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Letalidade policial e criminalidade violenta

Letalidad policial y criminalidad violenta

Resumo

Entre os operadores da Segurança Pública no Rio de Janeiro, há uma visão recorrente de que o padrão de patrulhamento baseado em incursões, frequentemente associado a episódios de letalidade policial, é necessário e efetivo para redução de crimes. Para investigar essa questão, este artigo apresenta exercícios econométricos que avaliam em que medida um maior número de mortes por intervenção de agentes do Estado está associado a variações subsequentes nos indicadores criminais. A análise cobre o período de 2003 a 2019 e indica que não há uma associação entre o aumento da letalidade policial e a redução dos índices de criminalidade no nível local. Ao contrário, em alguns casos, encontra-se uma correlação significativa e positiva, ou seja, mais mortes estão correlacionadas com maior atividade criminal, embora a magnitude dos efeitos seja bem reduzida. Observa-se, também, que mortes por intervenção de agentes do Estado estão associadas a maiores resultados operacionais, mensurados por apreensão de drogas e de armas. Os resultados são condizentes com um padrão de patrulhamento cuja prioridade é o combate ao varejo do tráfico de drogas.

Palavras-chave:
segurança pública; letalidade policial; homicídios dolosos; roubos; produtividade policial

Resumen

Una visión persistente entre los operadores de seguridad pública en Rio de Janeiro es que el patrón de patrullaje basado en redadas policiales, frecuentemente asociado con episodios de letalidad policial, es necesario y efectivo para reducir la criminalidad. Para investigar ese tema, este artículo presenta ejercicios econométricos que evalúan la medida en que un mayor número de muertes por intervenciones de agentes del Estado se asocia con variaciones posteriores en los indicadores criminales. El análisis, que abarca el período comprendido entre 2003 y 2019, indica que no existe una asociación entre el aumento de la letalidad policial y la reducción de las tasas de delincuencia a nivel local. Mientras que, en algunos casos, se encuentra una correlación significativa y positiva, es decir, se correlacionan más muertes con una mayor actividad criminal, aunque la magnitud de los efectos sea bastante reducida. Por otro lado, se observa que las muertes por intervención de agentes del Estado están asociadas con mayores resultados operativos, medidos por la incautación de drogas y de armas. Los resultados son consistentes con un patrón de patrullaje que prioriza la lucha contra el tráfico minorista de drogas.

Palabras clave:
seguridad pública; letalidad policial; homicidios; robos; productividad policial

Abstract

A common view among policy makers in Public Security in Rio de Janeiro is that the patrolling pattern based on police raids, regularly associated with the use of lethal force, is both necessary and effective to reduce crime. In order to examine this issue, this article presents econometric exercises to assess in what extent a greater number of police killings is correlated with subsequent variations in criminal indicators. The analysis covers the period from 2003 to 2019 and indicates no correlation between increases in the use of lethal force by the police and reductions in crime rates at the local level. On the contrary, in some cases, a significant and positive correlation is observed, which means more police killings are correlated with greater criminal activity, although the magnitudes of the effects are rather reduced. On the other hand, we show that police killings are associated with greater operational results, as measured by drugs and weapons seizure. The results are consistent with a patrolling pattern that prioritizes the combat of retail markets for illicit drugs.

Keywords:
public security; police killings; homicides; robberies; police productivity

1. INTRODUÇÃO

O Rio de Janeiro foi o primeiro estado a experimentar modalidades de criminalidade violenta que, no período recente, tornaram-se comuns em todo o país. Desde meados dos anos 1980, facções criminais disputam o controle de territórios no estado (Zaluar, 1994Zaluar, A. (1994). O condomínio do diabo. Rio de Janeiro, RJ: Revan.). A partir de final dos anos 1990, o conflito entre grupos criminosos violentos ganhou outros contornos com a entrada em cena das milícias, coletivos de criminosos liderados por policiais e ex-policiais que governam a vida cotidiana em troca do fornecimento de “ordem” e de “tranquilidade” (Cano & Duarte, 2012Cano, I., & Duarte, T. (2012). “No sapatinho”: a evolução das milícias no Rio de Janeiro [2008-2011]. Rio de Janeiro, RJ: Fundação Heinrich Böll.). Historicamente, as forças de Segurança Pública interferiram nesta dinâmica de forma intermitente, seja via controle ou interrupção de conflitos ou via incursões pontuais em comunidades com o objetivo de apreender armas, drogas e prender suspeitos em flagrante. Esse padrão de patrulhamento está frequentemente associado a episódios de tiroteio, devido à forte reação armada de criminosos buscando impedir a entrada das polícias em áreas controladas (Hirata & Grillo, 2017Hirata, D. V., Grillo, C. C. (2017). Sintonia e Amizade entre patrões e donos de morro: perspectivas comparativas entre o comércio varejista de drogas em São Paulo e no Rio de Janeiro. Tempo Social, 29, 75-97.), e a índices elevados de letalidade policial em serviço no território fluminense. Em 2018, o estado do Rio de Janeiro ficou em primeiro lugar na lista de estados brasileiros com maior taxa de mortes cometidas pela polícia, de 9,2 por 100 mil habitantes. Ao mesmo tempo, o estado ocupou apenas o 11º lugar em relação às mortes violentas intencionais, com uma taxa de 40,4 por 100 mil habitantes (Figura 1).

Figura 1
Taxa de mortes violentas intencionais e mortes por intervenção de agentes do estado em 2018 (número de mortes por 100 mil habitantes)

Apesar de o uso da força na atividade policial ter previsão legal e ser indicado em casos de ameaça à integridade pessoal do agente de segurança ou de outrem (Instrução Normativa PMERJ/EMG-PM/3 Nº 33, 2015Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro. (2015). Instrução Normativa PMERJ/EMG-PM/3 Nº 33, 23 de Julho de 2015. Rio de Janeiro, RJ: Secretaria de Estado de Segurança Pública .); no período recente, a letalidade policial no estado tem, repetidamente, atingido novos patamares (Figura 2). Isso pode indicar que o uso da força pelas polícias no Rio de Janeiro esteja em dissonância com os parâmetros técnicos e legais. A média mensal do número de mortes por intervenção de agentes do Estado foi de 54 em 2015 e, até agosto de 2019, estava em 156, o maior valor desde o início da série histórica divulgada pelo Instituto de Segurança Pública (ISP-RJ, 2019>Instituto de Segurança Pública(2019). Base DP: evolução mensal das estatísticas por circunscrição de Delegacia (1/2003 a 08/2019). Rio de Janeiro, RJ: Secretaria de Estado de Segurança Pública. Recuperado de http://www.ispdados.rj.gov.br/estatistica.html
http://www.ispdados.rj.gov.br/estatistic...
).

Figura 2
Série histórica mensal: mortes por intervenção de agentes do estado - janeiro de 2015 a agosto de 2019

O aumento dos patamares da violência policial é justificado pela necessidade de reduzir crimes em um contexto onde criminosos estão fortemente armados. Assim, inúmeros operadores da Segurança Pública no Rio de Janeiro sustentam que o padrão de patrulhamento baseado em incursões policiais é efetivo para redução de crimes.2 2 Como exemplo, ver declaração do porta-voz da PMERJ em entrevista ao Fantástico em programa exibido em 19/01/2020 (Recuperado em https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2020/01/19/em-2019-uma-em-cada-tres-pessoas-assassinadas-no-rio-de-janeiro-foi-morta-por-policiais.ghtml). Para avaliar a validade desta afirmação, o ideal seria analisar o comportamento dos indicadores criminais em locais onde a polícia atuou, sobretudo via operações e incursões em comunidades, em contraposição a outras formas de patrulhamento, e correlacioná-los com a variação do crime no nível dos batalhões ou delegacias. Infelizmente, esse tipo de análise não pode ser feito devido à ausência de informação sobre onde e quando a polícia atuou. Entretanto, segundo análise georreferenciada de mortes por agentes de Estado ocorridas entre janeiro de 2018 e agosto de 2019, 51% dessas mortes ocorrem em até 100 metros dos limites de comunidades no Rio de Janeiro, o que corrobora que o modelo de patrulhamento baseado no enfrentamento e em incursões em comunidades está associado a um maior número de mortes de civis por intervenção de agentes do Estado.

Ainda que seja uma prerrogativa do Estado, há pelo menos duas consequências graves do uso inadvertido e generalizado da força letal por parte de seus agentes. Primeiro, a banalização desse tipo de evento leva a mortes de inocentes e interrupção de atividades econômicas e de provisão de serviços (Redes da Maré, 2019>Redes da Maré. (2019). Boletim Direito à Segurança Pública na Maré (3a ed.). Recuperado de https://redesdamare.org.br/br/info/22/de-olho-na-mare
https://redesdamare.org.br/br/info/22/de...
). Em contextos em que o excesso policial se concentra em áreas mais pobres das cidades, como no Rio de Janeiro, esse tipo de ação tende a acentuar desigualdades. Por exemplo, Monteiro e Rocha (2017Monteiro, J., & Rocha, R. (2017). Drug battles and school achievement: evidence from Rio de Janeiro’s favelas. Review of Economics and Statistics, 99(2), 213-228.) evidenciam os efeitos negativos de paralisações da rotina escolar no desempenho dos alunos no Rio de Janeiro, e Ang (No preloAng, D. (No prelo). The effects of police violence on inner-city students. The Quarterly Journal of Economics.) demonstra que a exposição a episódios de violência policial é prejudicial aos estudantes de Los Angeles (EUA), com maiores efeitos em alunos com características semelhantes às vítimas e quando há episódios nos quais suspeitos foram alvejados mesmo desarmados. O excesso de violência policial e a vitimização de jovens implicam, ainda, reduções na expectativa de vida de residentes das áreas afetadas, o que desincentiva investimentos em capital humano (Oster, Shoulson, & Dorsey, 2013Oster, E., Shoulson, I., & Dorsey, E. R. (2013). Limited life expectancy, human capital and health investments. American Economic Review, 103(5), 1977-2002.; Soares, 2005Soares, R. R. (2005). Mortality reductions, educational attainment, and fertility choice. American Economic Review, 95(3), 580-601.).

Mais grave, a literatura em criminologia sugere que a legitimidade das forças policiais é importante para o combate efetivo da ação criminosa (Desmond, Papachristos, & Kirk, 2016Desmond, M., Papachristos, A. V., & Kirk, D. S. (2016). Police violence and citizen crime reporting in the black community. American Sociological Review, 81(5), 857-876.). Desse modo, mortes de inocentes e interrupção da rotina diária dos cidadãos, frequentes subprodutos do excesso do uso da força, têm impacto direto sobre a percepção dos indivíduos em relação à ação das forças de segurança (Silva & Leite, 2007Silva, L. A. M., & Leite, M. P. (2017) Violência, crime e polícia: o que os favelados dizem quando falam desses temas? Sociedade e Estado, 22(3), 545-591.) e, como consequência, prejudicam a própria efetividade policial.

Neste artigo, busca-se identificar em que medida um maior número de mortes por agentes do Estado está associado a redução de crimes. Para tanto, são apresentados exercícios econométricos que buscam analisar se o aumento de mortes por agentes do Estado em determinado mês em uma circunscrição de delegacia é sucedido por quedas nos indicadores criminais no mês subsequente, na mesma área. É importante ressaltar que o exercício aqui apresentado não propõe identificar uma relação de causa e efeito entre letalidade policial e criminalidade violenta, visto que muitos fatores influenciam simultaneamente estas variáveis. O que se deseja é simplesmente analisar se há alguma correlação entre as variáveis no nível local, uma vez que se expurgue efeitos locais e temporais. Em resumo, os resultados não indicam uma associação entre o aumento da letalidade policial e a redução dos índices de criminalidade no nível local. Ao contrário, os dados apontam que a correlação é positiva: mais mortes estão correlacionadas com maior atividade criminal, embora as magnitudes dos efeitos sejam bem reduzidas.

2. METODOLOGIA

A análise da correlação entre um padrão de patrulhamento baseado em incursões policiais e indicadores criminais não é trivial em termos empíricos. As informações sobre a frequência e o local de operações realizadas pelas polícias no Rio de Janeiro não são públicas. Além do mais, diversos fatores não observáveis podem influenciar essa relação. A seguir, apresenta-se a estratégia empírica adotada para superar, em parte, esses desafios.

No primeiro caso, optou-se por utilizar as mortes por agentes de Estado como proxy para o padrão de patrulhamento baseado em incursões, tendo em vista que grande parte da letalidade policial ocorre nesse contexto. O exercício aqui apresentado compara, ao longo do tempo, o volume de mortes por intervenção policial em áreas de delegacia com: (i) homicídios dolosos; (ii) resultados operacionais da polícia - apreensão de drogas, armas e prisões; e (iii) roubos - roubo de rua, roubo de veículos e roubo de carga.

Uma vez que as variáveis em questão assumem apenas números inteiros não negativos, é necessário utilizar modelos que levem em conta a natureza não linear dos dados e a recorrência de zeros3 3 O apêndice apresenta a frequência do número mensal de homicídios por delegacia de polícia e evidencia a alta proporção de zeros na distribuição. . Assim, foram utilizados os modelos de regressão de Poisson, da família de modelos de contagem4 4 Os mesmos exercícios são replicados para modelos de regressão linear com a variável dependente expressa em logaritmo natural (valores cujo logaritmo é indefinido são codificados como zero) e modelos de contagem de distribuição Binomial Negativa e apresentam resultados (não reportados) semelhantes. Para dados em painel e modelos de efeito fixo, como nas especificações principais, Poisson é consistente sob hipóteses menos restritivas do que a Binomial Negativa e pode lidar com eventuais problemas de sobredispersão mediante estimação robusta dos erros-padrão (Cameron & Trivedi, 2015). . Nesse caso, assume-se que os indicadores criminais condicionais às variáveis explicativas possuem distribuição Poisson e estima-se a seguinte equação para a média condicional:

E y i a m X i a m = e x p ( β 0 + β 1 M o r t e s _ I n t _ P o l i a m + α a + θ m + y i )

Em que yiam representa determinado indicador criminal, como homicídios dolosos, para a delegacia i, no ano a e mês m, e Xiam é o vetor de variáveis explicativas para a mesma delegacia, mês e ano, composto por mortes por intervenção de agentes do Estado (Mortes_Int_Poliam) e efeito fixo de ano (αa), mês (θm) e delegacia (γi).

A inclusão de variáveis que indicam ano e mês isola a influência de efeitos sazonais. Por sua vez, a inclusão das variáveis que indicam a delegacia de polícia (DP) permite levar em consideração os perfis distintos das delegacias, de modo que o coeficiente estimado para não seja confundido com os fatores fixos específicos de cada área de delegacia. Essa inclusão é relevante porque as áreas de delegacias apresentam especificidades relevantes no Rio de Janeiro, como áreas conflagradas e de favelas.

Os dados utilizados foram compilados pelo ISP-RJ, órgão responsável pela divulgação de estatísticas criminais oficiais do Estado do Rio de Janeiro. O painel mensal construído no nível de delegacia contempla os meses entre janeiro de 2003 e agosto de 20195 5 Para prisões e apreensão de fuzis, os dados estão disponíveis a partir de 2006 e 2007 respectivamente. , último mês disponível no momento de elaboração deste estudo. Em 2019, existiam 137 delegacias distritais no Rio de Janeiro, mas no exercício utilizou-se a divisão existente de 2003, quando havia 127 delegacias, para permitir a comparação territorial ao longo do tempo.

3. RESULTADOS

3.1 Mortes por agentes do Estado e homicídio doloso

A Tabela 1 apresenta os resultados de regressões com homicídio doloso como variável dependente e verifica-se a correlação entre mortes por intervenção de agentes do Estado e homicídio doloso no mês seguinte. Conforme mencionado na seção anterior, os coeficientes desse tipo de regressão podem ser interpretados como variação percentual média aproximada de homicídios dolosos que está associada a uma morte adicional por intervenção de agentes do Estado.

O resultado da coluna 1 controla apenas a sazonalidade mensal e choques anuais de crime. A coluna 2 apresenta o resultado da especificação principal, com a adição de efeitos fixos de DP, considerando, assim, as especificidades de cada delegacia. Os resultados indicam que uma morte adicional provocada por policiais está em média associada a um aumento de 1,6% dos homicídios dolosos no mês subsequente.

Desse modo, não há nada que indique que mortes por intervenção policial estão negativamente associadas a homicídio doloso. Ao contrário, os coeficientes se aproximam de zero quando há controle dos efeitos intrínsecos a cada DP, mas são positivos: mortes por intervenção policial são acompanhadas por mais homicídios dolosos nas circunscrições de delegacia de polícia6 6 No apêndice, demonstramos que os resultados apresentados são robustos em relação a definições alternativas à unidade de análise: i) áreas de delegacias de polícia vizinhas e ii) Áreas Integradas de Segurança Pública (AISP), que correspondem às áreas dos batalhões de polícia militar. A manutenção das conclusões se estende às demais variáveis dependentes (resultados não reportados). .

Tabela 1
Homicídio doloso

3.2 Mortes por agentes do Estado e resultados operacionais

A Tabela 2 apresenta os resultados estimados da relação entre mortes por intervenção policial e indicadores de resultados operacionais: apreensão de drogas (colunas 1 e 2), de armas (colunas 3 e 4), de fuzis (colunas 5 e 6) e prisões (colunas 7 e 8).

Os resultados principais estão nas colunas pares, com resultados de regressões que têm controle de fatores fixos às delegacias, além de choques temporais. Eles indicam que uma morte adicional provocada por policiais está associada em média a um aumento de apenas 1,7% de registros de apreensão de drogas, de 8,2% no número de apreensão de armas e de 14,3% no de fuzis7 7 Os coeficientes das regressões em que a média condicional é modelada como exponencial podem ser interpretados como semi-elasticidades. Por exemplo, uma morte adicional por intervenção policial está associado a um aumento de 8,2% [exp(0,079) - 1 = 0,082] de apreensão de armas. . Em relação a prisões, a correlação não é estatisticamente diferente de zero8 8 Os erros-padrão robustos em cluster no nível da delegacia de polícia levam em conta a dependência dos erros para as mesmas unidades de análise ao longo do tempo, mas potencialmente não levam em consideração um possível padrão de correlação espacial entre elas. Porém, desde que a correlação espacial seja invariante no tempo, o estimador da variância em modelo Poisson de efeito fixo é consistente e os erros-padrão podem ser usados para inferência (Bertanha & Moser, 2016; Azoulay, Fons-Rosen, & Zivin, 2019) .

Os resultados desse exercício eram esperados, visto que elevados níveis de mortes por intervenção de agentes do Estado ocorrem tipicamente em consonância com incursões policiais em comunidades, em que um dos objetivos é a apreensão de armas e drogas.

Tabela 2
Resultados Operacionais da Polícia

3.3 Mortes por agentes do Estado e roubos

A Tabela 3 apresenta os resultados da correlação entre mortes por intervenção policial e roubos no mês subsequente. Cada par de coluna refere-se respectivamente a roubos de rua, roubos de veículo e roubos de carga no mês seguinte.

Na comparação entre delegacias diferentes, apresentada nas colunas ímpares, as correlações são altas e positivas. Essa correlação permanece positiva quando se levam em conta as diferenças intrínsecas das delegacias, conforme indicado nas colunas pares. Assim como no caso dos homicídios, os resultados mostram que a correlação, mesmo que baixa, é positiva: uma morte adicional por intervenção policial é acompanhada, em média, de 1,4% mais roubos de rua, 2,9% mais roubos de veículos e 2% de roubos de carga a mais.

Tabela 3
Roubos

4. CONCLUSÃO

Os resultados dos exercícios econométricos propostos mostram que não há correlação negativa entre letalidade policial e atividade criminal. Apesar de a identificação de relações de causa e efeito estar além do escopo deste artigo, os resultados não indicam que maiores índices de letalidade policial em determinada área de delegacia de polícia estejam acompanhados de quedas nos crimes contra o patrimônio e contra a vida. Ao contrário, a relação desses crimes com letalidade policial, quando existe, é pequena e positiva.

Em contrapartida, os resultados mostram que existe uma correlação alta e positiva entre mortes por intervenção policial e apreensão de fuzis e armas em geral, o que provavelmente reflete o fato de que são resultados típicos de um padrão de patrulhamento baseado em incursões policiais em que há forte confrontação. Essa associação, porém, é próxima de zero para os demais indicadores criminais: no caso de homicídio doloso, uma morte provocada por policiais, em média, antecipa um aumento em 1,6% de homicídios dolosos no mês seguinte na área daquela DP; em relação a diferentes tipos de roubo, ela varia entre 1,4% e 2,9% nas especificações em que se leva em consideração as características fixas de cada DP. As análises de robustez mostram que o exercício proposto refuta a tese de que um padrão de patrulhamento baseado em incursões seria efetivo para gerar reduções de indicadores criminais, mesmo com definições alternativas para a unidade de análise.

Este trabalho teve como objetivo investigar tão somente se há algum embasamento na afirmação de que a letalidade policial é um problema necessário no combate à criminalidade no Rio de Janeiro. Não se pretende aqui apresentar explicações para variações de criminalidade no Rio de Janeiro, que possivelmente incluem outros esforços empreendidos pelas polícias. Ainda assim, os resultados apresentados conseguem indicar que a efetividade de ações policiais associada ao incremento da letalidade parece estar restrita a apreensão de drogas e armas. Reduções de homicídios dolosos e roubos, porém, não são tipicamente observadas após incrementos na letalidade policial. Para um melhor entendimento sobre quais ações policiais estão associadas a redução de crime, é importante ter informações sobre alocação de recursos policiais em cada área do estado e como eles variam no tempo, especialmente número de policiais e viaturas na rua. Entender fatores associados à redução da criminalidade no Rio de Janeiro e à contribuição da polícia deveria ser uma preocupação fundamental em um estado que há 30 anos sofre com as consequências da violência.

AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem a Afonso Borges, Ramón Chaves e a toda equipe do Centro de Pesquisas do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (CENPE/MPRJ) pelos valiosos comentários e sugestões ao trabalho.

REFERÊNCIAS

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  • Zaluar, A. (1994). O condomínio do diabo Rio de Janeiro, RJ: Revan.
  • 1
    Recuperado em http://www.ispdados.rj.gov.br/estatistica.html
  • 2
    Como exemplo, ver declaração do porta-voz da PMERJ em entrevista ao Fantástico em programa exibido em 19/01/2020 (Recuperado em https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2020/01/19/em-2019-uma-em-cada-tres-pessoas-assassinadas-no-rio-de-janeiro-foi-morta-por-policiais.ghtml).
  • 3
    O apêndice apresenta a frequência do número mensal de homicídios por delegacia de polícia e evidencia a alta proporção de zeros na distribuição.
  • 4
    Os mesmos exercícios são replicados para modelos de regressão linear com a variável dependente expressa em logaritmo natural (valores cujo logaritmo é indefinido são codificados como zero) e modelos de contagem de distribuição Binomial Negativa e apresentam resultados (não reportados) semelhantes. Para dados em painel e modelos de efeito fixo, como nas especificações principais, Poisson é consistente sob hipóteses menos restritivas do que a Binomial Negativa e pode lidar com eventuais problemas de sobredispersão mediante estimação robusta dos erros-padrão (Cameron & Trivedi, 2015Cameron, A. C., & Trivedi, P. K. (2015). Panel count data. In Baltagi, B. H. (Ed.), The Oxford handbook of panel data 1a . ed., Cap. 8, pp. 233-256 Oxford, UK: Oxford Univesity Press.).
  • 5
    Para prisões e apreensão de fuzis, os dados estão disponíveis a partir de 2006 e 2007 respectivamente.
  • 6
    No apêndice, demonstramos que os resultados apresentados são robustos em relação a definições alternativas à unidade de análise: i) áreas de delegacias de polícia vizinhas e ii) Áreas Integradas de Segurança Pública (AISP), que correspondem às áreas dos batalhões de polícia militar. A manutenção das conclusões se estende às demais variáveis dependentes (resultados não reportados).
  • 7
    Os coeficientes das regressões em que a média condicional é modelada como exponencial podem ser interpretados como semi-elasticidades. Por exemplo, uma morte adicional por intervenção policial está associado a um aumento de 8,2% [exp(0,079) - 1 = 0,082] de apreensão de armas.
  • 8
    Os erros-padrão robustos em cluster no nível da delegacia de polícia levam em conta a dependência dos erros para as mesmas unidades de análise ao longo do tempo, mas potencialmente não levam em consideração um possível padrão de correlação espacial entre elas. Porém, desde que a correlação espacial seja invariante no tempo, o estimador da variância em modelo Poisson de efeito fixo é consistente e os erros-padrão podem ser usados para inferência (Bertanha & Moser, 2016Bertanha, M., & Moser, P. (2016). Spatial errors in count data regressions.Journal of Econometric Methods, 5(1), 49-69.; Azoulay, Fons-Rosen, & Zivin, 2019Azoulay, P., Fons-Rosen, C., & Zivin, J. S. G. (2019). Does science advance one funeral at a time?American Economic Review, 109(8), 2889-2920.)
  • 9
    Cada par foi definido como vizinho caso a menor distância entre duas circunscrições de delegacia não seja maior do que 100 metros. Nesse exercício, a variável dependente para a i-ésima delegacia é a soma dos homicídios dolosos nas áreas vizinhas à delegacia i, e uma morte adicional provocada por agentes do Estado não está associada a reduções de homicídios dolosos na especificação principal.
  • 10
    As Áreas Integradas de Segurança Pública (AISP) correspondem às áreas dos batalhões de polícia militar, de modo que cada uma dessas áreas engloba em média áreas referentes a 3,2 delegacias. No nível da AISP, a associação entre letalidade policial e homicídios dolosos é também próxima de zero.

APÊNDICE

Figura 3
Histograma do número mensal de homicídios dolosos por delegacia de polícia

Tabela 4
Homicídio doloso - robustez - delegacias vizinhas9 9 Cada par foi definido como vizinho caso a menor distância entre duas circunscrições de delegacia não seja maior do que 100 metros. Nesse exercício, a variável dependente para a i-ésima delegacia é a soma dos homicídios dolosos nas áreas vizinhas à delegacia i, e uma morte adicional provocada por agentes do Estado não está associada a reduções de homicídios dolosos na especificação principal.
Tabela 5
Homicídio doloso - robustez - área integrada de segurança pública10 10 As Áreas Integradas de Segurança Pública (AISP) correspondem às áreas dos batalhões de polícia militar, de modo que cada uma dessas áreas engloba em média áreas referentes a 3,2 delegacias. No nível da AISP, a associação entre letalidade policial e homicídios dolosos é também próxima de zero.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    Nov-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    07 Fev 2020
  • Aceito
    11 Maio 2020
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