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Apresentação Atípica de Hematoma Intramural da Aorta Ascendente com Tratamento Conservador

Resumos

O hematoma intramural aórtico é uma doença grave, secundária a sangramento da vasa vasorum e/ou microúlceras aórticas, sem comunicação com a luz verdadeira do vaso. Seu achado ocasional, na ausência de sintomas ou trauma aórtico, é bastante raro. Neste relato, paciente assintomática, com comprometimento da aorta ascendente e arco, foi mantida em tratamento clínico, a despeito das recomendações predominantes para correção cirúrgica em lesões classificadas como tipo A de Stanford. Discutimos aspectos pertinentes à caracterização da lesão nos diferentes exames de imagem, identificação de critérios de alto risco anatômico e condução do caso. A evolução em 7 meses foi satisfatória.

Aorta torácica; Doenças da aorta; Hematoma


Aortic intramural hematoma is a severe disease, secondary to vasa vasorum bleeding and/or aortic micro-ulcers without connection with the true lumen of the vessel. Its occasional finding in the absence of symptoms or aortic trauma is quite rare. In this report, an asymptomatic female patient with involvement of the ascending aorta and transverse arch was maintained on clinical treatment, despite the prevailing recommendations for surgical repair in Stanford type A lesions. Relevant aspects of lesion characterization in different imaging tests, identification of high risk anatomical criteria and conduct are discussed. A satisfactory 7-month follow-up was observed.

Aorta, thoracic; Aortic diseases; Hematoma


Desde a descrição original das síndromes aórticas agudas,1Vilacosta I, Román JA. Acute aortic syndrome. Heart. 2001; 85(4):365-8. a crescente prontidão diagnóstica e a disponibilidade de sofisticados exames de imagem têm permitido a identificação precoce dos pacientes com quadros aórticos agudos e típicos. À semelhança da dissecção clássica, também no caso do hematoma intramural (HIM), a agilidade no diagnóstico e o pronto tratamento, especialmente para lesões classificadas como tipo A, são determinantes para o sucesso. O reconhecimento mais disseminado dessas doenças e o uso frequente de métodos avançados de diagnóstico podem provocar situação clínica na qual a imagem se sobrepõe à importância ou ao significado clínico da própria doença. Nesta oportunidade, relatamos o caso de paciente com HIM da aorta ascendente, assintomática, com ênfase no diagnóstico por imagem e na conduta.

RELATO DO CASO

Paciente do sexo feminino, 49 anos, branca, com antecedentes de hipertensão arterial sistêmica controlada e intolerância à glicose, realizou avaliação pré-operatória para uma histerectomia por miomatose uterina, durante a qual foi solicitada angiotomografia de artérias coronárias devido a antecedente familiar de doença coronária precoce. Nesse exame, realizado em caráter ambulatorial, como achado incidental, observou-se um HIM da aorta ascendente e arco transverso, ocupando toda a circunferência da aorta, com espessura máxima de 8 mm e discreta progressão para vasos cervicais proximais. Notava-se, ainda, discreta compressão do óstio da artéria coronária direita (Figura 1).

Figura 1
Angiotomografia com múltiplos detectores. Há nítido comprometimento circunferencial da aorta, estendendo-se até o arco transverso, com comprometimento da porção inicial dos vasos cervicais (A) e óstio da artéria coronária direita (B*). Nos cortes transversais, no ponto de maior espessura do hematoma intramural, observa-se leve compressão da artéria pulmonar, além de extensão ao arco (D).

A paciente foi encaminhada para internação hospitalar e conduta. Na história clínica prévia, relatava episódio de febre prolongada, ocorrido há 16 anos, acompanhado de derrame pleural, tendo sido realizada investigação para lúpus eritematoso sistêmico e tuberculose (sic), que foram descartados.

Desde então, a paciente estava assintomática e realizava exercícios físicos regularmente (bicicleta), negando episódio prévio de dor torácica ou trauma torácico em qualquer momento. Também estava ausente qualquer manifestação compatível com doença inflamatória sistêmica. Não havia história familiar de doença aórtica e nem de morte súbita.

Exames laboratoriais, na admissão hospitalar, mostravam perfil metabólico normal, eletroforese de proteínas e provas de atividade inflamatória (proteína C-reativa, velocidade de hemossedimentação, dosagem de complemento, fator reumatoide e fator antinúcleo) normais; sorologias para HIV e sífilis também negativas. No hemograma, observou-se anemia (hemoglobina = 10,3 g/dL) considerada compatível com o quadro prolongado de hipermenorreia. O eletrocardiograma apresentava bloqueio atrioventricular de primeiro grau e o ecocardiograma revelou discreto espessamento valvar aórtico, com gradiente médio de 8 mmHg.

Considerando a estabilidade clínica da paciente, foi mantida a observação hospitalar e foi programado um primeiro controle com angiotomografia (A-TC) da aorta torácica para o 5º dia de internação, associado à tomografia por emissão de pósitron (PET-CT), que demonstrou estabilidade nos diâmetros aórticos (diâmetro máximo = 34 mm), predominância do hematoma nas porções posterolaterais à esquerda da aorta ascendente, com aparente redução discreta do hematoma, mas com manutenção da espessura de 8 mm. O diâmetro da artéria pulmonar era normal. No PET, foi observada captação de fluor-desoxi-glicose (FDG) na porção correspondente ao maior volume do hematoma (valor de captação padrão máximo – SUV max = 4,4), sem captações anormais em outras porções aórticas ou órgãos (Figura 2).

Figura 2
Tomografia por emissão de pósitrons associada à tomografia computadorizada (PET-CT). Cortes transversais ao nível da bifurcação da artéria pulmonar (A) e sagitais (B) mostram espessamento circunferencial da aorta ascendente, espontaneamente hiperdenso, com sinais de aumento de metabolismo de glicose (SUVmax = 4,4).

A paciente recebeu alta hospitalar, tendo sido orientada a evitar esportes de contato ou contrarresistência, com o uso de betabloqueador, bloqueador de receptor da angiotensina e estatina, sendo programado um novo controle para 15 a 20 dias, se persistisse assintomática. Esse terceiro controle por angiotomografia evidenciou a estabilidade do hematoma.

No sétimo mês de evolução, a paciente continuava assintomática e em uso regular das medicações mencionadas, com novo controle tomográfico da aorta torácica revelando mínima redução da espessura do HIM (7 mm) e manutenção dos diâmetros aórticos (Figura 3).

Figura 3
Angiotomografia com múltiplos detectores realizada aos 7 meses de evolução. Embora a espessura medida do hematoma seja um pouco menor, com aparente redução do volume do hematoma e manutenção dos diâmetros aórticos, os valores ainda se encontram na faixa de variação do método (8 e 7 mm, inicial e final). Cortes transversos ao nível da bifurcação da artéria pulmonar (A) e no arco (B). Reconstrução ao nível da emergência da artéria coronária direita (C) e longitudinal do arco aórtico e vasos da base (D).

DISCUSSÃO

Correspondendo a cerca de 6 a 10% dos casos de síndrome aórtica aguda, o HIM da aorta ascendente diagnosticado durante investigação de quadro de dor torácica aguda é doença grave de alta mortalidade.2Harris KM, Braverman AC, Eagle KA, Woznicki EM, Pyeritz RE, Myrmel T, et al. Acute aortic intramural hematoma: an analysis from the International Registry of Acute Aortic Dissection. Circulation. 2012;126(11 Suppl 1):S91-6. A possibilidade de progressão para dissecção ou franca rotura (20 a 50%) embasa a indicação de tratamento cirúrgico imediato para boa parte dos pacientes, especialmente aqueles localizados na aorta ascendente. Todavia, nos últimos anos, diversas séries – especialmente na população asiática – têm apoiado uma estratégia de observação estreita para pacientes estáveis e sem sinais de mau prognóstico como, por exemplo, dor persistente, diâmetro aórtico aumentado à admissão (> 48 a 55 mm), espessura do hematoma > 11 mm, presença concomitante de imagens úlcera-like (não necessariamente características de úlcera penetrante) ou progressão do hematoma.3Kruse MJ, Johnson PT, Fishman EK, Zimmerman SL. Aortic intramural hematoma: review of high-risk imaging features. J Cardiovasc Comput Tomogr. 2013;7(4):267-72. Desse modo, nos pacientes estáveis, acompanhamento por imagem representa um passo obrigatório da vigilância e indicação de tratamento.

HIM assintomático é raramente descrito na literatura (dois casos). Dentre os relatos que temos, um paciente apresentou evolução para úlcera penetrante e foi submetido à correção cirúrgica4Hayashida T, Sueyoshi E, Sakamoto I, Uetani M, Chiba K. PET features of aortic diseases. AJR Am J Roentgenol. 2010;195(1):229-33. e outro paciente, com sintomas vagos, foi submetido a toracotomia de urgência, que diagnosticou aortite com espessamento de parede,5Yamane K, Hirose H, Youdelman BA, Diehl JT. Thickened ascending aortic wall mimicking intramural hematoma. Asian Cardiovasc Thorac Ann. 2012;20(2):208-9. não sendo realizada a troca do segmento aórtico acometido.

A despeito da extensão do HIM encontrado e sua classificação (tipo A de Stanford), a opção de condução clínica, neste caso, foi baseada na ausência de manifestações clínicas da doença e de critérios tomográficos de alto risco, pesada contra a morbimortalidade de uma cirurgia aórtica extensa.

Para o paciente assintomático, que realiza uma tomografia ou PET-CT por qualquer indicação (investigação de doença coronária, acompanhamento de neoplasias etc.) e na qual se detecta um HIM, é preciso atenção para a possibilidade de diagnósticos diferenciais. Em nosso caso, realizamos imagens sincronizadas com eletrocardiograma, para excluir artefatos, e investigamos a possibilidade de aortite, embora a clínica e os exames laboratoriais não fossem inicialmente sugestivos dessa hipótese.

O achado característico do HIM é a imagem de trombo na parede arterial, em forma de crescente ou ocupando toda a circunferência aórtica, sem comunicação com a luz, que resulta da rotura da vasa vasorum ou da ocorrência de microrroturas ou microúlceras não detectadas. Na A-TC de múltiplos detectores, o espessamento parietal de alta atenuação (60 a 70 Hounsfield Units – HU), observado na série sem contraste, é nitidamente percebido na série com contraste como uma imagem separada e sem comunicação com o lúmen.6Hallinan JTPD, Anil G. Multi-detector computed tomography in the diagnosis and management of acute aortic syndromes. World J Radiol. 2014;6(6):355-65. Na ressonância nuclear magnética, além do já citado aspecto anatômico, hipersinal em sequência ponderada em T2, e iso ou hipersinal em T1 (black-blood), dependendo da fase de evolução, são achados característicos.7Hartlage GR, Palios J, Barron BJ, Stillman AE, Bossone E, Clements SD, et al. Multimodality imaging of aortitis. JACC Cardiovasc Imaging. 2014;7(6):605-19.

Em casos de aortite, o achado característico na A-TC na fase sem contraste, em oposição aos hematomas, é a baixa atenuação na parede (< 40 HU). Outra imagem que gera confusão é a presença de trombo mural intraluminal, muitas vezes não diferenciável pela TC. Em caso de dúvida persistente, a ressonância nuclear magnética permite a diferenciação pela presença de sinal hipointenso ou isointenso.8Baliga RR, Nienaber CA, Bossone E, Oh JK, Isselbacher EM, Sechtem U, et al. The role of imaging in aortic dissection and related syndromes. JACC Cardiovasc Imaging. 2014;7(4):406-24.

Embora o PET-CT seja utilizado predominantemente na pesquisa de malignidades ou doenças inflamatórias, a captação do FDG é observada também na aterosclerose e na presença de trombo parietal.4Hayashida T, Sueyoshi E, Sakamoto I, Uetani M, Chiba K. PET features of aortic diseases. AJR Am J Roentgenol. 2010;195(1):229-33. Aqui, o PET-CT demonstrou a hipercaptação concentrada no ponto de maior volume e excluiu a captação em outras porções aórticas ou órgãos. A utilização do PET-CT, na avaliação prognóstica dos pacientes, relacionando a acentuada captação com maior risco de expansão e rotura, ainda é contraditória, mas pode ser um marcador útil.9Golestani R, Sadeghi MM. Emergence of molecular imaging of aortic aneurysm: implications for risk stratification and management. J Nucl Cardiol. 2014 ;21(2):251-67

Nessa fase, não foi realizada investigação adicional de isquemia miocárdica, uma vez que apresentava discreta compressão em óstio da artéria coronária direita, e que a possibilidade de cirurgia não estava afastada.

Na opinião dos autores, o acompanhamento clínico e por imagem foi conduta adequada neste caso, evitando-se um procedimento cirúrgico de grande porte, já que os controles de seguimento evidenciavam estabilidade do HIM.

Conhecer dados pertinentes à investigação diagnóstica por imagem e equilibrar esse achados com a avaliação clínica são pilares do tratamento médico. O rápido desenvolvimento desses métodos de imagem e a baixa frequência de doenças da aorta, na prática do cardiologista, exigem uma participação multidisciplinar. Os serviços de radiologia (ou, quando necessário, o médico assistente) devem estar habituados a emitir laudos que contemplem o maior número de informações pertinentes a uma classificação inicial de risco, ainda que imperfeita, e que envolvam os valores de atenuação observados nas séries sem contraste. Estratégia de tratamento clínico adequada e suficiente inclui as classes de medicamentos que provavelmente apresentam papel na redução de eventos aórticos1010 Hiratzka LF, Bakris GL, Beckman JA, Bersin RM, Carr VF, Casey DE Jr, et al. 2010 ACCF/AHA/AATS/ACR/ASA/SCA/SCAI/ SIR/STS/SVM Guidelines for the diagnosis and management of patients with thoracic aortic disease: executive summary. A report of the American College of Cardiology Foundation/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines, American Association for Thoracic Surgery, American College of Radiology, American Stroke Association, Society of Cardiovascular Anesthesiologists, Society for Cardiovascular Angiography and Interventions, Society of Interventional Radiology, Society of Thoracic Surgeons, and Society for Vascular Medicine. Catheter Cardiovasc Interv. 2010;76(2):E43-86. (betabloqueadores, inibidores da enzima conversora ou bloqueador de receptor da angiotensina, e estatinas) e seguimento da paciente por imagem (preferencialmente com ressonância nuclear magnética, para reduzir a exposição a raio X).

Uma vez que a completa fisiopatologia das doenças aórticas só começa a ser esclarecida, é possível supor que episódios silenciosos de sangramento intramural possam ocorrer como mecanismo de início de dilatação ou mesmo de dissecção. Neste caso, em particular, a possibilidade de evolução para dilatação aórtica tardia não pode ser descartada.

  • FONTE DE FINANCIAMENTO
    Não há.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Vilacosta I, Román JA. Acute aortic syndrome. Heart. 2001; 85(4):365-8.
  • 2
    Harris KM, Braverman AC, Eagle KA, Woznicki EM, Pyeritz RE, Myrmel T, et al. Acute aortic intramural hematoma: an analysis from the International Registry of Acute Aortic Dissection. Circulation. 2012;126(11 Suppl 1):S91-6.
  • 3
    Kruse MJ, Johnson PT, Fishman EK, Zimmerman SL. Aortic intramural hematoma: review of high-risk imaging features. J Cardiovasc Comput Tomogr. 2013;7(4):267-72.
  • 4
    Hayashida T, Sueyoshi E, Sakamoto I, Uetani M, Chiba K. PET features of aortic diseases. AJR Am J Roentgenol. 2010;195(1):229-33.
  • 5
    Yamane K, Hirose H, Youdelman BA, Diehl JT. Thickened ascending aortic wall mimicking intramural hematoma. Asian Cardiovasc Thorac Ann. 2012;20(2):208-9.
  • 6
    Hallinan JTPD, Anil G. Multi-detector computed tomography in the diagnosis and management of acute aortic syndromes. World J Radiol. 2014;6(6):355-65.
  • 7
    Hartlage GR, Palios J, Barron BJ, Stillman AE, Bossone E, Clements SD, et al. Multimodality imaging of aortitis. JACC Cardiovasc Imaging. 2014;7(6):605-19.
  • 8
    Baliga RR, Nienaber CA, Bossone E, Oh JK, Isselbacher EM, Sechtem U, et al. The role of imaging in aortic dissection and related syndromes. JACC Cardiovasc Imaging. 2014;7(4):406-24.
  • 9
    Golestani R, Sadeghi MM. Emergence of molecular imaging of aortic aneurysm: implications for risk stratification and management. J Nucl Cardiol. 2014 ;21(2):251-67
  • 10
    Hiratzka LF, Bakris GL, Beckman JA, Bersin RM, Carr VF, Casey DE Jr, et al. 2010 ACCF/AHA/AATS/ACR/ASA/SCA/SCAI/ SIR/STS/SVM Guidelines for the diagnosis and management of patients with thoracic aortic disease: executive summary. A report of the American College of Cardiology Foundation/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines, American Association for Thoracic Surgery, American College of Radiology, American Stroke Association, Society of Cardiovascular Anesthesiologists, Society for Cardiovascular Angiography and Interventions, Society of Interventional Radiology, Society of Thoracic Surgeons, and Society for Vascular Medicine. Catheter Cardiovasc Interv. 2010;76(2):E43-86.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2014

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2014
  • Aceito
    28 Ago 2014
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