Acessibilidade / Reportar erro

Um padrão de política pública na crise econômica mundial

SEÇÕES ESPECIAIS

A CONJUNTURA DAS ESCOLHAS PÚBLICAS

Professor de políticas públicas da Escola Brasileira de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas (Ebape/FGV) e professor associado do Departamento de Economia da PUC-Rio. Endereço: PUC-Rio — Departamento de Economia — Rua Marquês de São Vicente, 225 — Gávea — CEP 22453-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: jvinmont@econ.puc-rio.br

Um comentário estabelecido a partir do modelo analítico da public choice — uma vertente da moderna economia política que considera as políticas públicas resultado da interação social, sob instituições de governo representativo.

Coordenação: Jorge Vianna Monteiro

1. Introdução

Na seqüência da crise iniciada em março de 2008, com o reconhecimento da falta de liquidez de fundos do quinto maior banco de investimentos dos EUA,1 1 "Bear searns: crisis and 'rescue' for a major provider of mortgage-related products", CRS Report for Congress, 2008. Em verdade, a realidade do mercado norte-americano pós-novembro de 2001 (quando a gigante do setor de energia, Enron Corporation, abriu falência) parece não ter ensinado qualquer lição de precaução relevante aos reguladores do governo dos EUA, aos analistas econômicos e mesmo aos economistas acadêmicos. A esse respeito, ver Berman, "Post-enron crackdown comes up woefully short", Wall Street Journal, 28 out. 2008. a conjuntura mostra um forte agravamento dessa crise que acabou por se estender a vários outros segmentos do mercado financeiro, levando a uma proposta de operação de salvamento de US$ 700 bilhões e sua subseqüente rejeição pela Câmara de Representantes dos EUA, em 29 de setembro de 2008.2 2 "Mixed markets reflect hope for bailout", New York Times, 30 set. 2008. Por fim, em 1o de outubro de 2008, o Senado norte-americano aprovou um plano de socorro ao mercado financeiro ("Senate passes bailout", CNNMoney.com, 1o out. 2008). Mais do que examinar essas ocorrências isoladamente, este artigo retoma a perspectiva de processo ou regime que está subjacente a esse tão significativo avanço regulatório no que, de outro modo, sempre foi tido por um relevante campo da atividade privada.

A propagação da crise financeira iniciada há semanas nos EUA vai alcançando a economia brasileira, não tanto pelo tamanho do impacto negativo causado nos principais indicadores macroeconômicos, mas na similaridade de processos ou regimes que têm sido acionados pelos policy makers, para pôr em prática políticas compensatórias.3 3 Ver, por exemplo, a Medida Provisória no 442, de 6 de outubro de 2008.

É por essa perspectiva que se torna muito didático observar o que se passa em outras economias nacionais e a instrumentação das políticas anticrise que têm sido adotadas. Vale ressaltar a momentânea convergência de esforços das forças políticas, o que no caso dos EUA e do Brasil tem permitido perceber a manifestação do sistema constitucional da separação de Poderes que, em ambos os casos (porém, por motivos diversos) tem operado muito deficientemente (Monteiro, 2007, apêndice B).

Porém, há outras características notórias nesses processos de reação à crise econômica.

2. Primeiras lições

Uma ocorrência trivial nas democracias contemporâneas é que muito da regulação econômica afeta interesses e direitos do cidadão, sem incorporar os benefícios do processo legislativo ou judicial. De fato, as escolhas públicas são amplamente arquitetadas e operacionalizadas pela via da deliberação da alta gerência do Executivo.

Um exemplo dramático desse tipo de ocorrência está na economia dos EUA. A dinâmica frenética da crise no sistema financeiro leva a que unidades de decisão fora da esfera do Legislativo (substancialmente o Departamento do Tesouro e o Banco Central) superintendam toda a cadeia de decisões típicas de uma política pública.

Com isso, de início, o Congresso norte-americano parecia assumir o papel de mero espectador (ou chamado a homologar tardia e inapelavelmente essas escolhas),4 4 De fato, na seqüência dos fatos, a classe política nos EUA e na União Européia vai ocupando espaço no entendimento da gerência de riscos implícito na regulação econômica, assim como na deliberação quanto a novas regras do jogo regulatório, seja para fins internos das economias nacionais, seja para a coordenação de políticas, no âmbito das organizações multilaterais "Taking hard new look at a Greenspan Legacy", New York Times, 9 out. 2008, The Reckoning. ainda que o vulto das operações encampadas por essa política possa alcançar centenas de bilhões de dólares, e o que esteja em causa seja o comprometimento tão dramático com uma dada trajetória da economia nacional, por um longo período de tempo: com o "poder de tomar decisões momentosas concentrado em muito poucas mãos".5 5 Outra vez, o mencionado caso da economia dos EUA mostra três outras implicações graves do padrão de escolhas adotado nessas circunstâncias ("Lawmakers left on the sidelines as Fed, Treasury take swift action", Washington Post, 18 set. 2008, p. A1): (a) um deputado do Partido Republicano e destacado membro da Comissão de Orçamento da Câmara comentou: "meus instintos e minhas entranhas me dizem que eles fizeram a jogada errada. Todavia, eu não disponho de toda a informação que eles detêm."; (b) trivialmente, a própria racionalidade dos políticos pode ficar negativamente afetada pela decisão de promover uma determinada ação na economia: "por quanto tempo pode-se esperar que o já encurralado contribuinte arque com todas as perdas e arque com todos os riscos?", argumentou outro deputado republicano; (c) os efeitos distributivos de uma decisão dessas também podem ser interpretados do ponto de vista de que segmentos beneficiados podem se mostrar mais efetivos, ao pressionar o processo decisório público, no atendimento de seus interesses preferenciais: "Lehman Brothers deve ter o pior lobbying na cidade, uma vez que eles foram os únicos que parecem ter ficado de fora da mania de socorro financeiro", adicionou o mesmo deputado.

Não obstante as decisões de política abrigarem-se no quadro constitucional-legislativo vigente na economia nacional, há muito espaço para que elas se distanciem dos pressupostos mais fundamentais dessa moldura e, por conseqüência, não se pode garantir que a formulação de políticas observe o processo institucional apropriado (Woolley, 2008:154).6 6 Ou dito de outro modo, é ampla a extensão em que uma dada política pública pode incorporar critérios de decisão informais e que atendam às preferências dos burocratas, sem que isso seja sequer notado ou mesmo argüido como legalmente impróprio: tais escolhas são ao mesmo tempo um mecanismo de poder discricionário e, elas próprias, as decisões discricionárias (Woolley, 2008:157). Ver também a seção 3, adiante.

Não se pode sempre afirmar que isso decorra apenas da urgência com que os policy makers são chamados a atuar, ou que esse seja um padrão decisório que possa caracterizar uma usurpação de poder por parte do departamento executivo do governo. Em verdade, é fato que (Wenig, 2004):

▼ muitas leis aprovadas na legislatura tornam-se, deliberadamente ou não, amplos guarda-chuvas que acomodam muita flexibilidade, não apenas para que se estabeleça o conteúdo de uma política pública, mas também o ambiente em que tal política pode ser definida e a instrumentação e o timing de sua operacionalização;

▼ há poucos mecanismos legislativos que são efetivos na responsabilização dos burocratas, por suas escolhas de políticas, e são fracas as justificativas para que os legisladores se detenham mais atentamente na consideração do ambiente em que essas políticas são estabelecidas e operacionalizadas, especialmente em uma conjuntura de crise.

Por certo que o mais flagrante exemplo dessas propriedades das escolhas públicas no ambiente institucional brasileiro é a política orçamentária da União, a começar pelo habitual faz-de-conta da aprovação da Lei de Diretrizes Orçamentárias e da Proposta Orçamentária da União.

Porém, há igualmente ocorrências que, embora virtuosas por seu processo de formulação (Monteiro, 2006, 2007, apêndice A), acabam por ter sua operacionalização fortemente ditada por escolhas discricionárias dos burocratas do Executivo. Tal é o exemplo da política de parcerias público-privadas (PPPs), Lei no 11. 079, de 30 de dezembro de 2004, que tem sido operada com enorme parcimônia, mesmo no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). A relevância atribuída pelo Congresso Nacional ao arranjo das PPPs como mecanismo de financiamento de investimentos em infra-estrutura acabou minimizada, quando localizado no conjunto de escolhas dos burocratas. Em nenhum momento, nessa fase operacional, foi retomado o leque de questões estratégicas que tão bem ficou evidenciado na tramitação do projeto de lei das PPPs, especialmente nas discussões na Comissão de Assuntos Econômicos, do Senado Federal, entre maio e novembro de 2004.

Este último exemplo lembra que não chega a ser uma boa desculpa, para a concentração da tomada de decisões, argüir com o despreparo do processo decisório da legislatura. Tal como no caso norte-americano, acima referido, há instâncias especializadas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal que, por certo, poderiam ser consultadas, ao longo do processo deliberativo de uma política pública. Afinal, é no papel de membro de uma comissão legislativa que o deputado ou senador opera como especialista. Ademais, muitas dessas políticas têm uma contrapartida orçamentária para a qual as regras constitucionais reservam importante papel a ser desempenhado pelos legisladores.

3. Uma implicação constitucional

De um ponto de vista constitucional (Monteiro, 2007:40), percebe-se que as medidas anticrise que vão sendo postas em prática na economia norte-americana são decisões que decorrem da autoridade do Federal Reserve. E mais: que tais decisões foram tomadas sem necessitar da concordância prévia do presidente dos EUA ou dos legisladores; trata-se de um exemplo didático de exercício de autoridade unilateral, até mesmo de um poder quase-ditatorial (Balkin, 2008), mesmo porque, ninguém esperaria que o presidente tomasse esse tipo de iniciativa, nem presumivelmente se desejaria que isso se desse, uma vez que as regras do jogo estariam sendo violadas. Sob essa mesma perspectiva, há outras implicações dessa política compensatória:

▼ com a condição da independência da autoridade monetária (Federal Reserve) sendo fortemente reconfigurada, em todo esse episódio.

As conseqüências disso se farão sentir de agora em diante em outras áreas substantivas de política7 7 Seguros de depósitos, mercado de valores mobiliários, recapitalização do sistema bancário, alteração do poder de monopólio em diversos mercados, entre outras. tanto quanto no arranjo institucional-constitucional do Banco Central e da própria política monetária que tem vigorado até aqui em outras economias nacionais, muito especialmente na economia brasileira:8 8 Um dos desdobramentos mais imediatos que essa política provoca é o redimensionamento a que está sujeita a política de regulação da competitividade, em razão do progressivo aumento do grau de concentração de variados mercados, em razão do uso de absorção e fusão de empresas ("U.S. forces nine major banks to accept partial nationalization", WashingtonPost.com, 13 out. 2008). A observar, especialmente, a recém-anunciada (3 out. 2008) fusão dos bancos Itaú e Unibanco, o que por certo aumentará ainda mais a elevada concentração no mercado bancário e financeiro brasileiro.

▼ dada a extensão da solução sob análise, a política delineada no documento de trabalho apresentado em 28 de setembro de 20089 9 "Opening step on long road", New York Times, 29 set. 2008. tem um alcance muito amplo,10 10 A ponto de sua versão escrita se estender por mais de 100 páginas. ao prover "autoridade ao governo federal para comprar e segurar certos tipos de ativos problemáticos, com o propósito de dar estabilidade, prevenir o desregramento na economia e no sistema financeiro, e proteger os contribuintes", como afirma o preâmbulo desse documento;

▼ essa classe de política pública é um comprometimento de grande porte de um governo incumbente, mas que será executada, em grande parte, em seus desembolsos e seus detalhamentos operacionais, pelo governo subseqüente e mesmo com o apoio de uma coalizão majoritária distinta da que deliberou tal comprometimento;11 11 Com a rejeição inicial da proposta de socorro financeiro, como referido anteriormente, e a possibilidade de que o Partido Democrata suceda o Partido Republicano na chefia do governo, essa política sustenta-se em um complexo mecanismo de geração de credibilidade — o que condiciona substancialmente as suas chances de sucesso. Essa é uma peculiaridade que tem sido amplamente ignorada nas variadas leituras do que anda ocorrendo em Washington. Ver a seção 4, adiante.

▼ redefine-se, em extensão e intensidade, o poder de intervenção governamental, independentemente de que mercado possa apresentar sinais de desestabilização. Como a classe política passa a ter uma participação mais ativa, na definição dessas emergências, aqui se conecta todo o arranjo de rent seeking junto ao processo político (Monteiro, 2007).

A própria escala em que toda a operação acabou definida12 12 Na versão aprovada pelo Senado e, enfim, pela Câmara de Representantes. sugere a importância do lobbying exercido junto aos políticos e burocratas, para a acolhida de outras fontes potenciais de empréstimos problemáticos no sistema financeiro, decorrentes de débitos de empresas (outras que não as do mercado imobiliário), cartões de crédito e empréstimos educacionais (student loans).

As escolhas de política para enfrentar a crise deixam à vista que uma de suas conseqüências é a demolição de velhas crenças macroeconômicas. Com isso, deve-se antecipar muitas reformulações nos segmentos B, C e D, como mostra a figura (Monteiro, 2004:207-210).

Em especial, uma reformulação virá do relativo insulamento das regras fundamentais do arranjo monetário (segmento B na figura) frente às regras da Constituição (segmento A). O exemplo mais relevante disso tem sido o arranjo da autoridade monetária independente (AMI) que se define em B.

Diante da evidência de que a classe política toma consciência de que o âmbito da intervenção governamental nos mercados financeiros deve ser sustentado em um patamar muito mais elevado do que já vinha sendo praticado e das implicações negativas que a delegação de autoridade, funções e recursos à AMI podem trazer ao interesse geral, projeta-se:

▼ um espessamento da fronteira entre os segmentos A e B, senão de toda a transferência de atribuições correntemente operadas em B, para A;

▼ a correspondência formal dessa transferência poderá ser o reforço do processo decisório de comissões legislativas especializadas, eventualmente associado à criação de novas unidades de controle localizadas no Executivo, porém sob supervisão mais estrita do Congresso.

Curiosamente o efeito líquido desse avanço regulatório poderá ser a recuperação do sistema constitucional da separação de Poderes, tão abalado na democracia dos EUA, quanto na do Brasil.

4. A relevância das instituições legislativas

De longa data os economistas estão cientes de que as instituições legislativas tomam forma, em resposta a incentivos a priori pelo universalismo, isto é, temendo ficar excluídos da coalizão vencedora mínima (metade mais um dos legisladores), os políticos preferem integrar coalizões mais abrangentes ou universais. Assim, deputados e senadores têm um incentivo a estabelecer regras que acomodem acordos de grande abrangência.

E mais: que essa preferência se mantém, ainda que o resultado final seja a aprovação de legislação ineficiente que acomode o atendimento preferencial de grupos de interesses privados (Weingast, Shepsle e Johnsen, 1981).

Mais uma vez, esse foi o padrão de reação do Congresso norte-americano ao aprovar recentemente uma legislação anticrise financeira, que acabou recheada de atendimentos avulsos, pouco ou nada relacionados com o objetivo central dessas medidas. Tanto quanto esse tipo de comportamento estratégico ajuda a contornar o custo político de escolhas públicas que, de outro modo, não encontrariam abrigo em legislação específica, ele é também, paradoxalmente, um ingrediente que viabiliza a aprovação da escolha pública central (o salvamento do sistema financeiro), que desse modo torna-se "uma pílula econômica amarga e difícil de ser engolida".13 13 "Spoonful of pork may help bitter economic pill go down", CNN.com, 2 out. 2008. Desde então a conjuntura de crise tem mostrado vários aspectos que são fundamentais na percepção de como se formam as escolhas públicas em uma economia contemporânea.

De início, pensou-se que a crise estaria controlada com o anúncio da aprovação do socorro de mais de US$ 700 bilhões, patrocinado pelo governo dos EUA. Todavia, logo se reaprendeu uma lição que entrou nos livros de macroeconomia, na virada da década de 1970 para a de 1980: a política econômica para ser bem-sucedida deve construir reputação em torno de si.14 14 Um exemplo bem trivial ajuda no entendimento dessa questão (Monteiro, 1994:130): um agricultor se desloca para uma área sabidamente de pouca incidência de chuvas. Porém, a terra é barata e ele tende a minimizar esse fato. Tempos depois, seu empreendimento torna-se insustentável. A escolha, todavia, baseou-se na expectativa, procedente, de que o governo proveria água para irrigação a partir da construção de um açude nessa região. Como o governo não faz o citado investimento, o fato de o agricultor ter, enfim, "quebrado", pode agora ser interpretado de modo diverso: a consistência e a previsibilidade da política pública desempenharam um papel essencial nesse fato.

A questão da pouca efetividade da megaoperação de salvamento é, portanto, associada ao fato de os possíveis beneficiários (instituições financeiras em geral) já terem antecipado que o salvamento viria de uma forma ou de outra, e que todos os demais agentes relevantes e sofisticados nesse mercado também já antecipavam que, por força disso, qualquer volume de socorro logo ficaria desatualizado, sendo necessária nova injeção de recursos e regulações econômicas complementares nesses e em outros mercados.

Quase sempre há o reconhecimento implícito de que essa é a dinâmica das crises, quando se menciona o fato de que "leva algum tempo para que as medidas agora adotadas surtam o efeito esperado". Porém, se os agentes econômicos privados entendem que não há disposição para que o governo caminhe na intensificação desse socorro, todo o montante gasto simplesmente sancionará um novo patamar para a continuação da crise.

As iniciativas de política econômica que ora vão sendo postas em prática induzem a que os agentes econômicos privados reconfigurem suas próprias estratégias uma vez que:

▼ suas avaliações de risco ficaram desatualizadas, afinal, a partir de agora a fronteira entre o setor público e o setor privado vai sendo redefinida;

▼ o nível de expectativas quanto ao que o governo pode fazer em termos regulatórios acaba por assumir novas características e intensidades.

Uma decorrência perversa é que o lobbying privado passa a ser orientado para extrair benefícios líquidos novos e mais substanciais, junto ao processo político. Em uma segunda instância, tal característica aconselha que os policy makers tenham uma plano de saída, ou seja, antecipem como eventualmente se poderá levantar o estado de exceção da maioria dessas medidas de política econômica, logo que se abrandem os sinais da crise econômica. Do contrário, todo esse esforço regulador marcará um novo patamar da presença estatal na economia.15 15 "U.S. forces nine major banks to accept partial nationalization", WashingtonPost.com, 13 out. 2008. No caso brasileiro, um exemplo didático dessa ocorrência é o efetivo abandono da política de câmbio livre, quando repetidamente e com intervenções maciças o Banco Central tem buscado estabilizar a cotação cambial.

Outra observação relevante é que o prolongamento da conjuntura de crise tanto pode fazer com que a classe política se mobilize mais ativamente em torno da adoção de novas regulações econômicas, quanto se acomode em torno do patamar de intervenção já alcançado. Com isso, fica ainda mais incerto diferenciar entre:

▼ a extensão em que se está dando tempo ao tempo, para comprovar o acerto das medidas empreendidas;

▼ a necessidade de se inovar no diagnóstico da crise e, portanto, pôr em prática novos recursos regulatórios dos mercados privados, em diferentes intensidades.

Nessa última perspectiva, a projetada reunião de lideranças mundiais em Washington, a ocorrer em 15 de novembro próximo, pode sinalizar mais fortemente para a circunstância de que todas as iniciativas adotadas até aqui não passaram de paliativos:

▼ vastas somas em dinheiro têm sido injetadas no sistema financeiro, apoiando-se no tosco argumento de que tais recursos retornarão no futuro para os cofres do governo e, portanto, terão tido um custo muito pequeno para o contribuinte.

Todavia, a análise mais acurada do funcionamento de uma economia política contemporânea indica que os grupos privados beneficiados sempre encontrarão espaço para se apropriarem em definitivo desses recursos públicos, para o que o mecanismo do rent seeking será acionado (Monteiro, 2007, cap. 6):

▼ essa será a ocasião em que novos padrões de regulação do mercado mundial estarão sendo discutidos (tal como ocorreu em Bretton Woods, no pós-guerra).

Há, portanto, inúmeras possibilidades que se pode antecipar para que a injeção desses substanciais recursos seja irrecuperável, do ponto de vista dos contribuintes. A principal delas é que tais recursos acabem por ser um fundo de regulação de mercados que futuramente venham a dar sinais de instabilidade: as entidades financeiras, hoje beneficiadas, teriam, de algum modo, de subscrever uma cota-parte desse fundo, por exemplo. Todavia, o lobbying desses segmentos, hoje em desarranjo, sempre foi muito expressivo, de modo que é pouco provável que a conta a ser paga se concentre nos atuais beneficiários da gigantesca operação de socorro que se põe em marcha.

5. Conclusão

Da perspectiva do cidadão-eleitor-contribuinte, o padrão de decisão de políticas aqui evidenciado caracteriza uma estratégia ad hoc que o alija da compreensão de que princípios mais amplos possam nortear a ação de governo, impedindoo de aferir, seja diretamente ou por seus representantes eleitos, se de todo as medidas de política como propostas atendem o interesse geral. Reforçando essa característica há a inexorável tentativa de expandir a apropriação privada dos ganhos que uma política pública assim instrumentada pode gerar.16 16 Um episódio típico dessa tentativa de capturar ganhos especiais ( rents), à margem do esforço anticrise, é evidenciado em "U.S. rejects G.M.'s call for help in a merger", New York Times, 3 nov. 2008. Ver também, "Big financiers start lobbying for wider aid", New York Times, 22 set. 2008.

Essas são oportunidades em que tanto os interesses preferenciais de grupos privados quanto os políticos sentem-se mais livres para estender os potenciais benefícios de uma política a segmentos econômicos que, originalmente, não seriam contemplados. Nesse sentido, é muito didático observar o que se passa correntemente na economia dos EUA: com a operação de salvamento inicialmente definida em função dos títulos podres dos negócios hipotecários, já agora bancos de investimento em geral tentam alargar a cobertura desse salvamento, para alcançar as instituições financeiras em geral.17 17 "Big financiers start lobbying for wider aid", New York Times, 22 set. 2008.

No caso brasileiro, o ambiente institucional aqui tratado é ainda mais perverso, em razão do recurso da emissão de medidas provisórias (Monteiro, 2000, 2004)18 18 Sem surpresa, a primeira formalização de política econômica anticrise no Brasil muito se assemelha às providências regulatórias adotadas em diversas outras economias do resto do mundo, além de ser instrumentada por Medida Provisória (MP no 442, de 6 de outubro de 2008). e da grande vulnerabilidade das regras das escolhas públicas frente às ações de grupos de interesses preferenciais (Monteiro, 2007). Com efeito, a iniciativa legislativa do presidente da República (e que se estende à alta gerência do Executivo), por meio da emissão de MPs, chega ao início de setembro de 2008 com um volume que se equipara a 1/4 do volume de leis aprovadas pela legislatura. É um expressivo condicionamento do processo deliberativo dos legisladores que, assim, devem reagir a fatos consumados: tanto mais expressivos sejam esses fatos, tanto mais rara será a possibilidade de que a proposta de política apresentada pelo Executivo venha a ser modificada. Ao mesmo tempo, sem dispor de regras expressivamente restritivas à atividade de lobbying, a economia brasileira apresenta condições muito propícias a que o interesse preferencial seja dissimulado no interesse geral que a política pública se propõe servir (Monteiro, 2007, cap. 6).

  • BALKIN, J. The world financial crisis and the unitary executive Disponível em: <http://balkin.blogspot.com/2008/03>. Acesso em: 2008.
  • MONTEIRO, J. V. Como funciona o governo: escolhas públicas na democracia representativa. Rio de Janeiro: FGV, 2007.
  • ________. Economia constitucional brasileira Rio de Janeiro: FGV, 2004.
  • ________. As regras do jogo: o Plano Real, 1997-2000. Rio de Janeiro: FGV, 2000.
  • ________. Estratégia macroeconômica. Série PNPE, n. 26. Rio de Janeiro: PNPE/Ipea, 1994.
  • WEINGAST, B.; SHEPSLE, K.; JOHNSEN, C. The political economy of benefits and costs: a neoclassical approach to distribution politics. Journal of Political Economy, n. 89, p. 642-664, Aug. 1981.
  • WENIG, M. The democracy deficit in Canadian environmental policy making. Law Now, p. 1-2, Aug./Sept. 2004.
  • WOOLLEY, A. Legitimating public policy. University of Toronto Law Journal, n. 58, p. 153-184, 2008.
  • Um padrão de política pública na crise econômica mundial

    Jorge Vianna Monteiro
  • 1
    "Bear searns: crisis and 'rescue' for a major provider of mortgage-related products", CRS Report for Congress, 2008. Em verdade, a realidade do mercado norte-americano pós-novembro de 2001 (quando a gigante do setor de energia, Enron Corporation, abriu falência) parece não ter ensinado qualquer lição de precaução relevante aos reguladores do governo dos EUA, aos analistas econômicos e mesmo aos economistas acadêmicos. A esse respeito, ver Berman, "Post-enron crackdown comes up woefully short",
    Wall Street Journal, 28 out. 2008.
  • 2
    "Mixed markets reflect hope for bailout",
    New York Times, 30 set. 2008. Por fim, em 1o de outubro de 2008, o Senado norte-americano aprovou um plano de socorro ao mercado financeiro ("Senate passes bailout", CNNMoney.com, 1o out. 2008).
  • 3
    Ver, por exemplo, a Medida Provisória no 442, de 6 de outubro de 2008.
  • 4
    De fato, na seqüência dos fatos, a classe política nos EUA e na União Européia vai ocupando espaço no entendimento da gerência de riscos implícito na regulação econômica, assim como na deliberação quanto a novas regras do jogo regulatório, seja para fins internos das economias nacionais, seja para a coordenação de políticas, no âmbito das organizações multilaterais "Taking hard new look at a Greenspan Legacy",
    New York Times, 9 out. 2008, The Reckoning.
  • 5
    Outra vez, o mencionado caso da economia dos EUA mostra três outras implicações graves do padrão de escolhas adotado nessas circunstâncias ("Lawmakers left on the sidelines as Fed, Treasury take swift action",
    Washington Post, 18 set. 2008, p. A1): (a) um deputado do Partido Republicano e destacado membro da Comissão de Orçamento da Câmara comentou: "meus instintos e minhas entranhas me dizem que eles fizeram a jogada errada. Todavia, eu não disponho de toda a informação que eles detêm."; (b) trivialmente, a própria
    racionalidade dos políticos pode ficar negativamente afetada pela decisão de promover uma determinada ação na economia: "por quanto tempo pode-se esperar que o já encurralado contribuinte arque com todas as perdas e arque com todos os riscos?", argumentou outro deputado republicano; (c) os efeitos distributivos de uma decisão dessas também podem ser interpretados do ponto de vista de que segmentos beneficiados podem se mostrar mais efetivos, ao pressionar o processo decisório público, no atendimento de seus interesses preferenciais: "Lehman Brothers deve ter o pior
    lobbying na cidade, uma vez que eles foram os únicos que parecem ter ficado de fora da mania de socorro financeiro", adicionou o mesmo deputado.
  • 6
    Ou dito de outro modo, é ampla a extensão em que uma dada política pública pode incorporar critérios de decisão informais e que atendam às preferências dos burocratas, sem que isso seja sequer notado ou mesmo argüido como legalmente impróprio: tais escolhas são ao mesmo tempo um mecanismo de poder discricionário e, elas próprias, as decisões discricionárias (Woolley, 2008:157). Ver também a seção 3, adiante.
  • 7
    Seguros de depósitos, mercado de valores mobiliários, recapitalização do sistema bancário, alteração do poder de monopólio em diversos mercados, entre outras.
  • 8
    Um dos desdobramentos mais imediatos que essa política provoca é o redimensionamento a que está sujeita a política de regulação da competitividade, em razão do progressivo aumento do grau de concentração de variados mercados, em razão do uso de absorção e fusão de empresas ("U.S. forces nine major banks to accept partial nationalization", WashingtonPost.com, 13 out. 2008). A observar, especialmente, a recém-anunciada (3 out. 2008) fusão dos bancos Itaú e Unibanco, o que por certo aumentará ainda mais a elevada concentração no mercado bancário e financeiro brasileiro.
  • 9
    "Opening step on long road",
    New York Times, 29 set. 2008.
  • 10
    A ponto de sua versão escrita se estender por mais de 100 páginas.
  • 11
    Com a rejeição inicial da proposta de socorro financeiro, como referido anteriormente, e a possibilidade de que o Partido Democrata suceda o Partido Republicano na chefia do governo, essa política sustenta-se em um complexo mecanismo de
    geração de credibilidade — o que condiciona substancialmente as suas chances de sucesso. Essa é uma peculiaridade que tem sido amplamente ignorada nas variadas leituras do que anda ocorrendo em Washington. Ver a seção 4, adiante.
  • 12
    Na versão aprovada pelo Senado e, enfim, pela Câmara de Representantes.
  • 13
    "Spoonful of pork may help bitter economic pill go down", CNN.com, 2 out. 2008.
  • 14
    Um exemplo bem trivial ajuda no entendimento dessa questão (Monteiro, 1994:130): um agricultor se desloca para uma área sabidamente de pouca incidência de chuvas. Porém, a terra é barata e ele tende a minimizar esse fato. Tempos depois, seu empreendimento torna-se insustentável. A escolha, todavia, baseou-se na expectativa, procedente, de que o governo proveria água para irrigação a partir da construção de um açude nessa região. Como o governo não faz o citado investimento, o fato de o agricultor ter, enfim, "quebrado", pode agora ser interpretado de modo diverso: a consistência e a previsibilidade da política pública desempenharam um papel essencial nesse fato.
  • 15
    "U.S. forces nine major banks to accept partial nationalization", WashingtonPost.com, 13 out. 2008. No caso brasileiro, um exemplo didático dessa ocorrência é o efetivo abandono da política de câmbio livre, quando repetidamente e com intervenções maciças o Banco Central tem buscado estabilizar a cotação cambial.
  • 16
    Um episódio típico dessa tentativa de capturar ganhos especiais (
    rents), à margem do esforço anticrise, é evidenciado em "U.S. rejects G.M.'s call for help in a merger",
    New York Times, 3 nov. 2008. Ver também, "Big financiers start lobbying for wider aid",
    New York Times, 22 set. 2008.
  • 17
    "Big financiers start lobbying for wider aid",
    New York Times, 22 set. 2008.
  • 18
    Sem surpresa, a primeira formalização de política econômica anticrise no Brasil muito se assemelha às providências regulatórias adotadas em diversas outras economias do resto do mundo, além de ser instrumentada por Medida Provisória (MP no 442, de 6 de outubro de 2008).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Fev 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008
    Fundação Getulio Vargas Fundaçãoo Getulio Vargas, Rua Jornalista Orlando Dantas, 30, CEP: 22231-010 / Rio de Janeiro-RJ Brasil, Tel.: +55 (21) 3083-2731 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: rap@fgv.br