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Nervo glúteo superior: um novo bloqueio a caminho?

Resumo

Justificativa e objetivos

O nervo glúteo superior é responsável pela inervação dos músculos glúteo médio, glúteo mínimo e tensor da fáscia lata, todos podem ser lesados durante procedimentos cirúrgicos. Descrevemos uma abordagem guiada por ultrassom para bloqueio do nervo glúteo superior, o que nos permitiu fornecer analgesia e anestesia eficientes para dois procedimentos ortopédicos a uma paciente que apresentava fatores de risco significativos para técnicas neuraxiais e bloqueios profundos de nervos periféricos.

Relato de caso

Paciente do sexo feminino, 84 anos, cujo uso regular de clopidogrel contraindicava técnicas neuraxiais ou bloqueios profundos de nervos periféricos, apresentou-se para hemiartroplastia bipolar urgente em nosso hospital. Levando em consideração a abordagem cirúrgica escolhida pela equipe de ortopedia, estabelecemos o uso de uma combinação de anestesia geral e bloqueios superficiais de nervos periféricos (femoral, cutâneo lateral da coxa e nervo glúteo superior) para o procedimento. Um mês e meio após a alta, a paciente foi readmitida para desbridamento e correção da deiscência de sutura quando fizemos os mesmos bloqueios e sedação leve. A paciente permaneceu confortável em ambos os casos, sem queixa de dor no período pós-operatório.

Conclusões

A compreensão profunda da anatomia e da inervação capacita os anestesiologistas a resolver casos potencialmente complexos com abordagens mais seguras, até criativas. A relevância desse bloqueio neste caso resulta da sua inervação do músculo glúteo médio e da porção posterolateral da articulação do quadril. De acordo com nossa pesquisa, este é o primeiro relato de um bloqueio do nervo glúteo superior guiado por ultrassom com objetivo analgésico e anestésico que foi obtido com sucesso.

PALAVRAS-CHAVE
Nervo glúteo superior; Ultrassom; Dor; Anestesia regional

Abstract

Background and objectives

The superior gluteal nerve is responsible for innervating the gluteus medius, gluteus minimus and tensor fascia latae muscles, all of which can be injured during surgical procedures. We describe an ultrasound-guided approach to block the superior gluteal nerve which allowed us to provide efficient analgesia and anesthesia for two orthopedic procedures, in a patient who had significant risk factors for neuraxial techniques and deep peripheral nerve blocks.

Clinical report

An 84-year-old female whose regular use of clopidogrel contraindicated neuraxial techniques or deep peripheral nerve blocks presented for urgent bipolar hemiarthroplasty in our hospital. Taking into consideration the surgical approach chosen by the orthopedic team, we set to use a combination of general anesthesia and superficial peripheral nerve blocks (femoral, lateral cutaneous of thigh and superior gluteal nerve) for the procedure. A month and a half post-discharge the patient was re-admitted for debriding and correction of suture dehiscence; we performed the same blocks and light sedation. She remained comfortable in both cases, and reported no pain in the post-operative period.

Conclusions

Deep understanding of anatomy and innervation empowers anesthesiologists to solve potentially complex cases with safer, albeit creative, approaches. The relevance of this block in this case arises from its innervation of the gluteus medius muscle and posterolateral portion of the hip joint. To the best of our knowledge, this is the first report of an ultrasound-guided superior gluteal nerve block with an analgesic and anesthetic goal, which was successfully achieved.

KEYWORDS
Superior gluteal nerve; Ultrasound; Pain; Regional anesthesia

Introdução

O nervo glúteo superior (NGS) é responsável pela inervação dos músculos glúteo médio, glúteo mínimo e tensor da fáscia lata, os quais podem ser lesados durante procedimentos cirúrgicos. O bloqueio individual desse nervo é redundante pelo uso de técnicas neuraxiais ou bloqueios de nervos periféricos (BNPs) profundos, como o bloqueio do plexo sacro; contudo, nem todos os pacientes podem ser submetidos a essas técnicas. Descrevemos uma abordagem guiada por ultrassom para bloquear o NGS, o que nos permitiu fornecer analgesia e anestesia de forma eficiente para dois procedimentos ortopédicos em um paciente que apresentava fatores de risco significativos para as técnicas neuraxiais e de BNPs profundos.

Relato de caso

Apresentamos o caso de uma paciente de 84 anos, 60 kg, submetida à hemiartroplastia bipolar urgente devido à fratura do fêmur (quadril) esquerdo após ter caído na enfermaria de clínica médica de nosso hospital onde era tratada de uma pneumonia adquirida na comunidade com antibiocoterapia por sete dias.

A paciente tinha antecedentes conhecidos de fibrilação atrial com resposta ventricular controlada; infarto do miocárdio em 2015, para o qual foi submetida à intervenção coronariana percutânea; insuficiência cardíaca classe II (de acordo com a classificação da NYHA); hipertensão arterial controlada; dislipidemia e depressão e fora previamente submetida à valvoplastia mitral em 1988 devido a febre reumática. Estava em tratamento regular com acenocumarol, clopidogrel, digoxina, carvedilol, ramipril, furosemida, rosuvastatina e sertralina e não tinha história de tabagismo ou abuso de álcool ou alergias conhecidas. Era previamente independente para a prática de suas atividades diárias.

Seus exames pré-operatórios não apresentaram achados relevantes, exceto por infiltrados pulmonares bilaterais discretos em sua radiografia de tórax. O nível de hemoglobina era de 13,9 g.dL-1, plaquetas de 335.000 por µ.L-1

e o estado de coagulação foi imediatamente corrigido com vitamina K. Um ecocardiograma transtorácico feito após o episódio de infarto mostrou estenose mitral moderada e regurgitação mitral leve com dilatação atrial grave, critérios limítrofes para hipertensão pulmonar, regurgitação tricúspide moderada, fração de ejeção do ventrículo esquerdo preservada e função ventricular direita diminuída.

Após discutir os riscos e o plano cirúrgico com a equipe ortopédica e a paciente, obtivemos seu consentimento. Visto que as técnicas neuraxiais ou de BNPs profundos eram contraindicadas devido ao uso regular de clopidogrel, o nosso plano anestésico consistiu em uma combinação de bloqueio de nervos periféricos superficiais e anestesia geral. A paciente foi monitorada de acordo com as normas de monitoração da Sociedade Americana de Anestesiologistas. Seus sinais vitais eram: PA de 150/92 mmHg e FC de 88 bpm. Fizemos um bloqueio do nervo cutâneo femoral e lateral da coxa, com uma agulha de 80 mm e calibre 21G (Stimuplex® Ultra 22 gauge, B. Braun, Melsungen, Alemanha), guiado por ultrassom (Venue 40 Ultrasound, GE Healthcare, com transdutor linear de banda larga de 5-13 MHz) e abordagem em plano, totalizando 15 mL de ropivacaína a 0,5%.

A equipe cirúrgica optou por uma abordagem lateral (Hardinge), que envolve a incisão da fáscia lata e do músculo glúteo médio, 5 cm proximal ao grande trocanter, que se estende caudalmente pela linha do fêmur. Para obter a analgesia adequada para essas incisões fizemos o bloqueio do NGS com 10 mL de ropivacaína a 0,375%, com o mesmo equipamento. Posicionamos sonda em um plano transverso, caudalmente à crista ilíaca e cefalicamente ao trocanter maior, e identificamos o plano fascial entre o glúteo médio e mínimo (onde passa o NGS) como nosso ponto-alvo de injeção. Usamos uma abordagem em plano, de lateral para medial.

Após o bloqueio, a indução anestésica foi feita sem intercorrências com 75 µg de fentanil e 60 mg de propofol. A anestesia geral foi mantida sob ventilação espontânea via máscara laríngea número 3 a 0,5 CAM de sevoflurano e uma mistura de O2/ar (40/60). Os valores do BIS foram mantidos em torno de 50 durante todo o procedimento. O procedimento durou 90 minutos, durante os quais a paciente esteve hemodinamicamente estável (PA em torno de 120/70 mmHg e FC em torno de 70 bpm). A produção urinária permaneceu bem acima de 1 mL.kg-1.h-1. A profilaxia pós-operatória de náuseas e vômitos foi assegurada com 4 mg de dexametasona e a analgesia adicional consistiu em apenas 1 g de paracetamol. Após emergir da anestesia e nos dias seguintes, a paciente não relatou dor em repouso ou movimento ou efeitos colaterais. Paracetamol (1 g) e tramadol (100 mg) foram prescritos a cada 8 horas para os dias seguintes.

A recuperação pós-cirúrgica foi complicada por bacteremia de Staphylococcus aureus resistente à meticilina e deiscência completa da ferida cirúrgica, que foram tratadas com sucesso com antibioticoterapia e terapia de pressão negativa. A paciente recebeu alta 44 dias após a cirurgia, capaz de retomar imediatamente a sua vida normal.

Um mês e meio após a alta, a paciente foi readmitida para desbridamento e correção da deiscência de sutura. Como a previsão era de um procedimento simples, mais uma vez obtivemos o consentimento da paciente e refizemos o BNPs mencionado acima com uma mistura de mepivacaína a 1,5% (15 mL) e ropivacaína a 0,375% (10 mL). A paciente permaneceu confortável com apenas sedação leve (30 mg de propofol ao longo do procedimento de uma hora) e não relatou dor durante a cirurgia ou no dia seguinte, quando recebeu alta hospitalar. Não houve eventos notáveis durante os períodos intraoperatório e pós-operatório.

Discussão

Os BNPs profundos guiados por ultrassom têm se tornado uma opção cada vez mais popular para analgesia e anestesia, especialmente em idosos cujas comorbidades podem representar ameaças significativas à sua segurança. A traumatologia em particular desafia os anestesiologistas a aprimorar os pacientes e encontrar soluções dentro de um prazo limitado para benefício máximo do paciente. Não obstante esses fatos, a proficiência em BNP exige mais do que o reconhecimento de imagem e a coordenação agulha-olho: a compreensão abrangente da anatomia e inervação da pele, músculos e ossos capacita o anestesiologista para resolver casos potencialmente complexos com abordagens que, mesmo criativas, são mais seguras.

Neste caso, o bloqueio do NGS permitiu a incisão indolor do músculo glúteo médio em duas circunstâncias diferentes, sem recorrer a abordagens neuraxiais ou BNPs profundos em uma paciente sob terapia antiplaquetária, o que representa uma excelente opção para o controle da dor e manejo anestésico seguro de uma paciente com comorbidades significativas.

O NGS surge do plexo sacral e tem sua origem nos ramos dorsais de L4, L5 e S1; após descer pelo grande forame ciático, passa sobre os piriformes e entre os glúteos médio e mínimo, fornece ramos para esses músculos antes de atingir o tensor da fáscia lata, que também é inervado.11 Standring S. Gray's anatomy: the anatomical basis of clinical practice. 41st ed. London: Elsevier; 2016. p. 1324-74. Esses músculos trabalham para abduzir concentricamente a coxa, estabilizar a posição do quadril e manter a posição pélvica horizontal durante o posicionamento em uma única perna.22 Kendall KD, Patel C, Wiley JP, et al. Steps toward the validation of the Trendelenburg test: the effect of experimentally reduced hip abductor muscle function on frontal plane mechanics. Clin J Sport Med. 2013;23:45-51. Algumas referências também mencionam uma contribuição para a seção posterolateral da cápsula da articulação do quadril.11 Standring S. Gray's anatomy: the anatomical basis of clinical practice. 41st ed. London: Elsevier; 2016. p. 1324-74.,33 Birnbaum K, Prescher A, Hebler S, et al. The sensory innervation of the hip joint - an anatomical study. Surg Radiol Anat. 1997;19:371-5. O NGS não inerva estruturas cutâneas ou ósseas.

Caso a equipe cirúrgica tivesse optado pela abordagem pósterolateral mais comum (Moore ou Southern), o músculo glúteo médio teria sido poupado (em vez do músculo glúteo máximo, que é inervado pelo nervo glúteo inferior). Ambas as abordagens envolvem uma incisão cutânea da face lateral da coxa (coberta pelo nervo cutâneo lateral da coxa, desde que a incisão não seja tão cefálica que afete o território do nervo subcostal) e a dissecção do músculo vasto lateral (coberto pelo nervo femoral). A inervação da cápsula articular do quadril ainda é controversa, o que significa que é difícil detalhar o papel de cada nervo; porém, como mencionado acima, o NGS pode contribuir para a seção posterolateral.33 Birnbaum K, Prescher A, Hebler S, et al. The sensory innervation of the hip joint - an anatomical study. Surg Radiol Anat. 1997;19:371-5.

Para localizar o NGS, a sonda foi posicionada em um plano transverso, caudalmente à crista ilíaca e cefalicamente ao trocanter maior (fig. 1). Essas referências correspondem à origem e inserção do músculo glúteo médio, respectivamente. Superficialmente ao osso ilíaco, os músculos glúteo, médio e mínimo são identificáveis (fig. 2). O nervo passa pelo interior do plano fascial entre eles e é acompanhado pela artéria glútea superior. A pulsação dessa artéria pode ajudar na identificação correta do ponto-alvo da injeção, mas também deve ser uma fonte de preocupação em termos de segurança. Além disso, devemos estar atentos porque uma lesão permanente do NGS poderia comprometer a função dos glúteos médio e mínimo e do tensor da fáscia lata e causar a marcha de Trendelenburg.

Figura 1
Posição da sonda para o bloqueio do NGS. Com a paciente em decúbito lateral, posicionar a sonda em um plano transverso, caudalmente à crista ilíaca e cefalicamente ao trocanter maior.

Figura 2
Sonoanatomia do NGS (GMax: músculo glúteo máximo; GMed: músculo glúteo médio; GMin: músculo glúteo mínimo). A seta aponta para o plano fascial entre GMed e Gmin, onde pode ser observado o nervo glúteo superior hiperecoico e a artéria glútea superior pulsante.

De acordo com nossa pesquisa, este é o primeiro relato de bloqueio do NGS guiado por ultrassom com objetivo analgésico e anestésico. Há alguns poucos relatos de bloqueio desse nervo para dor crônica (neuralgia glútea superior). À medida que o conhecimento da anatomia e da sonoanatomia prospera dentro da comunidade médica, espera-se que novos bloqueios sejam descritos e que, consequentemente, as práticas anestésicas evoluam e mudem.

References

  • 1
    Standring S. Gray's anatomy: the anatomical basis of clinical practice. 41st ed. London: Elsevier; 2016. p. 1324-74.
  • 2
    Kendall KD, Patel C, Wiley JP, et al. Steps toward the validation of the Trendelenburg test: the effect of experimentally reduced hip abductor muscle function on frontal plane mechanics. Clin J Sport Med. 2013;23:45-51.
  • 3
    Birnbaum K, Prescher A, Hebler S, et al. The sensory innervation of the hip joint - an anatomical study. Surg Radiol Anat. 1997;19:371-5.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    8 Jul 2016
  • Aceito
    25 Nov 2016
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