Acessibilidade / Reportar erro

Trombose venosa cerebral após raquianestesia: relato de caso CET do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba, MG, Brasil.

Resumo

Introdução:

A trombose venosa cerebral (TVC) é uma complicação rara, mas grave, após raquianestesia. Está frequentemente relacionada com a presença de fatores predisponentes, como gestação, puerpério, uso de contraceptivos orais e doenças malignas. O sintoma mais frequente é a cefaleia. Descrevemos um caso de um paciente submetido à raquianestesia que apresentou cefaleia no período pós-operatório complicada com TVC.

Relato de caso:

Paciente de 30 anos, ASA 1, submetido à cirurgia de artroscopia de joelho sob raquianestesia, sem intercorrências. Quarenta e oito horas após o procedimento apresentou cefaleia frontal, ortostática, que melhorava com o decúbito. Foi feito diagnóstico de sinusite em pronto socorro geral e recebeu medicação sintomática. Nos dias subsequentes teve pioria da cefaleia, que passou a ter localização holocraniana e mais intensa e com pequena melhora com o decúbito dorsal. Evoluiu com hemiplegia esquerda seguida de convulsões tônico-clônicas generalizadas. Foi submetido à ressonância magnética com venografia que fez o diagnóstico de TVC. A pesquisa para fatores pró-coagulantes identificou a presença de anticorpo lúpico. Recebeu como medicamentos anticonvulsivantes e anticoagulantes e teve alta hospitalar em oito dias, sem sequelas.

Discussão:

Qualquer paciente que apresente cefaleia postural após uma raquianestesia, e que intensifica após um platô, perca sua característica ortostática ou se torne muito prolongada, deve ser submetido a exames de imagem para excluir complicações mais sérias como a TVC. A perda de líquido cefalorraquidiano leva à dilatação e à estase venosa, que, associadas à tração provocada pela posição ereta, podem, em alguns pacientes com estados protrombóticos, levar à TVC.

PALAVRAS-CHAVE
Raquianestesia; Complicações cefaleia pós-punção da dura-máter; Trombose venosa cerebral

Abstract

Introduction

Cerebral venous thrombosis (CVT) is a rare but serious complication after spinal anesthesia. It is often related to the presence of predisposing factors, such as pregnancy, puerperium, oral contraceptive use, and malignancies. Headache is the most common symptom. We describe a case of a patient who underwent spinal anesthesia and had postoperative headache complicated with CVT.

Case report

Male patient, 30 years old, ASA 1, who underwent uneventful arthroscopic knee surgery under spinal anesthesia. Forty-eight hours after the procedure, the patient showed frontal, orthostatic headache that improved when positioned supine. Diagnosis of sinusitis was made in the general emergency room, and he received symptomatic medication. In subsequent days, the headache worsened with holocranial location and with little improvement in the supine position. The patient presented with left hemiplegia followed by tonic-clonic seizures. He underwent magnetic resonance venography; diagnosed with CVT. Analysis of procoagulant factors identified the presence of lupus anticoagulant antibody. The patient received anticonvulsants and anticoagulants and was discharged on the eighth day without sequelae.

Discussion

Any patient presenting with postural headache after spinal anesthesia, which intensifies after a plateau, loses its orthostatic characteristic or become too long, should undergo imaging tests to rule out more serious complications, such as CVT. The loss of cerebrospinal fluid leads to dilation and venous stasis that, coupled with the traction caused by the upright position, can lead to CVT in some patients with prothrombotic conditions.

KEYWORDS
Spinal anesthesia; Complications post-dural puncture headache; Cerebral venous thrombosis

Introdução

Desde o primeiro caso relatado por August Bier em 1898,11 Davignon KR, Dennehy KC. Update on postdural puncture headache. Int Anesthesiol Clin. 2002;40:89-102. a cefaleia pós-punção tem sido um problema para os pacientes submetidos à punção dural. Na descrição clássica, a cefaleia pós-punção da dura-máter (CPPD) é de localização frontal ou occipital, piora com a posição ereta e essencialmente melhora ou desaparece com o decúbito dorsal. O início e a duração dos sintomas da CPPD podem ser extremamente variáveis, mas na maioria dos casos ocorrem dentro das primeiras 48 horas após a punção, tem um caráter autolimitado, durando somente alguns dias. Em alguns casos pode estar associada a náuseas e vômitos.11 Davignon KR, Dennehy KC. Update on postdural puncture headache. Int Anesthesiol Clin. 2002;40:89-102. Várias causas têm sido associadas ao surgimento da CPPD, principalmente o calibre e o desenho da ponta da agulha usada. Mas, mesmo com as agulhas de pequeno calibre e em mãos experientes, a CPPD ainda apresenta uma incidência de 0,16% a 1,3%.22 Turnbull DK, Shepherd DB. Post-dural puncture headache: pathogenesis, prevention, and treatment. Br J Anaesth. 2003;91:718-29.

Embora a descrição clássica da CPPD tenha uma evolução benigna, ela nem sempre tem esse desfecho favorável, pois pode ser um sintoma associado a complicações mais graves, apesar de mais raras. Dentre tais complicações, a trombose venosa cerebral (TVC) ocupa lugar de destaque e pode ser um desafio diagnóstico quando associada à punção lombar.

O objetivo deste artigo é relatar o caso de um paciente que apresentou um quadro de TVC após uma raquianestesia para cirurgia ortopédica.

Relato de caso

Paciente de 30 anos, 82 kg, 1,71 m, bombeiro, previamente sadio, proposta cirurgia de artroscopia unilateral de joelho. Apresentava antecedente de cirurgia para apendicite aos 14 anos e procedimento otorrinolaringológico havia três anos, com anestesia geral e sem intercorrências. Não apresentava comorbidade e o exame físico era normal. Foi classificado como ASA 1 e submetido à raquianestesia, feita em L3-4 com agulha ponta Quincke 27. Foi administrada bupivacaína 0,5% hiperbárica (15 mg). A artroscopia de joelho foi feita com garroteamento do membro inferior em nível da coxa com uma pressão de insuflação de 380 mmHg, durante 40 minutos. O procedimento durou cerca de uma hora, sem intercorrências. Recebeu como medicações midazolam (5 mg), cefazolina (1 g), ondansentrona (4 mg), dipirona (2 g) e cetroprofeno (100 mg). Após a intervenção cirúrgica o paciente foi levado para a sala de recuperação pós-anestésica e em seguida para a enfermaria e recebeu alta hospitalar no mesmo dia.

Quarenta e oito horas após o procedimento o paciente apresentou cefaleia frontal direita, de forte intensidade, de caráter ortostático, que melhorava com o repouso. Essa evoluiu em um período de 12 horas para cefaleia holocraniana, considerada nível de intensidade 10, em uma escala de zero a 10 (zero para a ausência de dor e 10 para uma dor insuportável), principalmente em posição ortostática. Em decúbito dorsal ainda referia dor, considerada de intensidade 5, na mesma escala citada anteriormente. Além da cefaleia, ainda referiu sensação de ouvido obstruído. Procurou atendimento médico em pronto-socorro, onde foi feito diagnóstico de sinusite. O paciente foi medicado com antibiótico, anti-inflamatório e antialérgico. No quarto dia pós-operatório apresentou quadro de parestesia no braço esquerdo, que evoluiu para hemiparesia grau III em todo o dimídeo esquerdo. No dia seguinte (quinto dia pós-operatório), apresentou episódio de crise convulsiva tônico-clônica generalizada, recebeu atendimento inicial pelo Samu e foi conduzido ao hospital, onde na chegada apresentou novo episódio convulsivo generalizado, com mioclonias. Foi internado na Unidade de Terapia Intensiva, onde foi medicado com anticonvulsivantes e submetido a estudo imagenológico. Tomografia computadorizada (CT) de crânio demonstrou pequena hipodensidade frontal direita e ressonância magnética (RM) encefálica com venografia contrastada evidenciou edema vasogênico associado à trombose aguda das veias corticais superficiais na convexidade frontal direita (fig. 1A, 1 B e 1 C). Com tal diagnóstico foi iniciado tratamento específico, com anticoagulação plena.

Figura 1
Estudo imagenológico do caso. A, B e C são exames feitos no dia de início do quadro clínico e D exame controle feito após 10 dias. A, CT de crânio sem contraste com discreta hipodensidade em lobo frontal direito. B, RM de encéfalo Flair que demonstra edema vasogênico na topografia do giro pré-central direito. C, Angio-RM que demonstra trombose aguda de veias corticais superficiais na convexidade frontal direita. D, CT de crânio sem contraste com hipodensidade em lobo frontal direito, que caracteriza melhor definição da lesão em relação à CT de crânio inicial.

Após diagnóstico e tratamento do caso em questão, pesquisa detalhada de antecedentes familiares revelou história familiar positiva para eventos trombóticos. O pai do paciente apresentou episódio de isquemia cerebral e dois tios apresentaram trombose venosa profunda. Pesquisa laboratorial do paciente em questão evidenciou hiperlipidemia (colesterol total de 331 mg/dL e triglicérides de 414 mg/dL) e pesquisa para fatores pró-coagulantes revelou aumento do anticoagulante lúpico - teste de triagem 1,24 (nl < 1,15) e teste confirmatório de 1,46 (VN < 1,21), com confirmação da presença do inibidor inespecífico - anticoagulante lúpico.

O paciente recebeu alta hospitalar após oito dias de internação, em uso de droga anticonvulsivante (difenil-hidantoína) e anticoagulante oral. Após 10 dias do evento ictal foi submetido à CT de crânio controle, que evidenciou área hipodensa frontal direita e caracterizou melhor delimitação da lesão isquêmica subaguda, com regressão do edema (fig. 1D).

Três meses após o evento o paciente referiu alterações comportamentais tipo ciclotímicas, com episódios de euforia alternados com períodos de depressão. Nenhum déficit motor permaneceu.

Discussão

As revisões publicadas em que há concomitância entre a CPPD e a TVC são em número limitado, o que impede o conhecimento da verdadeira incidência dessa complicação. Além disso, soma-se ainda o fato de que muitos casos sequer são diagnosticados e muito menos relatados. Uma maior conscientização da TVC, a partir de relatos como este, pode permitir maior identificação dos pacientes com alto risco e tratamento mais precoce.

Neste trabalho descreve-se um caso de TVC após punção lombar para raquianestesia em um paciente previamente sadio. O surgimento de sinais e sintomas no segundo dia pós-operatório, caracterizados por cefaleia de característica ortostática, leva ao diagnóstico de CPPD. No entanto, duas características chamam a atenção nesse paciente, como a intensidade da cefaleia e a mudança na localização, que passou da topografia frontal para a holocraniana. A história prévia de sinusite mascarou a suspeita clínica de outra complicação e somente o aparecimento de sinais de alerta, como os déficits motores e as crises convulsivas, levaram à suspeição de um acometimento mais grave.

O paciente em questão não apresentava condições predisponentes que pudessem ajudar no diagnóstico de TVC. Essa é uma condição rara com múltiplas causas ou fatores de risco, tais como uso de contraceptivos orais e outras drogas, infecções, doenças malignas e inflamatórias, período pós-parto e trombofilia congênita.33 Karcia A, Boyaci F, Yaka E, et al. Cerebral venous thrombosis initially considered as a complication of spinal-epidural anaesthesia. J Int Med Res. 2005;33:711-4.,44 Barrett J, Alves E. Postpartum cerebral venous sinus thrombosis after dural puncture and epidural blood patch. J Emerg Med. 2005;28:341-2. Poucos casos de TVC foram descritos após a punção dural para anestesia raquidiana ou peridural,55 Kayim YO, Balaban H, Cil G, et al. Isolated cortical vein thrombosis after epidural anesthesia: report of three cases. Int J Neurosci. 2010;120:447-50. mielografia, administração intratecal de drogas ou para diagnóstico.66 Ferrante E, Spreafico C, Regna-Gladin C, et al. Cerebral venous thrombosis complicating lumbar puncture. Headache. 2009;49:276-7. Os casos de TVC relatados na literatura após anestesia regional são raros e geralmente estão associados ao período pós-parto.66 Ferrante E, Spreafico C, Regna-Gladin C, et al. Cerebral venous thrombosis complicating lumbar puncture. Headache. 2009;49:276-7.

Naturalmente, há um dilema para o clínico que atende um paciente com cefaleia após uma raquianestesia, pois sem dúvida o primeiro diagnóstico será o de CPPD. No caso em questão, cita-se como fator de complicação a sobreposição de outro diagnóstico, o de sinusite, como fator causal da cefaleia, embora sinusite aguda seja uma causa incomum de cefaleia com as características apresentadas.77 Marmura MJ, Silberstein SD. Headaches caused by nasal and paranasal sinus disease. Neurol Clin. 2012;32:507-23.

A TVC apresenta-se com uma ampla e notável variedade semiológica. Podem estar presentes cefaleia contínua relacionada ao ortostatismo, vertigens, náuseas, vômitos, turvação visual, sinais motores, crises convulsivas, rebaixamento do nível de consciência e coma. A cefaleia é o sintoma mais frequente88 Stam J. Thrombosis of the cerebral veins and sinuses. N Engl J Med. 2005;352:1791-8.,99 Timóteo A, Inácio N, Machado S, et al. Headache as the sole presentation of cerebral venous thrombosis: a prospective study. J Headache Pain. 2012;13:487-90. e pode simular a própria CPPD,1010 Can OS, Yilmaz AA, Gurcan E, et al. Is post-partum headache after epidural anaesthesia always innocent? Eur J Anaesthesiol. 2008;25:697-700. hemorragia cerebral ou uma cefaleia do tipo migrânea.1111 Bousser MG. Cerebral venous thrombosis: diagnosis and management. J Neurol. 2000;247:252-8.,1212 Todorov L, Laurito CE, Schwartz DE. Postural headache in the presence of cerebral venous sinus thrombosis. Anesth Analg. 2005;101:1499-500. A apresentação específica depende da localização e da extensão da trombose, do grau da circulação venosa colateral em torno da trombose e da presença de lesões corticais associadas.1313 Cantu C, Barinagarrementeria F. Cerebral venous thrombosis associated with pregnancy and puerperium: review of 67 cases. Stroke. 1993;24:1880-4. A trombose de uma veia cortical isolada pode gerar déficits focais motores ou sensoriais, enquanto que um trombo extenso em um grande seio venoso provocará semiologia neurológica mais generalizada. Estão inclusos cefaleia, sinais de hipertensão intracraniana, convulsões e coma.1414 Masuhr F, Mehraein S, Einhaupl K. Cerebral venous and sinus thrombosis. J Neurol. 2004;251:11-23. Além disso, os sinais e sintomas podem ser intermitentes, quando ocorrem trombose e fibrinólise simultaneamente, que levam a flutuações na circulação em torno dos vasos trombosados e na pressão intracraniana.1414 Masuhr F, Mehraein S, Einhaupl K. Cerebral venous and sinus thrombosis. J Neurol. 2004;251:11-23.

Em termos epidemiológicos a TVC é mais comum em mulheres, entre 20 e 35 anos, e parece não haver predomínio étnico. É amplamente aceito que a frequência de TVC é muito maior em parturientes em relação à população geral, e responde por 34% dos casos relatados na literatura.1414 Masuhr F, Mehraein S, Einhaupl K. Cerebral venous and sinus thrombosis. J Neurol. 2004;251:11-23. Geralmente é de início agudo durante a gravidez e na grande maioria dos casos ocorre no período pós-parto. Quando relacionada ao período pós-parto, a TVC pode ter um início agudo ou mais prolongado. A congestão venosa e o dano ao endotélio vascular, que podem ser secundários ao trabalho de parto e ao período expulsivo, em combinação como o estado de hipercoagulabilidade típico do período pós-parto, poderiam contribuir para o aumento do risco após o nascimento.1515 Ameri A, Bousser MG. Cerebral venous thrombosis. Neurol Clin. 1992;10:87-111.

16 Halpern JP, Morris JG, Driscoll GL. Anticoagulants and cerebral venous thrombosis. Aust N Z J Med. 1984;14:643-8.
-1717 Lamy C, Sharshar T, Mas JL. Cerebrovascular diseases in puerperium. Rev Neurol. 1996;152:422-40.

Embora apresente um predomínio em parturientes, a TVC também pode acometer outros pacientes. Em revisão feita por Mahesh et al.1818 Mahesh PK, Thomas B, Sylaja PN. Cerebral venous thrombosis in post-lumbar puncture intracranial hypotension: case report and review of literature. F1000 Res. 2014;3:41-6. foram analisados 52 casos de TVC que ocorreram após punção lombar. Os casos foram divididos em um grupo de pacientes obstétricas (34,06% dos casos), um segundo grupo de pacientes que se submeteram à punção lombar diagnóstica e um terceiro grupo de pacientes que tiveram a punção para anestesia ou para injeção de medicamentos. Nas pacientes obstétricas, 72,2% delas apresentaram cefaleia postural como primeiro sintoma e foi observada alteração no padrão da cefaleia em cerca de 50% das pacientes. A maioria dessas apresentou predisposição pró-trombótica ou história prévia de uso de contraceptivos orais. Os pacientes dos dois grupos não obstétricos cursaram com cefaleia postural em quase 100% dos casos, com alteração do padrão em 77% do grupo que fez a punção para diagnóstico e em 40% daqueles que foram submetidos à punção para anestesia ou para injeção de medicamentos. Doenças desmielinizantes foram observadas em 82% do grupo de punção para diagnóstico e estados pró-trombóticos em 66% dos pacientes submetidos à anestesia.

Desde a descrição inicial da associação entre punção lombar e TVC por Schou e Scherb1919 Schou J, Scherb M. Postoperative sagittal sinus thrombosis after spinal anesthesia. Anesth Analg. 1986;65:541-2. em 1986, tem havido um debate constante da relação causal entre a punção lombar e a TVC: se há associação entre os dois eventos ou se se trata de mera coincidência. Entretanto, ao longo das últimas duas décadas, há grandes evidências que sugerem causalidade, segundo a qual a punção lombar por si só pode desencadear a TVC.2020 Canhao P, Batista P, Falcao F. Lumbar puncture and dural sinus thrombosis - a causal or casual association?. Cerebrovasc Dis. 2005;19:53-6. Apesar disso, na maioria dos casos reportados estão presentes outros fatores de risco para a TVC, que levam ainda a alguma dúvida sobre o real papel exclusivo da punção lombar na gênese da TVC.

A patogênese da TVC induzida pela punção lombar pode ser explicada pela doutrina de Monro-Kellie. Tal teoria sugere o crânio como uma estrutura rígida, em que os componentes intracranianos, o tecido cerebral, o sangue, e o líquido cefalorraquidiano (LCR) estão num estado de equilíbrio pressórico. Em estados patológicos, uma redução ou um aumento de um desses elementos levará compensatoriamente à alteração no volume dos outros dois, de modo que o conteúdo intracraniano mantém-se constante. No caso específico da punção lombar, quando ocorre hipotensão liquórica, o volume do LCR e a pressão desse são reduzidos significativamente. Como consequência, ocorrerá um aumento do volume sanguíneo principalmente no compartimento venoso, à custa de estase e dilatação dos seios venosos durais e das veias corticais. Essa alteração ocorre marcadamente na paquimeninge (dura-máter) e como essa não tem barreira hematoencefálica, tal fato explicaria o extravasamento de contraste num exame de imagem para diagnóstico.1919 Schou J, Scherb M. Postoperative sagittal sinus thrombosis after spinal anesthesia. Anesth Analg. 1986;65:541-2. Com a redução do volume do LCR ocorrerá uma descida relativa e tração do encéfalo como um todo, concomitante à distorção e ao alongamento das veias durais e corticais. Tais alterações acabarão por lesar a parede vascular. Todas essas alterações descritas são agravadas pela posição ereta, ocasião em que há dilatação aguda das veias, assim como estiramento de suas paredes.1919 Schou J, Scherb M. Postoperative sagittal sinus thrombosis after spinal anesthesia. Anesth Analg. 1986;65:541-2. O fenômeno descrito vai ao encontro da teoria de Virchow, segundo a qual as três causas principais para o surgimento da trombose seriam, a estase sanguínea e a alteração na parede dos vasos e na composição do sangue.1919 Schou J, Scherb M. Postoperative sagittal sinus thrombosis after spinal anesthesia. Anesth Analg. 1986;65:541-2.,2020 Canhao P, Batista P, Falcao F. Lumbar puncture and dural sinus thrombosis - a causal or casual association?. Cerebrovasc Dis. 2005;19:53-6.

Tais fenômenos fisiopatológicos acima descritos acabam por criar um ciclo vicioso, pois a trombose das veias corticais ou do seio longitudinal superior leva a um decréscimo da drenagem venosa, o que reduz a absorção do LCR pelas vilosidades aracnoideas, o que aumenta ainda mais a pressão intracraniana. Simultaneamente, a estase venosa leva à estase arterial e ao infarto cerebral focal. Isso desencadeia sinais e sintomas como cefaleia severa, náuseas, sinais neurológicos focais, convulsões e alterações da consciência. A ocorrência de hematoma subdural e hemorragia intracraniana após punção lombar relaciona-se ao mesmo mecanismo fisiopatogênico.22 Turnbull DK, Shepherd DB. Post-dural puncture headache: pathogenesis, prevention, and treatment. Br J Anaesth. 2003;91:718-29.,2121 Zeidan A, Farhat O, Maaliki H, et al. Does postdural puncture headache left untreated lead to subdural hematoma? Case report and review of the literature. Int J Obstet Anesth. 2006;15:50-8.

O volume de LCR extravasado através do orifício feito pela agulha de punção é o responsável pela venodilatação secundária. No entanto, tal dilatação não se correlaciona diretamente com o volume perdido. Dentro desse contexto, Grant et al.,2222 Grant R, Condon B, Hart I, et al. Changes in intracranial CSF volume after lumbar puncture and their relationship to post-LPheadache. J Neurol Neurosurg Psychiatry. 1991;54:440-2. em um estudo com ressonância magnética, demonstraram que mesmo pequenos volumes de LCR, de cerca de 1,8 ml, que são perdidos após uma punção lombar, são suficientes para levar à CPPD. Além disso, Ghaleb et al.2323 Ghaleb A, Khorasani A, Mangar D. Post-dural puncture headache. Int J Gen Med. 2012;5:45-51. descreveram que uma perda de 10% do volume de LCR é capaz de desencadear cefaleia.

Para reforçar a hipótese da relação entre a punção lombar e o aparecimento de trombose cerebral, Canhão et al.2020 Canhao P, Batista P, Falcao F. Lumbar puncture and dural sinus thrombosis - a causal or casual association?. Cerebrovasc Dis. 2005;19:53-6. usaram o Doppler transcraniano em 13 pacientes, nos quais foi registrada a média da velocidade do fluxo sanguíneo no seio reto antes, durante e após uma punção lombar. O estudo demonstrou redução na velocidade do fluxo sanguíneo de aproximadamente 50% no seio reto após a punção lombar. Essa redução na velocidade do fluxo seria secundária à redução da pressão intracraniana induzida pelo decréscimo liquórico.2020 Canhao P, Batista P, Falcao F. Lumbar puncture and dural sinus thrombosis - a causal or casual association?. Cerebrovasc Dis. 2005;19:53-6.

É bem aceito que múltiplos fatores de risco são frequentemente encontrados no mesmo paciente com TVC. De fato, tem sido demonstrada na literatura a associação com doença maligna, trombofilia, estados pós-parto, uso de contraceptivos orais e injeção intratecal de esteroides ou citostáticos. Em tais pacientes a punção lombar tem sido um dos fatores precipitantes da TVC pelo mecanismo descrito por Canhão e cols.2424 Connor SEJ, Jarosz JM. Magnetic resonance imaging of cerebral venous sinus thrombosis. Clin Radiol. 2002;57:449-61. Consequentemente, frente a um caso de TVC após punção lombar, outros fatores de risco para trombose venosa devem ser investigados, como diagnosticado no paciente aqui descrito, um estado pró-trombótico pela presença do anticorpo lúpico.

Exames de neuroimagem são necessários para confirmar o diagnóstico de TVC. A tomografia computadorizada fecha o diagnóstico em apenas 30% dos casos.1111 Bousser MG. Cerebral venous thrombosis: diagnosis and management. J Neurol. 2000;247:252-8. A ressonância magnética associada à venografia é o método considerado padrão para o diagnóstico final, com sensibilidade próxima de 100%.2424 Connor SEJ, Jarosz JM. Magnetic resonance imaging of cerebral venous sinus thrombosis. Clin Radiol. 2002;57:449-61.

O tratamento da TVC é primariamente não invasivo, embora a trombólise endovascular e a trombectomia cirúrgica sejam consideradas em casos graves.2525 Philips MF, Bagley LJ, Sinson GP, et al. Endovascular thrombolysis for symptomatic cerebral venous thrombosis. J Neurosurg. 1999;90:65-71.,2626 Weatherby SJ, Edwards NC, West R, et al. Good outcome in early pregnancy following direct thrombolysis for cerebral venous sinus thrombosis. J Neurol. 2003;250:1372-3. A anticoagulação é o tratamento de escolha, mas as indicações para o seu uso permanecem um tanto controversas, pois aproximadamente 50% dos casos são associados com infarto cerebral hemorrágico.2727 Bruijn SF, Stam J. Randomized, placebo-controlled trial of anticoagulant treatment with low-molecular-weight heparin for cerebral sinus thrombosis. Stroke. 1999;30:484-8.

Em termos prognósticos, a evolução clínica da TVC é imprevisível e frequentemente há pioria do quadro após o diagnóstico. Alterações na consciência, coma e hemorragia intracraniana são preditores importantes de evolução desfavorável.2828 Masuhr F, Mehraein S, Einhaupl K. Cerebral venous and sinus thrombosis. J Neurol. 2004;51:11-23.

Assim, conclui-se que complicações maiores após anestesia regional são raras, mas podem ser devastadoras para o anestesiologista e, sobretudo, para o paciente. Embora a maioria dos casos de CPPD evolua satisfatoriamente, ela não deve ser negligenciada, pois, em se tratando de TVC, tal achado semiológico está presente em cerca de 90% dos casos e pode ser a única manifestação em 10%. Nessas ocasiões há um considerável potencial para morbidade e mesmo óbito. Portanto, a atenção deve ser redobrada quando a cefaleia muda a sua característica postural e quando o paciente apresenta fatores de risco para a trombose venosa.

  • CET do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba, MG, Brasil.

References

  • 1
    Davignon KR, Dennehy KC. Update on postdural puncture headache. Int Anesthesiol Clin. 2002;40:89-102.
  • 2
    Turnbull DK, Shepherd DB. Post-dural puncture headache: pathogenesis, prevention, and treatment. Br J Anaesth. 2003;91:718-29.
  • 3
    Karcia A, Boyaci F, Yaka E, et al. Cerebral venous thrombosis initially considered as a complication of spinal-epidural anaesthesia. J Int Med Res. 2005;33:711-4.
  • 4
    Barrett J, Alves E. Postpartum cerebral venous sinus thrombosis after dural puncture and epidural blood patch. J Emerg Med. 2005;28:341-2.
  • 5
    Kayim YO, Balaban H, Cil G, et al. Isolated cortical vein thrombosis after epidural anesthesia: report of three cases. Int J Neurosci. 2010;120:447-50.
  • 6
    Ferrante E, Spreafico C, Regna-Gladin C, et al. Cerebral venous thrombosis complicating lumbar puncture. Headache. 2009;49:276-7.
  • 7
    Marmura MJ, Silberstein SD. Headaches caused by nasal and paranasal sinus disease. Neurol Clin. 2012;32:507-23.
  • 8
    Stam J. Thrombosis of the cerebral veins and sinuses. N Engl J Med. 2005;352:1791-8.
  • 9
    Timóteo A, Inácio N, Machado S, et al. Headache as the sole presentation of cerebral venous thrombosis: a prospective study. J Headache Pain. 2012;13:487-90.
  • 10
    Can OS, Yilmaz AA, Gurcan E, et al. Is post-partum headache after epidural anaesthesia always innocent? Eur J Anaesthesiol. 2008;25:697-700.
  • 11
    Bousser MG. Cerebral venous thrombosis: diagnosis and management. J Neurol. 2000;247:252-8.
  • 12
    Todorov L, Laurito CE, Schwartz DE. Postural headache in the presence of cerebral venous sinus thrombosis. Anesth Analg. 2005;101:1499-500.
  • 13
    Cantu C, Barinagarrementeria F. Cerebral venous thrombosis associated with pregnancy and puerperium: review of 67 cases. Stroke. 1993;24:1880-4.
  • 14
    Masuhr F, Mehraein S, Einhaupl K. Cerebral venous and sinus thrombosis. J Neurol. 2004;251:11-23.
  • 15
    Ameri A, Bousser MG. Cerebral venous thrombosis. Neurol Clin. 1992;10:87-111.
  • 16
    Halpern JP, Morris JG, Driscoll GL. Anticoagulants and cerebral venous thrombosis. Aust N Z J Med. 1984;14:643-8.
  • 17
    Lamy C, Sharshar T, Mas JL. Cerebrovascular diseases in puerperium. Rev Neurol. 1996;152:422-40.
  • 18
    Mahesh PK, Thomas B, Sylaja PN. Cerebral venous thrombosis in post-lumbar puncture intracranial hypotension: case report and review of literature. F1000 Res. 2014;3:41-6.
  • 19
    Schou J, Scherb M. Postoperative sagittal sinus thrombosis after spinal anesthesia. Anesth Analg. 1986;65:541-2.
  • 20
    Canhao P, Batista P, Falcao F. Lumbar puncture and dural sinus thrombosis - a causal or casual association?. Cerebrovasc Dis. 2005;19:53-6.
  • 21
    Zeidan A, Farhat O, Maaliki H, et al. Does postdural puncture headache left untreated lead to subdural hematoma? Case report and review of the literature. Int J Obstet Anesth. 2006;15:50-8.
  • 22
    Grant R, Condon B, Hart I, et al. Changes in intracranial CSF volume after lumbar puncture and their relationship to post-LPheadache. J Neurol Neurosurg Psychiatry. 1991;54:440-2.
  • 23
    Ghaleb A, Khorasani A, Mangar D. Post-dural puncture headache. Int J Gen Med. 2012;5:45-51.
  • 24
    Connor SEJ, Jarosz JM. Magnetic resonance imaging of cerebral venous sinus thrombosis. Clin Radiol. 2002;57:449-61.
  • 25
    Philips MF, Bagley LJ, Sinson GP, et al. Endovascular thrombolysis for symptomatic cerebral venous thrombosis. J Neurosurg. 1999;90:65-71.
  • 26
    Weatherby SJ, Edwards NC, West R, et al. Good outcome in early pregnancy following direct thrombolysis for cerebral venous sinus thrombosis. J Neurol. 2003;250:1372-3.
  • 27
    Bruijn SF, Stam J. Randomized, placebo-controlled trial of anticoagulant treatment with low-molecular-weight heparin for cerebral sinus thrombosis. Stroke. 1999;30:484-8.
  • 28
    Masuhr F, Mehraein S, Einhaupl K. Cerebral venous and sinus thrombosis. J Neurol. 2004;51:11-23.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    03 Set 2014
  • Aceito
    10 Set 2014
Sociedade Brasileira de Anestesiologia R. Professor Alfredo Gomes, 36, 22251-080 Botafogo RJ Brasil, Tel: +55 21 2537-8100, Fax: +55 21 2537-8188 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: bjan@sbahq.org