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Reconstrução de úmero e reanimação do cotovelo com retalho osteomiocutâneo da escápula: relato de caso

RESUMO

Introdução:

No presente trabalho, relatamos um caso de reconstrução do terço proximal do úmero direito e reanimação do cotovelo de um paciente masculino, de 20 anos, vítima de acidente automobilístico, com necrose óssea de 5 cm no terço proximal do úmero e avulsão do bíceps braquial.

Métodos:

Utilizamos o retalho ósseo da escápula, associado ao retalho miocutâneo do grande dorsal, tendo como pedículo os vasos subescapulares.

Resultados:

O paciente teve excelente evolução no pós-operatório, apresentando-se, no pós-operatório de 2 meses, com consolidação óssea e iniciando a flexão do cotovelo.

Conclusões:

Perante a utilização do retalho descrito, concluímos que esta modalidade de retalho se insere no arsenal dos retalhos ósseos de maior segurança nas reconstruções ósseas em geral.

Descritores:
Cotovelo; Úmero; Retalho miocutâneo; Músculos superficiais do dorso; Oesteonecrose.

ABSTRACT

Introduction:

We report a case of reconstruction of the proximal third of the right humerus and rehabilitation of the elbow in a 20-year-old male patient who was injured in an automobile accident and developed bone necrosis of 5 cm at the proximal third of the humerus and avulsion of the brachial biceps.

Methods:

A scapular bone flap was used, together with a latissimus dorsi myocutaneous flap, using subscapular vessels for the pedicle.

Results:

The patient had excellent postoperative course, presenting in the 2-month postoperative period with bone consolidation and initiation of elbow flexion.

Conclusions:

This flap modality is a safe and useful option for bone reconstruction.

Keywords:
Elbow; Humerus; Myocutaneous flap; Superficial muscles of the back; Osteonecrosis.

INTRODUÇÃO

O retalho ósseo da margem lateral da escápula vem sendo bastante estudado e utilizado nas últimas três décadas, principalmente após os primeiros trabalhos anatômicos a se interessarem em estudar esta área doadora óssea, descrevendo pela primeira vez a técnica de elevação do retalho e sua vascularização proveniente de ramos dos vasos circunflexos da escápula11 Téot L, Bosse JP, Moufarrege R, Papillon J, Beauregard G. The scapular crest pedicled bone graft. Int J Microsurg. 1981;3:257-62..

Estes trabalhos iniciais foram posteriormente confirmados por outro autor que também estudou amplamente a anatomia da escápula, contribuindo para o conhecimento anatômico desta região22 dos Santos LF. The vascular anatomy and dissection of the free scapular flap. Plast Reconstr Surg. 1984;73(4):599-604. PMID: 6709742 DOI: http://dx.doi.org/10.1097/00006534-198404000-00014
http://dx.doi.org/10.1097/00006534-19840...
. Em 1986, foi apresentada a maior série de casos clínicos, utilizando o retalho ósseo da escápula em 26 pacientes com sucesso, confirmando a segurança deste retalho33 Swartz WM, Banis JC, Newton ED, Ramasastry SS, Jones NF, Acland R. The osteocutaneous scapular flap for mandibular and maxillary reconstruction. Plast Reconstr Surg. 1986;77(4):530-45. PMID: 3952209 DOI: http://dx.doi.org/10.1097/00006534-198604000-00003
http://dx.doi.org/10.1097/00006534-19860...
.

Em 1988 pesquisadores introduziram e descreveram um segundo pedículo vascular para a margem lateral da escápula, proveniente não só da artéria circunflexa da escápula, mas também da artéria toracodorsal e seus ramos angulares44 Deraemaecker R, Thienen CV, Lejour M, Dor P. The serratus anterior scapular free flap: a new osteomuscular unit for reconstruction after radical head and neck surgery. In Proceedings of the Second International Conference on Head and Neck Cancer; 1988 Jul 31-Aug 5; Boston, MA, USA..

Na década de 1990 foi publicada uma série de 36 dissecções anatômicas confirmando os trabalhos precedentes e suas aplicações em 8 pacientes, que foram submetidos à transferência pediculada de retalho escapular utilizando os dois pedículos separadamente55 Coleman JJ 3rd, Sultan MR. The bipedicled osteocutaneous scapula flap: a new subscapular system free flap. Plast Reconstr Surg. 1991;87(4):682-92. PMID: 2008466 DOI: http://dx.doi.org/10.1097/00006534-199104000-00013
http://dx.doi.org/10.1097/00006534-19910...
. Após estes estudos, as aplicações do retalho da margem lateral da escápula não param de evoluir, sendo utilizado com sucesso na reconstrução óssea de membros e da face66 Frodel JL Jr, Funk GF, Capper DT, Fridrich KL, Blumer JR, Haller JR, et al. Osseointegrated implants: a comparative study of bone thickness in four vascularized bone flaps. Plast Reconstr Surg. 1993;92(3):449-55. DOI: http://dx.doi.org/10.1097/00006534-199309000-00010
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,77 Funk GF. Scapular and parascapular free flaps. Facial Plast Surg. 1996;12(1):57-63. DOI: http://dx.doi.org/10.1055/s-2008-1064494
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.

Considerações anatômicas

  1. Sistema circunflexo escapular: a margem lateral da escápula é vascularizada principalmente por dois sistemas ou pedículos. O mais importante é representado pela artéria circunflexa escapular, ramo da artéria subescapular que, ao longo de seu trajeto no interior do triângulo omotricipital, emite colaterais aos músculos vizinhos e ramos ósseos periosteais e medulares destinados à margem lateral da escápula.

  2. O sistema toracodorsal: Os ramos angulares da artéria toracodorsal foram descritos como fonte vascular para a ponta da escápula, mas também para a margem lateral via uma rede anastomótica entre os vasos angulares e os ramos ósseos do sistema circunflexo da escápula44 Deraemaecker R, Thienen CV, Lejour M, Dor P. The serratus anterior scapular free flap: a new osteomuscular unit for reconstruction after radical head and neck surgery. In Proceedings of the Second International Conference on Head and Neck Cancer; 1988 Jul 31-Aug 5; Boston, MA, USA..

Baseados nestes estudos, relatamos a seguir um caso clínico no qual utilizamos o retalho ósseo da margem livre da escápula para a reconstrução óssea do terço superior do úmero, associado ao retalho musculocutâneo do grande dorsal para a reanimação da flexão do cotovelo, utilizando o pedículo subescapular com as artérias circunflexa da escápula e toracodorsal.

OBJETIVO

O objetivo do trabalho é o de relatar um caso de reconstrução do terço proximal do úmero e reanimação do cotovelo utilizando o retalho ósseo da escápula associado com o retalho miocutâneo do grande dorsal com pedículo único nos vasos subescapulares.

MÉTODOS

Este trabalho é um relato de caso no qual o paciente foi atendido no Hospital das Clínicas de Fernandópolis, em Fernandópolis, SP, no ano de 2001. Foi realizada uma revisão bibliográfica a partir de livros, publicações nacionais e internacionais que foram obtidos por meio de consulta a quatro bases de dados, sendo elas Medline (compilada da National Library of Medicine, dos EUA), Lilacs (Literatura Latino-Americana e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde), Bireme e da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS)/OMS) e consultas ao portal PubMed.

Nas bases de dados identificamos os resumos pertinentes ao tema e selecionamos os artigos que foram lidos na íntegra para podermos identificar os diferentes métodos de tratamento utilizados para a reconstrução osteomuscular e discutir a aplicabilidade do retalho osteomiocutâneo da escápula, um procedimento complexo e de extrema dificuldade técnica.

Este relato de caso foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto - FAMERP.

RELATO DO CASO

A.J.O., 20 anos, masculino, vítima de acidente automobilístico há um ano, com avulsão do bíceps braquial e fratura exposta do terço proximal do úmero direito. O paciente apresentava no pré-operatório exposição e necrose óssea de 5 cm no terço proximal do úmero, além da incapacidade de fletir o cotovelo. Fora submetido a três curetagens ósseas prévias e apresentava-se há um ano em uso contínuo de antibioticoterapia (Figura 1).

Figura 1
Pré-operatório mostrando exposição e necrose óssea do terço proximal do úmero, além da destruição da musculatura flexora do antebraço.

Decidimos pela indicação do retalho osteomiocutâneo da escápula e grande dorsal para a reconstrução óssea do úmero e reanimação do cotovelo. O retalho foi transferido de maneira pediculada na artéria subescapular, utilizando um duplo pedículo (artéria circunflexa da escápula e artéria toracodorsal), tomando-se o cuidado de não desvascularizar o músculo redondo maior e não desnervar o músculo serrátil anterior para evitar a ocorrência de escápula alada (Figuras 2 e 3).

Figura 2
Desenho mostrando o esquema de elevação do retalho e sua vascularização. A: Escápula; B: Úmero; C: Cabeça Longa do tríceps; D: Redondo maior; E: Redondo menor; 1: Artéria axilar; 2: Artéria subescapular; 3: Artéria circunflexa da escápula; 4: Artéria toracodorsal.

Figura 3
Intraoperatório, paciente em decúbito lateral esquerdo. Observa-se a borda lateral da escápula direita já elevada, juntamente com o músculo grande dorsal e sua pela suprajacente.

O paciente teve excelente evolução no pósoperatório, apresentando-se, no pós-operatório de 2 meses, com consolidação óssea e iniciando a flexão do cotovelo (Figura 4).

Figura 4
Pós-operatório de 2 meses mostrando a área reconstruída e o paciente iniciando a flexão do cotovelo.

DISCUSSÃO

O retalho ósseo da margem lateral da escápula apresenta grandes vantagens na reconstrução do úmero em relação a outros retalhos ósseos mais utilizados para este fim, como o retalho de crista ilíaca e o retalho de fíbula:

  • - Proximidade da área receptora: o retalho pode ser transposto de maneira pediculada, sem a necessidade da utilização de técnica microcirúrgica;

  • - Segurança: o sistema subescapular é, sem contestação, o mais utilizado no mundo na confecção e transposição de retalho, havendo grandes séries de trabalhos publicados demonstrando sua segurança e pouca variação anatômica;

  • - Diversidade de elevações possíveis: não existe outra área doadora de retalhos onde se pode associar a maior diversidade de retalhos possíveis, partindo desde um retalho cutâneo escapular e paraescapular, passando pelo retalho muscular do serrátil anterior e o retalho muscular, musculocutâneo e osteomiocutâneo (com a décima costela) do grande dorsal, até a associação destes retalhos com o retalho da margem lateral da escápula;

  • - Qualidade do osso transferido: a margem lateral da escápula é um excelente osso corticoesponjoso ricamente vascularizado, tornando sua reconstrução de qualidade superior à da costela, por exemplo;

  • - Presença de pedículo longo: proporcionando um grande arco de rotação a este retalho e maior segurança e facilidade em casos de transferências livres.

CONCLUSÃO

Perante a utilização do retalho da margem lateral da escápula descrito neste trabalho e juntamente com inúmeros trabalhos anatômicos e clínicos já publicados, concluímos que o retalho osteomiocutâneo da escápula é uma excelente opção em casos de grandes perdas teciduais no membro superior. Pode ser elevado de maneira pediculada com segurança, como demonstrado, também pode ser associado à transposição do músculo grande dorsal e sua pele suprajacente. Seu pedículo é de fácil dissecção e visualização e, além da escápula, podemos utilizar a costela como fonte doadora óssea. Como retalho ósseo, este retalho, ao lado do retalho da crista ilíaca e da fíbula, insere-se no arsenal dos retalhos de maior utilização e segurança nas reconstruções ósseas em geral e, principalmente, no membro superior.

COLABORAÇÕES

HRPF Análise e/ou interpretação dos dados; análise estatística; aprovação final do manuscrito; concepção e desenho do estudo; realização das operações e/ou experimentos; redação do manuscrito ou revisão crítica de seu conteúdo. JAF Redação do manuscrito ou revisão crítica de seu conteúdo; realização das operações e/ou experimentos. JAF Realização das operações e/ou experimentos. GM Realização das operações e/ou experimentos.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Téot L, Bosse JP, Moufarrege R, Papillon J, Beauregard G. The scapular crest pedicled bone graft. Int J Microsurg. 1981;3:257-62.
  • 2
    dos Santos LF. The vascular anatomy and dissection of the free scapular flap. Plast Reconstr Surg. 1984;73(4):599-604. PMID: 6709742 DOI: http://dx.doi.org/10.1097/00006534-198404000-00014
    » http://dx.doi.org/10.1097/00006534-198404000-00014
  • 3
    Swartz WM, Banis JC, Newton ED, Ramasastry SS, Jones NF, Acland R. The osteocutaneous scapular flap for mandibular and maxillary reconstruction. Plast Reconstr Surg. 1986;77(4):530-45. PMID: 3952209 DOI: http://dx.doi.org/10.1097/00006534-198604000-00003
    » http://dx.doi.org/10.1097/00006534-198604000-00003
  • 4
    Deraemaecker R, Thienen CV, Lejour M, Dor P. The serratus anterior scapular free flap: a new osteomuscular unit for reconstruction after radical head and neck surgery. In Proceedings of the Second International Conference on Head and Neck Cancer; 1988 Jul 31-Aug 5; Boston, MA, USA.
  • 5
    Coleman JJ 3rd, Sultan MR. The bipedicled osteocutaneous scapula flap: a new subscapular system free flap. Plast Reconstr Surg. 1991;87(4):682-92. PMID: 2008466 DOI: http://dx.doi.org/10.1097/00006534-199104000-00013
    » http://dx.doi.org/10.1097/00006534-199104000-00013
  • 6
    Frodel JL Jr, Funk GF, Capper DT, Fridrich KL, Blumer JR, Haller JR, et al. Osseointegrated implants: a comparative study of bone thickness in four vascularized bone flaps. Plast Reconstr Surg. 1993;92(3):449-55. DOI: http://dx.doi.org/10.1097/00006534-199309000-00010
    » http://dx.doi.org/10.1097/00006534-199309000-00010
  • 7
    Funk GF. Scapular and parascapular free flaps. Facial Plast Surg. 1996;12(1):57-63. DOI: http://dx.doi.org/10.1055/s-2008-1064494
    » http://dx.doi.org/10.1055/s-2008-1064494

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    13 Fev 2012
  • Aceito
    26 Jan 2018
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