Acessibilidade / Reportar erro

O problema administrativo na política de assentamentos do Brasil: o caso da fazenda Cascata na Bahia

The administrative issue in Brazil's settlement policy: the case of Cascata farm in Bahia

Resumos

O presente artigo é resultado de um estudo que toma como objeto de observação o estado da Bahia e tendo como objetivo contribuir para o aprimoramento da política de reforma agrária no Brasil. Para essa análise foi selecionado o assentamento de Cascata, localizado no município de Aurelino Leal, na região do extremo sul da Bahia. Esse recorte regional revelou-se interessante por dois motivos principais: por representar as primeiras experiências dos programas de assentamentos no estado da Bahia; e por refletir experiências de desenvolvimento socioeconômico sustentável, em forma de cooperativas, envolvendo a maioria dos assentamentos da região estudada.

reforma agrária; administração (política) dos assentamentos; gestão da fazenda Cascata


This article is the result of a study that takes as its object of observation the state of Bahia with the objective to make a contribution for the improvement of agrarian reform in Brazil. For this analysis was selected the settlement of Cascata, located in the municipality of Aurelino Leal, situated in the extreme south of Bahia. This regional selection has proved useful for two main reasons: to represent their first experience of resettlement programs in the state of Bahia, and it reflects the experiences of sustainable socioeconomic development in the form of cooperatives, involving most of the settlements in the region studied.

agrarian reform; political management of the settlements; settlement fazenda Cascata


ARTIGOS

O problema administrativo na política de assentamentos do Brasil: o caso da fazenda Cascata na Bahia

The administrative issue in Brazil's settlement policy: the case of Cascata farm in Bahia

Reginaldo Souza SantosI; Elizabeth Matos RibeiroII; Fernanda Chagas Silva SantosIII

IDoutor em economia pela Universidade de Campinas (Unicamp). Professor titular do Departamento de Finanças e Políticas Públicas e Diretor da Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Endereço: Rua Amazonas,159, Edif. Serra do Nascente, ap. 204 - Pituba - CEP 41830-380, Salvador, BA, Brasil. E-mail: rsouza@ufba.br

IIDoutora em ciência política e administração pela USC/ES. Professor adjunto do Departamento de Finanças e Políticas Públicas da UFBA. Endereço: Rua Raul Drumond, 294, Ed. Tavares, ap. 303 - Barra - CEP 40130-150, Salvador, BA, Brasil. E-mail: ematos@ufba.br

IIIGraduanda em história, pela Universidade Católica de Salvador. Endereço: Rua Amazonas,159, Ed. Serra do Nascente, ap. 204 - Pituba - CEP 41830-380, Salvador, BA, Brasil. E-mail: fernandachagas1@live.com

RESUMO

O presente artigo é resultado de um estudo que toma como objeto de observação o estado da Bahia e tendo como objetivo contribuir para o aprimoramento da política de reforma agrária no Brasil. Para essa análise foi selecionado o assentamento de Cascata, localizado no município de Aurelino Leal, na região do extremo sul da Bahia. Esse recorte regional revelou-se interessante por dois motivos principais: por representar as primeiras experiências dos programas de assentamentos no estado da Bahia; e por refletir experiências de desenvolvimento socioeconômico sustentável, em forma de cooperativas, envolvendo a maioria dos assentamentos da região estudada.

Palavras -chave: reforma agrária; administração (política) dos assentamentos; gestão da fazenda Cascata.

ABSTRACT

This article is the result of a study that takes as its object of observation the state of Bahia with the objective to make a contribution for the improvement of agrarian reform in Brazil. For this analysis was selected the settlement of Cascata, located in the municipality of Aurelino Leal, situated in the extreme south of Bahia. This regional selection has proved useful for two main reasons: to represent their first experience of resettlement programs in the state of Bahia, and it reflects the experiences of sustainable socioeconomic development in the form of cooperatives, involving most of the settlements in the region studied.

Key words: agrarian reform; political management of the settlements; settlement fazenda Cascata.

1. Introdução

O presente artigo é resultado de estudo sobre descentralização, participação política e políticas públicas municipais de apoio aos programas de assentamentos no Brasil, tomando como objeto de observação o estado da Bahia, e tendo como objetivo contribuir para o aprimoramento da política de reforma agrária no Brasil.1 1 Pesquisa financiada com recursos do CNPq e Fapesb.

Para essa análise foi selecionado o assentamento de Cascata, localizado no município de Aurelino Leal, situado na região do extremo sul da Bahia. Esse recorte regional revelou-se interessante por dois motivos principais: por representar as primeiras experiências dos programas de assentamentos no estado da Bahia; e por refletir experiências de desenvolvimento socioeconômico sustentável, em forma de cooperativas, envolvendo a maioria dos assentamentos da região estudada.

O desenvolvimento da pesquisa revelou, entretanto, que as questões orientadoras, definidas, inicialmente, para a realização do estudo, não davam conta da expectativa inicial dos pesquisadores e da complexidade da realidade analisada. Em primeiro lugar, constatou-se que não existem políticas municipais consistentes de apoio aos programas de assentamentos no estado da Bahia e que a sociedade civil local também revela tímida participação junto às comunidades dos assentados.2 2 O universo da pesquisa é mais amplo que o apresentado neste artigo; consta, pois, de análises dos resultados e impactos do recente processo de descentralização e municipalização da gestão publica no Brasil e suas consequências para a gestão municipal, assim como estudar, com relativa profundidade, a capacidade financeira, gerencial e de gestão democrática dos municípios baianos. O objetivo desses capítulos no presente estudo foi criar as bases para uma compreensão mais ampla e critica acerca do papel do poder local nos programas de reforma agrária do Brasil. Essas análises serão objeto de artigos a serem publicados em um futuro próximo com o propósito de demonstrar que a relação entre os governantes locais e as questões de governabilidade, assim como a análise da capacidade financeira, organizacional e administrativa municipal dos municípios baianos confirmam resultados acerca da dificuldade que a administração municipal tem de inovar em relação ao modelo tradicional, e assim, apoiar, de forma mais efetiva, os assentamentos situados em seu território. O assentamento estudado revela uma relação mais estreita com organismos não governamentais e multilaterais e/ou agências de fomento governamentais (a exemplo da Caixa Econômica e do Ministério do Desenvolvimento Agrário, entre outras) do que com o poder local. Diante dessa constatação, a pesquisa buscou dimensionar a natureza, o grau, o perfil e as consequências dessas relações recém-constituídas na comunidade assentada de Cascata.

Diante dessa constatação, foi identificada a necessidade de ampliação do escopo do projeto, dando maior destaque às práticas de gestão (que chamamos de Administração Política) dos assentamentos no estado da Bahia, tomando como referência inicial de análise a experiência de Cascata. Com essa problematização, buscava-se observar os mecanismos (alternativos) de gestão que esse grupo de assentados tem utilizado para administrar/gerir esse novo padrão de relações sociais, pautadas no associativismo.

O texto foi estruturado para apresentar, inicialmente, uma análise histórica da política de reforma agrária do Brasil, de forma a oferecer elementos que permitam fazer uma avaliação critica sobre os problemas que os assentamentos têm enfrentado no país para se consolidar como modelos de gerência adequados à política formulada para o setor.

A seção 2 traz um breve relato do processo histórico da luta em prol da reforma agrária e a conformação de uma política de assentamento implantada pelo governo brasileiro, a partir de 1970.

A seção 3 trata de compreender todo o processo histórico de constituição e organização do assentamento da fazenda Cascata. Na seção 4 é feita uma análise das condições administrativas do assentamento, revelando que é necessária a introdução urgente de um plano de trabalho, no sentido de aproveitar o potencial econômico oferecido pelas terras da fazenda Cascata em benefício dos próprios assentados.

A preocupação central da seção 5 é a recomendação para o governo criar um quadro administrativo especializado em administração rural, melhorando a produção dos 84 milhões de ha. e, com isso, viabilizar melhores condições de vida para 40 milhões de assentados.

2. Da luta pela reforma agrária à política de assentamentos - breve relato

O que está por trás da luta social secular pela reforma agrária (democratização da posse e da propriedade da terra): a via inexorável para a promoção da justiça social e humanização do processo civilizatório, ou um símbolo de poder "magnificado" durante a Idade Média em seu regime feudal, cujo miticismo a história recente do capitalismo tem sido incapaz de apagar do imaginário da sociedade, é um questionamento que tem orientado a reflexão proposta neste estudo.

Percebe-se que, nos últimos 500 anos que marcaram a formação histórica do nosso país, essa tem sido uma luta experimentada em muitas sociedades - desde a Europa feudal até os dias atuais nos Estados Unidos da América, com a expansão da ocupação em direção ao Nordeste e ao Centro-Oeste. Em outras nações, a reforma agrária foi impulsionada por guerras, como na Itália, Japão e, fundamentalmente, no México de Emiliano Zapata e Obregon, no início do século XX. Esse também foi um movimento experimentado pelo Chile de Allende, pela Argentina, por Cuba, com Fidel Castro e Che Guevara - além dos movimentos guerrilheiros ocorridos na América Latina sempre defendendo como bandeira a propriedade de terra como forma de democratizar a posse e o uso da terra, a exemplo das Forças Armadas Revolucionárias Colombianas (Farc). O movimento ocorrido na Rússia, em 1917, e na China, em 1949, também reflete esse movimento nas sociedades contemporâneas.3 3 REFORMA agrária - compromisso de todos. Disponível em: < www.planalto.gov.br/publi_04/COLECAO/REFAGR3.HTM>. Acesso em: 25 set. 2010.

A pergunta que ainda precisa de resposta para que se possa entender o que tem ocorrido no Brasil nesse campo é a seguinte: que lições esses movimentos internacionais deixaram? O que podem nos ensinar? Parece que o nosso aprendizado tem sido decepcionante, haja vista a nossa história recente a respeito da questão agrária. Alguns estudiosos afirmam que a história da reforma agrária no Brasil é uma narrativa marcada por oportunidades perdidas. Pode-se acrescentar a essas análises que o movimento em favor da distribuição da terra no Brasil tem sido marcado por oportunidades deliberadamente perdidas. Em verdade, o Brasil só passou a tratar dessa questão, de forma mais responsável, depois da consolidação do processo de industrialização, a partir do início dos anos 1960. Antes desse período, nada foi feito nessa direção, fora dos movimentos dirigidos para a incorporação da terra ao modo capitalista de produção nacional.

Ao longo do período colonial, se perpetraram as distorções que ainda hoje não temos coragem para enfrentar. A partir do mais puro patrimonialismo, os nossos "senhores" portugueses, amigos de "Del Rey", foram aquinhoados com quadras e léguas de terras, mediante as práticas históricas de doações, cessões e apossamentos - enfim, as sesmarias, origens do que se conhece, hoje, por latifúndios. Essa cultura patrimonialista e latifundista, arraigada em nossa cultura social, política e econômica, não se alterou após o processo de independência política (a partir de 1822). E com o movimento republicano, que tinha como bandeira a supressão do vergonhoso regime escravocrata na nova nação, e, com ele, a revisão da questão fundiária, não se conseguiu nada além de formalizar, na Constituição de 1891, a desapropriação por necessidade de utilidade pública e a incorporação dos latifúndios à exploração capitalista.

Com a chegada dos imigrantes camponeses europeus e japoneses, durante a República Velha (1889-1930), observa-se um crescimento do número de propriedades, mas nada que pudesse alterar o padrão latifundiarista que marcara a formação do Brasil.

Por outro lado, a expectativa gerada pela "Revolução" de 1930 não se realizou. Esse movimento, considerado uma inovação no país, apenas derrubou, parcialmente, a oligarquia cafeeira nacional, com vistas à estruturação do novo projeto de industrialização nacional, sem, contudo, realizar o que se entende (historicamente) por uma revolução ampla que integrasse, ao mesmo tempo, a modernização dos centros urbanos e do campo. Ao contrário disso, constata-se que esse movimento apenas reforçou a estrutura agrária do período anterior, mediante a modernização do latifúndio, que continuaria a produzir para atender aos interesses do mercado externo.

Essa leitura permite, pois, entender porque o Estado criou o Instituto Brasileiro do Café (IBC), em 1932, o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), em 1933, o Instituto do Cacau da Bahia (ICB), em 1931,4 4 Por esses fatos, o professor Octavio Ianni compreendeu que a oligarquia foi derrotada apenas parcialmente. É preciso entender que sua importância continuou, mesmo o projeto sendo outro, porque não se podia, naquelas instâncias, financiar a industrialização sem a renda gerada na agricultura. entre outros com os mesmos propósitos.

A Constituição de 1946, considerada democrática, praticamente reproduz os mesmos ideais e interesses contidos na Constituição de 1891; fazendo, portanto, um pequeno adendo ao defender que, além da necessidade e da utilidade pública da terra, a desapropriação poderia ocorrer por interesse social.

Assim, diferentemente de outras nações industrializadas, o Brasil consegue industrializar-se e modernizar sua estrutura produtiva sem atualizar, isto é, sem alterar sua estrutura fundiária. Com a industrialização, completada no fim do governo de Juscelino Kubitscheck, em 1961, o governo percebeu que o país vinha passando por um processo de transformação muito positivo do ponto de vista econômico, porém o preço para tal sucesso era a degradação social - que se manifestava de forma mais contundente com a desorganização urbana, decorrente de um acelerado e descontrolado movimento migratório no sentido campo-cidade.

Desse modo, parecia urgente acoplar às modificações que estavam ocorrendo na estrutura socioeconômica do país medidas transformadoras das condições sociais da população pobre do Brasil, integrando-a ao que se compreende como consumo urbano-industrial. Desse reconhecimento e movimento nasce, pois, a necessidade de se promover o que se denominou de Reformas de Base, materializadas no Plano Trienal do Governo João Goulart, elaborado pelo talentoso economista Celso Furtado.

Como dito antes, é só nesse instante que as autoridades brasileiras reconhecem a necessidade de revisão das relações sociais de produção e distribuição do país, passando a envidar esforços e alguma seriedade no trato da questão agrária. Esse movimento inicia-se, em março de 1963, com a aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural, em que o Estado assumiria a regulação da relação capital/trabalho no campo - procedimento absurdamente desconhecido entre nós até aqueles dias. No dia 13 de março de 1964, o presidente da República João Belchior Marques Goulart (Jango), em pleno comício na Central do Brasil (conhecido como comício das reformas ou dos cem mil), assinou o Decreto nº53.700, trazendo a desapropriação de terras como elemento imprescindível para o instituto da reforma agrária no país - tratava-se das terras localizadas numa faixa de 10 quilômetros ao longo das rodovias, ferrovias e açudes construídos pela União.

Em 15 de março do referido ano, Jango envia a seguinte mensagem ao Congresso Nacional, onde expõe a necessidade de providências "indispensáveis e inadiáveis para atender às velhas e justas aspirações da população [brasileira]". Em consequência desse ato e devido a outras circunstâncias graves no âmbito econômico, social e político, em 31 de março, o presidente é deposto e as indispensáveis e inadiáveis aspirações da população foram, mais uma vez, adiadas; a partir desse momento, se instala o governo militar que governará o país até março de 1985.

Num primeiro instante, tudo levava a crer que o primeiro presidente militar, marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, parecia dar consequência às propostas de Jango, mediante a implantação das decisões estabelecidas no governo anterior a respeito da reforma agrária, quando elaborou o projeto de lei, sancionado sob o nº4.504. Tratava-se, pois, do Estatuto da Terra, reconhecido como a mais bem articulada proposta de reforma agrária da história brasileira. Porém, essa expectativa logo será frustrada, com os sucessivos governos militares que perpetraram outra opção: ao invés de modernizar o capitalismo no campo, dividindo a terra, optam por tecnificar o latifúndio, por meio de políticas subsidiadas de crédito farto e barato.

A proposta de reforma agrária, mais uma vez, foi adiada e suplantada por interesses privatistas. O governo militar introduziu, a partir de proposta de colonização, sobretudo para expansão e ocupação das fronteiras Centro-Oeste e Norte, programas especiais de desenvolvimento regional. Os mais importantes foram: O Programa de Integração Nacional (PIN), em 1970; o Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e Nordeste (Proterra), em 1971; o Programa Especial para o Vale do São Francisco (Provale), em 1972; o Programa de Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia (Polamazônia), em 1974; o Programa de Desenvolvimento de Áreas Integradas do Nordeste (Polonordeste), em 1974. O braço institucional e administrativo para a consolidação dessa política foi o Instituto Nacional da Reforma Agrária, criado em 1970.5 5 REFORMA agrária - compromisso de todos. Disponível em: < www.planalto.gov.br/publi_04/COLECAO/REFAGR3.HTM>. Acesso em: 25 set. 2010.

A euforia inicial gerada por esses programas de assentamento é aplacada com a crise do capitalismo (que se inicia no começo dos anos 1970), cujos efeitos perversos chegam ao Brasil, a partir da segunda metade da década. Sem resultado mais evidente, o ideário das Ligas Camponesas, criadas nos anos 1960, renasce com os movimentos sociais no campo.

Assim, nos anos 1980 e 1990, assiste-se ao recrudescimento dos movimentos dos trabalhadores (em sentido amplo) nos centros urbanos. Essa agitação social reflete, pois, o drama da migração campo-cidade e a necessidade de reforma agrária, garantindo o acesso à terra, tornando-se palavra de ordem para parte do povo brasileiro, em particular dos que se encontram marginalizados. Nascem, nesse período, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no campo, e do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST), nos centos urbanos.

Apesar do ímpeto dos movimentos sociais desde então, o que temos em curso, em verdade, é um Programa de Assentamentos mal concebido, mal executado, e em consequência, de resultados sofríveis. A concepção não é boa porquanto o processo de desapropriação parece mais preservar os interesses dos proprietários do que superar as dificuldades de vida dos trabalhadores do campo; do lado da execução, a deficiência está em imaginar que o problema fica solucionado no instante em que se distribui a terra, acompanhada de uma dada quantia em crédito bancário, e a entrega de um termo de compromisso garantindo a compra da produção. Na proposta dos últimos governos não é compreendido que entre a posse da terra e o produto que dela resulta, fruto do trabalho dos assentados, existe uma etapa intermediária imprescindível: trata-se da administração (gestão) do processo de produção.

É impressionante como as propostas governistas, assim como parte expressiva dos estudos acadêmicos e técnicos, tratam de compreender que os resultados pouco satisfatórios decorrem apenas de não haver uma oposição entre os interesses dos trabalhadores e dos proprietários - portanto, a soma de consenso não contempla os propósitos de um ou de outro segmento -, do baixo grau de tecnologia usada no processo produtivo - o que envolve a baixa escolaridade dos assentados - e da falta de condições de saúde, de saneamento, de habitação, de escolas etc.

Nesta pesquisa, consideramos que outras explicações devem ser incorporadas a essas análises; e, aqui, apontamos que uma primeira resposta está, sem dúvida, no fato de termos cristalizado uma cultura de sempre tentar resolver as dificuldades ampliando as possibilidades de mais recursos e nunca aproveitando melhor as condições existentes. A experiência da fazenda Cascata, objeto de estudo deste artigo, evidenciará essa situação.

3. A luta política para fundar Cascata

A luta política para a conquista da fazenda Cascata foi compreendida, sobretudo, a partir do estudo das atas referentes ao período constitutivo da Associação Brasil: uma luta procurando direitos e interesses de um grupo de cidadãos desprovidos da terra no Sul do estado da Bahia.

No dia 7 de março de 1993, os trabalhadores, que foram expulsos da terra que ocupavam, se reuniram no Centro Educacional Amélio Cordier, na cidade de Itabuna, com o intuito de fundar uma associação que defendesse os interesses dos trabalhadores rurais. Para legitimar a criação da associação, foi eleito um coordenador do movimento: o sr. Franciliano Virgílio dos Santos. O primeiro ponto da pauta dessa reunião foi a criação de uma marca para a associação, e, com o consenso de todos os presentes, foi escolhido o nome BRASIL: NA LUTA PROCURANDO SEUS DIREITOS AGRÍCOLAS.

O segundo passo a vencer seria a criação de uma comissão que tivesse como responsabilidade tratar dos assuntos relacionados à eleição da primeira Diretoria e da legalização dos documentos. Sendo assim, foram escolhidos, por aclamação, os seguintes posseiros: Franciliano Virgílio dos Santos, Antônio Chagas e José Brasiliano Gomes, que, ao final da reunião, deixaram claro a intenção de acabar com a violência sofrida pelos trabalhadores e a reconquista da terra de onde foram expulsos.

No dia 5 de maio de 1995, os trabalhadores rurais, membros da associação citada, se reuniram, em Assembleia Geral, para discutir e aprovar o Estatuto da entidade. Assim foi feito e o Estatuto foi votado e aprovado por unanimidade. Segundo a associação, a principal finalidade era orientar e organizar os posseiros na luta pela ocupação da terra e administrar os recursos vindos de órgãos governamentais, destinados ao projeto de assentamento.

Os membros da associação se reúnem mais uma vez em Assembleia Geral, no dia 10 de maio de 1996, para eleger a diretoria da entidade. Quem estava lá para coordenar os trabalhos foi a sra. Veneranda Andrade, assessora jurídica da Prefeitura de Aurelino Leal. A eleição foi de uma única chapa - consenso entre os posseiros, que tinham como integrantes os "companheiros" mais representativos do movimento. A chapa foi eleita por aclamação e ficou assim constituída: presidente: Franciliano Virgílio Santos; vice-presidente: Jacinto Alves dos Santos; 1ºsecretário: Carmelito Pereira Silva; 2ºsecretário: Célia Pereira dos Santos; 1ºtesoureiro: Edson Correia; 2ºtesoureiro: Roberto Silva Santos; Conselho Fiscal: José Brasiliano Gomes, Pedro Meira Souza e Eurico Silva Bomfim.

Passado o período de "arrumação da casa", restava ao grupo colocar as ideias em prática e discutir os problemas a resolver, ao longo da luta.

No ano de 1997, mais uma Assembleia Geral foi convocada no Colégio Municipal de Japú, distrito de Ilhéus. Era necessário discutir as decisões tomadas pelo presidente Fernando Henrique Cardoso com relação às ocupações de fazendas sem que houvesse a vistoria do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) - órgão responsável pela política de reforma agrária; e isso era, com certeza, um risco para os assentados. Além disso, o governo estaria tomando medidas duras em relação à venda de lotes ou áreas dos Projetos de Assentamento do Incra, em todo o país.

No dia 15 de julho de 1997, os representantes do Incra apresentaram uma proposta: o grupo teria a garantia de ficar na fazenda Conceição II (acampados), recebendo cesta básica, até que as áreas apresentadas pelos líderes do movimento fossem vistoriadas e avaliadas pelos técnicos do Incra. Em seguida, o Incra se responsabilizaria em negociar com o fazendeiro para que o mesmo liberasse uma área de sua fazenda para as famílias da Brasil na Luta, acampadas na Conceição II.

No município de Aurelino Leal, às margens da BR101, no km 457, no dia 4 de fevereiro de 1998, mais uma reunião foi realizada para a eleição da Diretoria. Coordenaram os trabalhos os senhores Aurelino Lima de Jesus, Antônio Virgílio dos Santos e Valmir Francisco Alves. Estava, também, presente o colaborador da Comissão Pastoral da Terra da Diocese de Itabuna, que explicou sobre a função de cada integrante em seus respectivos cargos. Foi apresentada uma chapa única, com consenso, mas o vice-presidente seria escolhido por voto nominal. A chapa foi eleita por unanimidade e ficou assim constituída: presidente: Franciliano Virgilio dos Santos; vice-presidente: Luís Roberto de Almeida; secretária: Flávia Maria da Silva; vice-secretária: Valdete Conceição dos Santos; tesoureiro: Manoel Francisco Menezes; vice-tesoureiro: Severino Araújo Santos; Departamento de Saúde: Maria José Freitas dos Santos, Neuza Oliveira Pereira, Franciliano Virginio dos Santos, Roberto Silva Santos, Valmir Francisco Alves e Aureliano Lima de Jesus; diretores espirituais: Valmir Francisco Alves e Manoel Francisco Menezes; conselheiros: Manoel Francisco de Menezes, João Bispo dos Santos e Gelson Sales dos Santos; Conselho Fiscal: José Ivaldo Freitas dos Santos, João Lima Correia, Antonio Bispo dos Santos, Givaldo Silva Neves, Carmelito Buriti e Carmelito Pereira.

Na leitura de várias atas é possível constatar as dificuldades vividas pelo movimento, sobretudo aquelas relativas à falta de alimento no assentamento. O atraso do envio dos créditos por parte do Incra está diretamente ligado ao agravamento dessa situação. Na ata de organização das famílias assentadas na fazenda Cascata e Ipiranga, também situadas às margens da BR101, município de Aurelino Leal, mais uma Assembleia teve início no ano de 1999. O presidente da Associação chama atenção para a necessidade de um Regimento Interno e da dificuldade financeira enfrentada pelo Incra, naquele ano; justificando, assim, o fato das verbas não terem sido liberadas, até naquele instante.

Os créditos fornecidos pelo Incra funcionam da seguinte maneira: o crédito alimentação, no valor de R$ 400,00, que é pago individualmente; o crédito fomento, no valor de R$ 1.025,00, destinados à produção (para a compra de caminhão, casa de farinha, gado etc.). E o terceiro crédito é o de habitação, destinado à construção de casas. Sendo assim, o não envio desses créditos significava um grave problema para o sustento dessas famílias e a consolidação do assentamento.

Outro problema encontrado no relato das atas de reuniões, realizadas neste mesmo ano, está relacionado às atividades obrigatórias exercidas pelos assentados. De acordo com o Estatuto do ano de 2005, é estabelecido que: "Os dias de trabalho coletivo terão de ser respeitados. O assentado terá direito a justificativa caso falte, porém as mesmas não poderão ser repetidas".

Além dos problemas relacionados à alimentação e às faltas no trabalho, um outro problema grave encontrado no assentamento é o uso de drogas e as ocorrências de roubo - situação que não é permitida e nem tolerada pela associação. Quaisquer outros problemas, sejam eles desordem, falta no trabalho, bebedeira ou outro descumprimento do Regimento Interno são tratados em assembleia e sancionados por advertência. O uso de drogas ilícitas ou roubo por parte dos assentados acarreta em punição extremamente severa, com a expulsão do usuário ou do autor do delito, sem direito a advertência.

Essa situação é relatada na Ata de 29 de julho de 1999, quando houve roubo do cacau da fazenda vizinha e outros realizados no próprio assentamento. Os acusados eram os dois filhos de um casal de assentados. Depois de muita discussão, a punição para os autores foi sua expulsão do assentamento, tendo os acusados um prazo de dois dias para deixar o local e o direito de fazer visitas breves aos pais. Mesmo parecendo um ato severo contra aqueles que o infringem, o Regimento Interno precisa ser cumprido com rigor para que a ordem dentro da P.A. Cascata Brasil na Luta6 6 P.A. Cascata Brasil na Luta é o novo nome da Associação Brasil na Luta Procurando seus Direitos, reformulação feita em Assembleia no dia 21 de junho de 1999. seja mantida. Essa é a palavra de ordem.

Após quase três meses, aconteceu mais uma Assembleia Extraordinária para a eleição da Coordenação do P.A. Cascata, realizada às margens da BR101, que contou com a presença dos representantes da C.P.T, Racaa-SUL e MMTR. Na ocasião, foram apresentadas duas chapas e, no transcorrer do dia, foi feita a apuração que elegeu, com 29 votos, o sr. Erivaldo Alves Mota, como coordenador geral; o sr. Severino Araújo Santos, como coordenador secretário; e o sr. Manoel Francisco Menezes, como coordenador tesoureiro.

Na visão dos integrantes do movimento, um assentamento não sobrevive apenas de regras contidas em seu Regimento, do trabalho burocrático realizado pelos seus diretores e nem apenas com aquilo que os trabalhadores extraem da terra. É necessário estabelecer parcerias que forneçam meios que são de suma importância para a sobrevivência dos assentados. Logo, nessa perspectiva de parceria, vê-se ser necessária, também, a ajuda decisiva na organização do processo de trabalho. Como dizem: a luta de conquista é permanente.

4. A administração da fazenda Cascata: a necessidade de um plano de trabalho

Pelo noticiário que sai na imprensa brasileira e em alguns países europeus, a política de assentamento tem o seu ícone, ou melhor, tem o seu troféu a exibir, revelador do êxito do programa brasileiro: trata-se do Assentamento da fazenda Cascata, situado no município de Aurelino Leal. Entretanto, a avaliação vista de perto mostra que o sucesso pode ser considerado parcial, dado que a administração do projeto tem se revelado ineficiente; daí apresentar resultados bem aquém das possibilidades e do desejado.

Como visto na seção anterior, a luta pela desapropriação, pela posse, usufruto e propriedade da fazenda Cascata foi árdua para a conquista de uma gleba de aproximadamente 600 ha., que chegou a produzir cerca de 15 mil arrobas de cacau em amêndoa, numa área cultivada só para este fim de 380 ha., incluindo, ainda, as áreas de capoeira e aquelas dedicadas a outras plantas.

Para o cultivo da pecuária bovina e gados miúdos estão reservados cerca de 80 ha. Outros 80 ha. constituem área de preservação ambiental (APA). O restante da gleba é destinado à habitação, cultivo de hortaliças, área de lazer - a exemplo do campo de futebol etc.

No ato inicial de constituição, 37 famílias foram assentadas. Hoje, são 40, formando um povoamento de 160 habitantes, sendo 75 adultos, 43 jovens e 43 crianças (de 0 a 12 anos).

Embora a bandeira de luta dos Trabalhadores Sem Terra indique a desconcentração da propriedade da terra e uso comum no ato de produzir, no cotidiano, essa não tem sido a regra. O que se constata é o uso privado e baixa incidência de trabalho comunitário.

Por conta desse fato, houve a divisão da terra com base em critérios técnicos, elaborados pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), na região de Ilhéus-Itabuna, cabendo a cada família uma extensão que varia entre 6 a 7 ha. Apenas uma pequena área de cacau tem cultivo e uso comunitário, cerca de 12 ha. O rendimento dessa produção comunitária é direcionado para custear os gastos administrativos - daquilo que é do interesse de todos.7 7 Vale lembrar que essa apropriação individual só ocorre no usufruto, posto que a alienação da propriedade do lote pela família é proibido pela lei nº8.629, de 25 de fevereiro de 1993, embora se saiba que ocorre em assentamentos no Brasil a alienação mediante o contrato de "gaveta", sem registro em cartório do processo da compra e venda. No caso de Cascata, se algum assentado desejar sair receberá uma indenização pelas benfeitorias realizadas, sem incluir, nesse benefício, a terra e o cacau recebidos no momento da posse. Além disso, cada assentado doa um dia por semana para o trabalho comunitário.

Essa exploração privada no assentamento da fazenda Cascata, com pouco trabalho comunitário, não é a regra desde a sua fundação; a exploração comunitária durou apenas quatro anos. E não há consenso a respeito desse modo de exploração - ele prevalece por ser uma posição da maioria tomada em assembleia.

A estruturação da organização do assentamento é relativamente simples e democrática, em seus termos. Há a Assembleia Geral, que concentra todo o processo decisório (semelhante a um Conselho de Administração). Daí saem dois coordenadores que definem as tarefas dos comunitários naquilo que for do interesse geral. Do ponto de vista administrativo, foi possível perceber poucos avanços. Desse modo, fica difícil vislumbrar mudanças substanciais nos destinos das famílias que trabalham e moram no assentamento.

Das condições iniciais, de 1998 até os dias atuais, apesar dos esforços dos assentados, parece que muito pouca coisa mudou - e quando ocorreu, de forma mais relevante, em alguns aspectos, foi para pior. É o caso da produção de cacau, principal economia do assentamento.

Com o antigo proprietário, a fazenda Cascata já chegou a produzir 16 mil arrobas de cacau; neste ano de 2010, a estimativa é que não chegue ao patamar de 2 mil arrobas. Decerto que por falta de uma estrutura administrativa para o assentamento, não se registra adequadamente o que se produz, o que se vende e o montante faturado; mesmo assim, são trabalhadores experientes nas lides com o cacau; portanto, suas previsões costumam se aproximar da realidade. Assim, estamos diante de um quadro catastrófico; se algo não for feito, de imediato, certamente o futuro das famílias assentadas em Cascata estará comprometido, particularmente o futuro dos jovens, segmento que corresponde a 28% da população residente.

A saída para a economia do assentamento está, de um lado, na substituição paulatina do cacau comum pela espécie modificada, desenvolvida pela Comissão Executiva do Plano de Lavoura Cacaueira (Ceplac). É uma espécie de alta produtividade, chegando a produzir de 180 a 300 arrobas por ha., enquanto o comum (formado pelas espécies pará e parazinho e de origem amazônica) não passa de 60 a 100 arrobas por ha.

Ainda assim, infelizmente, a situação de Cascata está muito longe desses índices, cuja produtividade varia de 10 a 25 arrobas por ha.

Outras possibilidades econômicas estão no desenvolvimento do Projeto Agroindustrial, sobretudo com a produção de passas de jaca e banana - já em andamento; expandir a produção de frutas orgânicas - o que possibilita aumento de até 30% no valor da venda; também está idealizado desenvolver projeto de ecoturismo, aproveitando o potencial de Mata Atlântica, inclusive dos rios Caculé e do Bonga, que cortam as terras da fazenda da Cascata. Para tanto, o primeiro passo será a transformação da casa sede da antiga propriedade em um hotel fazenda.

No campo da infraestrutura, o assentamento está necessitando de água potável - projeto em execução - e esgoto sanitário - que ainda não tem uma data para sua realização. Do ponto de vista dos serviços sociais, a situação não é das melhores. Não se dispõe de um posto de saúde e a escola do ensino fundamental encontra-se em condições precárias, tanto em termos das instalações e equipamentos, quanto em termos do funcionamento, posto que a única sala de aula abriga alunos de diferentes estágios de aprendizagem - o que pode ser considerado um grave problema do ponto de vista pedagógico. O que se percebe, em síntese, é uma ausência do poder público no P.A. Cascata - tanto municipal, quanto estadual e federal; aliás, como de resto, nas demais comunidades assentadas.

Apesar da precariedade de infraestrutura sanitária, da política social e da pouca vitalidade do principal projeto econômico - com a produção de cacau -, ainda assim pode-se dizer que o Projeto de Assentamento da Fazenda Cascata não deve ser avaliado como outro projeto qualquer de assentamento; verdadeiramente, é um projeto privilegiado: está localizado numa parte densa da Mata Atlântica (com toda a exuberância de sua biodiversidade), é formado por terras férteis em toda a sua extensão (e com uma rica fauna e flora), cortado por águas potáveis dois rios Caculé e do Bonga - permanentes e piscosos -, com um enorme potencial para o desenvolvimento da economia do ecoturismo e da agroindústria. Ao lado disso, tem a sua origem formada por uma população jovem.

Qual a conclusão desta análise? Que o Programa de Assentamento da Fazenda Cascata tem extraordinários meios naturais, mas falta-lhe a capacidade técnica; faltam-lhe os meios para administrar adequadamente esse enorme potencial de riqueza.

Hoje, o assentamento não dispõe de uma burocracia mínima para viabilizar o projeto. Não se tem registro no banco de dados sobre quase nada: do que se produz, o que se vende, por quanto se vende, qual o volume vendido, qual a renda familiar e qual a renda individual de cada associado. Em uma sociedade comunitária, é importante saber o tempo de trabalho de cada um e a renda obtida. É necessário saber o programa comunitário e o seu orçamento de receita e de despesa. Os gastos com impostos e sua programação de desembolso. É importante saber as novas possibilidades de investimentos e a elaboração dos respectivos projetos. Nada disso existe, se conhece ou é feito. É preciso, então, estruturar uma burocracia capaz de engendrar tudo isso.8 8 A Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia está comprometida em elaborar um Plano Administrativo, inclusive treinando as pessoas que irão operá-lo. Este trabalho estará concluído até o mês de janeiro de 2011.

E o que "falta, então"? Falta o governo se conscientizar ou ser conscientizado de que para um melhor resultado da política agrária, de colonização, de assentamento ou qualquer outra denominação dada são fundamentais a distribuição de terra, o crédito, a infraestrutura, o mercado etc.; porém, nada disso adianta ou significa pouco se não houver ou não foi escrito concomitante o capítulo referente à administração do projeto de assentamento.9 9 Em 2000, a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFCH) da UFBA, através do seu centro de Recursos Humanos (CRH), elaborou para o projeto de assento da fazenda Cascata um "Plano de desenvolvimento sustentável" que nunca foi executado justamente por não ter uma administração capaz de dar conta dessa tarefa. Afinal, não temos o administrador público (chamado de gestor público)? Não faria mal algum ser criada a carreira do administrador rural para essas circunstâncias especiais encontradas nos programas de assentamento. Certamente, oneraria muito pouco o Tesouro Nacional ou o Tesouro Estadual, se comparado com os resultados a serem alcançados.

Por fim, será que somos capazes de imaginar os impactos econômicos e sociais decorrentes da introdução de uma administração profissional nas relações sociais de produção, realização e distribuição numa gleba de 84,3 milhões de hectares, com 8,6 mil assentamentos, e, aproximadamente, 40 milhões de residentes e 10 milhões de trabalhadores?

Essa é a única forma de o Projeto de Assentamento Fazenda Cascata deixar de ser uma ficção (construída pelos órgãos oficiais, pelos organismos internacionais e pela mídia) e tornar-se uma realidade para aqueles que dele mais necessitam: as famílias assentadas!

5. Conclusão e recomendação

Este capítulo tem o seu conteúdo direcionado para o que é relevante apontado pela pesquisa. Assim, temos como conclusão que os assentamentos estão produzindo bem abaixo do seu potencial porque a política do governo para o setor não contempla o capítulo da administração dos projetos. E o assentamento de Cascata é o exemplo bem evidente desse fato. Uma gleba de terra de 600 ha., privilegiada por estar sob a proteção da Mata Atlântica, não consegue gerar uma riqueza que seja suficiente para garantir a materialidade básica para os seus poucos 160 habitantes.

Por isso, recomendamos que o governo crie a carreira do administrador rural, visando introduzir uma administração profissional nos assentamentos já constituídos, nos que estão se instalando e nos que se instalarão no futuro. Os impactos econômicos e sociais são tão expressivos que transformarão o custo com o pessoal da nova carreira em algo desprezível, na composição do orçamento público brasileiro.

Artigo recebido em abr. 2010 e aceito em nov. 2010.

  • ASSENTAMENTOS da reforma agrária, meio ambiente e unidades de conservação. Disponível em: <http://arruda.rits.org.br/oeco/reading/oeco/reading/pdf/msc_olmos_mst.pdf> Acesso em: 22 set. 2010.
  • BAHIA. Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional (CAR). Parecer técnico do subprojeto de desenvolvimento dos assentamentos extremo sul da Bahia Salvador: s.n., s.d.
  • _____. Análise territorial da Bahia rural Salvador, 2004. Estudos e Pesquisas, v.71.
  • _____. Desigualdades regionais Salvador, 2004. Série Estudos e Pesquisas, v.67. Subprojeto de desenvolvimento dos assentamentos do extremo sul da Bahia.
  • ______. Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais (SEI). Perfil financeiro dos municípios baianos Salvador: SEI, 2009.
  • BERGAMASCO, Sonia Maria Pessoa Pereira. A realidade dos assentamentos rurais por detrás dos números. Disponível em: <http://search.scielo.org/
  • 1
    Pesquisa financiada com recursos do CNPq e Fapesb.
  • 2
    O universo da pesquisa é mais amplo que o apresentado neste artigo; consta, pois, de análises dos resultados e impactos do recente processo de descentralização e municipalização da gestão publica no Brasil e suas consequências para a gestão municipal, assim como estudar, com relativa profundidade, a capacidade financeira, gerencial e de gestão democrática dos municípios baianos. O objetivo desses capítulos no presente estudo foi criar as bases para uma compreensão mais ampla e critica acerca do papel do poder local nos programas de reforma agrária do Brasil. Essas análises serão objeto de artigos a serem publicados em um futuro próximo com o propósito de demonstrar que a relação entre os governantes locais e as questões de governabilidade, assim como a análise da capacidade financeira, organizacional e administrativa municipal dos municípios baianos confirmam resultados acerca da dificuldade que a administração municipal tem de inovar em relação ao modelo tradicional, e assim, apoiar, de forma mais efetiva, os assentamentos situados em seu território.
  • 3
    REFORMA agrária - compromisso de todos. Disponível em: <
  • 4
    Por esses fatos, o professor Octavio Ianni compreendeu que a oligarquia foi derrotada apenas parcialmente. É preciso entender que sua importância continuou, mesmo o projeto sendo outro, porque não se podia, naquelas instâncias, financiar a industrialização sem a renda gerada na agricultura.
  • 5
    REFORMA agrária - compromisso de todos. Disponível em: <
  • 6
    P.A. Cascata Brasil na Luta é o novo nome da Associação Brasil na Luta Procurando seus Direitos, reformulação feita em Assembleia no dia 21 de junho de 1999.
  • 7
    Vale lembrar que essa apropriação individual só ocorre no usufruto, posto que a alienação da propriedade do lote pela família é proibido pela lei nº8.629, de 25 de fevereiro de 1993, embora se saiba que ocorre em assentamentos no Brasil a alienação mediante o contrato de "gaveta", sem registro em cartório do processo da compra e venda. No caso de Cascata, se algum assentado desejar sair receberá uma indenização pelas benfeitorias realizadas, sem incluir, nesse benefício, a terra e o cacau recebidos no momento da posse.
  • 8
    A Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia está comprometida em elaborar um Plano Administrativo, inclusive treinando as pessoas que irão operá-lo. Este trabalho estará concluído até o mês de janeiro de 2011.
  • 9
    Em 2000, a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFCH) da UFBA, através do seu centro de Recursos Humanos (CRH), elaborou para o projeto de assento da fazenda Cascata um "Plano de desenvolvimento sustentável" que nunca foi executado justamente por não ter uma administração capaz de dar conta dessa tarefa.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Abr 2012
    • Data do Fascículo
      Fev 2011

    Histórico

    • Aceito
      Nov 2010
    • Recebido
      Abr 2010
    Fundação Getulio Vargas Fundaçãoo Getulio Vargas, Rua Jornalista Orlando Dantas, 30, CEP: 22231-010 / Rio de Janeiro-RJ Brasil, Tel.: +55 (21) 3083-2731 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
    E-mail: rap@fgv.br