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Avaliação da genotoxicidade induzida pela administração repetida de anestésicos locais: um estudo experimental em ratos

Resumos

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

Estudos anteriores sobre os efeitos de alguns anestésicos locais sugeriram que esses agentes podem causar alterações genéticas. No entanto, esses agentes não são testados para genotoxicidade relacionada à administração repetida. O objetivo deste estudo foi avaliar o potencial genotóxico de anestésicos locais após repetidas administrações.

MÉTODOS:

80 ratos Wistar machos foram alocados em: grupo A - 16 ratos receberam injeção por via intraperitoneal (IP) de cloridrato de lidocaína a 2%; grupo B - 16 ratos receberam injeção IP com mepivacaína a 2%; grupo C - 16 ratos receberam injeção IP de articaína a 4%; grupo D - 16 ratos receberam injeção IP de prilocaína a 3% (6 mg kg-1); grupo E - oito ratos receberam injeção subcutânea em dose única de ciclofosfamida; grupo F - oito ratos receberam injeção IP com solução salina. Oito ratos dos grupos de A a D receberam uma dose única de anestésico no Dia 1 da experiência; os ratos restantes foram dosados uma vez por dia durante cinco dias.

RESULTADOS:

A mediana do número de micronúcleos nos grupos com anestésicos locais expostos por um ou cinco dias variou de 0 a 1; no grupo exposto à ciclofosfamida foi de 10 e no grupo controle negativo no primeiro e quinto dias foi de 1 e 0, respectivamente (p < 0,0001). Uma diferença significativa foi observada no número de micronúcleos entre o grupo ciclofosfamida e todos os grupos com anestésicos locais (p = 0,0001), mas não entre o grupo controle negativo e os grupos com anestésicos locais (p > 0,05).

CONCLUSÃO:

Nenhum efeito de genotoxicidade foi observado após a exposição repetida a qualquer um dos anestésicos locais avaliados.

Anestesia; Genotoxicidade; Testes de mutagenicidade; Testes para micronúcleos; Prilocaína


BACKGROUND AND OBJECTIVE:

Previous studies regarding the effects of some local anaesthetics have suggested that these agents can cause genetic damage. However, they have not been tested for genotoxicity related to repetitive administration. The aim of this study was to evaluate the genotoxic potential of local anaesthetics upon repetitive administration.

METHODS:

80 male Wistar rats were divided into: group A - 16 rats intraperitoneally injected with lidocaine hydrochloride 2%; group B - 16 rats IP injected with mepivacaine 2%; group C - 16 rats intraperitoneally injected with articaine 4%; group D - 16 rats IP injected with prilocaine 3% (6.0 mg/kg); group E - 8 rats subcutaneously injected with a single dose of cyclophosphamide; and group F - 8 rats intraperitoneally injected with saline. Eight rats from groups A to D received a single dose of anaesthetic on Day 1 of the experiment; the remaining rats were dosed once a day for 5 days.

RESULTS:

The median number of micronuclei in the local anaesthetics groups exposed for 1 or 5 days ranged from 0.00 to 1.00, in the cyclophosphamide-exposed group was 10.00, and the negative control group for 1 and 5 days was 1.00 and 0.00, respectively (p < 0.0001). A significant difference in the number of micronuclei was observed between the cyclophosphamide group and all local anaesthetic groups (p = 0.0001), but not between the negative control group and the local anaesthetic groups (p > 0.05).

CONCLUSION:

No genotoxicity effect was observed upon repetitive exposure to any of the local anaesthetics evaluated.

Anaesthesia; Genotoxicity; Mutagenicity tests; Micronucleus tests; Prilocaine


JUSTIFICACIÓN Y OBJETIVOS:

Estudios previos sobre los efectos de algunos anestésicos locales han mostrado que esos agentes pueden causar alteraciones genéticas. Sin embargo, esos agentes no son testados para la genotoxicidad relacionada con la administración repetida. El objetivo de este estudio fue evaluar el potencial genotóxico de anestésicos locales después de repetidas administraciones.

MÉTODOS:

80 ratones Wistar machos se dividieron en: grupo A: 16 ratones que recibieron inyección por vía intraperitoneal (IP) de clorhidrato de lidocaína al 2%; grupo B: 16 ratones a los que se les administró inyección IP con mepivacaína al 2%; grupo C: 16 ratones que recibieron inyección IP de articaína al 4%; grupo D: 16 ratones a los que se les administró inyección IP de prilocaína al 3% (6 mg/kg); grupo E: 8 ratones que recibieron inyección subcutánea en dosis única de ciclofosfamida; grupo F: 8 ratones que recibieron inyección IP con solución salina. Ocho ratones de los grupos A a D recibieron una dosis única de anestésico el primer día de la experiencia; los ratones restantes se dosificaron una vez por día durante 5 días.

RESULTADOS:

La mediana del número de micronúcleos en los grupos con anestésicos locales expuestos durante uno o 5 días varió de 0 a 1; en el grupo expuesto a la ciclofosfamida fue de 10 y en el grupo control negativo en el primero y quinto día fue de 1 y 0 respectivamente (p < 0,0001). Se observó una diferencia significativa en el número de micronúcleos entre el grupo ciclofosfamida y todos los grupos con anestésicos locales (p = 0,0001), pero no entre el grupo control negativo y los grupos con anestésicos locales (p > 0,05).

CONCLUSIÓN:

Ningún efecto de genotoxicidad fue observado después de la exposición repetida a cualquiera de los anestésicos locales evaluados.

Anestesia; Genotoxicidad; Tests de mutagenicidad; Tests de micronúcleos; Prilocaína


Introdução

O desenvolvimento de agentes anestésicos locais seguros e eficazes foi um dos mais importantes avanços da ciência odontológica ao longo do século passado. Os agentes odontológicos disponíveis atualmente são extremamente seguros e atendem à maioria dos critérios de um anestésico local ideal. Esses agentes anestésicos locais induzem mínima irritação do tecido e apresentam risco baixo de induzir reações alérgicas.11. Moore PA, Hersh EV. Local anesthetics: pharmacology and toxicity. Dent Clin North Am. 2010;54:587-99.

Um anestésico local é usado com mais frequência em odontologia para controlar a dor, além de ser amplamente usado em outros campos da medicina. Entre as várias formulações de anestésicos locais, os tipos mais usados são os sais anestésicos de lidocaína, mepivacaína e prilocaína.22. Mariano RC, Santana SI, Coura GS. Análise comparativa do efeito anestésico da lidocaína 2% e da prilocaína 3%. Revista Brasileira de Cirurgia e Implantodontia - BCI. 2000;7:15-9.

A combinação de vasoconstritor e anestésico local foi usada pela primeira vez em 1901, quando Braun administrou simultaneamente adrenalina e cocaína.33. Jastak JT, Yagiela JA. Vasoconstritors and local anesthesia: a review and rationale for use. J Am Dent Assoc. 1983;107:623-30. Devido às propriedades vasodilatadoras da maioria dos sais anestésicos, a duração da anestesia nem sempre é adequada e ilustra a necessidade de administração concomitante de um vasoconstritor. Algumas vantagens da administração combinada de vasoconstritores e anestésicos são a lenta absorção do sal anestésico (o que reduz a toxicidade e aumenta a duração da anestesia), a redução da quantidade de anestésico necessária para anestesiar o paciente e o aumento da eficácia do anestésico.22. Mariano RC, Santana SI, Coura GS. Análise comparativa do efeito anestésico da lidocaína 2% e da prilocaína 3%. Revista Brasileira de Cirurgia e Implantodontia - BCI. 2000;7:15-9. Os vasoconstritores mais comumente usados em combinação com anestésicos locais pertencem ao grupo das aminas simpatomiméticas, que inclui adrenalina, noradrenalina, levonordefrina, fenilefrina e felipressina.22. Mariano RC, Santana SI, Coura GS. Análise comparativa do efeito anestésico da lidocaína 2% e da prilocaína 3%. Revista Brasileira de Cirurgia e Implantodontia - BCI. 2000;7:15-9.

Os agentes genotóxicos afetam negativamente a integridade do material genético de uma célula e são definidos como qualquer substância ou produto químico que danifique o DNA. Embora a capacidade de uma substância para danificar o DNA não a torne automaticamente um perigo para a saúde, o que preocupa é saber se a substância pode ser potencialmente mutagênica e/ou carcinogênica.44. Smith MT. The mechanism of benzene-induced leukemia: a hypothesis and speculations on the causes of leukemia. Environ Health Perspect. 1996;104:1219-25.

Alguns anestésicos locais não foram testados para carcinogenicidade ou genotoxicidade. Prilocaína é um anestésico local que foi analisado pelo Programa Nacional de Toxicologia (NTP, EUA), desde outubro de 2007.55. Duan JD, Jeffrey AM, Williams GM. Assessment of the medicines lidocaine, prilocaine, and their metabolites, 2,6dimethylaniline and 2-methylaniline, for DNA adduct formation in rat tissues. Drug Metab Dispos J. 2008;8:1470-5.

O teste de micronúcleos é amplamente usado para avaliar a capacidade de uma substância para quebrar cromossomas (a sua clastogenicidade) ou afetar a formação de placa metafásica e/ou fuso mitótico, ambos capazes de levar à distribuição desigual de cromossomas durante a divisão celular.66. Flores M, Yamaguchi UM. Micronucleus test: an evaluation for genotoxic screening. J Health Res. 2008;1:337-40. O teste de micronúcleos gera resultados com forte apoio estatístico; portanto, é amplamente usado como uma ferramenta de triagem para determinar a segurança de muitas substâncias e classificar os agentes como cancerígenos ou não cancerígenos.77. Fenech M, Holland N, Chang WP, et al. The HUman MicroNucleus Project - an international collaborative study on the use of the micronucleus technique for measuring DNA damage in humans. Mutat Res. 1999;428:271-83. A facilidade de feitura do teste de micronúcleos levou a sua adoção generalizada em todo o mundo como um teste padrão de genotoxicidade para monitorizar a segurança de agentes para uso na população humana.88. MacGregor JT, Heddle JA, Hite M, et al. Guidelines for the conduct of micronucleus assays in mammalian bone marrow erythrocytes. Mutat Res. 1987;189:103-12.

De acordo com nossa pesquisa, não há estudos na literatura sobre o potencial genotóxico do uso repetitivo de anestésicos locais. Os anestésicos locais são amplamente usados em odontologia e medicina e os estudos que avaliem o risco da exposição repetitiva a essas substâncias podem contribuir para uma melhor compreensão dos seus efeitos potencialmente tóxicos sobre o material genético e seus potenciais riscos para os pacientes expostos.

O objetivo deste estudo foi investigar com o teste de micronúcleos o potencial genotóxico do uso repetitivo de anestésicos locais.

Métodos

Este estudo foi aprovado pela Comissão de Ética no Uso de Animais (Protocolo n°. 930/11).

Para este estudo, 80 ratos Wistar machos com 12 semanas de idade e peso entre 200 e 250 g receberam anestésicos locais. Os ratos foram alocados em grupos de quatro e colocados em grandes caixas retangulares (49 cm × 34 cm × 16 cm), apropriadas para acomodar até cinco ratos adultos. Os ratos foram colocados em viveiro com temperatura e umidade controladas, equipado com um ciclo de luz de 12 horas para claro/escuro. Antes da administração do anestésico, todos os animais foram pesados para calcular a dosagem adequada.

Os animais foram alocados em seis grupos: grupo A - 16 ratos receberam injeções por via intraperitoneal (IP) de cloridrato de lidocaína e fenilefrina (Novocol(r) 100, SS White, Rio de Janeiro, Brasil) em dose de 4,4 mg.kg-1; grupo B - 16 ratos receberam injeções IP de mepivacaína a 2% (mepivacaína, DFL, Jacarepaguá, Brasil) em dose de 4,4 mg.kg-1; grupo C - 16 ratos receberam injeções IP de epinefrina e articaína a 4% (Septanest(r) 1:100.000, Septodont, Bruxelas, Bélgica) em dose de 7 mg.kg-1; grupo D - 16 ratos receberam injeção IP de prilocaína a 3% e felipressina (Cytanest(r), Astra, São Paulo, Brasil) em dose de 6 mg.kg-1; grupo E - oito ratos receberam injeções por via subcutânea com dose única de ciclofosfamida (Genuxal(r), Baxter Oncology GmbH, Halle/Westfalen, Alemanha) (50 mg.kg-1) no Dia 1 do experimento (grupo controle positivo);88. MacGregor JT, Heddle JA, Hite M, et al. Guidelines for the conduct of micronucleus assays in mammalian bone marrow erythrocytes. Mutat Res. 1987;189:103-12. grupo F - oito ratos receberam injeções IP de 0,5 mL de soro fisiológico (grupo de controle negativo). Como um relatório anterior demonstrou a formação de micronúcleos em resposta a uma dose de 50 mg.kg-1 de ciclofosfamida, essa dose foi usada para o grupo controle positivo.88. MacGregor JT, Heddle JA, Hite M, et al. Guidelines for the conduct of micronucleus assays in mammalian bone marrow erythrocytes. Mutat Res. 1987;189:103-12.

Oito ratos dos grupos de A a D receberam uma dose de anestésico no primeiro dia do experimento. Os outros animais desses grupos receberam uma dose diária de anestésico durante cinco dias. Os ratos do grupo F receberam administração de soro fisiológico de modo semelhante.

Oito ratos dos grupos de A a D, quatro ratos do grupo F e todos os ratos do grupo E foram submetidos a eutanásia 24 horas após a administração do anestésico. Os animais restantes dos grupos A, B, C, D e F foram sacrificados cinco dias mais tarde. A eutanásia foi feita com pentobarbital sódico (Syntec, Cotia, São Paulo, Brasil) em dose de 100 mg.kg-1 por via IP.

Amostras da medula óssea foram coletadas a partir do fêmur de cada rato no momento do sacrifício e duas lâminas foram preparadas por animal.88. MacGregor JT, Heddle JA, Hite M, et al. Guidelines for the conduct of micronucleus assays in mammalian bone marrow erythrocytes. Mutat Res. 1987;189:103-12. As lâminas foram coradas com Giemsa (Dolles, São Paulo, Brasil). Dois mil eritrócitos policromáticos (mil por lâmina) foram contados para cada animal com uma ampliação de 400× com um microscópio óptico para determinar o número de micronúcleos.88. MacGregor JT, Heddle JA, Hite M, et al. Guidelines for the conduct of micronucleus assays in mammalian bone marrow erythrocytes. Mutat Res. 1987;189:103-12. Micronúcleos foram definidos como estruturas com prováveis halos em torno da membrana nuclear e um volume inferior a um terço do volume do diâmetro do núcleo associado; a intensidade da coloração dos micronúcleos foi semelhante à intensidade do núcleo associado e ambas as estruturas foram observadas no mesmo plano focal.99. Tolbert PE, Shy CM, Allen JW. Micronuclei and other nuclear anomalies in buccal smears: methods development. Mutat Res. 1992;271:69-77. A análise das lâminas foi feita de forma cega por uma única pessoa (MCO) e revisada por uma segunda pessoa (GAN); ambos os resultados foram concordantes.

Análise estatística

A variação na frequência de micronúcleos não apresentou uma distribuição normal quando analisada pelo teste de Kolmogorov-Smirnov (p = 0,0001) e as variâncias não foram homogêneas (p = 0,004) pela análise do teste de Levene. Portanto, optamos por usar o teste de Kruskal-Wallis, seguido de comparações múltiplas com o teste de Student-Newman-Keuls para determinar a significância estatística. Todos os testes estatísticos foram feitos com o nível de significância de 5%.

Resultados

As medianas dos números de micronúcleos observadas para cada grupo foram as seguintes: 1 e 0,50 para o grupo lidocaína no primeiro e quinto dias de exposição, respectivamente; 1 para o grupo mepivacaína tanto no primeiro quanto no quinto dia de exposição; 1 e 0 para o grupo articaína no primeiro e quinto dias de exposição, respectivamente; 0 para o grupo prilocaína tanto no primeiro quanto no quinto dia de exposição. No grupo exposto à ciclofosfamida (controle positivo), a mediana do número de micronúcleos foi 10. As medianas dos grupos de controle negativo para os dias um e cinco foram 1 e 0, respectivamente (p < 0,0001) (Figura 1 and Figura 2 e tabela 1).

Figura 1
Contagens de micronúcleos por grupo de estudo (mediana e intervalo interquartil). LIDO, lidocaína; MEPI, mepivacaína; ARTI, articaine; PRILO, prilocaína; CONTROLE, controle negativo; CICLO, ciclofosfamida (controle positivo); 1, exposição durante um dia; 5, exposição durante cinco dias; ?, outlier; *, O outlier do outlier; a numeração sobre o outlier corresponde à numeração dos animais.

Figura 2
Exemplos de eritrócito policromático com micronúcleos (seta maior) e eritrócito policromático normal (seta menor); o animal foi exposto à mepivacaína, durante cinco dias (coloração de Giemsa, 1000×).

Tabela 1
Mediana e intervalo interquartil da frequência de micronúcleos para cada grupo (n = 80)

O número de micronúcleos no grupo controle positivo (ciclofosfamida) diferiu significativamente daqueles observados para todos os anestésicos locais estudados, tanto no tipo de anestésico administrado quanto no tempo de exposição (p = 0,0001). No entanto, nenhuma diferença significativa foi observada no número de micronúcleos entre o grupo controle negativo e os grupos com anestésicos locais, independentemente do tipo de anestésico administrado ou do tempo de exposição (p > 0,05) (tabela 1).

Com exceção do grupo ciclofosfamida, todos os grupos foram iguais nas várias análises estatísticas. Porém, diferenças significativas nas frequências de micronúcleos foram observadas entre o grupo prilocaína no quinto dia de exposição e os seguintes grupos: lidocaína no primeiro dia de exposição (p = 0,0466), mepivacaína no primeiro (p = 0,0437) e quinto (p = 0,0460) dias de exposição e articaína no primeiro dia de exposição (p = 0,0364) (tabela 1).

Discussão

Os testes de genotoxicidade são importantes para avaliar a toxicidade celular e identificar potenciais agentes cancerígenos e mutagênicos. Várias técnicas são usadas para testar a atividade genotóxica de um agente, incluindo ensaios que determinam o coeficiente de ligação cruzada do DNA/proteína, atividade enzimática mitocondrial, proliferação celular, reparação de quebras de DNA, índice mitótico, tipo de dano sofrido, aberrações cromossômicas, não disjunção cromossômica e níveis de apoptose e necrose.88. MacGregor JT, Heddle JA, Hite M, et al. Guidelines for the conduct of micronucleus assays in mammalian bone marrow erythrocytes. Mutat Res. 1987;189:103-12. O teste de micronúcleos tem sido amplamente usado para testar a genotoxicidade de muitos produtos químicos. Os micronúcleos são facilmente visualizados em amostras de eritrócitos e são um forte indicativo de aberrações cromossômicas.66. Flores M, Yamaguchi UM. Micronucleus test: an evaluation for genotoxic screening. J Health Res. 2008;1:337-40.

O teste de micronúcleos foi relatado pela primeira vez em 1970 por Boller e Schmid e posteriormente foi usado por Heddle em 1977.1010. Evans HJ. Historical perspectives on the development of the in vitro micronucleus test: a personal view. Mutat Res. 1997;392:5-10. O micronúcleo é um núcleo adicional, separado do núcleo principal de uma célula durante a divisão celular e é composto por cromossomos inteiros ou fragmentos cromossômicos que sobram de outros cromossomos após a conclusão da mitose. Os micronúcleos resultam de mudanças estruturais espontâneas ou experimentalmente induzidas no cromossomo, ou através de erros de fusão celular. São, portanto, excluídos dos novos núcleos que são reformados em telófase.1111. Ramírez A, Saldanha PH. Análise crítica de grupos controle no teste de micronúcleo na mucosa bucal. Genet Mol Biol. 1998;21:140.

As vantagens do ensaio de micronúcleos em relação a outros testes usados para diagnosticar doenças e monitorar contaminantes ambientais incluem a análise simplista, alta sensibilidade de detecção e precisão das perdas cromossômicas e eventos de não disjunção, a capacidade de medir o comprimento e a progressão da divisão nuclear e a capacidade de detectar eventos de reparação e excisão.88. MacGregor JT, Heddle JA, Hite M, et al. Guidelines for the conduct of micronucleus assays in mammalian bone marrow erythrocytes. Mutat Res. 1987;189:103-12. Essas vantagens nos levaram a escolher o teste de micronúcleos para avaliar os efeitos genotóxicos da administração repetitiva de anestésicos locais neste estudo.

Uma desvantagem do uso de vasoconstritores em combinação com anestésicos locais fica clara com injeções intravasculares, durante as quais as concentrações elevadas e os grandes volumes podem levar à intoxicação.1212. Perusse R, Goulet JP, Turcotte JY. Contraindications to vasoconstrictors in dentistry: part I. Oral Surg Oral Med Oral Pathol. 1992;74:679-86. Portanto, o uso de vasoconstritores não é aceitável em alguns pacientes, especialmente em pessoas com diabete ou doença cardíaca ou grávidas. Nesses casos, o sal anestésico mais comumente usado na ausência de um vasoconstritor é a mepivacaína.1212. Perusse R, Goulet JP, Turcotte JY. Contraindications to vasoconstrictors in dentistry: part I. Oral Surg Oral Med Oral Pathol. 1992;74:679-86. Neste estudo, usamos mepivacaína sem um vasoconstritor. Não há relatos conhecidos na literatura que avaliam a ação genotóxica de vasoconstritores.

Prilocaína foi previamente relatada por exibir atividade genotóxica em células somáticas e induzir recombinação homóloga. No entanto, relatou-se que lidocaína e articaína (Septanest(r)) não induziram mutação cromossômica ou recombinação.1313. Schneider LE, do Amaral VS, Dihl RR, et al. Assessment of genotoxicity of lidocaine, prilonest and septanest in the drosophila Wing-Spot test. Food Chem Toxicol. 2009;47:205-8. Não houve associação entre genotoxicidade e qualquer uma das drogas analisadas neste estudo. Esses resultados estão parcialmente de acordo com a literatura, diferem apenas do relatório anterior de genotoxicidade para prilocaína.1313. Schneider LE, do Amaral VS, Dihl RR, et al. Assessment of genotoxicity of lidocaine, prilonest and septanest in the drosophila Wing-Spot test. Food Chem Toxicol. 2009;47:205-8.

Demonstrou-se que a porcentagem de células com poliploidia e endorreduplicação aumenta após a exposição ao cloridrato de procaína e cloridrato de prilocaína, tanto na presença quanto na ausência de ativação metabólica exógena.1414. Hagiwara M, Watanabe E, Barrett JC, et al. Assessment of genotoxicity of 14 chemical agents used in dental practice: ability to induce chromossome aberrations in Syrian hamster embryo cells. Mutat Res. 2006;603:111-20. Esses resultados indicam que tais agentes químicos são potencialmente genotóxicos para as células de mamífero.1414. Hagiwara M, Watanabe E, Barrett JC, et al. Assessment of genotoxicity of 14 chemical agents used in dental practice: ability to induce chromossome aberrations in Syrian hamster embryo cells. Mutat Res. 2006;603:111-20. Contudo, este estudo não mostrou ação genotóxica de prilocaína, possivelmente porque foi usada na dose recomendada por quilograma de peso.

A condensação e a fragmentação da cromatina nuclear foram previamente observadas em células tratadas com prilocaína.1515. Nakamura K, Kido H, Morimoto Y, et al. Prilocaine induces apoptosis in osteoblastic cells. Can J Anaesth. 1999;46:476-82. A fragmentação do DNA também foi induzida por tratamento com prilocaína de forma dose-dependente e tempo-dependente, com efeitos máximos observados em concentração de 5 mM após 12-48 horas de exposição.1515. Nakamura K, Kido H, Morimoto Y, et al. Prilocaine induces apoptosis in osteoblastic cells. Can J Anaesth. 1999;46:476-82. Juntamente com esse estudo, esses dados mostram que o uso de prilocaína na dose recomendada, por quilograma de peso corporal, não pode causar dano genético.

Lidocaína e prilocaína são metabolizadas principalmente no fígado e subsequentemente hidrolisadas por ésteres de amida e libertam as aminas aromáticas monocíclicas, 2,6-dimetilanilina (DMA) e 2-metilalanina (MA), respectivamente.55. Duan JD, Jeffrey AM, Williams GM. Assessment of the medicines lidocaine, prilocaine, and their metabolites, 2,6dimethylaniline and 2-methylaniline, for DNA adduct formation in rat tissues. Drug Metab Dispos J. 2008;8:1470-5. Outros anestésicos que contêm uma fração de DMA incluem bupivacaína, mepivacaína e ropivacaína.55. Duan JD, Jeffrey AM, Williams GM. Assessment of the medicines lidocaine, prilocaine, and their metabolites, 2,6dimethylaniline and 2-methylaniline, for DNA adduct formation in rat tissues. Drug Metab Dispos J. 2008;8:1470-5.

O principal mecanismo carcinogênico das aminas aromáticas, como DMA e MA, ocorre quando o citocromo P450 metaboliza esses compostos em derivados de N-hidroxila.55. Duan JD, Jeffrey AM, Williams GM. Assessment of the medicines lidocaine, prilocaine, and their metabolites, 2,6dimethylaniline and 2-methylaniline, for DNA adduct formation in rat tissues. Drug Metab Dispos J. 2008;8:1470-5. DMA e MA podem ser posteriormente metabolizadas por sua conjugação com metabólitos reativos. A lesão do DNA foi descrita para DMA, mas não para MA. Acredita-se que a formação de aductos de DNA seja o possível mecanismo pelo qual esses compostos exercem alguns de seus efeitos carcinogênicos.1616. Preston RJ, Williams GM. DNA-reactive carcinogens: mode of action and human cancer hazard. Crit Rev Toxicol. 2005;35: 673-83.

No entanto, a Agência Internacional para Pesquisa em Câncer (IARC) não relatou efeitos cancerígenos de DMA em humanos, embora não haja provas suficientes de sua carcinogenicidade em ratos.55. Duan JD, Jeffrey AM, Williams GM. Assessment of the medicines lidocaine, prilocaine, and their metabolites, 2,6dimethylaniline and 2-methylaniline, for DNA adduct formation in rat tissues. Drug Metab Dispos J. 2008;8:1470-5. Isso pode explicar o maior número de micronúcleos observados no grupo lidocaína (independentemente do tempo de exposição), em comparação com o grupo prilocaína, e a diferença significativa entre os grupos expostos à lidocaína por um dia e à prilocaína por cinco dias (p = 0,0466). Embora a frequência de micronúcleos no grupo exposto à lidocaína não tenha sido significativamente diferente daquela do grupo controlo negativo, a maior frequência de micronúcleos no grupo exposto à lidocaína (em comparação com o grupo prilocaína) pode estar associada aos efeitos da DMA, um produto metabólico da lidocaína.

Não há relatos na literatura sobre o potencial genotóxico ou mutagênico de mepivacaína. Neste estudo, mepivacaína não exibiu genotoxicidade, independentemente do tempo de exposição. No entanto, o grupo exposto à mepivacaína por um e cinco dias foi significativamente diferente do grupo exposto à prilocaína por cinco dias (p < 0,05). Mepivacaína também contém uma fração de DMA,55. Duan JD, Jeffrey AM, Williams GM. Assessment of the medicines lidocaine, prilocaine, and their metabolites, 2,6dimethylaniline and 2-methylaniline, for DNA adduct formation in rat tissues. Drug Metab Dispos J. 2008;8:1470-5. o que pode explicar o maior número de micronúcleos observado nesse grupo, embora a frequência de micronúcleos não tenha sido significativamente diferente no grupo controle negativo.

Os estudos de mutagenicidade in vitro e in vivo não revelaram qualquer potencial genotóxico da articaína (CAS 23964-58-1), até a dose máxima tolerada ser atingida. De acordo com os dados deste estudo, outra preparação de articaína (Septanest(r) SP; 4% articaína. HCl e epinefrina 1: 100.000) 1717. Leuschner J, Leblanc D. Studies on the toxicological profile of the local anaesthetic articaine. Arzneimittelforschung. 1999;49:126-32. não apresentou efeitos genotóxicos em um estudo in vivo com a dose recomendada por quilograma de peso. Embora a articaína pertença ao grupo amida de anestésicos locais (que também inclui lidocaína, prilocaína e mepivacaína), é metabolizada pela colinesterase no plasma em ácido articaínico via hidrólise. O ácido articaínico é um metabólito inativo, parcialmente metabolizado no rim em glucuronido de ácido articaínico, em vez de uma amina aromática potencialmente genotóxica. 1818. Snoeck M. Articaine: a review of its use for local and regional anesthesia. Local Reg Anesth. 2012;5:23-33. Esse resultado pode explicar parcialmente a ausência de genotoxicidade após a exposição à articaína. No entanto, o grupo exposto à articaína por um dia foi significativamente diferente do grupo exposto à prilocaína por cinco dias (p = 0,0364). Isso pode ser devido à presença de um outlier no grupo articaína, que estava bem acima da frequência média global de micronúcleos.

Conclusão

No presente estudo, não houve aumento da frequência de micronúcleos após a exposição a qualquer um dos anestésicos locais testados (lidocaína, mepivacaína, articaína e prilocaína) quando usados na dose recomendada por quilograma de peso corporal, com uma única exposição ou com administração repetitiva. No entanto, outros ensaios que avaliam a genotoxicidade e mutagenicidade devem ser feitos para determinar definitivamente que o uso repetitivo desses anestésicos não apresenta qualquer atividade mutagênica ou genotóxica.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2015

Histórico

  • Recebido
    16 Maio 2013
  • Aceito
    25 Jul 2013
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