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Eventos adversos em anestesiologia: análise por meio da ferramenta Logbook usada por médicos em especialização no Brasil

Resumo

O Logbook é uma ferramenta digital, lançada pela Sociedade Brasileira de Anestesiologia em 2014 e empregada desde então. Essa ferramenta permite, aos médicos em especialização em anestesiologia, o registro e o armazenamento das atividades executadas durante o período de treinamento. Isto possibilitou a análise descritiva de um extenso banco de dados dos procedimentos anestésicos, bem como das complicações ocorridas, relatadas por esses médicos. O presente estudo compreende a revisão desses dados num período de dois anos (2014-2015).

Palavras-chave
Anestesiologia; Complicações; Eventos adversos; Logbook; Médicos em especialização; Sociedade Brasileira de Anestesiologia

Abstract

Logbook is a digital tool launched by the Brazilian Society of Anesthesiology in 2014 and has since been used. This tool allows physicians specializing in anesthesiology to record and store activities performed during the training period. This enabled a descriptive analysis of an extensive database of anesthetic procedures, as well as complications that occurred and were reported by these doctors. The present study includes the review of these data over a period of 2 years (2014–2015).

KEYWORDS
Anesthesiology; Complications; Adverse events; Logbook; Physicians in specialization training; Brazilian Society of Anesthesiology

Introdução

Segurança do Paciente, segundo classificação internacional da Organização Mundial de Saúde (OMS),11 The Conceptual Framework for the International Classification for Patient Safety. Final Technical Report. World Alliance for Patient Safety Taxonomy. World Health Organization (WHO). 2009 Jan. é a redução a um mínimo aceitável do risco de dano desnecessário associado ao cuidado de saúde. Um dos desfechos frequentemente analisados em estudos ligados a essa temática é a ocorrência de eventos adversos. Segundo a terminologia criada pela Aliança Mundial para a Segurança do Paciente, da OMS, evento adverso é o dano ao paciente que esteve associado ao cuidado de saúde, ou, mais precisamente, é o incidente com dano, classificado como o evento ou a circunstância que poderia ter resultado, ou resultou, em dano desnecessário ao paciente. Estudo conduzido na Espanha (Ibeas), que estimou a prevalência de eventos adversos ocorridos no ambiente hospitalar de diversas instituições em cinco países da América Latina, usou como definição de evento adverso: “evento que causou dano ao paciente e que esteve mais associado ao cuidado de saúde do que à doença de base do indivíduo”.22 Aranaz-Andrés JM, Aibar-Remón C, Limón-Ramírez R, et al. Prevalence of adverse events in the hospitals of five Latin American countries: results of the Iberoamerican study of adverse events (IBEAS). BMJ Qual Safet. 2011;20:1043-51.

Nos últimos anos, maior destaque tem sido dado a iniciativas em prol da segurança do paciente em anestesiologia, tanto em países desenvolvidos como em países em desenvolvimento. A Sociedade Brasileira de Anestesiologia (SBA) é signatária da Declaração de Helsinque desde 2006, que prevê uma série de ações voltadas para a segurança do paciente e estruturou vários projetos que tem contribuído para a redução de eventos adversos em anestesia. Em 2017, foi aprovada legislação do Conselho Federal de Medicina n° 2174 dirigida à anestesiologia, que revogou a resolução anterior (2006) e que teve como objetivo, entre outros, aumentar a segurança do ato anestésico.33 Conselho Federal de Medicina. Resolução nº 2174, de 2017. Dispõe sobre a prática do ato anestésico e revoga a Resolução CFM nº 1802/2006. Em 2013, o Ministério da Saúde publicou a Portaria n° 529, de 2013, que instituiu o Programa Nacional de Segurança do Paciente. Segundo a portaria, uma das competências de seu comitê de implantação é a proposição e validação de protocolos, guias e manuais, voltados para a segurança do paciente em procedimentos cirúrgicos e de anestesiologia.44 Ministério da Saúde. Portaria nº 529, de 1° de abril de 2013. Institui o Programa Nacional de Segurança do Paciente (PNSP).

A literatura sobre eventos adversos em anestesiologia mostra uma tendência de redução da ocorrência de complicações associadas à anestesia e diminuição da mortalidade perioperatória. Uma revisão sistemática, que avaliou a mortalidade perioperatória de pacientes submetidos à anestesia geral, demonstrou uma redução no risco de mortalidade perioperatória e mortalidade relacionada à anestesia nos últimos 50 anos, principalmente em países desenvolvidos,55 Bainbridge D, Martin J, Arango M, et al. Perioperative and anaesthetic-related mortality in developed and developing countries: a systematic review and meta-analysis. The Lancet. 2012;380:1075-1081. o que foi corroborado por outros estudos mais recentes, inclusive um feito no Brasil.66 Vane MF, Nuzzi RXP, Aranha GF, et al. Parada cardíaca perioperatória: uma análise evolutiva da incidência de parada cardíaca intraoperatória em centros terciários no Brasil. Rev Bras Anestesiol. 2016;66:176-182.,77 Koga FA, El Dib R, Wakasugui W, et al. Anesthesia-related and perioperative cardiac arrest in low and high-income countries. Medicine. 2015;94:e1465. Estudos que avaliaram a mortalidade durante a anestesia são relativamente mais comuns na literatura, diferentemente de estudos que tenham avaliado a incidência de diferentes tipos de complicações, como a ocorrência de parada cardíaca, tanto em âmbito nacional como internacional.88 Braz JRC. Morbimortalidade em anestesia: estado atual. Medicina Perioperatória. 2007;114:1009-19. Estudos de avaliação da magnitude dos eventos adversos relacionados à anestesiologia no Brasil ainda são escassos e, em sua maioria, são revisões de estudos já publicados ou estudos conduzidos em hospitais de ensino, que têm particularidades em relação aos demais hospitais.66 Vane MF, Nuzzi RXP, Aranha GF, et al. Parada cardíaca perioperatória: uma análise evolutiva da incidência de parada cardíaca intraoperatória em centros terciários no Brasil. Rev Bras Anestesiol. 2016;66:176-182.1313 Limongi JAG, Lins RSM. Parada cardiorrespiratória em raquianestesia. Rev Bras Anestesiol. 2011;61:110-20.

O diário de bordo (Logbook) é uma coleção de objetivos de aprendizagem e informações adicionais acerca de um período educacional específico e seu uso, da graduação à pós-graduação, em vários formatos, ocorre em diversas partes do mundo.1414 Schüttpetz-Brauns K, Narciss E, Schneyinck C, et al. Twelve tips for successfully implementing logbooks in clinical training. Med Teach. 2016;38:564-9. A opção por diferentes meios para o registro e armazenamento dos dados das atividades durante o treinamento implica vantagens e desvantagens, seja pelo custo, tempo de preenchimento, facilidade de transporte e conhecimentos técnicos específicos ou pela capacidade de compartilhamento e segurança dos dados.1515 McIndoe A, Hammond E. How to maintain an anaesthetic logbook. Bulletin. 2008;51:2633-7. No Reino Unido, o uso do Logbook em meio digital nas atividades educativas em anestesiologia tem origem na década de 1990.1616 Nixon MC. The anaesthetic logbook - a survey. Anaesthesia. 2000;55:10776-80. O Logbook tem como objetivos o registro da aquisição de competências e o nível de independência que foram alcançados pelo aluno durante o processo de treinamento, além de auxiliar os treinandos e seus supervisores a identificar os objetivos de aprendizagem, verificar sua completitude e avaliar os resultados.1717 Barbieri A, Giuliani E, Lazzeroti S, et al. Education in anesthesia: three years of online logbook implementation in an Italian school. BMC Med Educ. 2015;15:14. Esses autores sugerem ainda que o Logbook digital padronizado, se atualizado periodicamente, poderia servir como uma cédula de identidade profissional usada ao longo da carreira médica e possibilitar a integração do médico aos sistemas de saúde de outros países.

No Brasil, a Sociedade Brasileira de Anestesiologia lançou a primeira versão do Logbook digital. Esse sistema foi concebido para avaliar a formação e a prática dos médicos em especialização, permite o registro e o acompanhamento dos procedimentos anestésicos feitos por cada profissional, constitui-se em um instrumento de apoio educacional.1818 Portal da Sociedade Brasileira de Anestesiologia. Available from: http://www.sba.com.br/. [Accessed September 2016].
http://www.sba.com.br/...
Para a obtenção do título de especialista e aprovação entre os anos de formação da especialização, é requerido do médico em especialização o preenchimento do Logbook com, no mínimo, 440 procedimentos anestésicos a cada ano de formação, além de alimentar periodicamente esse registro na área interna do site da sociedade. O Logbook permitiu a criação de um banco de dados expressivo com registros de procedimentos anestésicos feitos em hospitais públicos e privados no Brasil, que contém informações, entre outras, relacionadas às características dos procedimentos anestésicos feitos e à ocorrência de complicações. O objetivo do presente estudo é analisar os dados, a partir da ferramenta Logbook, sobre os procedimentos anestésicos e suas complicações, tem como perspectiva os conceitos relacionados à segurança do paciente.

Metodologia

Estudo observacional retrospectivo. Foram avaliadas as informações relativas a 1.621.241 procedimentos anestésicos, reunidas em banco de dados, a partir da ferramenta Logbook, para o período de 2014 e 2015, coletadas por médicos em especialização, vinculados à Sociedade Brasileira de Anestesiologia, em hospitais públicos e privados de diversas regiões do Brasil.

Para permitir uma análise descritiva das informações contidas no banco de dados proveniente do uso da ferramenta Logbook e para permitir a comparabilidade com outros estudos já publicados sobre a magnitude das complicações em anestesiologia, os principais dados analisados foram o total de complicações relatadas no período, o total de complicações atribuídas à anestesia (eventos adversos), o total de eventos considerados evitáveis e o número de óbitos. Também foram analisadas a incidência de complicações no período perioperatório, como a parada cardíaca e a via aérea difícil, e as variáveis potencialmente associadas à ocorrência das complicações, como: o tempo de detecção das complicações; o método de detecção; a especialidade em que o procedimento anestésico foi feito; a técnica anestésica usada; o porte da cirurgia; o regime de internação; o regime de atendimento do paciente; a ocorrência de visita pré-anestésica; a idade, o sexo e risco ASA do paciente; e a existência de comorbidades prévias.

A incidência geral de complicações foi calculada pelo número de complicações (numerador), dividido pelo número total de anestesias feitas durante o período do estudo (denominador). A incidência de eventos adversos em anestesia foi calculada pelo número de complicações atribuídas à anestesia (numerador), dividido pelo número total de anestesias feitas durante o período do estudo (denominador). O resultado foi apresentado na forma de taxa por 10.000 anestesias, com os respectivos intervalos de confiança de 95% (95% IC).

Levando-se em consideração a classificação da OMS e a nomenclatura usada no estudo Ibeas,11 The Conceptual Framework for the International Classification for Patient Safety. Final Technical Report. World Alliance for Patient Safety Taxonomy. World Health Organization (WHO). 2009 Jan.,22 Aranaz-Andrés JM, Aibar-Remón C, Limón-Ramírez R, et al. Prevalence of adverse events in the hospitals of five Latin American countries: results of the Iberoamerican study of adverse events (IBEAS). BMJ Qual Safet. 2011;20:1043-51. classificou-se como evento adverso, no presente estudo, a complicação descrita no banco em que o médico atribuiu nexo causal com a anestesia, partiu-se de dois pressupostos: se foi descrita uma complicação, é porque houve o dano; e se o médico que preencheu a informação no Logbook atribuiu o nexo causal com a anestesia, é porque o evento esteve mais relacionado ao cuidado recebido (procedimento anestésico) do que à doença de base ou a alguma condição clínica do paciente.

De um modo geral, nas análises, optou-se por agrupar as complicações: Via aérea difícil não reconhecida, Extubação acidental e Reintubação não planejada em uma única categoria por estarem relacionadas a problemas com a via aérea dos pacientes. Em alguns casos, optou-se por analisar separadamente os seguintes grupos de especialidades: área remota, centro cirúrgico e obstetrícia, por se entender que tais especialidades abrangem diferentes perfis de pacientes, com tipos de complicação distintos.

Para as variáveis local, momento da ocorrência, tempo e método de detecção das complicações, foram calculadas proporções e os respectivos intervalos de confiança de 95%. Para a análise das complicações segundo grupo de especialidades e segundo a evitabilidade do evento (segundo o tipo de complicação e no caso dos óbitos), foi usado o teste qui-quadrado de Pearson, nos casos que atendiam as premissas para a aplicação do teste.99 Braz LG, Módolo NSP, Nascimento P, et al. Perioperative cardiac arrest: a study of 53718 anaesthetics over 9 yr from a Brazilian teching hospital. Br J Anaesth. 2006;96:569-75.,1919 Siqueira AL, Tibúrcio JD. Estatística na área de saúde: conceitos, metodologia, aplicações e prática computacional. Belo Horizonte: Editora Coopmed; 2011. Página 272. Foi considerado um nível de significância de 5%. O programa estatístico usado para as análises foi o SPSS versão 22.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Escola Politécnica Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz (n° 60761516.1.0000.5241, de 24/10/16).

Resultados

Dos 1.621.241 procedimentos anestésicos feitos, foram relatadas 1.414 complicações, com uma incidência de 8,72 complicações por 10.000 procedimentos anestésicos (95% IC: 8,27–9,19). Das 1.414 complicações, 445 eram eventos adversos (31,5%; 95% IC: 29,1–34,0), ou seja, complicações atribuídas ao procedimento anestésico pelos médicos que preencheram o Logbook, o que compõe uma incidência de eventos adversos em anestesia de 2,74 eventos por 10.000 procedimentos anestésicos (95% IC: 2,49–3,01). Na amostra analisada, foi registrada a ocorrência de 455 óbitos, deu-se uma incidência de 2,81 óbitos por 10.000 procedimentos (95% IC: 2,55–3,08).

Na tabela 1, é possível ter uma análise descritiva dos procedimentos anestésicos contidos no Logbook. Nela se observa que a maioria dos pacientes é do sexo feminino (55,5%), está entre 18 e 65 anos (69,4%), foi submetida à anestesia geral/sedação (54,1%) e tem o estado físico ASA I (45,3%), além de não ter comorbidades (53%). Observa-se que 76,3% dos procedimentos foram feitos em regime eletivo e com o paciente internado (80,9%). Entre os procedimentos, 74,1% tiveram visita pré-anestésica e 80,9% foram feitos em centro cirúrgico.

Tabela 1
Características gerais dos procedimentos anestésicos - Brasil, 2014 a 2015

Na tabela 2, observa-se que a sala operatória foi o local em que as complicações ocorreram com mais frequência (79,3%). Os momentos de ocorrência mais frequentes foram: manutenção da anestesia (34,5%) e durante indução anestésica (21,5%). A maior parte das complicações foi detectada com grande rapidez (66,5% dos casos com menos de um minuto e 17% com menos de cinco minutos). Os métodos de detecção das complicações – checagem e monitores – representaram quase a totalidade dos casos (96,8%).

Tabela 2
Local, momento da ocorrência, tempo e método de detecção das complicações ocorridas nos procedimentos anestésicos - Brasil, 2014 a 2015

A análise da tabela 3 revelou que as complicações Parada cardíaca no período perioperatório, Via aérea difícil não reconhecida/Extubação acidental/Reintubação não planejada e outras representaram quase a totalidade das ocorrências no centro cirúrgico, área remota e obstetrícia (86,9%), para os três grupos de especialidades. Parada cardíaca no período perioperatório obteve a maior representatividade (55,1%) na área remota, decresceu para 28% (2ª posição) no centro cirúrgico e 17,4% (2ª posição) em obstetrícia. A complicação Via aérea difícil não reconhecida/Extubação acidental/Reintubação não planejada foi mais presente no centro cirúrgico (21%). A categoria de Outras complicações alcançou expressiva representatividade (67,4%) em obstetrícia e também obteve o maior percentual (37,3%) no centro cirúrgico.

Tabela 3
Tipos de complicações, segundo grupo de especialidades das complicações ocorridas nos procedimentos anestésicos- Brasil, 2014 a 2015

Entre os eventos evitáveis (tabela 4), os maiores percentuais foram verificados para as complicações Via aérea difícil não reconhecida/Extubação acidental/Reintubação não planejada e outras. Somados, alcançaram 78,1% dos casos. Essas duas complicações também apareceram com destaque entre os eventos não evitáveis. As complicações Via aérea difícil não reconhecida/Extubação acidental/ Reintubação não planejada tiveram sua representatividade bastante diminuída (15,6%), enquanto a categoria Outras complicações apresentou uma leve queda (37,1%). Também merece destaque a expressiva participação (34,1%) da complicação Parada cardíaca no período perioperatório entre os eventos não evitáveis. O teste qui-quadrado mostrou que existe diferença estatisticamente significante entre os eventos evitáveis e não evitáveis, segundo os tipos de complicação (p < 0,001).

Tabela 4
Tipos de complicações, segundo a evitabilidade, ocorridas nos procedimentos anestésicos - Brasil, 2014 a 2015

Entre as complicações, nos casos em que o desfecho foi óbito, listadas na tabela 5, praticamente só existiram respostas para Parada cardíaca no período perioperatório e outras complicações, que juntas obtiveram mais de 90% dos casos. Tais complicações se destacaram tanto entre os eventos evitáveis (30,8% e 53,8% respectivamente) como também entre os eventos não evitáveis (35,3% e 56,1%, respectivamente).

Tabela 5
Tipos de complicações, segundo a evitabilidade, dos óbitos ocorridos nos procedimentos anestésicos - Brasil, 2014 a 2015

Discussão

A identificação dos riscos e os métodos para avaliação da ocorrência de eventos adversos associados aos procedimentos anestésicos têm sido apontados há mais de três décadas.2020 Derrington MC, Smith G. A review of studies of anaesthetic risk, morbidity and mortality. Br J Anaesth. 1987;59:815-33. Dados de morbidade e mortalidade relacionados à anestesia mostram diminuição ao longo dos anos,99 Braz LG, Módolo NSP, Nascimento P, et al. Perioperative cardiac arrest: a study of 53718 anaesthetics over 9 yr from a Brazilian teching hospital. Br J Anaesth. 2006;96:569-75.,2121 Braz LG, Braz DG, Cruz DS, et al. Mortality in anesthesia: a systematic review. Clinics (Sao Paulo). 2009;64:999-1006. embora a ocorrência de eventos adversos com pequena ou moderada morbidade ainda seja alta.2222 Haller G, Laroche T, Clergue F. Morbidity in anaesthesia: today and tomorrow. Best Pract Res Clin Anaesthesiol. 2011;25:123-32. Esses autores assinalam que dados mais recentes de prevalência de paradas cardíacas e danos cerebrais têm, respectivamente, valores entre 0,8–3,3 e 0,15–0,9 por 10.000 procedimentos anestésicos. As estimativas de mortalidade estão em torno de 1 para 100.000 casos em pacientes ASA I e II e de 5,4 mortes por milhão de anestesias gerais resultantes de complicações no manejo das vias aéreas.2323 Wacker J, Staender S. The role of the anaesthesiologist in perioperative patient safety. Curr Opin Anaesthesiol. 2014;27:649-56. A ocorrência de complicações é devida a uma conjunção de fatores que envolvem treinamento e experiência inadequados, ambiente de trabalho desafiador, debilidades na atuação da atuação em equipe, estresse e fadiga, mas a maioria das complicações é multifatorial e raramente é devida a um único fator.2424 Valchanov K, Webb ST, Sturgess J. Anaesthetic and perioperative complications. New York: Cambridge University Press; 2011. A via aérea difícil corresponde a 37% dos eventos respiratórios, é mais provável de ocorrer fora do centro cirúrgico e, quando se dá nesse local, 67% dos casos acontecem durante a indução da anestesia.2525 Steadman J, Catalani B, Sharp C, et al. Life-threatening perioperative anesthetic complications: major issues surrounding perioperative morbidity and mortality. Trauma Surg Acute Care Open. 2017;2:1-7.

Os achados do presente estudo mostram que a maioria dos procedimentos foi feita em pacientes adultos (69,4%), do sexo feminino (55,5%), com escores ASA I e II (85,1%), com o uso de analgesia geral/sedação ou regional (89,4%), em cirurgias eletivas (76,3%), o que é compatível com a exposição aos casos e técnicas esperadas na formação desses profissionais.

Ressalta-se que este foi o primeiro estudo conduzido no Brasil que avaliou uma amostra de mais de um milhão de anestesias, feitas em hospitais públicos e privados de diversas regiões brasileiras. Foram analisados diversos tipos de complicação, como parada cardiorrespiratória, via aérea difícil e infarto agudo do miocárdio, importantes desfechos em anestesiologia, considerou-se a sua ocorrência segundo grupos de especialidades e segundo a evitabilidade. No presente estudo, as incidências encontradas para os desfechos parada cardíaca e óbito foram bem menores do que as taxas encontradas na literatura.66 Vane MF, Nuzzi RXP, Aranha GF, et al. Parada cardíaca perioperatória: uma análise evolutiva da incidência de parada cardíaca intraoperatória em centros terciários no Brasil. Rev Bras Anestesiol. 2016;66:176-182.1313 Limongi JAG, Lins RSM. Parada cardiorrespiratória em raquianestesia. Rev Bras Anestesiol. 2011;61:110-20. Houve 407 casos de parada cardíaca nos 1.621.241 procedimentos anestésicos, o que dá uma incidência de 2,51 casos por 10.000 anestesias, para o período de dois anos (2014–2015). Ainda que tenha havido uma diminuição na incidência desse desfecho nos últimos 25 anos, a incidência de 2,5 para o período de dois anos ainda está bem abaixo da incidência de 13 por 10.000, para 2007, observada em estudo prévio.66 Vane MF, Nuzzi RXP, Aranha GF, et al. Parada cardíaca perioperatória: uma análise evolutiva da incidência de parada cardíaca intraoperatória em centros terciários no Brasil. Rev Bras Anestesiol. 2016;66:176-182. Essa diferença pode ser explicada principalmente por dois fatores. Em primeiro lugar, pelo contínuo avanço das técnicas anestésicas e da segurança relacionada ao procedimento anestésico, em anos mais recentes. Em segundo lugar, é importante salientar as peculiaridades relacionadas ao preenchimento do Logbook. O preenchimento dos dados nessa plataforma deveria ser feito até o último dia do mês subsequente à data do procedimento. Após essa data, o sistema ficava bloqueado para entrada dos dados. O prazo final para o preenchimento do Logbook pelo médico em especialização coincidia com a data registrada para o término do período de especialização de cada médico.

Acredita-se que essa possibilidade de o procedimento e suas complicações serem registrados retroativamente pelo médico possa ter contribuído substancialmente para a subnotificação desses eventos por dois aspectos principais: pelo viés de memória, relacionado ao esquecimento ou à perda de informações importantes sobre o caso devido à passagem do tempo; e pela cultura do medo, que ainda existe entre os profissionais de saúde, apesar dos esforços dos últimos anos, desde a publicação da Portaria de 2013 do Ministério da Saúde, sobre o Programa Nacional de Segurança do Paciente, no sentido de se buscar o evento adverso não para punir os envolvidos, mas, sobretudo, para aprender com essas ocorrências a agir preventivamente no futuro. Ademais, soma-se a isso o fato de esses dados terem sido preenchidos por profissionais em especialização, o que pode ter contribuído para a subnotificação das complicações. A subnotificação também foi observada para a incidência de óbitos.

O estudo também permitiu observar dados importantes com relação ao local mais frequente de ocorrência das complicações – sala operatória (79,3%) – e os momentos de ocorrência mais frequentes, durante a manutenção e a indução anestésica (56%). Um estudo sobre eventos adversos cirúrgicos em hospitais do Rio de Janeiro também demonstrou que o local mais frequente de ocorrência desses eventos foi o centro cirúrgico (78,1% dos casos).2626 Moura MLO, Mendes W. Avaliação de eventos adversos cirúrgicos em hospitais do Rio de Janeiro. Rev Bras Epidemiol. 2012;15:523-35. Identificar os momentos em que as complicações ocorrem com mais frequência é importante para sinalizar áreas potenciais de melhoria.

Os tipos de complicações mais frequentemente observados no estudo (87% dos casos) foram: parada cardíaca no período perioperatório, problemas relacionados à via aérea (via aérea difícil/extubação acidental/reintubação planejada) e outras complicações. Na análise dos resultados do teste para registro de procedimentos anestésicos em assistente digital pessoal (PDA), na Austrália e Nova Zelândia, Bent et al. (2002) identificaram uma taxa de incidentes graves de 2,5%, metade desses eventos estava relacionada à via aérea e 40% eram cardiovasculares.2727 Bent PD, Bolsin SN, Creati BJ, et al. Professional monitoring and critical incident reporting using personal digital assistants. Med J Aust. 2002;177:496-9.

Quando comparamos o percentual de complicações evitáveis e óbitos evitáveis, segundo o tipo de complicações, podemos perceber que houve mais óbitos evitáveis relacionados à parada cardíaca. Em relação à via aérea difícil, apesar de ter sido uma das complicações com maior percentual de evitabilidade, não foram registrados óbitos evitáveis associados a essa complicação. No entanto, devemos analisar os dados com cuidado, devido às limitações já descritas relacionadas ao preenchimento do Logbook, e também à natureza subjetiva da avaliação de evitabilidade, e ao fato de não ter sido usada a escala de seis pontos de avaliação da evitabilidade, comumente usada em estudos de avaliação de eventos adversos.22 Aranaz-Andrés JM, Aibar-Remón C, Limón-Ramírez R, et al. Prevalence of adverse events in the hospitals of five Latin American countries: results of the Iberoamerican study of adverse events (IBEAS). BMJ Qual Safet. 2011;20:1043-51.

O Logbook tem sido adotado para acompanhar a formação de anestesistas em alguns países, permite obter informações úteis acerca da exposição, treinamento e experiência nas subespecialidades da anestesiologia.2828 Hammond EJ, Sweeney BP. Electronic data collection by trainee anaesthetists using palm top computers. Eur J Anaesthesiol. 2000;17:91-8.3030 Kwok CY, Hung CT. Clinical experience of trainee anaesthesiologists: logbook analysis. Hong Kong Med J. 2006;12:125-32. Entretanto, como assinala Nixon (2000),2929 Nixon MC. The anaesthetic logbook - a survey. Anaesthesia. 2000;55:1076-80. o uso isolado do número de casos é um indicador limitado para avaliação de competência, mas o uso do Logbook pode servir como ferramenta para medir a competência quando se incluem o nível de supervisão, a complexidade dos casos e a taxa de complicações na sua análise.2929 Nixon MC. The anaesthetic logbook - a survey. Anaesthesia. 2000;55:1076-80. O registro de eventos adversos durante a anestesia e o retorno dessa informação à equipe clínica levou a um decréscimo significativo nas taxas desses eventos,3131 Wacker J, Kolbe M. The challenge of learning from perioperative patient harm. Trends Anaesth Crit Care. 2016;7–8:5-10. sinalizou para um possível uso dos dados do Logbook para o monitoramento e avaliação dos procedimentos anestésicos perioperatórios.

O presente estudo possibilitou a análise descritiva de um extenso banco de dados dos procedimentos anestésicos e suas complicações, é o primeiro dessa magnitude conduzido no país que usou a ferramenta Logbook. Assim, os dados obtidos devem ser avaliados considerando as particularidades envolvidas com o seu preenchimento.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Oct 2019

Histórico

  • Recebido
    26 Nov 2018
  • Aceito
    14 Jun 2019
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