XLVII, n. 1, p. 2-16, 1999.). Dada a centralidade da autora no debate, é importante acompanharmos a mutação de seu argumento, sobretudo no tocante à busca por uma definição comum para o populismo e os problemas teóricos e analíticos que ela implica.

Publicado originalmente em 1981, Populism tornou-se uma das referências centrais do debate. De início, o trabalho de Canovan levanta a questão central por trás dos usos da categoria “populismo”: o que os diversos fenômenos qualificados como “populismo” teriam em comum? É possível encontrar um núcleo comum, uma essência que justifique o uso do conceito para fenômenos diversos? (CANOVAN, 1981CANOVAN, Margaret. Populism. Nova York: Harcourt Brace Janovitz, 1981., p. 3-4). Sem evocar ainda o tema das ideologias, Canovan afirmava que os problemas de uma definição unívoca não se reduziriam ao populismo, mas fariam parte das tentativas de definição amplas de quaisquer fenômenos políticos, como o socialismo, o liberalismo e o conservadorismo. Assim, a autora afasta logo na introdução a possibilidade de uma definição única do problema: o populismo estaria submetido a uma variedade histórica de formas e manifestações relacionadas a processos de mudança política em contextos distintos.

Para justificar essa dificuldade, Canovan retoma o argumento apresentado por Isaiah Berlin em uma conferência publicada em 1968BERLIN, Isaiah. To define populism. Government and Opposition, London, v. 3, n. 2, p. 127-179, 1968. sob o título “To define populism”, na qual o filósofo criticava a busca por uma “essência platônica” (BERLIN, 1968BERLIN, Isaiah. To define populism. Government and Opposition, London, v. 3, n. 2, p. 127-179, 1968., p. 6) do populismo em favor de uma investigação histórica da ideia de populismo. À diferença de Canovan, contudo, Berlin está lidando com um problema conceitual e contextual preciso: o populismo russo (narodnik) reivindicava o uso do termo para definir um determinado tipo de movimento de retorno às raízes históricas da nacionalidade em detrimento dos processos de modernização nos moldes europeus. Nesse sentido, o “populismo” tem um uso conceitual historicamente observável e precisa ser compreendido à luz de suas relações com elementos ideológicos presentes nos contextos russo e europeu daquele momento: o socialismo, o nacionalismo, as críticas ao liberalismo e as diferentes teorias da modernização, entre outros.

Dada essa necessidade de absorção das possibilidades de transformação histórica do populismo, o problema que se coloca é o seguinte: como é possível identificar o populismo mesmo onde ele não é explicitamente reivindicado como uma ideologia ou movimento autônomo, como no caso dos narodniki russos? Ou, dito de outro modo, como converter um objeto de observação histórica num conceito de abrangência analítica? Para tanto, Canovan oferece uma tipologia baseada em duas distinções estruturais básicas: o foco no populismo como um movimento agrário relacionado a processos de modernização e no populismo como um fenômeno político (CANOVAN, 1981CANOVAN, Margaret. Populism. Nova York: Harcourt Brace Janovitz, 1981., p. 9). No primeiro caso, o “populismo agrário” corresponderia a três tipos de movimentos: o radicalismo agrário (como o people’s party americano), o movimento camponês e o socialismo agrário (como os narodniki russos). No caso do “populismo político”, encontraríamos as ditaduras populistas (como Péron), a democracia populista (como as diversas reivindicações por referendos e novas formas de participação), o populismo reacionário e o populismo dos políticos (que poderia ser definido de forma “não ideológica” como um tipo de retórica de apelo ao povo) (Ibidem, p. 13). A autora ressalta que, evidentemente, essa tipologia não existe de forma estanque, podendo ser encontradas formas híbridas e combinadas, que são devidamente analisadas no restante do livro.

Dos vários problemas despertados pela análise de Canovan, um deles se revela de início: como é possível estabelecer uma tipologia de algo que não está previamente definido? Dito de outro modo, não seria necessário identificar um núcleo em comum para que, em seguida, pudessem ser identificadas as suas variações, de modo a tornar a tipologia um instrumento útil de interpretação das variedades históricas do referido fenômeno? A essa questão, Canovan responde retomando o argumento de um dos textos publicados na clássica coletânea de Ionescu e Gellner sobre o tema do populismo, de autoria de Peter Wiles: o populismo deve ser entendido como uma “síndrome”, e não como uma doutrina (CANOVAN, 1981CANOVAN, Margaret. Populism. Nova York: Harcourt Brace Janovitz, 1981., p. 290; WILES, 1969WILES, Peter. A syndrome, not a doctrine. In: IONESCU, Ghita; GELLNER, Ernest (ed.). Populism: its meanings and national characteristics. New York: Macmillan, 1969. p. 166-179., p. 167) baseando-se na seguinte premissa:

[...] a virtude reside no povo simples, que compõe a maioria esmagadora, e em suas tradições coletivas [...]. O populismo enfatiza uma perspectiva moral, e não um programa definido; eles precisam de líderes em contato místico com o povo [...] o populismo é um movimento e não um partido, é anti-intelectual e com uma ideologia imprecisa (CANOVAN, 1981CANOVAN, Margaret. Populism. Nova York: Harcourt Brace Janovitz, 1981., p. 290).

A ideia de “síndrome” presente no argumento de Wiles, aqui retomada por Canovan, aparece como um substitutivo para a necessidade de uma definição ideológica positiva do populismo: ele não seria distinguido por características bem estabelecidas em torno de um programa político definível, mas por certos tipos de reações despertadas contra determinados processos políticos: as elites políticas estabelecidas, os processos de industrialização, o declínio de valores tradicionais, entre outros. O apelo à ideia de “síndrome” também justificaria, no argumento de Canovan, o fato de que o populismo poderia assumir tanto características ideológicas claras (como no caso dos narodniki ou do populismo peronista) quanto “anti-ideológicas”, como no caso da retórica populista da classe política e seu apelo ao povo. Este tipo de definição do populismo revelaria “a inutilidade de tentar identificar uma ideologia definida ou uma situação socioeconômica específica como características do populismo em todas as suas formas”; em síntese “todas as formas de populismo sem exceção envolvem algum tipo de exaltação e apelo ao ‘povo’ em um sentido antielitista” (CANOVAN, 1981CANOVAN, Margaret. Populism. Nova York: Harcourt Brace Janovitz, 1981., p. 294).

A ideia de um apelo fundamental ao povo permanece como o centro de identificação do populismo nos trabalhos posteriores de Canovan e orientará a sua interpretação sobre as possibilidades do populismo como uma reafirmação dos fundamentos da democracia. Canovan afirmará que o tipo de “síndrome”, o qual havia sido diagnosticado no seu primeiro trabalho, indicaria uma contradição fundamental das democracias contemporâneas: o conflito entre as promessas de realização da democracia como um “apelo à soberania do povo” - o que ela chama de “impulso redentor da democracia” - e a dimensão das limitações formais e a composição de elites - que ela chama de “democracia pragmática” (CANOVAN, 1999CANOVAN, Margaret. Trust the people! Populism and the two faces of democracy. Political Studies, Oxford, v. XLVII, n. 1, p. 2-16, 1999., p. 10). As “síndromes” populistas emergiriam como modos de protesto contra a dimensão altamente contingente das instituições democráticas no que se refere ao exercício efetivo do governo do povo, podendo levar tanto à sua transformação em um sentido mais democrático - ou seja, mais responsivo às reivindicações do soberano - quanto à subversão da democracia em direção a um sistema autoritário.

As consequências teóricas do argumento de Canovan serão analisadas mais adiante - o que importa reter, no momento, é a transição dessa “ontologia dualista” da democracia para o uso da ideia de populismo como ideologia. Canovan retoma aqui a teoria das ideologias de Michael Freeden, segundo a qual uma ideologia pode ser identificada por um conceito central (core concept) que daria sua unidade fundamental, enquanto as características distintivas das mutações ideológicas seriam conferidas a ela pelos conceitos adjacentes e periféricos cujos significados sofreriam transformações de acordo com a forma como fossem combinados (FREEDEN, 1996FREEDEN, Michael. Ideologies and political theory: a conceptual approach. Oxford: Claredon Press, 1996., p. 78) Nesse sentido, o conceito central do populismo como ideologia seria “o povo”, seguido pelos conceitos de “democracia”, “soberania”, e “regra da maioria” (CANOVAN, 2002CANOVAN, Margaret. Taking politics to the people: populism as the ideology of democracy. In: MÉNY, Yves; SUREL, Yves (ed.). Democracies and the populist challenge. New York: Pallgrave, 2002. p. 25-44.p. 33). Para Canovan, a “transformação” operada nesses conceitos pela ideologia populista buscariam reafirmar a autenticidade e a experiência direta da vontade do povo contra os mecanismos representativos e as mediações institucionais da democracia liberal.

Na teoria de Freeden, ideologias não são significados de conteúdo estanque, mas sistemas de referentes cujo conteúdo é dado por práticas sociais (FREEDEN, 1996FREEDEN, Michael. Ideologies and political theory: a conceptual approach. Oxford: Claredon Press, 1996., p. 50-51). Uma ideologia é um arranjo determinado desses referentes, que estabelecem padrões conceituais cuja flexibilidade advém da própria natureza contestável e disputável da política, e cuja função é guiar a conduta política prática. É assim que, na aplicação de seu aparato teórico, Freeden observa que é possível compreender como, mesmo preservando seu núcleo básico, ideologias políticas sofrem mutações históricas importantes. Ele menciona, por exemplo, como a importância do conceito de mercado opera uma transformação profunda no liberalismo político e no seu conceito central de liberdade, em detrimento dos conceitos de direito e representação. No limite, o objetivo da teoria de Freeden é oferecer um mapa morfológico de determinada ideologia no qual estejam contidas suas variações teóricas e históricas.

Na interpretação de Canovan, contudo, o populismo não se limita a uma ideologia política passível de ser descrita em suas transformações conceituais. Em verdade, os conceitos que ela estabelece como distintivos do populismo como ideologia - povo, democracia, soberania e regra da maioria - não são senão aqueles que estruturam toda a linguagem democrática na história do pensamento político moderno, não sendo, portanto, suficientemente precisos para definir o populismo como uma ideologia política de caracteres próprios. O que a sua análise oferece, em verdade, não é uma compreensão da construção de uma ideologia - com suas variações conceituais possíveis transformadas pela prática política -, mas uma explicação de como o populismo se estrutura como uma disputa pelos fundamentos últimos da democracia. O que ela chama de “duas faces da democracia”, ou seja, sua dimensão “redentora” e sua dimensão “pragmática”, não constituem senão expressão dessa concepção dualista da política, fundada por uma disputa entre o apelo ao povo soberano - o procedimento “ontologicamente autêntico” da forma democrática - e as mediações institucionais como uma limitação pragmática desse retorno ao fundamento da legitimidade. A ideia do populismo como um “sintoma”, apresentado no primeiro trabalho, deriva nos artigos posteriores para uma interpretação do populismo como um fenômeno que exporia a dualidade estruturante das democracias, que teria, assim, a forma de uma contradição ou, nas palavras da autora, de um “paradoxo”.

A ideia dessa dualidade essencial entre povo e elites como distinção central do populismo como ideologia também fundamenta a interpretação de Mudde e Kaltwasser. Diferentemente de Canovan, contudo, os autores apontam que o populismo teria três conceitos centrais (core concepts): o povo, a elite e a vontade geral (MUDDE; KALTWASSER, 2017MUDDE, Cass; KALTWASSER, Cristóbal Rovira. Populism: a very short introduction. New York: Oxford University Press, 2017., p. 9), todos eles remetendo a uma disputa fundamental: “Para além da falta de acordo acadêmico quanto aos atributos definidores do populismo, a concordância geral é que todas as formas de populismo incluem o apelo ‘ao povo’ e a denúncia da ‘elite’”(Ibidem, p. 5). O populismo seria, portanto, uma “ideologia esvaziada” que se oporia a outros dois elementos fundamentais da democracia: o elitismo e o pluralismo (Ibidem, p. 7). “Mais concretamente, definimos populismo como uma ideologia esvaziada [thin-centered ideology] que considera a sociedade separada em dois campos homogêneos e antagonistas, o ‘povo puro’ e as ‘elites corruptas’”. (Ibidem, p. 6). Para os autores, diferentemente de “ideologias cheias”, como o socialismo, o liberalismo ou o fascismo, o populismo careceria de uma morfologia completa, assimilando aspectos de diversas ideologias e movimentos políticos e absorvendo-os na polaridade fundamental do conflito entre a pureza do povo e a corrupção das elites.

As ideias de povo e elite são passíveis de caracterizações distintas em contextos específicos, como o caso do povo identificado como os grupos marginalizados, como nos populismos latino-americanos, ou o povo como identidade nacional definida em termos cívicos ou étnicos, como no caso dos populismos de extrema-direita do leste europeu (Ibidem, p. 10-11). As elites, por sua vez, são definidas, sobretudo, por critérios morais: mesmo quando representadas como elites econômicas, sua polarização com o povo se deve a um tipo de compromisso oposto aos interesses autênticos deste.

Nesse sentido, o conceito de interesse é um mediador fundamental para a concepção populista de “elites”: elas são caracterizadas, sobretudo, como atores que atendem a interesses “não populares”, o que fundamenta a reivindicação de uma “mudança de elites” por parte dos populismos. Os autores lembram que, por exemplo, para um “populismo de esquerda”, a ideia do vínculo dos interesses entre elites e imperialismo americano é central para a construção do argumento (Ibidem, p. 13).

Mas a distinção étnica também não seria algo próprio apenas dos populismos de extrema-direita, na medida em que, em casos como o boliviano, a distinção entre o povo “mestiço” e as elites “europeias” jogaria um papel importante (Ibidem, p. 14). O terceiro elemento, a concepção populista de “vontade geral”, teria como consequência prática a busca por processos de transformação institucional que beneficiariam novas formas de expressão institucional da vontade geral em detrimento dos procedimentos liberal-democráticos, invariavelmente corrompidos pelas elites (o que os autores chamarão de uma “função corretiva” do populismo, já presente nas análises anteriores de Kaltwasser sobre o populismo latino-americano). A concepção de vontade geral populista não seria apenas contrastante com os mecanismos elitistas da democracia “schumpeteriana”, mas também com os valores democráticos do pluralismo e da deliberação como forma possível da construção de consensos:

[...] antes do que um processo racional construído através da esfera pública, a noção populista de vontade geral está baseada numa noção de ‘senso comum’ [...] útil não somente para agregar demandas diferentes, mas para identificar um inimigo comum (Ibidem, p. 18).

Estabelecidos esses três conceitos centrais do populismo e suas variações, os autores afirmam que, graças à natureza “esvaziada” da ideologia populista, foi possível combiná-la em vários contextos com ideologias distintas: o agrarismo, o nacionalismo, o socialismo e o neoliberalismo (Ibidem, p. 19). O trabalho dos autores se desdobra em uma análise de exemplos históricos de apropriação do populismo com relação a esses diversos tipos de ideologias “cheias”. Como conclusão, Mudde e Kaltwasser afirmam que o populismo é capaz de mobilizar em contextos diferentes o mal-estar social (social grievances) com a política e, em combinação com uma ideologia hospedeira (host ideologies), dar forma política a essa dualidade fundamental entre o povo e as elites (Ibidem, p. 40-41). Essa polarização, por sua vez, não teria conteúdo essencialmente antidemocrático, já que seu “retorno ao povo” poderia dar voz a grupos não representados pelas elites políticas tradicionais (KALTWASSER, 2012KALTWASSER, Cristóbal Rovira. The ambivalence of populism: threat and corrective for democracy. Democratization, Essex, v. 19, n. 2, p. 1-25, 2012., p. 192; 2013KALTWASSER, Cristóbal Rovira. The responses of populism to Dahl’s democratic dilemmas. Political Studies, Oxford, v. 62, p. 470-487, 2013.).

Duas críticas fundamentais poderiam ser feitas à teoria do populismo como ideologia de Mudde e Kaltwasser: (i) A concepção de um apelo ao retorno “ao povo” não se traduz em um instrumento analítico eficiente para distinguirmos o populismo como ideologia de outros tipos de ideologias presentes nas democracias. Nesse sentido, um apelo ao povo como parcela excluída pode muito bem ser parte da retórica de movimentos de justiça social e inclusão que na prática sejam perfeitamente adaptados ao sistema político e ao pluralismo partidário. Da mesma forma, a crítica às elites estabelecidas não são suficientes para definir um movimento distinto, mas podem ser parte da retórica eleitoral de partidos que disputam um cenário de mudanças na correlação de forças de um sistema político, sem pressupor uma transformação institucional efetiva. (ii) Por outro lado, se a ideia de “povo” for qualificada de forma suficiente, o conceito de populismo se esvazia de sentido em detrimento de outros tipos de ideologias mais bem definidas que atribuem, por exemplo, efetiva mobilização de aspectos étnicos/raciais/identitários ao “povo” contra o pluralismo democrático, como é o caso dos estudos do próprio Mudde sobre a extrema-direita na Europa. Não à toa, nesses trabalhos, não é a polaridade genérica “povo x elites” que fundamenta a análise, mas uma caracterização extensa dos partidos de extrema-direita do leste europeu e seus elementos ideológicos definidores - a saber, nacionalismo, exclusionismo, xenofobia, Estado forte, bem-estar social xauvinista, ética tradicionalista, revisionismo (MUDDE, 2004MUDDE, Cass. Populist radical parties in Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2007., p. 21) -, resultando em um conceito bem definido e analiticamente mais eficiente. Ao fim, o conceito de populismo se apresenta tão heterogêneo que quase toda forma de reivindicação popular por mudanças nos sistemas políticos pode ser caracterizada como sendo sinal de sua manifestação. De igual modo, a ideia de que o populismo necessitaria de uma “ideologia hospedeira” reforça a interpretação de que, na leitura dos autores, o populismo não seria propriamente uma ideologia, mas um tipo de estrutura própria da dinâmica democrática, ao lado do pluralismo e do elitismo, que eventualmente “contaminaria” determinadas ideologias.

O populismo como estilo político

As críticas à ideia de populismo como ideologia não são poucas e estão centradas, sobretudo, em seus problemas de operacionalização analítica. Para um de seus primeiros críticos, Ben Stanley, haveria poucos elementos capazes de sustentar uma concepção do populismo como algo capaz de sobredeterminar outras características ideológicas de determinados partidos políticos, movimentos e líderes (o socialismo, o nacionalismo de extrema-direita, o neoliberalismo, entre outros). Para ele, “não há evidência de elementos institucionais indicando um proposito comum entre os populistas” (STANLEY, 2008STANLEY, Ben. The thin ideology of populism. Journal of Political Ideologies, Abingdon, v. 13, n. 1, p. 95-110, 2008., p. 100)4 4 Vale ressaltar que as críticas de Stanley foram formuladas antes que Steve Bannon iniciasse um movimento para a criação de um movimento populista internacional. Para mais, ver ALEXANDER, 2018. . Como consequência da inexistência de uma causa eficiente populista, suficiente para transformar as características das ideologias existentes, Benjamin Moffitt nota que “uma ideologia esvaziada pode se tornar tão vazia que perde sua validade e utilidade conceitual” (MOFFITT, 2016MOFFITT, Benjamin. The global rise of populism: performance, political style and representation. Stanford: Stanford University Press, 2016., p. 19). Na mesma linha, Kirk Hawkins (2010)HAWKINS, Kirk. Venezuela’s chavismo and populism in comparative perspective. Nova York: Cambridge Univerisy Press, 2010. aponta que a falta de textos, vocabulários e um programa normativo para a ação política que acompanham uma ideologia provaria que, antes do que uma ideologia, o populismo poderia ser classificado como um tipo de elemento discursivo presente em outras ideologias. Assim, por exemplo, uma figura como Chávez pode ter um discurso populista, mas sua ideologia não seria o populismo, mas o socialismo. A mesma critica aparece em Norris e Inglehart, para quem o populismo seria no máximo um estilo retórico associado ora a valores autoritários e ora a valores libertários (NORRIS; INGLEHART, 2019NORRIS, Pippa; INGLEHART, Ronald. Cultural backlash: Trump, Brexit, and the rise of authoritarian-populism. New York: Cambridge University Press, 2019.).

Tais críticas apontariam para um diagnóstico de que aquilo que chamamos “populismo” não configuraria um conjunto claro de distinções ideológicas ou de argumentos normativos sobre o funcionamento da democracia que fossem suficientes para provar a existência de um movimento político próprio e comum, nem mesmo um conjunto de transformações internas a outras ideologias para justificar sua existência como uma “ideologia hospedeira”; assim, o populismo poderia, no máximo, ser identificado como um tipo de prática discursiva na construção de personalidades políticas e na forma de mobilizar o apelo ao povo nas democracias. Contudo, como observaram precisamente Gidron e Bonikowski, tanto as abordagens do populismo como ideologia quanto as interpretações do populismo como um tipo de retórica definem o populismo discursivamente, a despeito do fato de utilizarem termos diferentes para o fenômeno, como estilo, linguagem ou ideologia (GIDRON; BONIKOWSKI, 2013GIDRON, Noam; BONIKOWSKI, Bart. Varieties of populism: literature review and research agenda. Weatherhead Working Paper Series, Cambridge, n. 13-0004, p. 1-38, 2013., p. 15). É essa natureza discursiva de muitas interpretações do populismo que produziria a confusão em torno de sua efetiva funcionalidade como conceito analítico, dado que muitos dos habituais casos sintomáticos de sua existência pressuposta não seriam identificados senão por aspectos discursivos muito secundários, como o apelo a uma ideia original e holística de povo, ou uma retórica antissistema, encontráveis em uma diversidade de outros fenômenos políticos5 5 Todas essas críticas desdobram aspectos que estão presentes in nuce na análise de Taguieff sobre os vários usos políticos e acadêmicos do populismo: “O populismo pode apenas ser conceitualizado como um tipo de mobilização social e política, o que significa que o termo pode designar apenas uma dimensão da ação e do discurso políticos. Ele não engloba um tipo particular de regime, nem define um conteúdo ideológico particular. Ele é um estilo político aplicável a várias estruturas ideológicas” (TAGUIEFF, 1995, p. 9). .

Assim, como demonstra Moffitt, se existe certo consenso quanto aos atores políticos que podem ser classificados como populistas na literatura contemporânea, há, ao mesmo tempo, uma imensa disparidade de compreensão na análise das ideologias e estratégias políticas desses autores, que a simples presença de elementos discursivos comuns não dá conta de reunir numa mesma classificação política (MOFFITT, 2016MOFFITT, Benjamin. The global rise of populism: performance, political style and representation. Stanford: Stanford University Press, 2016., p. 26). Em uma tentativa de afastar a ideia de que seria possível uma única definição do populismo aguardando para ser descoberta, mas, ao mesmo tempo, procurando uma caracterização mais complexa das consequências políticas do discurso populista, Moffitt (2016, p. 28) lança mão da tentativa de defini-lo como um “estilo político”, ou seja, um tipo específico de performance política altamente mediatizada e estilizada no contexto político contemporâneo:

[...] estilo político pode ser entendido como os repertórios de performances mediatizadas para determinados públicos com a finalidade de criar e movimentar-se pelo campo do poder compreendido como político, estendendo-o do domínio do governo para o domínio da vida coletiva (Ibidem p. 38).

A definição de performance de Moffitt pretende englobar tanto os aspectos retóricos quanto os aspectos estéticos/simbólicos de uma construção política, indo além do conteúdo puramente discursivo das teorias de análise do discurso. Assim, a concepção de performance populista busca, ao mesmo tempo, um diálogo com as teorias da representação como performance e com o performative turn na sociologia contemporânea, para os quais a análise deve focar nas “ações mediadas simbolicamente” (Ibidem, p. 38). No limite, a proposta de Moffitt pretende converter em um instrumento de análise empírica a afirmação de Ernesto Laclau de que a constituição do povo reside numa “operação performativa”, e que a questão é não apenas responder “o que é” o populismo, mas explicar “como” funciona o populismo, seu estilo (Ibidem, p. 40).

Ora, mas como é possível explicar “como” algo funciona antes de sabermos exatamente “o que” se está explicando? Moffitt argumenta que a sua análise está baseada em um “procedimento indutivo”:

No qual uma revisão da literatura sobre o populismo contemporâneo (de 1990 em diante) foi realizada, e 28 casos de líderes que são geralmente aceitos como exemplos de populistas foram identificados. Para ser considerado ‘amplamente aceito’ como populistas, os lideres foram classificados como populistas por ao menos seis autores da literatura [...]. Em outras palavras, enquanto os autores podem não concordar o que o populismo ‘é’, eles tendem em concordar quem os populistas ‘são’, e têm o hábito de deter-se nos mesmos casos ao longo da literatura (Ibidem p. 42).

Moffitt insiste que o procedimento indutivo não busca capturar a “essência verdadeira” do populismo, mas antes mapear o que une uma variedade de casos classificados como populistas por todo o mundo e construir um conceito mínimo do populismo baseado em três características que operam juntas quando a performance populista é colocada em prática: o apelo “ao povo” contra “a elite”, “o politicamente incorreto” (bad manners) e a percepção de uma crise, uma ruptura ou uma ameaça (crisis, breakdown, threat) (Ibidem, p. 43-45). A primeira delas remete a um elemento presente em todas as análises do populismo, qual seja, a dicotomia entre a autenticidade da representação democrática (o povo) contra os representantes das dinâmicas institucionais consolidadas (as elites). No segundo caso, o apelo ao politicamente incorreto seria, na leitura de Moffitt, uma expressão performática de um retorno ao senso comum contra o “comportamento rígido, racional, bem composto e o uso de uma linguagem tecnocrática” que marcariam as elites (Ibidem, p. 44). O terceiro elemento remeteria à mobilização da possibilidade de um risco iminente para a sociedade que as elites - ou o próprio sistema político - ou não seriam capazes de enfrentar, ou manipulariam em benefício próprio: “imigração, dificuldades econômicas, injustiças, ameaças militares, mudança social, entre outros” (Ibidem, p. 45).

As implicações da caracterização do estudo do populismo como estilo político são várias. A primeira delas é entender o populismo através de um número diverso de contextos e compreender como o populismo pode atravessar uma variedade de ideologias, afastando a ideia de um conteúdo ideológico próprio, mesmo que esvaziado. A segunda é a possibilidade de uma análise “gradativa” do populismo: no lugar de uma análise binária (populismo e não populismo), a análise do populismo como estilo permitiria perceber como as lideranças políticas podem oscilar no espectro populista-tecnocrata (Ibidem p. 48). A terceira implicação desse modo de interpretar o populismo permitiria dotar de sentido a afirmação comum de que o conceito de populismo “careceria de substância” e de que a retórica seria mais importante do que um conteúdo político próprio para os ditos líderes populistas (Ibidem, p. 49). Por fim, a teoria do populismo como estilo político permitiria não apenas uma explicação da dimensão “teatral” do populismo, mas traria para o centro da discussão a explicação de como a “representação populista” opera, ou seja, “a questão não é apenas quem o povo é, mas também como a atividade de interpelar e tornar presente o povo acontece” (Ibidem, p. 49).

O instrumental teórico de Moffitt nos parece eficiente para uma análise descritiva de certos fenômenos de questionamento do sistema político por meio de uma midiatização da ação política. Assim, o conceito de “estilo político” seria capaz de articular diferentes esferas da ação política - ideias, discursos, performance - de modo contextual, ou seja, entendendo como essas formas de construção do estilo articulam-se para produzir o conflito político. Contudo, a interpretação de Moffitt não enfrenta a questão sobre as consequências que a “performance populista” pode trazer à democracia e, sobretudo, se ela representa um tipo específico de interação que pode resultar em determinados tipos de conflito com a democracia, à diferença de outros modos de performance “antissistêmicas”. O dito “estilo populista” pode ocultar processos distintos de mudança política, bem como riscos diferentes para a democracia; da mesma forma, um “estilo populista” pode adequar-se ao establishment político (partidos que nos últimos anos foram caracterizados como populistas, como o 5 Stelle na Itália, ou o Podemos na Espanha, compuseram governos com o “estabilishment tecnocrata” de centro-esquerda). No limite, como aponta Stefan Rummens, o que o autor aponta como um estilo político próprio do populismo é, antes do que um fenômeno político distinguível de outros “estilos não populistas” contemporâneos de performance política, parte da transformação na representação democrática apontada por Bernard Manin (1997)MANIN, Bernard. Principles of representative government. New York: Cambridge University Press, 1997.: “em grande medida, características endêmicas do novo tipo de ‘democracia de audiência midiatizada que sucedeu nossa ‘democracia de partido’ tradicional já há algumas décadas” (RUMMERS, 2017RUMMERS, Stefan. Populism as a threat to liberal democracy. In: KALTWASSER, Cristóbal Rovira; TAGGART, Paul; OCHOA ESPEJO, Paulina; OSTIGUY, Pierre (ed.). The Oxford Handbook of Populism. New York: Oxford University Press, 2017. p. 697-717., p. 704).

O populismo e a ontologia do político

Como procuramos mostrar ate aqui, uma das críticas mais comuns ao populismo é a vacuidade do conceito; o populismo, nesse sentido, não seria um fenômeno bem definido, o que dificultaria seu uso a fim de identificar e classificar movimentos ou ideologias políticas distintas. É justamente a partir das complexidades desse ponto de partida que a interpretação de Ernesto Laclau - provavelmente a mais influente leitura do populismo como ontologia do político - é construída:

Minha tentativa não é encontrar um referente verdadeiro para o populismo, mas o oposto: mostrar que o populismo não tem unidade referencial, pois ele não está definido por um fenômeno delimitado, mas por uma lógica cujos efeitos cortam vários fenômenos. Populismo é, simplesmente, uma forma de construir o político (LACLAU, 2005LACLAU, Ernesto. On populist reason. London: Verso, 2005., p. XI).

Como mostramos ao longo desta seção, a interpretação do populismo como uma dinâmica que expõe a ontologia do político não é apenas uma leitura da esquerda radical; o populismo remeteria à necessidade de explicar como os agentes políticos “totalizam” a sua experiência, independentemente do conteúdo e dos objetivos de sua ação política. Contudo, no caso de Laclau, ela é inseparável da formulação de uma estratégia de mobilização política: como o próprio autor afirma, sua análise do populismo está no meio do caminho entre o descritivo e o normativo (Ibidem, p. 3).

A crítica de Laclau aos seus antecessores - como Margaret Canovan - está centrada nos esforços mal-sucedidos de oferecer uma morfologia do populismo; para ele, esforços tipológicos não procederiam senão por uma seleção de traços semelhantes entre movimentos distintos, “um mapa da dispersão linguística” (Ibidem, p. 7) de um fenômeno político. Da mesma forma, Laclau nega distinções entre os elementos ideológicos do populismo e sua manifestação puramente retórica (ou “anti-ideológica”, nas palavras de Canovan). Ele encara o seu trabalho não como uma tentativa de comparar um sistema de ideias como ideias, mas como um esforço de explorar a dimensão performática das ideias (Ibidem, p. 14). Nesse sentido, a vacuidade do populismo não seria uma falha conceitual, mas antes uma consequência da realidade social à qual ele remete: o populismo, antes do que uma operação ideológica e política, é um ato performativo dotado de racionalidade própria, que aponta para certo tipo de conflito político que participa de uma dimensão constante da vida política manifestada em discursos e em contextos políticos distintos (Ibidem, p. 18). A associação entre populismo e essa dinâmica essencial da vida política teria sido ocultada pela tradição do pensamento político por uma valoração essencialmente negativa das massas/povo em favor de sua interpretação institucionalizada, como conjunto de cidadãos.

O populismo, portanto, estaria relacionado a uma dinâmica essencial da construção de identidades coletivas que, por sua vez, organizar-se-ia em torno de um conflito ontologicamente constitutivo do político. Essa dinâmica se refere ao tipo de ato de significação que dota os indivíduos de um sentido de totalidade comum. Dito de outro modo, a operação do populismo deve dar conta de prover aos indivíduos - interpretados em sua posição inicial como um “conjunto puramente diferencial” - um sentido de totalidade que, ao mesmo tempo, “abrace todas as diferenças” e defina “a outra diferença - que proporciona a noção de ‘fora’ que permite a construção de uma totalidade” (Ibidem, p. 69-70). Tal diferença excludente é o que permite a tensão entre uma lógica diferencial e uma lógica equivalente que constitui a identidade, o ato político fundamental de qualquer sociedade:

Esta operação de assumir, através de uma particularidade, uma significação incomensuravelmente universal é o que eu chamei de hegemonia. E, dado que essa totalidade ou universalidade incorporada é, como vimos, um objeto impossível, a identidade hegemônica se torna algo da ordem de um significante vazio, sua própria particularidade incorporando uma plenitude inatingível (LACLAU, 2005LACLAU, Ernesto. On populist reason. London: Verso, 2005., p. 70-71).

Ao lado da formação de um antagonismo que marca a fronteira do “povo” e do “poder”, uma segunda precondição do populismo para Laclau é a formação de demandas insatisfeitas que dão conteúdo à lógica equivalente da identidade do povo. Uma demanda popular se diferencia, para Laclau, de uma demanda democrática: enquanto a segunda pode ser isolada, ou seja, realizada através dos mecanismos institucionais da democracia burguesa sem a constituição de um processo de equivalência, uma demanda popular precisa, necessariamente, resultar de uma subjetividade social ampla (Ibidem, p. 74). No limite, a teoria de Laclau aponta para um conflito fundamental entre a lógica da diferença (a da democracia burguesa/liberal) e a lógica da equivalência (a do populismo). Contudo, ele reivindica que a lógica da equivalência não significa a negação da diversidade, mas a sua absorção numa totalidade que possibilita a efetiva manifestação das demandas subalternas. “O movimento das demandas democráticas para as populares pressupõe uma pluralidade de posições subjetivas [...] a transição para uma subjetividade popular consiste em estabelecer um laço equivalente entre elas” (Ibidem, p. 86).

Esse laço equivalente é dado por dois procedimentos lógicos fundamentais: a identidade e a diferença. Em suma, é possível dizer que, se a construção do populismo como unidade política é propiciada pela incorporação de elementos ideológicos diversos e por uma ampla reunião de identidades e demandas subalternas, ela ainda assim remete à necessidade de se reunir em torno de uma polarização ontológica essencial. O construtivismo do conceito de populismo de Laclau está, desse modo, limitado pela essência do político, que é sempre dada de forma dualista. O populismo é o político, ele divide o social em dois campos distintos em que alguns “significantes privilegiados” condensam o significado de todo o “campo antagonista” que conforma a disputa política (Ibidem, p. 87). Entretanto, se as demandas populares devem prescindir da lógica da diferença constituída pela institucionalidade democrática e, ao mesmo tempo, elas são resultado de um processo de construção de uma identidade baseada em significantes vazios, o que impede que este mecanismo de constituição de formas de mobilização política articule demandas essencialmente antidemocráticas e potencialmente excludentes? Para Laclau, é preciso distinguir a função ontológica do discurso populista - sua interpretação de um fundamento básico da divisão social a partir da constituição de dois campos antagonistas - de seu conteúdo ôntico, ou seja, das manifestações objetivas de uma determinada ontologia. Assim, a função política do conflito ontológico pode ser exercida por significantes que manifestam conteúdos políticos ônticos consideravelmente divergentes. “É em razão dessa diferença que o populismo pode transitar entre demandas de direita e demandas de esquerda” (Ibidem, p. 87).

Ora, dada a abertura ôntica das formas políticas do populismo, a pergunta permanece aberta: passando da análise da ontologia do político de Laclau e avaliando as consequências normativas de sua defesa do populismo, como é possível estabelecer uma distinção entre o potencial emancipatório do populismo e sua possível “inversão” para constituir um significante vazio cuja natureza seja potencialmente limitadora das agendas subalternas, ou mesmo regressiva em termos de conquistas democráticas? Dado que a identidade do povo necessita da superação dos aspectos puramente diferenciais da institucionalidade democrática, deve ser afastado por princípio o apelo a quaisquer aspectos de mediação institucional como modo de limitar a possível conversão antidemocrática da representação populista. A saída para escapar da possibilidade de que o populismo seja associado a regressões autoritárias é reafirmar a identidade entre emancipação e democracia do marxismo: “a plebe, cujas demandas parciais estão inscritas num horizonte de totalidade - uma sociedade justa que existe apenas idealmente - podem aspirar a constituir o povo verdadeiramente universal que a situação atual nega” (Ibidem, p. 94). É apenas a aposta no horizonte normativo de uma identidade entre demandas da plebe e seu conteúdo universal - articulados em uma ação política populista de conteúdo emancipatório - que permite a Laclau diferenciar o populismo como potencial emancipatório de sua perversão autoritária6 6 Não é objetivo deste artigo reconstruir todo o debate recente em torno da relação entre populismo e universalismo, bem como as críticas à ideia laclauniana de uma “identidade” radicalmente oposta à variedade diferencial da política. Para mais, ver BUTLER; LACLAU; ZIZEK, 2000. . O que impediria a mobilização populista de “totalizar” a experiência política de uma sociedade em um resultado final autoritário não é, senão, a dimensão contingente do conceito de hegemonia. Nas palavras de Nadia Urbinati:

Embora Ernesto Laclau afirme que a ocupação populista do lugar do poder é “parcial” e nunca completa, a impressão que se tem é que sua incompletude é mais um limite prático na formação do consentimento que o ser humano não pode evitar ou superar do que uma regra normativa de princípio (URBINATI, 2014URBINATI, Nadia. Democracy desfigured: opinion, truth and the people. Cambridge: Harvard University Press, 2014., p. 132).

No limite, o argumento de Laclau só pode ser sustentado se, como ele mesmo demonstra, for possível separar a reivindicação da democracia como exercício de uma soberania do povo potencialmente emancipatória das formas institucionais que mediam a representação e as garantias formais do direito (a etapa transitória da democracia burguesa, como ele demonstra no apêndice ao capítulo 4 de “Sobre a razão populista”). O ponto de partida de Laclau para discutir a relação entre populismo e democracia é a distinção feita por Chantal Mouffe entre a democracia como uma forma de governo, baseada no princípio da soberania do povo e a estrutura simbólica através da qual a democracia é exercida (LACLAU, 2005LACLAU, Ernesto. On populist reason. London: Verso, 2005., p. 167). A princípio, a análise de Laclau/Mouffe parece convergir com a célebre interpretação de Claude Lefort da democracia como um regime cuja forma não pode ser definida previamente, sendo caracterizada por uma indeterminação fundamental. Contudo, se - nos termos de Lefort - a dissolução das “marcas de certeza” que acompanhavam a soberania “cheia” da forma monárquica é o próprio da democracia, ao mesmo tempo “a novidade da democracia moderna, o que a torna propriamente moderna, é que, com o advento da ‘revolução democrática’, o velho principio democrático de que ‘o poder deve ser exercido pelo povo’ emerge novamente, mas dessa vez dentro do quadro simbólico informado pelo discurso liberal, com sua ênfase forte no valor das liberdades individuais e dos direitos humanos” (MOUFFE apud LACLAU, 2005LACLAU, Ernesto. On populist reason. London: Verso, 2005., p. 167).

Assim, o que Lefort percebe como sendo distintivo da “revolução democrática moderna”, Mouffe aponta como sendo uma conjunção meramente contingente entre duas tradições: a tradição liberal da rule of law, a defesa dos direitos humanos e o respeito pela liberdade individual, e a tradição democrática, baseada nas ideias de igualdade e de soberania popular. “Não há uma relação necessária entre essas duas tradições, mas apenas uma articulação histórica contingente” (MOUFFE, 2000MOUFFE, Chantal. The democratic paradox. London: Verso, 2000., p. 3). Ora, na teoria de Lefort, a centralidade dos direitos humanos e das garantias individuais não é apenas uma aposta normativa no conteúdo que o liberalismo aportaria à democracia, mas antes o reconhecimento de que a concepção moderna de democracia pressupõe uma relação entre a ideia de um “lugar vazio do poder” e a “nova constituição simbólica do social”7 7 Para uma discussão sobre o tema do liberalismo e da democracia radical na obra de Lefort e nas interpretações de alguns pensadores importantes que recepcionaram sua obra, como Marcel Gauchet e Miguel Abensour, ver INGRAM, 2006. . Essa nova constituição simbólica do social está marcada justamente pelo fato de que é na esfera dos conflitos políticos que o conflito social é legitimado (LEFORT, 1991LEFORT, Claude. Pensando o político: ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991., p. 33) e que, portanto, é através das formalizações, expressas sobretudo na forma do direito - as liberdades públicas, a representação, mas, sobretudo, os direitos humanos - que essa experiência política ganhou forma na modernidade. No argumento de Lefort, o “lugar do poder” nas democracias não pode ser ocupado e nem mesmo representado, no sentido de que “nenhum indivíduo ou grupo pode ser consubstancial a ele” (LEFORT, 1988LEFORT, Claude. Democracy and political theory. Cambridge: Polity Press, 1988., p. 17), mas o seu exercício está mediado por procedimentos e por redistribuições periódicas: “ele representa um conflito controlado por regras permanentes”.

Nesse sentido, Lefort não ignora que as instituições democráticas são e foram também utilizadas para, em suas palavras, “limitar a uma minoria os meios de acesso ao poder, ao conhecimento e ao gozo de direitos” (Ibidem p. 34). Mas ele também trata, por exemplo, da linguagem dos direitos e da “segurança dos indivíduos” como parte dessa experiência democrática que, se negada, abre espaço para o totalitarismo (Ibidem, p. 35). O que Lefort tem em mente é justamente não reduzir as esferas de mediação formal do direito ao nível de alienação (Ibidem, p. 33). Não se trata aqui, evidentemente, de uma apologia da democracia liberal na sua forma existente, mas do reconhecimento de que o lugar do poder não pode ser preenchido por um ator político no qual residiria a pretensa legitimidade contínua da forma democrática.

O problema dessa dimensão da mediação das formas institucionais e do direito na teoria populista é que ela não esta pressuposta como parte inextrincável da experiência democrática moderna, mas como resultado do aporte liberal à democracia, ao fim um elemento alienígena à “essência” democrática, a identidade ontológica entre poder e povo. O problema da dimensão da mediação para Laclau, é que ela permanece sendo uma “totalidade diferencial/institucional” (LACLAU, 2005LACLAU, Ernesto. On populist reason. London: Verso, 2005., p. 77), e a necessidade de sua superação por meio da mobilização populista obedeceria à fidelidade a uma ontologia do político que pressupõe uma polaridade sem mediações. Nesse sentido, como afirma José Maurício Domingues:

Não há razão para ontologizar o “político” - a modernidade política, em outras palavras - com leituras polarizadas, agonísticas ou antagonisticas. Se o conflito é parte e parcela da vida política, também o é a cooperação; polos podem ser criados, mas a vida social é plural e nessa direção a modernidade tem se movido (DOMINGUES, 2019DOMINGUES, José Maurício. Critical theory and political modernity. Cham: Palgrave Macmillan, 2019., p. 281).

No limite, o argumento de Laclau aponta para a continuidade daquilo que, como buscaremos nos referir na conclusão, é a essência do que pode ser compreendido como o risco central do populismo para a democracia (e, assumindo a democracia como democracia liberal, creio que o próprio Laclau não discordaria do argumento): para o populismo, o povo deve ser entendido como uma comunidade normativamente homogênea com uma identidade coletiva compartilhada. Para a democracia, em contraste, o povo deve ser entendido como uma pluralidade irredutível, consistindo de agentes formalmente livres e iguais. Os mecanismos de mediação simbólicos próprios da revolução democrática lefortiana - o direito, os direitos humanos e as garantias individuais - são justamente o modo de anular a eliminação da diferença em nome de uma equivalência absoluta que poderia ser pressuposta na ideia da democracia como um significante vazio (o “lugar vazio” da soberania). Esse mesmo mecanismo não existe na teoria de Laclau: a afirmação de uma “equivalência plural” - ou seja, a possibilidade de uma variedade de visões que conservasse sua diversidade mesmo sendo integrada em uma identidade superior - é, ao fim, uma aposta puramente normativa na promessa emancipatória de uma ação populista de esquerda8 8 Não teríamos espaço aqui para recuperar o debate sobre o tema da hegemonia e as críticas vindas de autores como Atilio Borón e Ellen Wood às estratégias discursivas do pós-estruturalismo em detrimento dos aspectos materialistas do marxismo. Para uma síntese do debate, ver MARTÍN, 2019. .

O populismo como estratégia agonista

Para Laclau, o populismo se apropria da categoria “povo” como um significante vazio que permite estabelecer uma cadeia de equivalências entre demandas aparentemente desagregadas de parcelas subalternas da população. Essa cadeia, fundada em uma lógica da identidade, constrói a fronteira entre o povo e o “outro”, estabelecendo a dicotomia necessária para a reconstrução do conflito político fundamental que está oculto sob a máscara da “totalidade diferencial” representada pela democracia liberal. Nessa estrutura argumentativa, o regime político não possui nenhum tipo de legitimação ou função democrática: sua existência fática é apenas um corpo estranho à lógica essencial do político, o conflito entre dois polos. Se o antagonismo se constrói contra aquilo que se opõe às identidades subalternas, logo, por definição, o papel do regime estará necessariamente associado ao das elites, e o objetivo final do populismo não pode ser outro senão realocar as estruturas de poder com uma alternativa “mais democrática”. Para além da circularidade lógica do argumento, faz-se necessário observar que o seu problema essencial é, como observa Rummens, que a estrutura teórica de Laclau não nos permite pensar a passagem do antagonismo para o agonismo (RUMMERS, 2017RUMMERS, Stefan. Populism as a threat to liberal democracy. In: KALTWASSER, Cristóbal Rovira; TAGGART, Paul; OCHOA ESPEJO, Paulina; OSTIGUY, Pierre (ed.). The Oxford Handbook of Populism. New York: Oxford University Press, 2017. p. 697-717., p. 708), ou seja, a passagem de uma exterioridade radical do conflito para a construção de um conflito regulado por medidas comuns.

É esse deslocamento do antagonismo para o agonismo que Chantal Mouffe opera, insistindo que o projeto de radicalização da democracia consiste justamente em reafirmar a “natureza partidária da política”. O momento atual, que a autora define como sendo o “momento populista”, é uma possibilidade de “retorno ao político”; contudo, vale lembrar, esse retorno não necessariamente tem um conteúdo essencialmente democrático, mas pode também conduzir a alternativas autoritárias; é por isso que ela define o futuro imediato da política com um conflito entre um populismo de esquerda e um populismo de direita, possibilitado pelo “interregno” (o conceito é gramsciano) resultado da crise da hegemonia neoliberal (MOUFFE, 2018MOUFFE, Chantal. For a left populism. London: Verso, 2018., p. 10-13). Para Mouffe,

um dos pilares simbólicos fundamentais do ideal democrático - o poder do povo - foi minado, pois a pós-política eliminou a possibilidade do conflito agonístico entre diferentes projetos de sociedade, o que é a condição mesma do exercício da soberania popular (Ibidem, p. 15).

Assim, com o conceito de agonismo, Mouffe parece flexibilizar a rigidez ontológica - ou “antagonística” - da teoria do populismo de Laclau, sem, contudo, transformar um de seus fundamentos teóricos, a natureza discursiva da identidade política. A crítica agonista, no limite, pressupõe uma inscrição no projeto emancipatório da democracia ou, nas palavras de Mouffe, “a radicalização dos princípios ético-políticos do regime liberal-democrático” (Ibidem, p. 25).

No lugar de reconstruir a estrutura analítica do argumento agonista - que obedece a uma continuidade lógica desde “O retorno do político” passando por obras como o “Paradoxo democrático” - caberia aqui nos focarmos nos esforços de definição do populismo de Mouffe e de sua função na estrutura de sua teoria política. Para a autora, a ação populista não será uma reconstrução do zero de um significante vazio, mas a reconexão com os “valores políticos” do projeto democrático representado, entre outras experiências, pela declaração dos direitos do Homem (Ibidem, p. 26). Essa vinculação não substituiu o diagnóstico de que a formação do sujeito político “povo” exige a construção de uma “cadeia de equivalências” entre demandas diversas, mas ela se afasta da reafirmação de uma ontologia radical que nega as mediações constitutivas da democracia liberal in limine. Essa ruptura parece mais evidente quando Mouffe afirma que um agente social intervém na comunidade política “como cidadão” (Ibidem, p. 35). A despeito de essa categoria diferir aqui da concepção “puramente liberal” do cidadão como “portador de direitos” e reafirmar a sua vinculação “democrática” com o cidadão entendido como membro ativo da comunidade política, ainda assim a sua própria evocação expõe de maneira evidente a necessidade de pensar a ação política a partir de categorias de mediação simbólica comuns à democracia liberal.

Ora, considerando-se que a questão central do interesse da obra de Mouffe para o presente artigo é compreender o papel do populismo como conceito dotado de conteúdo próprio e que, portanto, traria uma modificação suficiente do argumento, caberia perguntar aqui se o que a autora chama de populismo realmente traz algo original, para além da valoração positiva de elementos tradicionalmente identificados com o populismo: a necessidade de pensar a ação do povo a partir do Estado nação (Ibidem, p. 38) ou a importância dos afetos e elementos subjetivos para a formação das identidades políticas (Ibidem, p. 39). Dito de outro modo, se o cerne do projeto de democracia radical de Mouffe pretende assumir a necessidade de diversas formas de mediação entre uma concepção abstrata de povo e a realização do projeto emancipatório, o que a ideia de um “populismo de esquerda” traz de novo? Essa ambiguidade não parece escapar à própria Mouffe, quando afirma que:

Estou ciente de que, entre os que são a favor da radicalização da democracia, nem todos consideram necessário ou mesmo desejável articular as diversas lutas em uma vontade coletiva. De fato, uma objeção frequente a uma estratégia populista de esquerda é a de que reunir as demandas democráticas na criação de um “povo” produzirá um sujeito homogêneo, que nega a pluralidade [...]. Outra objeção, um pouco diferente, é que “o povo”, tal como concebido pelo populismo, está desde o início previsto como homogêneo e que essa perspectiva é incompatível com o pluralismo democrático. Tais objeções decorrem do fracasso (ou da recusa?) de entender que uma estratégia populista de esquerda é informada por uma abordagem antiessencialista segundo a qual o “povo” não é um referente empírico, mas uma construção política discursiva. Ele não existe anteriormente à sua articulação performativa e não pode ser apreendido através de categorias sociológicas (MOUFFE, 2018MOUFFE, Chantal. For a left populism. London: Verso, 2018., p. 38).

Se para Laclau o conceito de populismo remete justamente à ontologia do político, construída como um antagonismo fundamental a partir da categoria “povo”, ao afastar o argumento ontológico, o conceito de populismo não resta no argumento de Mouffe, como revela a passagem acima, senão como um nome dado ao tipo de ação política que pretende reconstruir o povo como categoria discursiva anti-hemegônica na atual crise do neoliberalismo, perfeitamente intercambiável, sem mudanças substantivas no argumento, pela palavra “socialismo”9 9 É verdade que Mouffe parece antever esse tipo de crítica na conclusão de seu trabalho sobre o populismo. Após insistir que existe um “nível analítico”, que permite identificar uma diversidade de movimentos sob a categoria de “populismo de esquerda” (p. 41), ela afirma que a resistência a essa categorização deve vir de setores da esquerda que “continuam reduzindo a política à contradição entre capital/ trabalho e atribuem privilégio ontológico à classe trabalhadora” (p. 41). Para defender sua perspectiva, a autora reafirma que o “populismo de esquerda” remete, sobretudo, a uma forma de reivindicação da luta contra a hegemonia neoliberal (p. 41-42). . Assim, populismo e povo são a mesma coisa; mais do que indicar uma substância própria ao conceito de populismo, ele é o nome dado ao tipo de ação política que Mouffe promove como horizonte desejável da emancipação democrática na atual situação de crise - ou de fissura hegemônica - das democracias submetidas ao paradigma neoliberal, que seja capaz de superar a identidade de classe do socialismo através da agregação de diversas demandas subalternas (de classe, indenitárias, de gênero, entre outras).

O populismo como representação

Não há dúvidas que a teoria do populismo de Laclau trata justamente de um modo de construir a representação, na medida em que a construção do povo se dá por um mecanismo de “representação da cadeia equivalente por um significante vazio” (LACLAU, 2005LACLAU, Ernesto. On populist reason. London: Verso, 2005., p. 162). Mas, ao mesmo tempo, esse processo de representação obedece a uma lógica inerente ao político, a lógica da identidade dualista, schmittiana, entre o “dentro” e o “fora”. É partindo dessa percepção do populismo como um modo de construir a representação de demandas subalternas que alguns teóricos políticos consideraram as potencialidades democráticas do populismo. Em verdade, essa percepção já aparecia no trabalho acima referido de Peter Wiles, para o qual “na medida em que o populismo defende os direitos das maiorias para garantir - intervindo - que elas não sejam ignoradas, o populismo é profundamente compatível com a democracia” (WILES, 1969WILES, Peter. A syndrome, not a doctrine. In: IONESCU, Ghita; GELLNER, Ernest (ed.). Populism: its meanings and national characteristics. New York: Macmillan, 1969. p. 166-179., p. 247).

Benjamin Arditi percebe a compatibilidade do populismo com a democracia por meio da possibilidade de explorar uma resposta à falência dos “atalhos do elitismo democrático” (ARDITI, 2007ARDITI, Benjamin. Politics on the edges of liberalism: difference, populism, revolution, agitation. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2007., p. 43). A crise dos mecanismos tradicionais de mediação da democracia “elitista” - partidos e sindicatos, sobretudo - abriria espaço para uma nova ação para os movimentos sociais e partidos desafiantes do sistema político. Essa perspectiva parte, segundo o próprio Arditi, da exploração do principio teórico do “paradoxo democrático” exposto por Canovan, o conflito entre a dimensão redentora e a pragmática da democracia. Contudo, Arditi procura afastar-se de duas leituras “ontologizantes”, as quais são derivadas dessa concepção polarizada de democracia. A primeira delas é a do próprio Laclau: para ele, seria possível concordar com a ideia de que o populismo constitui uma alternativa radical para construir a representação sem, contudo, igualar o populismo ao político e, ao mesmo tempo, conceber o espaço comunitário como um campo puramente polarizado (Ibidem, p. 48). A segunda é a possibilidade de encarar o populismo como a “sombra” democrática sobre a democracia liberal - nesse sentido, o populismo seria uma “experiência super-democrática” (über-democratic experience) e que revelaria o conteúdo propriamente “iliberal” da democracia (Ibidem, p. 49). Antes do que afirmar uma impossibilidade essencial, ou a análise do populismo como um “mau funcionamento” da democracia, Arditi pretende demonstrar que, se é verdade que o populismo não é equivalente à democracia, como vemos na teoria de Laclau, ele deve ser concebido como uma possibilidade inerente à prática da democracia. Nesse sentido é que ele oferece a metáfora do populismo como um “espectro” e não uma “sombra” da democracia: recuperando a interpretação do “espectro comunista” de Marx e Engels feita por Derrida, Arditi afirma que o populismo pode ser percebido como um espectro que, ao mesmo tempo, acompanha e assombra a democracia (Ibidem, p. 51).

Saltando as sutilezas de sua construção metafórica e buscando o seu conceito de populismo como representação, Arditi afirma que é possível perceber três modalidades do modo como o populismo interage com a dinâmica democrática. A sua primeira e mais importante característica se refere a uma relação de “interioridade” com a representação política, ou seja, o populismo seria um modo de representação compatível, mas não idêntico, com a compreensão liberal-democrática de representação (Ibidem, p. 51). Isso se dá, sobretudo, pela pretensão de uma relação imediata e pessoal entre o representante e representado, o que Arditi chamará da busca de uma legitimidade “suprapartidária” para a representação. Isso nos leva à segunda modalidade de interação entre populismo e democracia: o uso da mobilização popular para finalidades distintas da simples produção de representação eleitoral, que envolve desde a construção de formas alternativas de vida pública até o uso instrumental da violência com a finalidade de superar constrangimentos institucionais. Esse modo de intervenção populista, segundo Arditi, “tem o potencial de tanto perturbar quanto renovar o processo político sem dispensar necessariamente a estrutura institucional da democracia” (Ibidem, p. 52). Contudo, levada ao limite, esse tipo de intervenção populista poderia ampliar a tensão entre mobilização e poderes estatais e, portanto, desafiar o quadro institucional da democracia, levando à sua subversão (a terceira modalidade de interação).

Em resumo, é possível afirmar que o conceito de populismo de Arditi é construído como uma gradação cujo espectro vai da simples mobilização de mecanismos antielitistas para a construção da representação até a superação da própria possibilidade da representação liberal-democrática com a destruição da estrutura institucional, resultado de um conflito irreconciliável entre esta e a mobilização populista. O populismo, nesse sentido, não poderia a priori ser apresentado como um processo puramente democrático ou necessariamente antidemocrático; a sua possibilidade de conciliação com a democracia liberal depende do grau de conflito que ele produz, já que é justamente este potencial conflitivo que distingue o populismo como parte de uma “periferia interna” da democracia.

A despeito, porém, dessa indeterminação, Arditi insiste que “o populismo contém importantes componentes emancipatórios e igualitários” (Ibidem, p. 56). Ao mesmo tempo, ele ressalta que os clamores antissistema, o apelo ao “povo” e a uma forma imediata de representação estão presentes em movimentos políticos não necessariamente classificados como “populistas” (Ibidem, p. 57). A incidência desses elementos em diversos discursos políticos de natureza distinta se deve, sobretudo, ao fato de que eles respondem mais a uma fronteira indeterminada entre os conceitos mais amplos de legitimação da democracia e suas expressões institucionais, não pertencendo, necessariamente, a um movimento ou ideologia próprios. Ora, se os elementos que compõem o conceito de populismo são próprios da indeterminação inerente à dinâmica democrática, o que nos permite distinguir o populismo como um fenômeno autônomo? A essa questão, Arditi responde que o populismo deve ser compreendido como um “objeto anexato”. A categoria, retirada de Deleuze e Guattari, refere-se a fenômenos que não têm a exatidão das essências tampouco a inexatidão dos acidentes, mas se trata de um fenômeno que pode ser distinguido, justamente, pela flexibilidade de seus limites10 10 Para nos determos no próprio exemplo de Arditi: se o conceito de “círculo” é uma essência, um objeto anexato é algo que pode ser definido pela “circularidade” sem se confundir com os acidentes do conceito de círculo, uma bola ou um prato (ARDITI, 2007, p. 57). . Nesse sentido, a possibilidade de operacionalização analítica do populismo remeteria menos à busca de adequação entre os traços distintivos do conceito e suas manifestações e mais à compreensão do modo como certas reivindicações populares assumem ou não a forma de um conflito com a institucionalidade democrática.

Considerando que os fenômenos políticos existem, na medida em que pretendem ser tratados por cientistas sociais, como uma realidade empírica - seja na forma de movimentos ou de ideologias -, seria o conceito de “objeto anexato” realmente capaz de exprimir a natureza do fenômeno populista, ou seria ele mais uma forma de símile, uma tentativa conceitual aproximativa? Dito de outro modo, seria a categoria de populismo - dada a sua extensão - algo que realmente traz um ganho heurístico para a análise dos fenômenos democráticos, ou a “gradação” dessa contradição entre demandas populares e institucionalidade apresentada por Arditi não seria mais bem interpretada apelando a conceitos mais precisos para expressar formas de ação e de questionamento distintas, mais ou menos condizentes ou contraditórias com a forma institucional da democracia? Em outras palavras, não seria o caso de abandonarmos a “variável contínua” do populismo e retornarmos a uma descrição em profundidade de “variáveis discretas” contidas, por exemplo, num projeto de estudo das ideológicas contemporâneas, semelhante ao de Freeden?

Mantendo-se dentro do escopo de compreensão do populismo como um modo de representação, a interpretação de Nadia Urbinati pretende oferecer um aprofundamento na capacidade distintiva do populismo a partir de uma mudança no modo de operacionalização do conceito:

Podemos dizer que vemos as coisas melhor se pararmos de nos engajar em debates sobre o que o populismo é - se ele é uma “ideologia esvaziada”, uma mentalidade, uma estratégia ou um estilo - e voltarmo-nos para analisar o que o populismo faz: em particular, perguntarmo-nos sobre como ele muda ou reconfigura os procedimentos e instituições da democracia representativa (URBINATI, 2019URBINATI, Nadia. Me the people: how populism transforms democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2019., p. 7).

A análise de Urbinati parece, a princípio, partir do mesmo ponto que a de Arditi: trata-se de entender o populismo a partir do tipo de conflito que ele produz em um contexto democrático. Ela admite, inclusive, que o populismo é um “limite extremo da democracia constitucional” (URBINATI, 2019URBINATI, Nadia. Me the people: how populism transforms democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2019., p. 15), em termos muito semelhantes à ideia de “periferia interna da democracia” de Arditi. Contudo, a sua análise se distingue de um modo fundamental: trata-se menos de remeter ao populismo como uma das expressões do fundamento da democracia, a busca por modos de expressão da soberania e da vontade popular, e sim o de entender o populismo como parte da dinâmica de competição e circulação de elites políticas do regime representativo. Em verdade, essa diferença parte de concepções profundamente distintas de democracia: o primeiro tipo de interpretação - no qual é possível incluir não só Arditi, mas Canovan, Mudde e Kasswalter - supõe que, ao mesmo tempo em que o populismo expressa as potencialidades do povo como fundamento democrático, ele pode conduzir, por esses mesmos mecanismos “ônticos” (Laclau) a uma subversão da democracia. Nesse primeiro caso, há uma contradição que os autores pretendem apresentar como um “paradoxo” da democracia: a soberania do povo expressa na modalidade populista, ao operar para além das “fronteiras internas” (Arditi) da democracia, poderia levar à sua subversão tanto em uma forma mais “aprimorada” de democracia quanto em uma forma autoritária de regime. Ora, se essa forma autoritária tem origem em um tipo de mecanismo de produção de representação democrática, a consequência lógica do argumento é abrir espaço para a suposição de um “novo tipo” de regime democrático, como, por exemplo, a ideia de uma “democracia iliberal” (ZAKARIA, 1997ZAKARIA, Fareed. The rise of iliberal democracy. Foreign Affairs, New York, v. 76, p. 22-43, Nov./Dec. 1997.) em que a vontade do povo poderia continuar a ser expressa sem a existência das garantias individuais e mecanismos contramajoritários da democracia liberal.

Urbinati propõe, de partida, afastar a “mitologia” do paradoxo ontológico da democracia - e, portanto, do populismo como expressão do polo propriamente democrático da ontologia dualista - e assumir que a compreensão do populismo deve partir de uma interpretação de seus efeitos na prática da democracia representativa. A prática da democracia não pode ser compreendida fora de sua relação com valores liberais e republicanos como as garantias individuais e os exercícios da representação, e dos mecanismos institucionais de exercício do poder (URBINATI, 2019URBINATI, Nadia. Me the people: how populism transforms democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2019., p. 11-12). É por isso que Urbinati pode falar sobre a necessidade de entender o populismo “a partir do que ele faz”, já que se trata de entender que tipo de reivindicação por mudança institucional o populismo opera na prática e, sobretudo, que tipo de implicação na institucionalidade democrática pode ser resultado dela. No limite, o que Urbinati parece querer demonstrar é que a democracia não carrega em si o germe de sua subversão, já que indissociável do conceito de democracia a sua natureza constitucional, as garantias de preservação dos direitos políticos individuais, mas que, em verdade, é a representação - dada sua natureza puramente procedimental - que pode conduzir a uma subversão da institucionalidade democrática.

O ponto de partida da interpretação de Urbinati sobre o populismo é o mesmo de toda a sua teoria da democracia representativa: esta deve ser entendida como uma “diarquia”, ou seja, um sistema no qual “a ‘vontade’ (ou seja, o direito ao voto e os procedimentos e instituições que regulam as decisões autorizadoras) e a ‘opinião’ (o domínio extrainstitucional do julgamento político e a expressão da pluralidade) exercem uma influência mútua e interdependente” (Ibidem, p. 7). A ideia de diarquia pretende superar as interpretações puramente unívocas da democracia como expressão da vontade do povo, na medida em que esta, associada à ideia de “opinião”, só pode permanecer democrática se mantém sua vinculação com o pluralismo. É justamente sobre a impossibilidade de uma identidade absoluta entre opinião e vontade que a democracia representativa se sustenta. Assim, na leitura de Urbinati, o populismo se funda justamente na tentativa de afirmar essa possibilidade: ele seria uma reinvindicação por “representação direta”, a demanda por eliminar os “corpos intermediários”, os quais se interpõem entre o povo e o representante (URBINATI, 2015URBINATI, Nadia. A revolt against intermediary bodies. Constellations, Oxford, v. 22, p. 477-486, 2015.), e estabelecer uma “comunicação direta” entre os dois lados da diarquia.

No lugar de esgotar a recuperação da análise de Urbinati, procuraremos doravante explorar dois elementos de seu trabalho que se referem aos objetivos primários deste artigo: as possibilidades analíticas do uso do conceito de populismo e a relação entre populismo e crise da democracia:

O populismo mostra-se impaciente com a diarquia democrática. Ele mostra-se também intolerante com as liberdades civis na medida que (1) ele atribui exclusivamente à maioria vencedora a função de resolver desacordos na sociedade; (2) ele tende a enfraquecer a mediação das instituições ao submetê-las diretamente à vontade da maioria governante e a seu líder; e (3) ele constrói a representação do povo que exclui as partes que não compõem a maioria (URBINATI, 2019URBINATI, Nadia. Me the people: how populism transforms democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2019., p. 11).

Ora, se o mecanismo da representação nas democracias contém um elemento fundamentalmente metonímico, que é a possibilidade de que uma “parte” represente o “todo”, o argumento populista está fundado na reivindicação de uma representação da maioria que governa “contra” o restante da sociedade. Em termos práticos, essa distinção remete ao problema colocado inicialmente pelo populismo contra a competição da representação democrática: para a ciência política, a competição dos partidos gera o pluralismo, pois é justamente na possibilidade de um conflito entre partidos que representam forças sociais distintas no contexto de um sistema político que prevê a reversibilidade das maiorias através das eleições que o pluralismo é constituído (MAIR, 2002MAIR, Peter. Populist democracy vs party democracy. In: MÉNY, Yves; SUREL, Yves (ed.). Democracies and the populist challenge. New York: Pallgrave, 2002. p. 81-100., p. 85).

Nesse sentido, a reivindicação populista por uma forma de policy making constantemente voltada para a modificação do sistema político no sentido da diminuição da autonomia da manifestação da oposição, da accountability e da anulação de medidas contramajoritárias11 11 Não à toa, em casos de referência, como a Hungria, os dois procedimentos fundamentais em direção à recessão da democracia foram, por um lado, a eliminação de jornais e outras formas de manifestação da oposição e, por outro, a modificação da composição da suprema corte. Para mais, ver LEVITSKY; WAY, 2020. , anula ou dificulta potencialmente as possibilidades de competição e, portanto, de pluralismo democrático. Sua legitimidade advém justamente da reivindicação por uma competição eleitoral que não vise criar uma maioria política, mas revelar a maioria autêntica através de seu interprete virtuoso, o representante-líder. É nesse sentido que se pode falar que a eleição, para o populismo, tem natureza puramente plebiscitária (URBINATI, 2019URBINATI, Nadia. Me the people: how populism transforms democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2019., p. 93): ela é um modo de confirmação, e não uma forma de organizar a competição; do mesmo modo, anula a necessidade da accountability, já que o exercício do poder resultado da representação não está mais relacionado à adequação às normas institucionais objetivas, mas a uma resposta direta ao soberano.

Lembramos anteriormente que, assim como Arditi, Urbinati percebe o populismo como certo tipo de conflito entre formas de representação com maior ou menor grau de oposição com a institucionalidade democrática. Entretanto, essa gradação de intensidade é conceituada entre duas fronteiras, que configurariam assim dois tipos de populismo: populismo como um tipo de movimento popular e populismo como um poder dominante. “Precisamos de um modo de entender o populismo tanto como um movimento de opinião e contestação quanto como um sistema de tomada de decisões” (Ibidem, p. 15). Contudo, para afastar a confusão de boa parte das interpretações do populismo, que englobariam qualquer tipo de retórica de apelo à autenticidade do povo e/ou de crítica a modos tradicionais de representação e sua pretensa ineficiência democrática, ela insiste que o tipo de mobilização populista tem, necessariamente, de estar acompanhado de um projeto alternativo de representação:

Sem uma narrativa organizada, qualquer aspiração para ganhar assentos no parlamento ou no congresso e uma liderança que clama pela “verdadeira” expressão do povo como um todo, movimentos populares permanecem sendo o que eles sempre foram: movimentos democráticos sacrossantos de contestação contra alguma tendência social percebida como uma traição dos princípios básicos da igualdade. Isto é bem diferente da aproximação populista, que busca conquistar as instituições representativas e o governo da maioria com a finalidade de modelar a sociedade a partir de sua própria concepção de povo (URBINATI, 2019URBINATI, Nadia. Me the people: how populism transforms democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2019., p. 16).

O conceito de populismo de Urbinati nos parece, a princípio, bem-sucedido em estabelecer de início os limites da relação entre populismo e democracia: se um conceito unívoco de povo é inerente ao populismo, logo também se mostra ocmo inerente a ele um projeto antipluralista. E, como o pluralismo é condição da democracia, o populismo necessariamente tem consequências antidemocráticas. Mesmo em casos em que os movimentos populistas não são efetivos em operar o tipo de mudança institucional que têm em mente, a sua ação política é exercida necessariamente no sentido de oferecer uma concepção unívoca de povo que está em flagrante contradição com a concepção pluralista necessária ao sistema político democrático. “As coisas que o populismo realiza numa sociedade democrática e os traços que ele deixa visam modificar tanto o estilo quanto o conteúdo do discurso público, mesmo quando o populismo não desafia a constituição”. Assim, como consequência, seu “potencial transformador é o horizonte de minha teoria política do populismo” (Ibidem, p. 18). No limite, o que distinguiria a ambição populista de outras formas de mobilização políticas são os esforços para converter “uma nova maioria em maioria permanente”, ou seja, eliminar a regra da maioria num “ambiente de pluralismo político em que as maiorias são temporárias e modificáveis” (Ibidem, p. 111). É somente admitindo que em seu horizonte de prática política esteja o questionamento à institucionalidade democrática que o conceito de populismo pode ser operacionalizado de forma suficientemente distintiva.

Contudo, se o horizonte do populismo é uma transformação na democracia, como é possível distinguir o populismo de modo puramente autoritário de subversão da democracia? A análise de Urbinati é construída no sentido de demonstrar que o populismo é, sobretudo, uma forma de transformar a democracia, e não substituí-la por um regime autoritário; essa é a principal diferença que a autora percebe entre o populismo e o fascismo, dado que este último seria inseparável do objetivo de construir uma “tirania”. Ao mesmo tempo, Urbinati reconhece as semelhanças entre populismo e fascismo. No limite, a fronteira entre essas duas formas de mobilização política parece diferenciar-se menos nas características ideológicas e mais no limite entre a subversão da democracia colocada em prática por elas:

[...] a partir do momento em que o governo começa a utilizar violência (inconstitucional) contra seus próprios cidadãos, a partir do momento que o governo começa a reprimir o conflito político e impedir a liberdade de associação e expressão, o assim chamado populismo tornou-se um regime fascista (Ibidem, p. 22).

É justamente na tentativa de distinguir o populismo como um tipo de conflito democrático, mas que não se confunde com o autoritarismo, que a análise de Urbinati parece padecer de um problema fundamental. Em primeiro lugar, a distinção entre populismo e fascismo (ou qualquer outra forma de autoritarismo) parece apenas uma questão contingente: o populismo permanece sendo tal se mantém o tipo de conflito que ele cria no limite dos quadros democráticos - assim, o populismo, para preservar-se, precisaria mudar a representação sem eliminar as possibilidades da sua existência. As características distintivas desse conflito, porém, no limite, são as mesmas que aquelas encontradas em movimentos - como o fascismo - que visam regimes autoritários: a concepção unívoca de povo, a negação do pluralismo, a subversão da autonomia das instituições contramajoritárias, entre outros. Na interpretação de Urbinati, “o fascismo não é apenas uma forma de parasitar o governo representativo, pois ele não aceita a ideia de legitimidade que floresce livremente da soberania popular e de competições livres” (Ibidem, p. 21).

Ademais, essa distinção só pode ser feita se o fascismo for tomado como “exemplo de controle” para a análise do populismo por sua forma final, consolidada como Estado, e não como um processo histórico que, antes de tornar-se tirania, organiza-se como partido e movimento político na sociedade civil e que, portanto, obedece exatamente aos critérios estabelecidos por Urbinati para o populismo: a transição de um movimento popular para uma forma de poder dominante. É verdade que a relação do fascismo com a representação democrática era de explicita negação, apontando-a como mecanismo artificial de controle das elites sob o sistema político12 12 Sobre a relação entre fascismo e representação, ver o estudo de Matteo Pasetti (2016) sobre o corporativismo na Europa do entreguerras. ; mas, ao mesmo tempo, o fundamento dessa crítica era exatamente o mesmo do populismo, qual seja, apontar que a eleição deveria ser capaz de alcançar uma forma de representação que existe ex ante do processo político e que está relacionada com a reprodução das características holísticas do povo como tal, substituindo a “concepção processual do povo” (Ibidem, p. 12) das democracias representativas. A negação da representação liberal-democrática, no caso do fascismo, não é a negação da ideia de representação como um todo e muito menos uma recusa de participar da competição eleitoral; ele é, ao contrário, uma promessa continua de sua subversão e substituição por uma forma “autenticamente democrática” de mediação entre povo e líder.

Vejamos: se as diferenças são menos essenciais e mais acidentais, como a interpretação de Urbinati parece apontar, o foco da interpretação do potencial de supressão da democracia do populismo deveria recair não na negação in limine de sua diferença com o fascismo, mas na compreensão das condições históricas e os limites da possibilidade de subversão da democracia em contextos em que os partidos populistas chegam ao poder em democracias consideravelmente mais consolidadas - considerando, inclusive, os constrangimentos dos sistemas internacionais para a construção de regimes autoritários13 13 Para uma referência sobre a relação entre mecanismos internacionais de constrangimento a práticas antidemocráticas e sua crise atual, ver o artigo de COOLEY, 2016. - do que supor que diferenças contingentes justifiquem tratar populismo e fascismo como duas formas políticas fundamentalmente distintas14 14 A relação entre populismo e fascismo está desenvolvida no trabalho de Federico Finchelstein, no qual o chamado “populismo” é a manifestação da continuidade histórica da ideologia fascista no contexto do pós-guerra. O populismo seria, assim, identificado pelas mesmas características ideológicas do fascismo: a ideia unívoca, excludente e holística de povo, a negação das mediações institucionais e das garantias constitucionais da democracia liberal, a moralização da concepção de elites, a concepção de eleição como confirmação de uma maioria prévia, a reivindicação de uma representação autêntica da democracia, para citarmos algumas. Em resumo, o uso do conceito de populismo em Finchelstein é entendido como a continuação histórica de uma ideologia bem definida - o fascismo. Ele seria, nas palavras do autor “uma original reformulação histórica do fascismo no poder depois de 1945” que se difere, contudo, no modo como projeta a negação da representação liberal-democrática: “o populismo transmite uma concepção plebiscitária da política e rechaça a forma fascista da ditadura” (FINCHELSTEIN, 2018, p. 20). . Dito de outro modo, o fato de ideologias ou movimentos autoritários não conseguirem realizar sua ambição autoritária não faz deles, em essência, algo diferente do que são. Nesse sentido, Domingues nos parece preciso ao afirmar que:

No geral, o ‘populismo’ é agora o outro da democracia liberal, a bête-noir e o foco da ansiedade sobre a sustentabilidade da ordem liberal, um papel que o ‘totalitarismo’ desempenhou, mas que ao menos temporariamente, tem sido incapaz de exercer [...]. É claro que movimentos radicais de direita podem assumir o controle, prejudicando profundamente o quadro da infra-estrutura liberal. Isso acontecerá não porque sejam populistas, mas porque estão próximos do fascismo ou de outras tendências autoritárias/autocráticas (DOMINGUES, 2019DOMINGUES, José Maurício. Critical theory and political modernity. Cham: Palgrave Macmillan, 2019., p. 280).

A necessidade de distinguir o populismo como algo diferente de formas de autoritarismo, como o fascismo, parece ter levado a autora a uma ambiguidade interpretativa nada desprezível, qual seja, confundir, na mesma categoria de populismo, formas potencialmente antidemocráticas de mobilização política com formas de reivindicação por modos alternativos de participação numa “democracia de audiência”. Assim, ela propõe que “deveríamos falar de uma transformação populista da democracia - ou, ainda melhor, uma transformação na forma como a democracia representativa está se preparando para entrar na era da soberania de audiência” (URBINATI, 2019URBINATI, Nadia. Me the people: how populism transforms democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2019., p. 176). Para corroborar esse argumento, Urbinati procurará mostrar como dois casos de movimentos “populistas” que se mantém no quadro de uma democracia representativa - O Podemos na Espanha e o Movimento 5 Stelle na Itália - utilizam a reivindicação de formas de “poder popular direto” e “democracia participativa” como alternativa de combate ao poder das elites que parasitam o sistema político-partidário tradicional. Nessa perspectiva, ambos os partidos seriam os “mais expressivos e espetaculares casos de ascensão populista que desafiaram os partidos mainstream em anos recentes (Ibidem, p. 181).

Assim, tomando-se por verdade que esses partidos obtiveram expressivos resultados eleitorais ao ampliarem a tensão com o sistema político-partidário consolidado, o fato de que, após a publicação do livro de Urbinati, ambos os partidos terem formado gabinetes com o stablishment de centro-esquerda mostra que não há distinção eficiente entre chamá-los de populistas ou encará-los apenas como exemplos de novas formas de conflito e transformação do quadro partidário nos sistemas democráticos. No limite, Urbinati incorre no mesmo problema de qualificar de populista qualquer tipo de reivindicação por novas formas de participação, de deliberação e de crítica ao sistema partidário estabelecido. Ademais, considerar Podemos e 5 Stelle os casos mais expressivos do populismo nos anos recentes, diante do processo de regressão democrática do caso húngaro, que se encaixaria perfeitamente no seu conceito de populismo como transição de movimento para regime, produz uma profunda disjunção e ambiguidade no argumento.

Considerações finais

Após a análise crítica dos textos e autores que exploramos até aqui, é possível perceber que, no limite, a evocação do populismo remete a um problema fundamental: o tema do lugar do “povo” na teoria democrática. Responder à questão sobre como é possível dar forma - e, portanto, limite - ao que chamamos de povo tem sido desde sempre um dos desafios fundamentais dos teóricos da democracia. Isso implica, ao mesmo tempo, responder à pergunta sobre em que medida é legítimo limitar as possibilidades “criativas” da soberania popular.

Assim, a percepção de uma remissão ao povo como “atualização” da legitimidade democrática, independentemente do tipo de “conteúdo” que ela possua, não configura senão uma possibilidade inerente às democracias e não pode ser suficiente para definir uma “ideologia” ou “performance” política - seja em sua dimensão potencialmente antidemocrática, seja em sua dimensão emancipatória. Parece-nos que adotar a distinção entre povo puro e elite corrupta como algo suficiente para distinguir o populismo como uma ideologia política distinta não faz mais que assumir o próprio jogo retórico do populismo. Caberia antes ao intérprete saber que povo é esse que o populismo pretende representar e que elites são essas que ele pretende substituir. Nesse sentido, o povo do populismo pode apontar para outras ideologias (socialismo, fascismo), e o ataque às elites apontaria para outras tensões internas ao sistema político de determinados países (crise dos partidos, concentração de renda, nacionalismo xauvinista, entre outras). Dessa maneira, a mobilização do conceito de populismo poderia funcionar mais como uma “cortina de fumaça” do que como um instrumento analítico preciso.

De igual modo, apresentar o conflito entre a reivindicação de um retorno à legitimidade popular e as formas institucionais da democracia - o “paradoxo” de Canovan - como um tipo de antagonismo característico da ontologia democrática não é senão descrever com categorias fixas uma forma social e política que está justamente fundada na possibilidade do conflito mediado institucionalmente. Se é possível falar em uma “ontologia” da democracia, ela não está em polaridades de termos fixos como a apresentada por Canovan, entre a democracia redentora e a democracia pragmática, mas sim justamente na convivência necessária e conflituosa entre esses dois polos que não existem de maneira autônoma, mas apenas como resultado do processo de construção de uma forma política que identificamos como “as democracias modernas”. Se a dimensão das práticas institucionais é constitutiva da democracia, a ideia de um retorno à vontade soberana do povo contra as mediações da forma-direito (Domingues) não pode ser encarada como parte de uma dualidade ontológica da política - em que um lado representaria a experiência democrática “autêntica” -, mas como sintoma de um tipo de desafio à própria possibilidade da democracia. Por trás dessas interpretações, está a crítica superficial de que o elemento liberal da democracia “negaria o conflito”, quando, em verdade, a possibilidade da existência não só da democracia, mas de qualquer forma política - ao menos desde as lições de Aristóteles - está justamente na manutenção do conflito mediado pela existência de interposições formalizadas (ou instituições). Nessas interpretações, “a democracia não tem poder diante do populismo, pois lhe é negada qualquer capacidade de autolimitação”. Em consequência,

[...] a democracia é igualmente compatível com o liberalismo, o populismo, ou mesmo com o governo da multidão (mob rule), pois ela é um recipiente vazio sem nenhum conteúdo normativo além da afirmação da soberania popular e da regra da maioria (URBINATI, 2019URBINATI, Nadia. Me the people: how populism transforms democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2019., p. 91).

Ou, como afirmará no mesmo sentido Ochoa Espejo:

Esta discussão prévia sobre a natureza do “povo” numa democracia pode ajudar-nos a categorizar de forma mais precisa o populismo [...]. A conceptualização mais útil do populismo seria aquela na qual podemos distinguir claramente a visão populista de outras, aquela que captura todo o alcance do fenômeno no “senso comum” da descrição do termo na mídia e na imprensa, mas também, e talvez o mais importante, aquelas que tornam clara a razão pela qual o apelo democrático ao povo é possível e desejável, e como ela difere do apelo ao povo dos populistas (OCHOA ESPEJO, 2017OCHOA ESPERJO, Paulina. Populism and the idea of the people. In: KALTWASSER, Cristóbal Rovira; TAGGART, Paul; OCHOA ESPEJO, Paulina; OSTIGUY, Pierre (ed.). The Oxford Handbook of Populism. New York: Oxford University Press, 2017. p. 765-791., p. 786)15 15 Se concordamos que o esforço de converter o populismo em um conceito analítico eficiente é a primeira função dos interpretes do tema, discordamos de Ochoa Espejo, quando afirma que esse esforço tem importância teórica de natureza semelhante àquele de encontrar no “senso comum” o significado do uso do conceito. O uso analítico de um conceito pressupõe a sua capacidade de diferenciar um determinado fenômeno político de outro (e foi isto que procuramos mostrar que a bibliografia faz de forma incompleta e insuficiente) enquanto a tomada de um conceito como objeto histórico pressupõe mapear a variedade de usos e mudanças conceituais que ele opera na linguagem política. Nesse sentido, tomar o populismo como objeto histórico de interpretação - como faz, por exemplo, Berlin com os narodniki (BERLIN, 1968), Kazin com o people’s party americano (KAZIN, 1995) ou Finchelstein com a proposta do mapeamento dos usos do populismo no debate contemporâneo (FINCHELSTEIN, 2020) - não é a mesma operação intelectual que construir um conceito com abrangência analítica. .

Nesse sentido, ou o uso do conceito de populismo é vazio de conteúdo, ou é preciso qualificar o tipo de concepção de povo que ele tem em mente e como ela se relaciona com a forma institucional da democracia. Assim, sem apontar para a diferença específica do conceito de populismo, não é possível afirmarmos que ele tenha um conteúdo distinto de uma remissão genérica aos fundamentos da democracia. Contudo, se essa diferença específica aponta necessariamente para uma concepção holística de povo, ou seja, do povo como uma identidade homogênea, e não como a pluralidade de formas de mobilização democrática mediadas institucionalmente, é possível dizer que o populismo traz consigo um conteúdo essencialmente antidemocrático, que é a negação do pluralismo, mesmo quando essa negação não se converta, na prática, em outcomes antidemocráticos. Ora, ao assumir esse elemento de risco democrático do conceito de populismo, o desafio seria, assim, mostrar a sua diferença específica com relação a outras formas que articulam elementos excludentes como parte constitutiva de sua identidade, de modo a provar que o populismo é um conceito suficiente e útil analiticamente. Se o populismo não é um tipo de ideologia que tem como horizonte a substituição da democracia por uma forma autoritária de regime (Urbinati), mas ao mesmo tempo a negação do pluralismo e a oposição às normas contramajoritárias são parte inerente de sua estrutura, só será possível afirmarmos a possibilidade de uma democracia iliberal16 16 Uma análise essencial sobre a ampliação do uso positivo da ideia de “democracia iliberal” como crítica à democracia por diversos atores políticos no campo da direita, ver PLATTNER, 2019. . Aos adeptos do conceito de democracia iliberal, caberia explicar como, a longo prazo, é possível assegurar a competição democrática num contexto em que as garantias e os mecanismos de controle estão comprometidos.

A hipótese do “populismo como um corretivo” para a democracia descansa sob uma definição abstrata de democracia como a “combinação de soberania popular e regra da maioria”, na qual os direitos liberais não são um elemento definidor. Na prática, no entanto, a democracia sem o liberalismo é sempre efêmera. Na ausência de direitos, aqueles empoderados pela regra da maioria frequentemente usam o Estado para bloquear ou distorcer a formação de maiorias alternativas em eleições subsequentes [...]. Antes, o populismo bem sucedido frequentemente leva ao autoritarismo competitivo (LEVITSKY; LOXTON, 2012LEVITSKY, Steven; LOXTON, James. Populism and competitive authoritarism. In: MUDDE, Cass; KALTWASSER, Cristóbal Rovira (eds.). Populism in Europe and the Americas: threat or corrective for democracy? Cambridge: Cambridge University Press, 2012. p. 160-181., p. 160).

Cabe ressaltarmos aqui que não se trata de reafirmar uma posição limitadora de um conceito “schumpeteriano” de democracia. Reconhecer a importância da mediação institucional para o exercício da soberania do povo não significa negar a inovação institucional nem o conflito político. A questão central é que a necessidade de admitir o elemento procedimental da democracia não afasta essencialmente a existência de demandas por práticas mais diretas de democracia e muito menos uma retórica de apelo ao povo. Como afirma Adam Przeworski em seu livro mais recente, o critério minimalista para a compreensão de democracia visa responder à pergunta sobre quais são as condições para que um sistema político seja considerado democrático, mas ele não exclui a possibilidade de que os resultados (outcomes) do processo surtam efeitos transformadores (ou mesmo destruidores) da democracia. “as condições [institucionais] não determinam os resultados (outcomes), a ação das pessoas sob tais condições é que o fazem” (PRZEWORSKI, 2019PRZEWORSKI, Adam. Crises of democracy. New York: Cambridge University Press, 2019., p. 74).

No limite, é possível perfeitamente concordarmos com Chantal Mouffe, quando afirma a necessidade de “radicalizar” a democracia construindo novas formas de mobilização e participação democrática de modo a realizar efetivamente o projeto emancipatório da democracia em um contexto em que a institucionalidade democrática é caracterizada por diagnósticos cada vez mais acentuados de oligarquização (DOMINGUES, 2019DOMINGUES, José Maurício. Critical theory and political modernity. Cham: Palgrave Macmillan, 2019.), destruição da possibilidade de mobilização e de reivindicação do “demos” (BROWN, 2015BROWN, Wendy. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution. New York: Zone Books, 2015., 2019BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Politéia, 2019.), ou por perda de confiança e capacidade responsiva das democracias (MOUNK, 2018MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.), sem, contudo, confundirmos as demandas por emancipação com uma forma radicalmente restritiva de povo como o populismo opera.

De igual modo, a intenção deste artigo não é negar em definitivo o uso do conceito de populismo nem muito menos oferecer uma visão aprimorada, mas compreender que o conceito padece de algumas ambiguidades e ineficiências analíticas fundamentais que tornam o seu uso consideravelmente problemático. É inegável, entretanto, que, a despeito da presença dessas ineficiências e ambiguidades, uma parte considerável da literatura sobre o populismo (e a totalidade dos textos que analisamos neste artigo) traz análises fundamentais para a compreensão da crítica e da crise das nossas democracias. Assim, se é possível dizer algo sobre o populismo comum a todos os textos, é que ele se refere a certo tipo de tensão com a democracia17 17 Nesse sentido, se a recente análise de Rosanvallon parece reproduzir muitas das ambiguidades e imprecisões na análise do conceito de populismo apontadas em outros autores, razão pela qual optamos por deixar de fora uma análise amiudada de seu trabalho recente, ele, no entanto, parece perceber a questão de fundo que permanece como “sintoma” do reiterado apelo à ideia de populismo, quando procura entendê-lo como uma manifestação do “desencantamento democrático contemporâneo” diante das dificuldades em realizar as promessas igualitárias da democracia (“a sociedade dos iguais”). O populismo seria, assim, “uma forma limitada do projeto democrático” que corre o risco de “derivar em direção a uma democratura [democrature], quer dizer, um poder autoritário que permanece, contudo, dotado de uma capacidade (variável) de reversibilidade (ROSANVALLON, 2020, p. 19-20). . É por isso que os esforços para tornar o conceito de populismo útil à análise aparecem em momentos interpretados como situações de crise. Para estarmos à altura de teorizar sobre processos de crise e mudança social e política, porém, parece-nos necessário, sobretudo, afastar a redução da análise à remissão a dualidades estruturantes do político. Do contrário, não haveria nada a ser explicado, nem a mudança social tampouco a institucional, e caberia apenas ao pesquisador procurar na análise esse “eterno retorno”. Desdobrar essas tensões criadas que os movimentos políticos atuais criam com a institucionalidade democrática, bem como explorar as possíveis causas da “crise”, “exaustão” ou “transformação” das democracias, para além da obsessão contemporânea pelo conceito de populismo, constitui tarefa fundamental para a teoria política contemporânea.

Referências

  • ALEXANDER, Jeffrey. Vociferando contra o iluminismo: a ideologia de Steve Bannon. Sociologia e Antropologia, Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, p. 1009-1023, set./dez. 2018.
  • APPADURAI, Arjun. Democracy Fatigue. In: DIAMOND, Larry; PLATTNER (eds). Democracy in Decline?. Chicago: John Hopkins University Press, 2015. p. 16-27.
  • ARDITI, Benjamin. Politics on the edges of liberalism: difference, populism, revolution, agitation. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2007.
  • BEREZIN, Mabel. Fascism and populism: are they useful categories for comparative sociological analysis? Annual Review of Sociology, Palo Alto, v. 45, n. 18, p. 1-18, 2019.
  • BERLIN, Isaiah. To define populism. Government and Opposition, London, v. 3, n. 2, p. 127-179, 1968.
  • BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. São Paulo: Politéia, 2019.
  • BROWN, Wendy. Undoing the demos: neoliberalism’s stealth revolution. New York: Zone Books, 2015.
  • BUTLER, Judith; LACLAU, Ernesto; ZIZEK, Slavoj. Contingency, hegemony, universality: contemporary dialogues on the left. London: Verso, 2000.
  • CANOVAN, Margaret. Populism. Nova York: Harcourt Brace Janovitz, 1981.
  • CANOVAN, Margaret. Trust the people! Populism and the two faces of democracy. Political Studies, Oxford, v. XLVII, n. 1, p. 2-16, 1999.
  • CANOVAN, Margaret. Taking politics to the people: populism as the ideology of democracy. In: MÉNY, Yves; SUREL, Yves (ed.). Democracies and the populist challenge. New York: Pallgrave, 2002. p. 25-44.
  • COOLEY, Alexander. Countering democratic norms. In: DIAMOND, Larry; PLATTNER, Marc; WALKER, Christopher (eds.). Authoritarianism goes global: the challenge to democracy. Baltimore: John Hopkins University Press, 2016. p. 117-135.
  • DOMINGUES, José Maurício. Critical theory and political modernity. Cham: Palgrave Macmillan, 2019.
  • FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história. Debate e Crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
  • FINCHELSTEIN, Federico. Del fascismo al populismo en la historia. Buenos Aires: Taurus, 2018.
  • FINCHELSTEIN, Federico. Para una historia global del populismo: rupturas y continuidades. Conhecer - Debate entre o público e o privado, Fortaleza, v. 10, n. 24, p. 12-23, 2020.
  • FRASER, Nancy. Progressive Neoliberalism versus Reactionary Populism: A Hobson’s Choice. In: GEISELBERGER, Hans (ed.). The great regression. Cambridge: Polity Press, 2017. p. 54-60.
  • FREEDEN, Michael. Ideologies and political theory: a conceptual approach. Oxford: Claredon Press, 1996.
  • FUKUYAMA, Francis. Why is Democracy Performing So Poorly? In: DIAMOND, Larry; PLATTNER (eds). Democracy in Decline?. Chicago: John Hopkins University Press, 2015. p. 11-24.
  • GIDRON, Noam; BONIKOWSKI, Bart. Varieties of populism: literature review and research agenda. Weatherhead Working Paper Series, Cambridge, n. 13-0004, p. 1-38, 2013.
  • HAWKINS, Kirk. Venezuela’s chavismo and populism in comparative perspective. Nova York: Cambridge Univerisy Press, 2010.
  • INGRAM, James. The politics of Claude Lefort’s political: between liberalism and radical democracy. Thesis Eleven, London, v. 87, n. 1, p. 33-50, Nov. 2006.
  • KALTWASSER, Cristóbal Rovira. The ambivalence of populism: threat and corrective for democracy. Democratization, Essex, v. 19, n. 2, p. 1-25, 2012.
  • KALTWASSER, Cristóbal Rovira. The responses of populism to Dahl’s democratic dilemmas. Political Studies, Oxford, v. 62, p. 470-487, 2013.
  • KAZIN, Michael. The populist persuasion: an American history. New York: Basic Books, 1995.
  • LACLAU, Ernesto. On populist reason. London: Verso, 2005.
  • LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemony and socialist strategy. London: Verso, 1985.
  • LEFORT, Claude. Democracy and political theory. Cambridge: Polity Press, 1988.
  • LEFORT, Claude. Pensando o político: ensaios sobre democracia, revolução e liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
  • LEVITSKY, Steven; LOXTON, James. Populism and competitive authoritarism. In: MUDDE, Cass; KALTWASSER, Cristóbal Rovira (eds.). Populism in Europe and the Americas: threat or corrective for democracy? Cambridge: Cambridge University Press, 2012. p. 160-181.
  • LEVITSKY, Steven; WAY, Lucan. The new competitive authoritarianism. Journal of Democracy, Baltimore, v. 31, n. 1, p. 51-65, Jan. 2020.
  • MAIR, Peter. Populist democracy vs party democracy. In: MÉNY, Yves; SUREL, Yves (ed.). Democracies and the populist challenge. New York: Pallgrave, 2002. p. 81-100.
  • MANIN, Bernard. Principles of representative government. New York: Cambridge University Press, 1997.
  • MARTÍN, Facundo Nahuel. The logic of capital and hegemonic logic. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, v. 38, n. 2, p. 459-475, May/Aug. 2019.
  • MOFFITT, Benjamin. The global rise of populism: performance, political style and representation. Stanford: Stanford University Press, 2016.
  • MOUFFE, Chantal. For a left populism. London: Verso, 2018.
  • MOUFFE, Chantal. The democratic paradox. London: Verso, 2000.
  • MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia: por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
  • MUDDE, Cass. Populist radical parties in Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
  • MUDDE, Cass. The ideology of the extreme right. Manchester: Manchester Univeristy Press, 2000.
  • MUDDE, Cass; KALTWASSER, Cristóbal Rovira. Populism: a very short introduction. New York: Oxford University Press, 2017.
  • MÜLLER, Jan-Werner. What is populism? Philadephia: University of Pennsylvania Press, 2016.
  • NORRIS, Pippa; INGLEHART, Ronald. Cultural backlash: Trump, Brexit, and the rise of authoritarian-populism. New York: Cambridge University Press, 2019.
  • NOURY, Abdul; ROLAND, Gerard. Identity politics and populism in Europe. Annual Review of Political Science, Palo Alto, v. 23, p. 421-439, 2020.
  • OCHOA ESPERJO, Paulina. Populism and the idea of the people. In: KALTWASSER, Cristóbal Rovira; TAGGART, Paul; OCHOA ESPEJO, Paulina; OSTIGUY, Pierre (ed.). The Oxford Handbook of Populism. New York: Oxford University Press, 2017. p. 765-791.
  • PASETTI, Matteo. L’Europa corporativa: una storia transnazionale tra le due guerre mondiali. Bologna: Bononia University Press, 2016.
  • PLATTNER, Marc. Illiberal democracy and the struggle on the right. Journal of Democracy, Baltimore, v. 30, n. 1, p. 5-19, 2019.
  • PRZEWORSKI, Adam. Crises of democracy. New York: Cambridge University Press, 2019.
  • ROSANVALLON, Pierre. La contre-democratie. Paris: Seuil, 2006.
  • ROSANVALLON, Pierre. Le siècle du populisme. Paris: Seuil, 2020.
  • RUMMERS, Stefan. Populism as a threat to liberal democracy. In: KALTWASSER, Cristóbal Rovira; TAGGART, Paul; OCHOA ESPEJO, Paulina; OSTIGUY, Pierre (ed.). The Oxford Handbook of Populism. New York: Oxford University Press, 2017. p. 697-717.
  • STANLEY, Ben. The thin ideology of populism. Journal of Political Ideologies, Abingdon, v. 13, n. 1, p. 95-110, 2008.
  • SZWAKO, José Leon; ARAÚJO, Ramon. Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do ‘populismo’ e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 32, n. 67, p. 469-499, maio-ago., 2019.
  • TAGUIEFF, Pierre-André. Political science confronts populism: from a conceptual mirage to a real problem. Telos - Critical Theory of the Contemporary, [Online], v. 103, n. 9, p. 9-43, 1995.
  • URBINATI, Nadia. A revolt against intermediary bodies. Constellations, Oxford, v. 22, p. 477-486, 2015.
  • URBINATI, Nadia. Democracy desfigured: opinion, truth and the people. Cambridge: Harvard University Press, 2014.
  • URBINATI, Nadia. Me the people: how populism transforms democracy. Cambridge: Harvard University Press, 2019.
  • WILES, Peter. A syndrome, not a doctrine. In: IONESCU, Ghita; GELLNER, Ernest (ed.). Populism: its meanings and national characteristics. New York: Macmillan, 1969. p. 166-179.
  • ZAKARIA, Fareed. The rise of iliberal democracy. Foreign Affairs, New York, v. 76, p. 22-43, Nov./Dec. 1997.
  • 3
    Seria impossível recuperarmos aqui o debate brasileiro sobre o populismo. Remetemo-nos a alguns trabalhos de análise ampla do conceito e de seus processos de disputa nas ciências sociais brasileiras: FERREIRA, 2001FERREIRA, Jorge (org.). O populismo e sua história. Debate e Crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.; SWAKO; ARAÚJO, 2019SZWAKO, José Leon; ARAÚJO, Ramon. Quando novos conceitos entraram em cena: história intelectual do ‘populismo’ e sua influência na gênese do debate brasileiro sobre movimentos sociais. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 32, n. 67, p. 469-499, maio-ago., 2019..
  • 4
    Vale ressaltar que as críticas de Stanley foram formuladas antes que Steve Bannon iniciasse um movimento para a criação de um movimento populista internacional. Para mais, ver ALEXANDER, 2018ALEXANDER, Jeffrey. Vociferando contra o iluminismo: a ideologia de Steve Bannon. Sociologia e Antropologia, Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, p. 1009-1023, set./dez. 2018..
  • 5
    Todas essas críticas desdobram aspectos que estão presentes in nuce na análise de Taguieff sobre os vários usos políticos e acadêmicos do populismo: “O populismo pode apenas ser conceitualizado como um tipo de mobilização social e política, o que significa que o termo pode designar apenas uma dimensão da ação e do discurso políticos. Ele não engloba um tipo particular de regime, nem define um conteúdo ideológico particular. Ele é um estilo político aplicável a várias estruturas ideológicas” (TAGUIEFF, 1995TAGUIEFF, Pierre-André. Political science confronts populism: from a conceptual mirage to a real problem. Telos - Critical Theory of the Contemporary, [Online], v. 103, n. 9, p. 9-43, 1995., p. 9).
  • 6
    Não é objetivo deste artigo reconstruir todo o debate recente em torno da relação entre populismo e universalismo, bem como as críticas à ideia laclauniana de uma “identidade” radicalmente oposta à variedade diferencial da política. Para mais, ver BUTLER; LACLAU; ZIZEK, 2000BUTLER, Judith; LACLAU, Ernesto; ZIZEK, Slavoj. Contingency, hegemony, universality: contemporary dialogues on the left. London: Verso, 2000..
  • 7
    Para uma discussão sobre o tema do liberalismo e da democracia radical na obra de Lefort e nas interpretações de alguns pensadores importantes que recepcionaram sua obra, como Marcel Gauchet e Miguel Abensour, ver INGRAM, 2006INGRAM, James. The politics of Claude Lefort’s political: between liberalism and radical democracy. Thesis Eleven, London, v. 87, n. 1, p. 33-50, Nov. 2006..
  • 8
    Não teríamos espaço aqui para recuperar o debate sobre o tema da hegemonia e as críticas vindas de autores como Atilio Borón e Ellen Wood às estratégias discursivas do pós-estruturalismo em detrimento dos aspectos materialistas do marxismo. Para uma síntese do debate, ver MARTÍN, 2019MARTÍN, Facundo Nahuel. The logic of capital and hegemonic logic. Novos estudos CEBRAP, São Paulo, v. 38, n. 2, p. 459-475, May/Aug. 2019..
  • 9
    É verdade que Mouffe parece antever esse tipo de crítica na conclusão de seu trabalho sobre o populismo. Após insistir que existe um “nível analítico”, que permite identificar uma diversidade de movimentos sob a categoria de “populismo de esquerda” (p. 41), ela afirma que a resistência a essa categorização deve vir de setores da esquerda que “continuam reduzindo a política à contradição entre capital/ trabalho e atribuem privilégio ontológico à classe trabalhadora” (p. 41). Para defender sua perspectiva, a autora reafirma que o “populismo de esquerda” remete, sobretudo, a uma forma de reivindicação da luta contra a hegemonia neoliberal (p. 41-42).
  • 10
    Para nos determos no próprio exemplo de Arditi: se o conceito de “círculo” é uma essência, um objeto anexato é algo que pode ser definido pela “circularidade” sem se confundir com os acidentes do conceito de círculo, uma bola ou um prato (ARDITI, 2007ARDITI, Benjamin. Politics on the edges of liberalism: difference, populism, revolution, agitation. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2007., p. 57).
  • 11
    Não à toa, em casos de referência, como a Hungria, os dois procedimentos fundamentais em direção à recessão da democracia foram, por um lado, a eliminação de jornais e outras formas de manifestação da oposição e, por outro, a modificação da composição da suprema corte. Para mais, ver LEVITSKY; WAY, 2020LEVITSKY, Steven; WAY, Lucan. The new competitive authoritarianism. Journal of Democracy, Baltimore, v. 31, n. 1, p. 51-65, Jan. 2020..
  • 12
    Sobre a relação entre fascismo e representação, ver o estudo de Matteo Pasetti (2016)PASETTI, Matteo. L’Europa corporativa: una storia transnazionale tra le due guerre mondiali. Bologna: Bononia University Press, 2016. sobre o corporativismo na Europa do entreguerras.
  • 13
    Para uma referência sobre a relação entre mecanismos internacionais de constrangimento a práticas antidemocráticas e sua crise atual, ver o artigo de COOLEY, 2016COOLEY, Alexander. Countering democratic norms. In: DIAMOND, Larry; PLATTNER, Marc; WALKER, Christopher (eds.). Authoritarianism goes global: the challenge to democracy. Baltimore: John Hopkins University Press, 2016. p. 117-135..
  • 14
    A relação entre populismo e fascismo está desenvolvida no trabalho de Federico Finchelstein, no qual o chamado “populismo” é a manifestação da continuidade histórica da ideologia fascista no contexto do pós-guerra. O populismo seria, assim, identificado pelas mesmas características ideológicas do fascismo: a ideia unívoca, excludente e holística de povo, a negação das mediações institucionais e das garantias constitucionais da democracia liberal, a moralização da concepção de elites, a concepção de eleição como confirmação de uma maioria prévia, a reivindicação de uma representação autêntica da democracia, para citarmos algumas. Em resumo, o uso do conceito de populismo em Finchelstein é entendido como a continuação histórica de uma ideologia bem definida - o fascismo. Ele seria, nas palavras do autor “uma original reformulação histórica do fascismo no poder depois de 1945” que se difere, contudo, no modo como projeta a negação da representação liberal-democrática: “o populismo transmite uma concepção plebiscitária da política e rechaça a forma fascista da ditadura” (FINCHELSTEIN, 2018FINCHELSTEIN, Federico. Del fascismo al populismo en la historia. Buenos Aires: Taurus, 2018., p. 20).
  • 15
    Se concordamos que o esforço de converter o populismo em um conceito analítico eficiente é a primeira função dos interpretes do tema, discordamos de Ochoa Espejo, quando afirma que esse esforço tem importância teórica de natureza semelhante àquele de encontrar no “senso comum” o significado do uso do conceito. O uso analítico de um conceito pressupõe a sua capacidade de diferenciar um determinado fenômeno político de outro (e foi isto que procuramos mostrar que a bibliografia faz de forma incompleta e insuficiente) enquanto a tomada de um conceito como objeto histórico pressupõe mapear a variedade de usos e mudanças conceituais que ele opera na linguagem política. Nesse sentido, tomar o populismo como objeto histórico de interpretação - como faz, por exemplo, Berlin com os narodniki (BERLIN, 1968BERLIN, Isaiah. To define populism. Government and Opposition, London, v. 3, n. 2, p. 127-179, 1968.), Kazin com o people’s party americano (KAZIN, 1995KAZIN, Michael. The populist persuasion: an American history. New York: Basic Books, 1995.) ou Finchelstein com a proposta do mapeamento dos usos do populismo no debate contemporâneo (FINCHELSTEIN, 2020FINCHELSTEIN, Federico. Para una historia global del populismo: rupturas y continuidades. Conhecer - Debate entre o público e o privado, Fortaleza, v. 10, n. 24, p. 12-23, 2020.) - não é a mesma operação intelectual que construir um conceito com abrangência analítica.
  • 16
    Uma análise essencial sobre a ampliação do uso positivo da ideia de “democracia iliberal” como crítica à democracia por diversos atores políticos no campo da direita, ver PLATTNER, 2019PLATTNER, Marc. Illiberal democracy and the struggle on the right. Journal of Democracy, Baltimore, v. 30, n. 1, p. 5-19, 2019..
  • 17
    Nesse sentido, se a recente análise de Rosanvallon parece reproduzir muitas das ambiguidades e imprecisões na análise do conceito de populismo apontadas em outros autores, razão pela qual optamos por deixar de fora uma análise amiudada de seu trabalho recente, ele, no entanto, parece perceber a questão de fundo que permanece como “sintoma” do reiterado apelo à ideia de populismo, quando procura entendê-lo como uma manifestação do “desencantamento democrático contemporâneo” diante das dificuldades em realizar as promessas igualitárias da democracia (“a sociedade dos iguais”). O populismo seria, assim, “uma forma limitada do projeto democrático” que corre o risco de “derivar em direção a uma democratura [democrature], quer dizer, um poder autoritário que permanece, contudo, dotado de uma capacidade (variável) de reversibilidade (ROSANVALLON, 2020ROSANVALLON, Pierre. Le siècle du populisme. Paris: Seuil, 2020., p. 19-20).
  • 2
    O autor agradece à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) que financiou, por meio de seu programa de Pós-Doutorado (processo nº 2019/09549-1), a execução da pesquisa apresentada neste artigo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    10 Ago 2020
  • Aceito
    03 Mar 2021
Universidade de Brasília. Instituto de Ciência Política Instituto de Ciência Política, Universidade de Brasília, Campus Universitário Darcy Ribeiro - Gleba A Asa Norte, 70904-970 Brasília - DF Brasil, Tel.: (55 61) 3107-0777 , Cel.: (55 61) 3107 0780 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: rbcp@unb.br