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Marcos Aurélio Nogueira: as ruas e a democracia - ensaios sobre o Brasil contemporâneo

Marcos Aurélio Nogueira: the streets and democracy - essays about the contemporary Brazil

Resumo

A obra As Ruas e a Democracia - Ensaios sobre o Brasil Contemporâneo, de Marco Aurélio Nogueira, é constituída de diversos ensaios de análise de conjuntura e que versam principalmente sobre as manifestações de rua, ocorridas no país no ano de 2013. Escritos no “calor do momento” e procurando tornar inteligível o presente então vivenciado pelo analista, esses textos assumem a tese de que o sistema político não conseguiu dar uma resposta satisfatória às novas demandas da sociedade brasileira, caracteriza como hipermoderna, gerando, então, os protestos. Por mais plausível que possa parecer esse diagnóstico, o autor não apresenta dados suficientes que o fundamentem, tratando o fenômeno de modo vago e pouco esclarecedor.

Palavras-chave:
manifestações de rua; sociedade; instituições políticas; análise de conjuntura; Brasil contemporâneo

Abstract

The work The Streets and Democracy - Essays about Contemporary Brazil, by Marco Aurélio Nogueira, consists of many essays of conjunctural analysis and which deal mainly with the street protests, occurred in the country in the year 2013. Written in the “heat of the moment” and trying to make intelligible the present then experienced by analyst, these texts assume that the political system failed to give a satisfactory answer to the new demands of Brazilian society, characterizes as hypermodern, generating, then, the protests. For more plausible as it may seem this diagnosis, the author does not present sufficient data that support, treating the phenomenon so vague and little enlightening.

Keywords:
street protests; society; political institutions; conjunctural analysis; Brazil contemporary

O livro do cientista político Marcos Aurélio Nogueira, intitulado As Ruas e a Democracia - Ensaios sobre o Brasil Contemporâneo (Nogueira, 2013NOGUEIRA, Marcos Aurélio. As ruas e a democracia - ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Brasília: Contraponto, 2013. (Série Brasil-Itália).) se une ao esforço de outros intelectuais brasileiros em decifrar o enigma que, por assim dizer, quase devorou o país no ano de 2013, as chamadas Jornadas de Junho.

Não foi a primeira obra publicada sobre o assunto ainda nesse ano fatídico. Como boa parte das demais, ela se caracteriza por fazer o que a literatura especializada convencionou chamar de “análise de conjuntura”, isto é, diagnósticos e prognósticos com pretensão científica a respeito do tempo presente, formulados no “calor da hora”, com vistas a compreender a realidade sociopolítica e orientar, se possível, a ação dos indivíduos e grupos que a compõem. Dizendo de outro modo, é a ciência feita em “tempo real”, que revela, mais evidentemente, os liames (nem sempre explícitos) entre saber e poder, na medida em que o intelectual e o político parecem fundir-se em uma só pessoa. Como o próprio Nogueira (2013NOGUEIRA, Marcos Aurélio. As ruas e a democracia - ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Brasília: Contraponto, 2013. (Série Brasil-Itália)., p. 19) esclarece, tratam-se de “escritos ao sabor dos acontecimentos, os textos flutuam entre a análise de conjuntura e uma elaboração com pretensões teóricas gerais”.

Como se disse, antes de a obra As Ruas e a Democracia - Ensaios sobre o Brasil Contemporâneo vir a lume, alguns estudos sobre as Jornadas já haviam sido publicados. Marcos Nobre, por exemplo, poucos meses depois da eclosão das manifestações de rua, lançou Choque de Democracia: Razões de Revolta (Nobre, 2013a). Ainda em 2013, Cidades Rebeldes: Passe Livre e as Manifestações de Rua do Brasil, de Maricato (2013MARICATO, Ermínia et al. Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações de rua do Brasil. São Paulo: Boitempo; Carta Maior, 2013.), reuniu um conjunto de ensaios escritos por autores de formação diversa, mas, em geral, associando o fenômeno à crise e às contradições da sociedade capitalista. Sem pretensão de inventariar a literatura nacional sobre as Jornadas publicada ainda naquele ano, julgamos importante destacar a contribuição de André Singer (2013SINGER, André. Brasil, junho de 2013: classes e ideologias cruzadas. Novos Estudos Cebrap, v. 97, p. 23-40, 2013.), em Brasil, junho de 2013: Classes e Ideologias Cruzadas, artigo no qual o autor apresenta uma análise do fenômeno com base em pesquisas acerca do perfil de seus participantes na cidade de São Paulo. Vê-se como muitos de nossos intelectuais procuraram exercer seu papel de interlocutores públicos, tentando, em geral, encontrar um significado “oculto” para as Jornadas.

No caso de As Ruas e a Democracia - Ensaios sobre o Brasil Contemporâneo, cumpre dizer inicialmente que se trata de uma compilação de artigos já antes publicados (principalmente no jornal O Estado de S. Paulo, no qual Nogueira é colunista). A obra está dividida em seis capítulos que abordam a conjuntura antes, durante e depois das manifestações de junho de 2013 - como Singer (2013SINGER, André. Brasil, junho de 2013: classes e ideologias cruzadas. Novos Estudos Cebrap, v. 97, p. 23-40, 2013.) sugeriu que elas fossem chamadas, recusando o termo “Jornadas”, na medida em que ele historicamente está associado à insurreição proletária ocorrida no ano de 1848, em Paris. Em geral, estes seis capítulos discutem (além, obviamente, das próprias manifestações) sobre os governos Lula e Dilma, o papel da mídia e das redes sociais na política, a reforma política e a corrupção. O livro assume, assim, em seu plano geral, o aspecto de uma análise de conjuntura ampla, na qual o microcontexto (as Jornadas) é compreendido à luz da macroconjuntura (governos petistas e problemas estruturais decorrentes do padrão de modernização da sociedade brasileira).

Justo dizer, portanto, que se a obra consiste em uma reunião de artigos de publicização do seu pensamento, não é correto tomá-los como análise de “fôlego curto”, como sói ocorrer com textos jornalísticos. Entretanto, tampouco parece adequado considerá-la como uma análise de conjuntura fortemente alicerçada em um quadro teórico consistente. A rigor, o autor trata de um sem-número de temas (poder judiciário, movimentos sociais, mídia, coalizões parlamentares etc.), de maneira mais detida e rigorosa do que usualmente se costuma realizar na imprensa. Contudo, isso é realizado ainda aquém do que se espera da ciência social. O livro, destarte, parece consistir em amálgama de ciência com opinião, nem sempre coerente e, algumas vezes, desnecessariamente repetitivo. Em muitas passagens, fica-se com a impressão de que o autor trata de “tudo” da realidade brasileira, mas sem se aprofundar em qualquer assunto, e, o que é mais importante, sem fornecer uma visão consistente e informativa sobre as Jornadas de Junho.

Se o leque de temas é variado, não é correto, todavia, afirmar que a obra é desprovida de uma hipótese que a organize. Talvez, o maior problema dela seja realmente a fraca fundamentação teórica para a defesa desta hipótese. Enfim, difusa ao longo do texto, há a tese fundamental de Nogueira (2013NOGUEIRA, Marcos Aurélio. As ruas e a democracia - ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Brasília: Contraponto, 2013. (Série Brasil-Itália).) sobre a política brasileira, segundo a qual há um divórcio entre a sociedade civil e o Estado, do qual as Jornadas são sintoma. Consonante com a Série Brasil-Itália, coleção editorial da qual o livro faz parte, As Ruas e a Democracia - Ensaios sobre o Brasil Contemporâneo inspira-se na obra do filósofo italiano Antonio Gramsci, que, como se sabe, reivindicava uma refundação de um Estado ético, alimentado pelo vigor de uma sociedade civil democrática. Esse parece, pois, o horizonte normativo de Nogueira (2013).

O autor defende que a sociedade brasileira quer mudança, mais participação, mais reconhecimento e cidadania, menos corrupção etc., mas que o sistema político isolou-se dela e comporta-se em função exclusiva dos seus próprios interesses. Sem diálogo com as demandas sociais e sem querer e/ou poder atendê-las, o Estado brasileiro tornou-se vítima do fisiologismo, do pragmatismo sem limites e da corrupção. Um dado específico e importante é que a crise do Estado brasileiro, que suscitou e foi aprofundada pelas manifestações de 2013, está relacionada à frustração diante da vitória do Partido dos Trabalhadores (PT) ao governo federal, tendo em vista o desejo de transformação do país, e que este partido havia monopolizado o “campo reformista e de esquerda” (Nogueira, 2013NOGUEIRA, Marcos Aurélio. As ruas e a democracia - ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Brasília: Contraponto, 2013. (Série Brasil-Itália)., p. 22). Em vez de construir um “projeto de hegemonia”, critica Nogueira, os governos Lula e Dilma limitaram-se a criar um “projeto de poder” (ibidem, p. 41).

Muito semelhante à tese de Marcos Nobre em Choque de Democracia: Razões de Revolta (Nobre, 2013aNOBRE, Marcos. Choque de democracia: razões da revolta. São Paulo: Companhia das Letras, 2013a.), e em obra imediatamente posterior, intitulada Imobilismo em Movimento: da Abertura Democrática ao Governo Dilma (Nobre, 2013b), Marco Aurélio Nogueira sustenta que a política formal tornou-se ultrapassada, dada a aceleração e a mudança da sociedade hodierna. No Brasil, partidos, eleições, parlamento etc. (em suma, todas as instituições formais da democracia) continuam a funcionar normalmente, mas não são capazes de captar a voz das ruas. No nosso caso, o descompasso entre sociedade e Estado é mais dramático, visto que o país consiste em um caso de “hipermodernidade periférica” (Nogueira, 2013, p. 191), na qual os atrasos do passado colonial-escravocrata convivem com as contradições da modernidade burguesa.

É digno destaque que, da mesma maneira que as obras de Nobre (2013aNOBRE, Marcos. Choque de democracia: razões da revolta. São Paulo: Companhia das Letras, 2013a.; 2013b), a de Nogueira (2013NOGUEIRA, Marcos Aurélio. As ruas e a democracia - ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Brasília: Contraponto, 2013. (Série Brasil-Itália).) pretende analisar especificamente as Jornadas, mas fala delas sempre de modo bastante genérico. Não se investigam suas reivindicações (quando muito são mencionadas) nem o histórico e a estrutura dos movimentos sociais que delas fizeram parte (como o caso do Movimento Passe Livre ou dos Comitês Populares da Copa, por exemplo), a composição societária dos que protestavam, as peculiaridades do movimento de acordo com as cidades e regiões do país ou de acordo com o tempo; tudo, em resumo, é tratado de modo assaz impreciso. O leitor fica com a forte sensação de que Nogueira (2013) fala das manifestações de rua sem conhecimento de causa, quer porque não se identifica com elas e não as vivencia, quer porque não extrai delas os dados necessários para avaliá-las. As Jornadas parecem quase servir como pretexto para confirmar, a priori, a tese desse autor de que o sistema político foi ultrapassado pelo dinamismo e pelas transformações da sociedade brasileira.

Entretanto, se há muitas semelhanças entre os diagnósticos de Nobre e Nogueira sobre a política nacional, não é com o primeiro que o último dialoga explicitamente. A principal referência teórica, além de Gramsci, é o cientista social Luiz Werneck Vianna, que, aliás, redige a orelha do livro em questão. Como Vianna (2011VIANNA, Luiz Werneck. A modernização sem o moderno: análises de conjuntura na era Lula. Brasília: Contraponto , 2011.), Nogueira (2013) critica o padrão de modernização conservadora do país - a ”revolução passiva” gramsciana - e principalmente os governos petistas à frente da República brasileira, que despolitizaram o debate público e que contribuíram para a perda de credibilidade das instituições política (vis-à-vis o Estado de compromisso instaurado). Entretanto, diferentemente de Vianna (2011) - que parte de uma concepção que considera as contradições de uma sociedade que se quer moderna, mas que se vê a reboque do Estado, e ressalta avanços no próprio aparato estatal (a Constituição de 1988, a ampliação dos direitos sociais, o papel do Judiciário etc.) -, Nogueira (2013) parece “demonizar” o sistema político, desconsiderando ingenuamente os seus laços com a sociedade civil. Diz ele: “precisamos, em suma, de mais ‘política de cidadãos’ e menos ‘política dos políticos’” (Nogueira, 2013, p. 175). A condenação da política formal - pauta tão vendável na mídia - é a contraface da idealização da sociedade civil, que, enquanto conceito político (tanto em Hegel quanto em Marx) é, por definição, não o reino da virtude e do interesse público (como crê Nogueira), mas do interesse particular e das contradições sociais.

Sem a pretensão de analisar exaustivamente todos os argumentos de Nogueira nessa obra, passemos em revista como cada um dos capítulos contribui para a compreensão das Jornadas e da sua relação com as políticas nacional e internacional e como eles revelam as limitações supracitadas. Nossa exposição está dividida em três blocos, segundo os quais os capítulos estão aglutinados e são avaliados: no primeiro bloco, os dois primeiros capítulos são retratados, que dizem respeito diretamente às Jornadas; no segundo bloco, avalia-se o terceiro capítulo em separado, visto que ele tem uma natureza diversa dos demais, pois analisa exclusivamente o governo Dilma (2010-2013); e, no último bloco de nossa avaliação, tratamos dos três últimos capítulos, concebidos em torno de temáticas específicas e indiretamente relacionadas às Jornadas.

O primeiro capítulo é aquele em que Nogueira debate mais diretamente as manifestações de 2013NOGUEIRA, Marcos Aurélio. As ruas e a democracia - ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Brasília: Contraponto, 2013. (Série Brasil-Itália)., objeto de seu livro. Para ele, elas revelam que o país vive uma crise sistêmica (Nogueira, 2013, p. 34), e não meramente política. O modelo de sociedade liderado pelo PT teria entrado em colapso, dado que gargalos estruturais ao desenvolvimento socioeconômico e à real democratização do país (dependência da economia brasileira em relação ao capital transnacional e da exportação de commodities, redução limitada da desigualdade de renda e não integração das políticas públicas) não teriam sido superados pelo “transformismo” a que se submeteu o PT.

De acordo com Marcos Aurélio Nogueira (2013NOGUEIRA, Marcos Aurélio. As ruas e a democracia - ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Brasília: Contraponto, 2013. (Série Brasil-Itália).), as Jornadas caracterizaram-se pela horizontalidade política (ausência de hierarquias), pelos novos meios de organização política (com destaque para as redes sociais), dissonantes dos movimentos sociais e das instituições políticas tradicionais (sindicatos e partidos, principalmente), e pelo fato de serem revoltas urbanas, visto que as contradições sociais são mais agudas nas grandes cidades (explosão da violência, problemas de transporte urbano etc.). O fato de que o modelo fosse, à época, dirigido por um líder sem carisma e inábil politicamente, Dilma Rousseff, foi, por assim dizer, o catalisador para que os sintomas da crise aflorassem. Uniu-se a má fortuna com a falta de virtú, compreendidas à la Maquiavel. Nogueira acrescenta que os grandes desafios para a “nova esquerda” (ibidem, p. 55), mais cultural, festiva e participativa, expressa pelos manifestantes, é tornar-se difusa e mesmo contraditória em sua pauta de reivindicações, perdendo o seu vigor original, como de fato ocorreu nos meses subsequentes a junho de 2013. Além disso, a violência dos citadinos nos protestos revela, como alerta o autor, a possibilidade de que se tornem também um movimento niilista, perigoso ao regime democrático.

Cabe mencionar que esse autor procura compreender as Jornadas à luz da ideia de pós-modernidade, segundo a qual o tempo presente, de um modo geral, vê emergir um novo padrão de sociabilidade planetária (mais fluida, dinâmica, identitária etc.) que se impõe inexoravelmente. As Jornadas seriam expressão dessa “novidade” (contrastante e reativa ao sistema político anacrônico) e potencialmente uma força democrática. Nogueira (2013NOGUEIRA, Marcos Aurélio. As ruas e a democracia - ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Brasília: Contraponto, 2013. (Série Brasil-Itália).) opera sua análise, como se disse, a partir de dois grandes blocos: sociedade civil e Estado; o primeiro polo pensado positivamente (como expressão da nova política), e o segundo negativamente. Dizendo de outro modo, para ele, o sistema político brasileiro é insuficiente, pois não acompanhou as mudanças da hipermodernidade que impulsiona nossa sociedade; não é à toa que todas as organizações política tradicionais, como lembra ele, não lideraram e tiveram dificuldade de reagir adequadamente aos protestos. O autor, com esse enquadramento teórico, deixa de analisar, no entanto, os diversos grupos e classes sociais que compõem cada um destes polos (sociedade e Estado), bem como a relação entre eles.

Além disso, ainda a respeito do primeiro capítulo de sua obra, Nogueira (2013NOGUEIRA, Marcos Aurélio. As ruas e a democracia - ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Brasília: Contraponto, 2013. (Série Brasil-Itália).) nem sequer se dispõe a argumentar por que a violência praticada por alguns manifestantes de rua é politicamente nociva, como se isso fosse um dado autoevidente. Conforme notou acertadamente Luís Felipe Miguel (2015MIGUEL, Luís Felipe. Violência e política. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 30, n. 88, p. 29-44, 2015., p. 29), a violência é o “coração oculto na política”, visto que é pouco explorada pela ciência política. Em geral, ela é compreendida como a agressão física episódica e, neste sentido, condenada moralmente como incompatível com a cidadania e a democracia. Entretanto, lembra Miguel (2015), a violência em suas manifestações estruturais ou sistêmicas - como o fato de o cidadão de baixa renda ter que pagar caro por um péssimo serviço de transporte público, condicionando e submetendo o seu direito de ir e vir à lógica capitalista do lucro (lembremo-nos, um dos motivos centrais das Jornadas de Junho) - não é sequer considerada, como se evidencia pela análise de Nogueira (2013). Isso explica por que frequentemente nos espantamos quando encontramos indivíduos dispostos a agir publicamente de modo violento e a defender racionalmente esse comportamento (como aqueles que adotavam táticas de confronto direto com a polícia em junho de 2013).

Sílvia Viana (2013VIANA, Sílvia. Será que formulamos mal a pergunta? In: MARICATO, Ermínia et al. Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações de rua do Brasil. São Paulo: Boitempo; Carta Maior , 2013.), no livro Cidades Rebeldes: Passe Livre e as Manifestações de Ruas do Brasil, lembra o episódio curioso em que o apresentador de televisão José Luiz Datena foi pego de surpresa ao constatar que, em uma enquete realizada pelo seu próprio programa, a maioria dos espectadores posicionava-se favorável às manifestações de rua - mesmo com violência. “Será que formulamos mal a pergunta?”, indagava-se Datena. A autora destaca como a opinião pública considera que somente é legítima a manifestação pacífica, não quando há “baderna”, “tumulto”, “vandalismo” etc. Mas, pergunta-se: em que consiste a violência? Vitrines e lojas quebradas? Não seria a violência a mera interrupção do intenso fluxo do cotidiano típico das megalópoles? Conclui, então, Viana: “rezava o script de que manifestação só é legítima quando não atrapalha, do contrário é violência” (ibidem, p. 53). Cabe acrescentar um aspecto negligenciado, todavia, por essa autora: jornais sensacionalistas, como o protagonizado por Datena, são inequivocamente conhecidos pela violência diária espetacularizada por eles. Não apenas por priorizar retratar crimes passionais com requinte de detalhes, por exemplo, em vez de outros temas de relevância pública, mas pela própria linguagem adotada por esses meios de comunicação, pelo discurso de ódio, como o de “direitos humanos para humanos direitos”, pela reivindicação constante, por mais repressão policial etc. Não seria contraditório clamar e falar tanto da violência e condená-la quando, ao que parece, uma parte da população parece querer fazer uso dela? Sendo assim, ao nem sequer procurar justificar sua condenação de casos de violência nos protestos de 2015, Nogueira (2013NOGUEIRA, Marcos Aurélio. As ruas e a democracia - ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Brasília: Contraponto, 2013. (Série Brasil-Itália).) reitera um costume entre nós e contribui para que certas dimensões do fenômeno sejam naturalizadas e não questionadas.

No segundo capítulo, o autor passa à análise das respostas governamentais às Jornadas, focando quase que exclusivamente o governo federal. Além de criticar as medidas propostas pela então presidente Dilma como insuficientes, o autor discorre sobre diversos temas correlatos, tais como pacto pelo Sistema Único de Saúde (SUS), reforma política, plebiscito etc., temas estes aventados nos discursos presidenciais feitos em seguida a junho de 2013, mas, como avalia Nogueira, que são mais “conversa para boi dormir” (Nogueira, 2013NOGUEIRA, Marcos Aurélio. As ruas e a democracia - ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Brasília: Contraponto, 2013. (Série Brasil-Itália)., p. 87) do que medidas efetivas para se estabelecer um pacto entre os Poderes e superar a crise. Entretanto, o autor não apresenta em detalhes o que seria esse compromisso democrático de que fala, capaz de satisfazer ao desejo de mudança da sociedade civil e, ao mesmo tempo, afastar aqueles que, por meio da violência, “agem com táticas fascistas” (ibidem, p. 103) durante as manifestações, os Black Blocs. Percebe-se que Nogueira rechaça a democracia eleitoral brasileira - para ele, limitada e desgastada pela oposição inócua entre Partido dos Trabalhadores (PT) e Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) -, mas também recusa a “democracia radical” dos que protestaram em junho de 2013.

Outro ponto interessante é que o autor parece esquecer-se de que aqueles que agiam violentamente também fazem parte dessa sociedade civil pós-moderna valorizada por ele. “Os jovens”, protagonistas das Jornadas, parecem ter uma função quase que meramente retórica no livro de Nogueira (2013NOGUEIRA, Marcos Aurélio. As ruas e a democracia - ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Brasília: Contraponto, 2013. (Série Brasil-Itália).): como se disse, nenhum dado sociológico sobre sua composição, nenhuma análise das suas preferências políticas; ora são elogiados pelo autor como desejosos de uma nova política, ora são condenados como fascistas. Novamente, o texto está prenhe de críticas e exortações - como é típico de textos jornalísticos de opinião -, mas com pouco ou nenhum embasamento científico e teórico que torne esses juízos informativos e convincentes ao leitor.

Tendo considerado tanto as próprias Jornadas quanto as respostas dadas a elas pela então presidente, Marco Aurélio Nogueira passa, no terceiro capítulo da obra, à avaliação do governo Dilma. O retrato elaborado de Nogueira do tema é, de fato, bastante amplo: política externa, economia doméstica, coalizões partidárias, políticas públicas etc. Baseando-se, sobretudo, no conceito de presidencialismo de coalizão (compreendido como um problema estrutural do sistema político) e no diagnóstico de Luiz Werneck Vianna (2011VIANNA, Luiz Werneck. A modernização sem o moderno: análises de conjuntura na era Lula. Brasília: Contraponto , 2011.) acerca do PT e sua conversão à tradição da modernização conservadora, o autor reitera a sua tese de interpretação do Brasil, mas novamente sem apresentar dados que a tornem robusta: “visto no conjunto, o sistema político brasileiro mostra-se aquém do que necessita a sociedade” (Nogueira, 2013, p. 147).

O quarto capítulo trata da questão da reforma política. Nogueira pondera quão problemático é mudar as regras de competição política, como cada proposta pode gerar um efeito antidemocrático, e salienta que nenhuma reforma superficial atenderá o clamor das ruas e superará os problemas do Brasil. Mais uma vez o leitor não é informado por que as medidas propostas não funcionariam e quais seriam, então, as reformas necessárias.

No capítulo seguinte, avalia o papel da mídia tradicional e das novas mídias, tão faladas durante junho de 2013. Diferencia-se daqueles que entendem que a concentração da propriedade privada dos meios de comunicação, ou a sua partidarização, seja um problema grave no país. Entretanto, reconhece a necessidade de uma mídia plural como prerrequisito de uma sociedade democrática. Nogueira, ao que parece, confunde a democratização dos meios de comunicação com formas de cerceamento da liberdade de expressão, além de negligenciar o enviesamento político dos meios de comunicação no país, como demonstra, por exemplo, João Feres Júnior e outros estudiosos (Feres Júnior et al., 2014).

Por fim, no sexto capítulo, o autor avalia a questão da corrupção, tema constante na cena pública brasileira, como diz ele. A considera como um “defeito ético” (Nogueira, 2013NOGUEIRA, Marcos Aurélio. As ruas e a democracia - ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Brasília: Contraponto, 2013. (Série Brasil-Itália)., p. 207) inexorável da política; julga igualmente que as instituições de controle da corrupção foram aperfeiçoadas nos últimos anos no país (Polícia Federal, Controladoria Geral da União etc.), procurando se diferenciar da perspectiva moralista corrente da mídia de que o Brasil é crescente e inerentemente corrupto. Mas, no “frigir dos ovos”, Nogueira trata, ao longo de todo o texto, da corrupção no Estado, isto é, como um mal essencialmente localizado no aparato estatal, cometendo um engano comum e criticado pelos estudiosos do tema, pois desconsidera que a corrupção é um fenômeno que conta com ativa e ampla participação do mercado (Filgueiras, 2009FILGUEIRAS, Fernando. A tolerância à corrupção no Brasil: uma antinomia entre normas morais e a prática social. Opinião Pública, Campinas, v. 15, n 2, p. 386-421, 2009.; Bignotto, 2011BIGNOTTO, Newton. Corrupção e opinião pública. In: AVRITZER, Leonardo; FILGUEIRAS, Fernando (Orgs.). Corrupção e sistema político no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.).

Concluindo, tendo em vista o tratamento dado pelo autor a cada uma dessas temáticas (vago, impreciso e pouco conclusivo), a leitura de As Ruas e a Democracia - Ensaios sobre o Brasil Contemporâneo mostra-se um exercício interessante, mas que pouco contribui para a compreensão do terremoto ou tremor (Singer, 2013SINGER, André. Brasil, junho de 2013: classes e ideologias cruzadas. Novos Estudos Cebrap, v. 97, p. 23-40, 2013.) que acometeu o país naquele ano, e de sua relação com a democracia nacional e com seus impasses. Se há boas hipóteses de interpretação de junho de 2013, elas carecem, em geral, de fundamentação empírica, ou, ao menos, de mais argumentos para convencer o leitor.

Referências

  • BIGNOTTO, Newton. Corrupção e opinião pública. In: AVRITZER, Leonardo; FILGUEIRAS, Fernando (Orgs.). Corrupção e sistema político no Brasil Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
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  • FILGUEIRAS, Fernando. A tolerância à corrupção no Brasil: uma antinomia entre normas morais e a prática social. Opinião Pública, Campinas, v. 15, n 2, p. 386-421, 2009.
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  • VIANNA, Luiz Werneck. A modernização sem o moderno: análises de conjuntura na era Lula Brasília: Contraponto , 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2017

Histórico

  • Recebido
    17 Out 2015
  • Aceito
    11 Mar 2016
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