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Divergências metodológicas dos Tribunais de Contas e seus efeitos sobre as regras de despesa com pessoal

Divergencias metodológicas de las Cortes de Cuentas y sus efectos en el gasto con funcionarios públicos

Resumo

O presente artigo expõe as divergências entre as metodologias adotadas pelos Tribunais de Contas e as apresentadas no Manual de Demonstrativos Fiscais (MDF), elaborado pela Secretaria do Tesouro Nacional (STN), para o cálculo das despesas com pessoal, segundo a Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000, ou Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Avalia-se, portanto, como as divergências metodológicas influenciam no cumprimento dos limites das despesas com pessoal dos próprios Tribunais de Contas, a partir dos Relatórios de Gestão Fiscal (RGFs) referentes aos terceiros quadrimestres dos anos de 2016 a 2018, comparando com o disposto no MDF e com as informações inseridas no Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor Público Brasileiro (Siconfi). Demonstrar-se-á que alguns Tribunais de Contas ultrapassariam os limites de despesa com pessoal se fosse adotada a metodologia do MDF, o que indica a necessidade de convergência de regras para evitar que a contabilidade criativa de alguns órgãos de controle externo contribua para o desequilíbrio fiscal do ente federativo.

Palavras-chave:
regras fiscais; tribunais de contas; lei complementar nº 101/2000

Resumen

El presente artículo expone las divergencias metodológicas entre las Cortes de Cuentas de los entes subnacionales brasileños y la Secretaría del Tesoro Nacional, del Ministerio de Economía, acerca de los gastos presupuestarios con funcionarios públicos, según la Ley de Responsabilidad Fiscal. Presenta cómo las divergencias metodológicas permiten que las Cortes de Cuentas cumplan sus límites de gastos con sus funcionarios, a partir de demostrativos fiscales de 2016 a 2018, comparándolos con la metodología del Manual para Demostrativos Fiscales publicado por el Ministerio de Economía. Se propone demostrar que las Cortes de Cuentas excederían los límites de gastos con empleados si fueran aplicados los patrones del gobierno central, lo que indica la necesidad de convergencia para evitar que la contabilidad creativa de algunas Cortes contribuya al desequilibrio fiscal subnacional.

Palabras clave:
reglas fiscales; cortes de cuentas; ley de responsabilidad fiscal

Abstract

This article describes how Brazilian Courts of Accounts at the subnational level diverge with the National Secretariat of Treasury of the Ministry of Economy, on how to measure the personnel expenditure cap, a rule according to the Fiscal Responsibility Law of 2001. Since the Courts of Accounts can decide how to measure the personnel expenditure rule in their jurisdictions, the article describes how those decisions, presented in the Fiscal Management Report from 2016 to 2018, diverge with the federal standards described in the Manual of Fiscal Reports (MDF) and compiled in the System of Public Sector Fiscal and Accounting Information (Siconfi). It concludes that some Courts of Accounts would exceed the personnel expenditure cap if they adopted the federal standards described by the central government, which indicates the existence of fiscal accountability practices with a contagious effect upon subnational entities under its jurisdiction, increasing the risks of fiscal imbalances in the federation.

Keywords:
fiscal rules; courts of accounts; fiscal responsibility law

1. INTRODUÇÃO

A despesa com pessoal e encargos sociais é a segunda principal despesa da União, atrás apenas dos benefícios previdenciários. No caso dos entes federativos, Giambiagi (2016Giambiagi, F., & Além, A. C. (2016). Finanças Públicas: Teoria e Prática no Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Elsevier.) aponta que depois de 1994 não havia mais a possibilidade de os estados brasileiros utilizarem a inflação para compensarem o aumento dos gastos. Assim, no caso dos estados, dois itens se destacavam como a principal causa do desequilíbrio fiscal naquele período: (i) aumento do gasto com funcionalismo, associado a generosos ajustes salariais; e (ii) o peso dos inativos na composição da folha de pagamento dos estados. O atual cenário fiscal dos entes federados se aproxima daquele descrito por Giambiagi após 1994, apesar dos esforços de consolidação fiscal implementados entre 1998-2007, em especial a criação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Nesse sentido, doze estados ultrapassaram o limite de despesa de 60% da Receita Corrente Líquida em 2018 (STN, 2019Secretaria do Tesouro Nacional. (2019). Boletim de finanças dos entes subnacionais. Brasília, DF: Ministério da Economia. Recuperado dehttp://sisweb.tesouro.gov.br/apex/cosis/thot/transparencia/arquivo/30407:981194:inline:9731352684720
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), o que reduz o espaço fiscal para outros dispêndios que seriam de interesse da sociedade.

O crescimento da despesa com pessoal nos entes federados ocorreu apesar da supervisão exercida pelos Tribunais de Contas, órgãos que receberam na LRF a atribuição de verificar os cálculos dos limites dessa despesa nos Poderes e órgãos dos entes (art. 59, §2º, da LRF). O atual recrudescimento da situação fiscal dos entes subnacionais demonstra que não foi possível conter a despesa com pessoal segundo a LRF. Parte da ineficácia das regras fiscais decorre da falta de harmonia sobre a forma com que essas despesas são apuradas Fainboim, Fernandez, e Fouad (2015Fainboim, I., Fernandez, A., & Fouad, M. (2015). Budgeting, accounting and reporting. In C. Cottarelli, & M. Guerguil(Eds.), Designing a European fiscal union: lessons from the experiences of fiscal federations. Londres, UK: Routledge.).

Dessa forma, o problema que se pretende endereçar é como as divergências no cálculo de despesas com pessoal, em comparação com o que preconiza o órgão central de contabilidade da União - a Secretaria do Tesouro Nacional, expandem os limites de gastos com pessoal dos próprios órgãos de controle externo. Consequentemente, a interpretação dada pelos Tribunais de Contas cria uma margem adicional de despesas com pessoal sem que sejam ultrapassados os limites da LRF.

O trabalho se soma à análise de Nunes, Marcelino, e Silva (2019Nunes, S. P. P., Marcelino, G. F., & Silva, C. A. T. (2019). Os Tribunais de Contas na interpretação da Lei de Responsabilidade Fiscal. Revista de Contabilidade e Organizações, 13, e145151. Recuperado de http://dx.doi. org/10.11606/issn.1982-6486.rco.2019.145151
https://doi.org/10.11606/issn.1982-6486....
) sobre a interpretação que os Tribunais de Contas dão à Lei de Responsabilidade Fiscal. Registra-se ainda a avaliação da Secretaria do Tesouro Nacional (2019) sobre diferenças metodológicas na apuração dos dispêndios com pessoal dos entes subnacionais. Dessa forma, a contribuição da pesquisa se dá no enfoque específico sobre as despesas com pessoal nos Tribunais de Contas, com base em demonstrativos fiscais exigidos pela LRF.

Utilizando a literatura de regras fiscais, depreende-se que o objetivo dessas regras é limitar o viés deficitário ao impor restrições numéricas às escolhas políticas, reduzindo os incentivos para o gasto excessivo, principalmente em períodos de crescimento econômico (Lledo, Dudine, Eyraud, & Peralta-Alva, 2018Lledo, V. D., Dudine, P., Eyraud, L., & Peralta-Alva, A. (2018). How to select fiscal rules, a primer (IMF Ffiscal Aaffairs Ddepartment how to notes). Recuperado dehttps://www.imf.org/en/Publications/Fiscal-Affairs-Department-How-To-Notes/Issues/2018/03/15/How-to-Select-Fiscal-Rules-A-Primer-45552
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). Nas relações federativas, as regras fiscais buscam conter outros dois fatores que reforçam o viés deficitário (Ter-Minassian, 2009Ter-Minassian, T. (2009). Fiscal Rules for Subnational Governments. OECD Journal on Budgeting, 6(3), 1-11.): i) O risco moral atrelado a recorrentes programas de socorro financeiro pelo governo central; e ii) dependência das transferências de recursos do governo central, pois os entes acabam não internalizando o custo político da arrecadação para realizar o gasto público, provocando um gasto excessivo.

Kotia e Lledó (2016Kotia, A., & Lledó, V. (2016). Do subnational fiscal rules foster fiscal discipline? New empirical evidence from Europe(IMF Working Paper WP/16/84). Washington, DC: Fundo Monetário Internacional. Recuperado de https://ideas.repec.org/p/imf/imfwpa/16-84.html
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) ressaltam que alguns atributos qualitativos das regras fiscais podem aumentar o custo político do seu descumprimento, tais como o quórum qualificado para a alteração de normas que impõem limites fiscais, além da visibilidade midiática sobre o seu cumprimento. Não obstante, os fatores enfatizados no presente estudo são: i) a existência de procedimentos orçamentários e contábeis comuns em toda a federação; e ii) a qualidade dos mecanismos de monitoramento.

Fainboim et al. (2015Fainboim, I., Fernandez, A., & Fouad, M. (2015). Budgeting, accounting and reporting. In C. Cottarelli, & M. Guerguil(Eds.), Designing a European fiscal union: lessons from the experiences of fiscal federations. Londres, UK: Routledge.) afirmam que a padronização das informações na contabilidade pública é crítica para a prestação de contas e a transparência, principalmente em estados federados, pois possibilitam a comparabilidade, o monitoramento pelo governo central e a consolidação das informações fiscais do governo geral. No entanto, observam que, na prática, muitos países enfrentam diferentes critérios entre o governo central e subnacionais. A ausência de coordenação e harmonização entre o governo central e os subnacionais dificulta a estabilidade macroeconômica e o compromisso com a disciplina fiscal.

Os mecanismos de monitoramento dependem da existência de um órgão independente responsável por avaliar o cumprimento das regras fiscais, o qual poderá acionar gatilhos automáticos, caso sejam ultrapassados os limites numéricos, ou impor sanções aos que deram causa ao descumprimento da regra (Kotia & Lledó, 2016Kotia, A., & Lledó, V. (2016). Do subnational fiscal rules foster fiscal discipline? New empirical evidence from Europe(IMF Working Paper WP/16/84). Washington, DC: Fundo Monetário Internacional. Recuperado de https://ideas.repec.org/p/imf/imfwpa/16-84.html
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). Nesse contexto, desde a publicação da LRF os Tribunais de Contas são os atores centrais para, de forma independente, avaliarem o cumprimento das regras fiscais criadas naquela lei. O art. 59 da LRF dispõe que a fiscalização sobre o cumprimento das normas ali previstas compete ao Poder Legislativo, com auxílio dos Tribunais de Contas, ao sistema de controle interno de cada Poder e ao Ministério Público. Dada a natureza dos trabalhos que desenvolvem, são os Tribunais de Contas que de fato exercem o controle das normas de responsabilidade fiscal (Lima, 2017Lima, L. H. (2017). O controle da responsabilidade fiscal e os desafios para os tribunais de contas em tempos de crise . In L. H. Lima, W. Oliveira, & J. B. Camargo (Eds.), Contas governamentais e responsabilidade fiscal: desafios para o controle externo. Belo Horizonte, MG: Editora Fórum.). No caso das despesas com pessoal, a LRF enfatiza no art. 59, §2º, a competência dos Tribunais de Contas para verificar os cálculos dos limites da despesa com pessoal nos outros órgãos e poderes. Se for alcançado 95% do limite de despesa com pessoal, são vedados aumentos de remuneração ou criação de novos cargos (art. 22 da LRF). Alcançado o limite máximo, impõe-se a extinção de cargos e funções, sob pena de multa ao agente responsável (Lei nº 10.028, 2000Lei no10.028, de 19 de outubro de 2000 (2000 ). Altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, a Lei no 1.079, de 10 de abril de 1950, e o Decreto-Lei no 201, de 27 de fevereiro de 1967. Brasília, DF. Recuperado dehttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L10028.htm
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).

2. METODOLOGIA DE PESQUISA

Para avaliar as consequências da falta de harmonização da metodologia de cálculo das despesas com pessoal no âmbito dos Tribunais de Contas, foram analisados os Relatórios de Gestão Fiscal publicados pelos órgãos de controle externo no período de 2016 a 2018. A análise utiliza os relatórios referentes ao terceiro quadrimestre de cada ano, pois consolidam os dispêndios realizados ao longo do exercício fiscal e incluem os restos a pagar. Cabe destacar que o período de análise da pesquisa, de 2016 a 2018, foi escolhido por ser posterior à alteração na LRF promovida pela Lei Complementar nº 156/2016, que obrigou a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios a disponibilizarem informações e dados no Siconfi, de onde é possível extrair as consultas públicas.

O Siconfi segue a estrutura do MDF para informar as despesas com pessoal. O MDF, elaborado pela Secretaria de Tesouro Nacional, busca orientar os entes da federação no preenchimento dos demonstrativos fiscais. No caso do Relatório de Gestão Fiscal, que contém quadro com despesas com pessoal, o MDF restringe os dispêndios passiveis de exclusão às hipóteses do art. 19, §1º, da LRF.

Ocorre que na pesquisa foram identificadas divergências entre as informações dos Relatórios de Gestão Fiscal e as apresentadas no Siconfi. Por exemplo, foram incluídos campos nos Relatórios que não estão disponíveis no sistema, além de divergências de valores nos quadros de despesa com pessoal coletados nos RGFs e no Siconfi.

Em outros casos há convergência entre campos e valores no Siconfi e no RGF, mas o Tribunal de Contas apresenta nota explicativa no Relatório indicando algum dispêndio que não foi computado na despesa bruta com pessoal (isto é, os dados da despesa bruta já eram deduzidos do Imposto de Renda Retido na Fonte - IRRF). Consequentemente, os valores da despesa com pessoal informados no Relatório e no Sistema são iguais, mas não fidedignos aos critérios do MDF.

Portanto, a pesquisa analisou os itens dos quadros sobre despesa com pessoal nos Relatório de Gestão Fiscal de todos os Tribunais de Contas, comparando-os com o que está previsto no MDF publicado anualmente para orientar a elaboração de demonstrativos fiscais. Em alguns casos as divergências com o MDF constam em notas explicativas no demonstrativo de despesa com pessoal, mas também houve a necessidade de solicitar informações por meio da Lei de Acesso à Informação.

Apurados os valores decorrentes das divergências, foi avaliado o cumprimento dos limites totais de despesa com pessoal, comparando os valores que o Tribunal de Contas apura e o que seria o limite ajustado à metodologia do MDF. Cabe destacar que, apesar das divergências nos valores das despesas, o montante dos limites (alerta, prudencial e máximo) disponíveis no Siconfi convergiram com as informações dos RGFs.

3. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS

No período entre 2016 a 2018 verificou-se o aumento da convergência entre os valores extraídos do Siconfi e dos RGFs, considerando como divergências: i) campos no RGF que não existem no sistema; ii) valores diferentes; e iii) Tribunal não inseria informações no sistema. É provável que seja uma decorrência da alteração na LRF promovida pela Lei Complementar nº 156/2016.

Tabela 1
Comparativo SICONFI × RGFS

Não obstante, a pesquisa revelou que a crescente convergência entre os valores informados pelos Tribunais de Contas no Siconfi e no RGF não significa, necessariamente, a conformidade com a metodologia prevista no MDF. O MDF descreve os itens de despesa que podem ser deduzidos, no entanto, notas explicativas dos RGFs trazem outras hipóteses de dedução não previstas no Manual elaborado pela STN normalmente amparadas em decisões do próprio Tribunal de Contas. Portanto, ainda que os RGFs sigam o modelo de preenchimento previsto no Siconfi e no MDF, suas premissas podem divergir do Manual. O Quadro 1 resume as divergências identificadas entre os RGFs e o MDF.

Quadro 1
Divergências entre os RGFS e o MDF

Ainda sobre a exclusão de todos os inativos e pensionistas da despesa com pessoal, a LRF permite a dedução, se forem suportadas por recursos vinculados, inclusive as contribuições patronais e de servidores para a seguridade social do servidor público. Contudo, segundo o MDF, a exclusão de todos os inativos e pensionistas por alguns TCEs (TCE-AL, TCE-RO, TCE-RN, TCE-MS, TCE-PE, TCE-CE e TCE-PI, TCE-MA e TCE-PB) só seria possível, se o regime de previdência fosse superavitário, ou seja, o montante das receitas vinculadas à previdência se mostrasse suficiente para arcar com todos os benefícios do regime próprio do servidor público (RPPS). Ocorre que, segundo estudo do IFI (2019), em 2017 houve déficit no RPPS em quase todos os estados onde os TCEs permitem a exclusão dos inativos - a exceção foi Rondônia. O déficit financeiro no RPPS exige aportes do Tesouro do ente, que devem ser computados como despesa com pessoal. Além disso, alguns TCEs imputam a despesa com inativos e pensionistas ao Poder Executivo, prática que, além de limitar o espaço fiscal do executivo local, desconsidera que o servidor inativo prestou serviços ao órgão de controle externo durante sua atividade.

Essas divergências identificadas foram quantificadas no Anexo. Cabe observar que não foram calculadas as divergências sobre exclusão integral das despesas com inativos, uma vez que seriam necessárias informações sobre as contribuições de servidores e empregadores, além de dados do RPPS de cada ente sobre o vínculo empregatício original dos beneficiários. Ressalta-se que não foram localizadas divergências entre o MDF e os RGFs dos seguintes tribunais: TCU, TCM-SP, TCM-RJ, TCE-GO, TCE-SP, TCE-AM, TCE-MT, TCE-PI, TCE-RJ e TCE-MG - este último apresenta tabela com a metodologia do MDF, que é informada no Siconfi, e outra seguindo a própria jurisprudência.

As discrepâncias permitem reavaliar como seria o cumprimento dos limites de despesa com pessoal, considerando o percentual da Receita Corrente Líquida (RCL) atribuída a cada Tribunal de Contas, conforme apresentado no Anexo. Destaca-se que não há uniformidade no percentual da RCL destinada a cada Tribunal, por exemplo, o TCE-RN recebeu 0,62% da RCL estadual em 2018, já no TCE-AM o percentual foi de 1,43% da RCL. Esse percentual da RCL de cada Tribunal corresponde ao teto da despesa total com pessoal permitido no artigo 20 da LRF. Portanto, as Figuras 1, 2Giambiagi, F., & Além, A. C. (2016). Finanças Públicas: Teoria e Prática no Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Elsevier. e 3Instituição Fiscal Independente. (2019). Estudo especial nº 10 - Despesas do RPPS dos servidores civis da União. Recuperado dehttps://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/558845/EE_10_Impacto_PEC.pdf
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demonstram o impacto das divergências metodológicas, considerando que o limite máximo corresponde ao total da respectiva cota da RCL:

Figura 1
Limites da despesa com pessoal em 2016

Figura 2
Limites de despesa com pessoal em 2017

Figura 3
Limites de despesa com pessoal em 2018

No período de 2016 a 2018 verifica-se aumento nas divergências metodológicas entre os RGFs dos Tribunais de Contas e o MDF. Em 2016, houve 18 divergências, em 2018 foram 20, conforme demonstrado no Anexo - os gráficos das Figuras 1, 2 e 3 não capturam o efeito de todas as discrepâncias, pois não foram obtidos dados do TCM-BA e TCE-MS. Comparando com a Tabela 1, nota-se que a convergência entre os dados do Siconfi e dos RGFs não implicou aderência à metodologia para apuração da despesa com pessoal prevista no MDF.

Ressalta-se que algumas divergências decorrem de decisões publicadas a partir de 2017, quando já havia a obrigatoriedade de informar as despesas no Siconfi, segundo o formato do MDF: (i) TCE-ES passou a excluir o aporte para o déficit financeiro do RPPS; (ii) TCE-PE excluiu abono permanência e o terço constitucional de férias; e (iii) a Resolução nº 02/2019 do TCE-TO excluiu o IRRF, prática que não foi suficiente para que o órgão reduzisse a despesa com pessoal para ficar abaixo do limite máximo de 100% da sua cota de RCL. A prática com maior impacto na redução do percentual da despesa com pessoal é a exclusão do IRRF. Em alguns casos, a inclusão do IRRF eleva a despesa com pessoal sobre a correspondente RCL de tal maneira que acionaria os gatilhos de correção previstos na LRF.

Os resultados da pesquisa podem ser explicados por limitações institucionais à atuação dos Tribunais de Contas no controle da regra de despesa. Melo, Pereira, e Souza (2014Melo, M. A. B. C., Pereira, C., & Souza, S. S. (2014). Why do governments resort to ‘creative accounting’ but not others? Fiscal governance in the Brazilian Federation. International political science review, 35(5) 595-612.) associam a existência de “criatividade fiscal” às fragilidades institucionais do Tribunais de Contas, tornando-os mais expostos às pressões dos poderes executivo e legislativo locais. Uma dessas fragilidades seria a ausência de conselheiros concursados no plenário. Nunes et al. (2019Nunes, S. P. P., Marcelino, G. F., & Silva, C. A. T. (2019). Os Tribunais de Contas na interpretação da Lei de Responsabilidade Fiscal. Revista de Contabilidade e Organizações, 13, e145151. Recuperado de http://dx.doi. org/10.11606/issn.1982-6486.rco.2019.145151
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) demonstram que as assimetrias no cumprimento da LRF decorrem da interpretação dada pelos Tribunais de Contas sobre alguns de seus conceitos balizadores, principalmente a forma de apurar a RCL e a despesa com pessoal. Para os autores, as diferentes interpretações estariam correlacionadas ao critério de indicação política para o cargo de conselheiro, em que muitos dos indicados são ex-deputados e não têm interesse em aplicar sanções contra os chefes do Poder Legislativo ou em induzir a cortes de despesas com pessoal nessas casas. A suscetibilidade aos interesses de outros poderes revela as fragilidades da independência de órgãos de controle externo.

Nas Figuras 1,2 a 3 restou demonstrado que alguns Tribunais de Contas teriam que acionar os gatilhos de ajuste da LRF para reduzirem suas despesas com pessoal se seguissem o MDF. Consequentemente, haveria restrição aos aumentos remuneratórios e à posse de servidores concursados. Aqueles que ultrapassassem o limite de 100% da cota da RCL teriam que extinguir cargos. Portanto, há incentivos dentro do Tribunal de Contas para a manutenção das interpretações divergentes, uma vez que ampliam a própria margem de despesa com pessoal.

A análise das notas explicativas apresentadas nos RGFs também destaca como a atuação dos Tribunais de Contas pode ser mitigada, legalmente, por outros poderes. Em Rondônia, o Acórdão APL-TC no 0499/16 do Tribunal de Contas revogou decisão anterior do próprio órgão que permitia a dedução do IRRF no cálculo da despesa total com pessoal. Contudo, o Ministério Público Estadual impetrou mandado de segurança contra o Acórdão de 2016, posteriormente concedido pelo Tribunal de Justiça, evitando que a exclusão do IRRF afetasse outros poderes do Estado.

Em Goiás, a Emenda Constitucional Estadual no 55, de 21/09/2017, incluiu o parágrafo 8o no artigo 113 para excluir do limite global de despesa com pessoal os pagamentos de pensões e valores referentes ao IRRF. Apesar dessa previsão na constituição estadual, o TCE/GO publicou a Resolução nº 09/2016 que determinava a publicação do RGF segundo o MDF. Por meio da LAI o Tribunal disponibilizou o seguinte comparativo:

Tabela 2
Valores de pensionistas e IRRF excluídos pelos poderes e órgãos de Goiás

Em 2019 o STF concedeu medida cautelar na ação direta de constitucionalidade no 6.129/GO para suspender a eficácia das alterações na Constituição Estadual de Goiás que permitiram a exclusão de pensionistas e do IRRF. O STF entendeu que o legislativo subnacional deu carta branca à administração para ampliar os gastos com pessoal, ausente base econômica sólida a sustentar o imediato incremento das despesas, sem, contudo, ultrapassar os limites instituídos pela LRF. Houve “maquiagem” para escamotear o quadro de descontrole fiscal.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo buscou identificar e quantificar as divergências no cálculo da despesa dos Tribunais de Contas, avaliando o impacto sobre o limite de despesa com pessoal no órgão. A análise consistiu em comparar as informações dos Relatórios de Gestão Fiscal com o que preconiza o Manual de Demonstrativos Fiscais. Os resultados detalhados constam no Anexo, mas, resumidamente, em 2018 cinco Tribunais de Contas Estaduais ultrapassariam o limite máximo de despesa com pessoal e quatro alcançariam o limite prudencial, situações que ativariam gatilhos de contenção desse dispêndio.

A regra de gasto com pessoal é a principal regra de despesa comum a toda a federação brasileira. Kotia e Lledó (2016Kotia, A., & Lledó, V. (2016). Do subnational fiscal rules foster fiscal discipline? New empirical evidence from Europe(IMF Working Paper WP/16/84). Washington, DC: Fundo Monetário Internacional. Recuperado de https://ideas.repec.org/p/imf/imfwpa/16-84.html
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) listam os atributos para a efetividade das regras fiscais na contenção do viés deficitário dos governos, com destaque para a: i) independência do órgão que avalia o cumprimento das regras fiscais; e ii) existência de procedimentos orçamentários e contábeis comuns em toda a federação. A padronização das informações na contabilidade pública é crítica para a prestação de contas e a transparência, principalmente nos estados, pois possibilitam a comparabilidade, o monitoramento pelo governo central e a consolidação das informações fiscais do governo geral (Fainboim et al., 2015Fainboim, I., Fernandez, A., & Fouad, M. (2015). Budgeting, accounting and reporting. In C. Cottarelli, & M. Guerguil(Eds.), Designing a European fiscal union: lessons from the experiences of fiscal federations. Londres, UK: Routledge.).

A ausência da uniformização na forma de apurar as despesas com pessoal, além de prejudicar a comparabilidade entre demonstrativos fiscais - notadamente, o Relatório de Gestão Fiscal -, permite que alguns Tribunais de Contas ampliem o próprio limite de despesas com pessoal com base na metodologia que aplicam, evitando incorrer nas medidas de ajuste previstas na LRF. Nunes et al. (2019Nunes, S. P. P., Marcelino, G. F., & Silva, C. A. T. (2019). Os Tribunais de Contas na interpretação da Lei de Responsabilidade Fiscal. Revista de Contabilidade e Organizações, 13, e145151. Recuperado de http://dx.doi. org/10.11606/issn.1982-6486.rco.2019.145151
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) e Melo et al. (2014Melo, M. A. B. C., Pereira, C., & Souza, S. S. (2014). Why do governments resort to ‘creative accounting’ but not others? Fiscal governance in the Brazilian Federation. International political science review, 35(5) 595-612.) identificaram outras divergências nas interpretações dos órgãos de controle externo, as quais permitiriam a inscrição em restos a pagar superiores à disponibilidade de caixa no final do mandato (contrariando o art. 42 da LRF), ou foram lenientes com governos que descumpriram as metas fiscais. Esses autores apresentam como principal justificativa o interesse político dos conselheiros dos Tribunais que não desejavam prejudicar o Legislativo ou Executivo locais. A presente análise agrega às pesquisas anteriores o incentivo aos próprios Tribunais de Contas para manterem interpretações específicas sobre as despesas com pessoal, pois assim se mantêm abaixo dos limites da LRF e, consequentemente, prescindem de medidas para reduzir esse dispêndio.

A implicação prática dos resultados da pesquisa é a necessidade de harmonizar a interpretação da LRF sobre as despesas com pessoal. Uma medida possível seria a instalação do Conselho de Gestão Fiscal (CGF), previsto no art. 67 de LRF, com competência para padronizar as prestações de contas - o Projeto de Lei no 3.744/2000 propõe a regulamentação para o Conselho. Na ausência do CGF, o art. 50, §2º, da Lei de Responsabilidade Fiscal delega à Secretaria do Tesouro Nacional a edição de normas gerais para consolidação de contas públicas, mas nem todos os governos se sentem obrigados a seguir a regulamentação adotada (Afonso & Ribeiro, 2016Afonso, J. R., & Ribeiro, L. (2016, agosto). Um conselho para responsabilidade fiscal. Conjuntura Econômica, 70(8), 20-22.). De forma complementar, o Projeto de Lei Complementar no 149/2019, denominado “Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal”, altera o artigo 18 da LRF para deixar claro que servidores inativos e pensionistas devem ser computados na despesa com pessoal, além de modificar o artigo 59 para explicitar que os Tribunais de Contas são obrigados a seguir as normas técnicas do CGF.

Como indicação de pesquisas futuras, sugere-se avaliar como as diferentes interpretações dos Tribunais de Contas se refletem na apuração da despesa total com pessoal do ente. O Boletim de Finanças dos Entes Subnacionais (STN, 2019Secretaria do Tesouro Nacional. (2019). Boletim de finanças dos entes subnacionais. Brasília, DF: Ministério da Economia. Recuperado dehttp://sisweb.tesouro.gov.br/apex/cosis/thot/transparencia/arquivo/30407:981194:inline:9731352684720
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) comparou as despesas com pessoal segundo a metodologia do Programa de Reestruturação e Ajuste Fiscal (PAF) - que é a do Manual de Demonstrativos Fiscais - com a despesa informada no Relatório de Gestão fiscal consolidado pelo Poder Executivo dos estados.

REFERÊNCIAS

  • Afonso, J. R., & Ribeiro, L. (2016, agosto). Um conselho para responsabilidade fiscal. Conjuntura Econômica, 70(8), 20-22.
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  • Giambiagi, F., & Além, A. C. (2016). Finanças Públicas: Teoria e Prática no Brasil Rio de Janeiro, RJ: Elsevier.
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ANEXO

Tabela A
Tabela com as divergências encontradas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Nov-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    28 Ago 2019
  • Aceito
    17 Set 2020
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