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Editorial

O segundo editorial sob minha responsabilidade como editora da Revista de Administração Pública (RAP) surge num contexto marcado por tensões políticas, cujas soluções parecem ainda longe de serem negociadas. É comum que esse cenário de crise se transforme num palco privilegiado para questionar o papel da burocracia pública, da sua relação com a política, da sua imersão na sociedade, entre outras questões que tangenciam a própria razão de ser do Estado e de seu complexo aparelho político-administrativo.

Sabemos que o cenário de crise é propício à gestação de reformas abrangentes, cujos efeitos em longo prazo são modestos e questionáveis (March e Olson, 1983MARCH, James G.; OLSON, Johan P. Organizing political life: what administrative reorganization tells us about government. American Political Science Review, v. 77.02, p. 281-296, 1983.). Entretanto, apreendemos, nas páginas da RAP, que existe, no Brasil, uma tendência histórica de optar por soluções reformistas de natureza globalista-imediatista (Nascimento, 1967NASCIMENTO, K. Reflexões sobre a estratégia de reforma administrativa: a experiência federal brasileira. Rev. Adm. Pública, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 11-50, jan./jun. 1967.), ao invés de soluções incrementais, porém mais sustentáveis ao longo prazo. Faz parte do papel de uma revista acadêmica de administração pública olhar para além das soluções simplistas e mirabolantes que marcam a retórica política, questionando os efeitos das mesmas e discutindo o fenômeno administrativo a partir de múltiplas lentes conceituais e metodológicas.

É essa pesquisa sistemática e profunda, realizada por uma comunidade de pesquisadores comprometidos com a administração pública, que buscamos atrair para a RAP. O segundo número de 2016 agrega alguns temas importantes que a atual conjuntura transformou em temas sensíveis, como a corrupção, e outros clássicos, como a relação da administração pública com a democracia.

É exatamente porque a conjuntura demanda, que me permito fazer outra leitura, mais contextualizada, das contribuições publicadas neste número. Um dos trabalhos nos alerta sobre a problemática de corrupção e sua crítica relação com os gastos governamentais em áreas como educação e saúde, permitindo focar melhor o debate sobre suas formas de combate, abrindo espaço para discutir medidas setoriais e institucionais mais concretas. Outros trabalhos avançam na discussão de importantes mecanismos institucionais gradualmente adotados no contexto brasileiro ou internacional, como os relacionados com a answerability, com a qualidade da gestão financeira dos governos ou com a Lei de Responsabilidade Fiscal. Cada um desses mecanismos institucionais vem modificando gradualmente a dinâmica da administração pública e sua relação com a sociedade. É essa qualidade da transformação gradual na relação Estado-sociedade que vejo embutida indiretamente nos resultados da pesquisa que discute o funcionamento de mecanismos de accountability eleitoral nas eleições municipais, achando indícios de um maior afinamento entre as preferências dos eleitores e dos políticos, comum em democracias amadurecidas, como o Brasil. Por fim, o número agrega uma nova perspectiva teórico-metodológica ao discutir o potencial da historiografia em pesquisas da área. Recorri a um clássico da historiografia da RAP, de Kleber Nascimento (1967NASCIMENTO, K. Reflexões sobre a estratégia de reforma administrativa: a experiência federal brasileira. Rev. Adm. Pública, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 11-50, jan./jun. 1967.), para contextualizar este editorial, acreditando encontrar na história uma boa porção de fatos explicativos, embora não determinantes, do rumo futuro da administração pública nesse país.

Segue, agora, uma cronologia descritiva dos artigos veiculados nesta edição.

O primeiro artigo, The process of implementing answerability in contemporary Brazil, de Ana Rita Silva Sacramento e José Antonio Gomes de Pinho, busca identificar e analisar as alterações institucionais formais ocorridas no Brasil, em âmbito federal, que favorecem as exigências típicas da answerability no período compreendido entre 1985 e 2014. A answerability, com suas exigências típicas de informação e justificação, é vista como parte de accontability, outro conceito com difícil tradução para o contexto político brasileiro, porém de gradual penetração no arcabouço institucional. O artigo destaca que essas alterações institucionais não ocorreram de forma abrupta, mas por meio de um desencadeamento lento e em etapas nos últimos governos.

O artigo Nova história da administração pública brasileira: pressupostos teóricos e fontes alternativas, de Frederico Lustosa da Costa e Elza Marinho Lustosa da Costa, discute pressupostos teóricos-metodológicos para o desenvolvimento de uma nova história de administração pública, baseado nos avanços da historiografia mais recente. O artigo identifica algumas fontes existentes como o Repertório das leis sobre Organização Governamental; Falas do Trono e Mensagens Presidenciais; Relatórios do TCU; Estatísticas - séries históricas; Arquivos pessoais; Histórias de vida - história oral e fontes biográficas, dando o primeiro passo para disponibilizá-las aos pesquisadores interessados em revelar aspectos importantes dessa história.

O artigo Corrupção e composição dos gastos governamentais: evidências a partir do Programa de Fiscalização por Sorteios Públicos da Controladoria-Geral da União, de Olavo Venturim Caldas, Cristiano Machado Costa e Marcelo Sanches Pagliarussi, analisa a relação entre corrupção e a composição dos gastos governamentais nos municípios do Brasil, trazendo uma contribuição com importantes implicações para a prática de administração pública. Diferentemente de estudos anteriores, os resultados dessa pesquisa indicam que a corrupção está negativamente associada a gastos na área de assistência social e positivamente associada a gastos governamentais nas áreas de educação e saúde, indicando uma possível atuação de rent-seekers nessas áreas, possivelmente devido a maior facilidade no desvio desses recursos.

O artigo The convergence of the Central American countries to International Accounting Standards, de Carlos Araya-Leandro, María Del Carmen Caba-Pérez e Antonio M. López-Hernandez, também avança na análise dos esforços de modernização da gestão financeira dos governos, com vistas a melhorar os processos de tomada de decisão, reduzir a corrupção e informar o cidadão. O trabalho, de natureza comparativa, analisa as reformas adotadas por países da América Central na adoção de Ipsas advogados pela International Federation of Accountants (Ifac). Os resultados do estudo comparativo indicam maior atenção em indicadores financeiros, em detrimento de não financeiros, como indicadores de desempenho, e ainda baixo grau de convergência em termos de padrões internacionais, de boa parte dos países da região.

O artigo Sustentabilidade da dívida estadual brasileira: uma análise da relação dívida líquida e resultado primário, de Alessandro Aurélio Caldeira, Marcelo Driemeyer Wilbert, Tito Belchior Silva Moreira e André Luiz Marques Serrano, analisa a sustentabilidade da dívida estadual, no período de dez./2001 a maio/2014, no contexto da nova postura fiscal adotada com a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). O trabalho conclui que a dívida pública agregada dos estados apresentou comportamento sustentável no período de 2001 a 2014, porém discute as implicações decorrentes do afrouxamento fiscal em 2014, da qualidade de ajuste fiscal promovida pelos estados, assim como da recente desaceleração econômica que ameaça a sustentabilidade futura.

Por fim, o artigo Desempenho fiscal e eleições no Brasil: uma análise comparada dos governos municipais, de Pedro Cavalcante, analisa a relação entre a gestão fiscal e o instituto da reeleição nas eleições para prefeitos municipais no Brasil, numa perspectiva temporal abrangente, buscando responder as seguintes questões: i) a expectativa de reeleição do prefeito influencia o gerenciamento de sua política fiscal?; e ii) os cidadãos premiam ou punem os prefeitos de acordo com o desempenho fiscal de seus governos? Entre os resultados discutidos, refuta-se a hipótese de que a expectativa de reeleição geraria desempenhos fiscais distintos e confirma-se a hipótese de premiação ao prefeito que destina mais recursos para as obras públicas ao contrário de quem eleva a coleta de tributos. O trabalho indica que o funcionamento de mecanismos de accountability eleitoral nas eleições municipais corrobora para o afinamento entre as preferências dos eleitores e dos políticos, comum em democracias amadurecidas.

Por fim, o fórum Perspectivas Práticas abriga o artigo Objetivos e desafios da política de compras públicas sustentáveis no Brasil: a opinião dos especialistas, de Hugo Leonnardo Gomides do Couto e Francis Lee Ribeiro, que investiga como os especialistas compreendem, refutam ou validam os objetivos e estabelecem os desafios prioritários à implementação da política pública de compras sustentáveis na esfera federal.

Boa leitura!

Alketa Peci

Editora chefe

Referências

  • MARCH, James G.; OLSON, Johan P. Organizing political life: what administrative reorganization tells us about government. American Political Science Review, v. 77.02, p. 281-296, 1983.
  • NASCIMENTO, K. Reflexões sobre a estratégia de reforma administrativa: a experiência federal brasileira. Rev. Adm. Pública, Rio de Janeiro, v. 1, n. 1, p. 11-50, jan./jun. 1967.
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    Alketa Peci é doutora em administração e professora adjunta pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas. Editora chefe da Revista de Administração Pública (RAP). E-mail: alketa@fgv.br.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2016
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