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Políticas públicas de transferência de renda na América Latina

Políticas públicas de transferencia de renta en América Latina

Resumo

Este artigo tem o objetivo de analisar as políticas públicas que enfrentam o problema social da pobreza em seis países da América Latina: México, Brasil, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Argentina. O problema de pesquisa é: o que motivou esses países a empreenderem políticas públicas de transferência de renda? Em hipótese, afirmamos que tais políticas públicas são consequência da redemocratização, da assunção de elites políticas reformistas e de partidos ou coalizões políticas marcados pelo intuito de implementar o Welfare State. Para checar a hipótese, adotamos a metodologia de política comparada e da abordagem do neoinstitucionalismo, e das “teorias sintéticas” e da “virada argumentativa” que valorizam as ideias, o conhecimento e os discursos.

Palavras-chave:
política social; assistencialismo; pobreza; bolsa família; América Latina.

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar las políticas públicas que aborden el problema social de la pobreza en seis países de América Latina: México, Brasil, Uruguay, Paraguay, Bolivia y Argentina. Como un problema de investigación, adoptamos la siguiente pregunta: ¿qué motivó a estos países para llevar a cabo las políticas de transferencia de ingresos? Bajo ninguna circunstancia, afirmamos que tales políticas son el resultado de la democratización, la asunción de las élites reformistas políticas y los partidos políticos o coaliciones marcados por la intención de aplicar el Bienestar State. Para comprobar la hipótesis, hemos adoptado la metodología de la política comparada, el enfoque neoinstitucionalismo, la “teoría sintética” y la teoria de lo “giro argumentativo” que valoran las ideas, el conocimiento y discursos.

Palabras clave:
política social; asistencialismo; la pobreza; asignación familiar; América Latina.

Abstract

This article aims to analyze those public policies that address the social problems of poverty in six Latin American countries: Mexico, Brazil, Uruguay, Paraguay, Bolivia and Argentina. The research question posed here is: what motivated these countries to implement policies aimed at transferring income? In theory, we consider that such public policies are the result of a re-democratization process, and the rise to power of a reformist political elite and of political parties or political coalitions bent on the idea of implementing a Welfare State. To check this theory, we have adopted the compared policy methodology and the neo-institutionalism approach, as well as the “synthetic theories” and the “argumentative turn”, all of which value ideas, knowledge and discourse.

Keywords:
social policy; welfare; poverty; the Bolsa Familia program; Latin America.

1. Introdução

A existência de grandes contingentes populacionais em situação de privação econômica e social no século XXI revela sistemas políticos ineficientes no sentido de incorporar o conjunto da população à cidadania e, de outro lado, limita a possibilidade de accountability vertical, o que é elemento essencial para a garantia da qualidade da democracia.

Conforme demonstram as informações do informe sobre a riqueza mundial de 2015 do banco alemão Credit Suisse, 1% da população mundial concentra metade de toda a riqueza do planeta, o que revela que a pobreza é um problema político e não produtivo. Se no século XVII ou XVIII a produção de alimentos e bens duráveis era insuficiente para melhorar a vida de multidões que pereciam sob a fome e a pobreza, não parece que esse seja o principal problema contemporâneo. O desenvolvimento tecnológico e industrial do capitalismo do século XX multiplicou a capacidade de produzir alimentos e bens duráveis e não duráveis, ou seja, produzir riqueza, a partir do trabalho, que, contudo, é concentrada desigualmente.

Embora não existam soluções definitivas para o problema da concentração de riqueza e desigualdade, a partir do século XX os países capitalistas desenvolvem ações sociais com variadas formas, focos, profundidades e amplitude, todas com o objetivo de minimizar os problemas causados pela pobreza extrema, definidos sob o conceito de Welfare State (Esping-Andersen, 1991ESPING-ANDERSEN, Gota. As três economias políticas do Welfare State. Lua Nova, n. 24, p. 85-116, set. 1991.). Os países mais pobres têm dificuldades extras para a implementação de políticas sociais e, na maioria das vezes, atuam na perspectiva do alívio à pobreza e garantia da sobrevivência básica que, para Amartya Sen (2001SEN, Amartya K. Desigualdade reexaminada. São Paulo: Saraiva, 2001.), é algo bastante relevante, pois os “bens primários são coisas que toda pessoa racional presumivelmente quer e incluem renda e riqueza, portanto, meios para qualquer propósito para a busca de diferentes concepções do bem que os indivíduos podem ter” (Sen, 1991SEN, Amartya K. Desigualdade reexaminada. São Paulo: Saraiva, 2001.:136).

Na América Latina e Caribe, 18 países desenvolvem políticas específicas para a redução da pobreza por meio de transferência de renda. São eles: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, Jamaica, México, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Trinidad e Tobago e Uruguai.

Este artigo tem o objetivo de analisar as políticas públicas que tratam da pobreza em seis países da América Latina: México, Brasil, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Argentina, cujos programas transferem um valor em dinheiro diretamente aos beneficiários. De maneira geral, esses programas enfrentam a questão da pobreza contribuindo com a sobrevivência material básica dos beneficiários.

O problema que nos instiga é o que impulsiona esses países a empreenderem políticas públicas redistributivas de transferência de renda. Embora aparentemente banal, a questão é relevante se considerado que a América Latina passou por processos ditatoriais duros e duradouros que notadamente contribuíram para consolidar elites econômicas intimamente vinculadas ao sistema de representação política e ao aparelho burocrático do Estado. Ou seja, mesmo considerando as várias teorias que explicam o desenvolvimento do Welfare State nos países capitalistas desenvolvidos, não parece claro que esses processos tenham se desenvolvido da mesma forma na América Latina (Esping-Andersen, 1991ESPING-ANDERSEN, Gota. As três economias políticas do Welfare State. Lua Nova, n. 24, p. 85-116, set. 1991.). Nossa hipótese é que tais políticas públicas são consequência da redemocratização, da assunção de elites políticas reformistas e de partidos ou coalizões políticas com programas marcados pela concepção do Welfare State.

A metodologia comparada possibilita o estudo de fenômenos políticos em países distintos (política comparada) ou o cotejamento de casos ou experiências num mesmo país (comparação). Neste trabalho compararemos os seguintes programas: Programa Bolsa Família (PBF) do Brasil, Cercanias, do Uruguai, Tekoporã, do Paraguai, Bono Juancito Pinto, da Bolívia, e Asignación Universal por Hijo para Protección Social, da Argentina. Para tanto utilizaremos variáveis descritivas para maximizar as diferenças entre os países e os programas, tais como: população, pobreza, beneficiários, produto interno bruto (PIB), produto interno bruto para cada cidadão (PIB per capita), percentual do PIB investido no programa, além do histórico da redemocratização.

Para testar nossa hipótese utilizamos a seguinte desagregação das variáveis causais:

  1. i.Redemocratização: o país atualmente é uma democracia? Existem eleições livres e limpas; o sufrágio é universal, os direitos civis e políticos são respeitados; os governos governam e os militares estão sob controle (Maiwaring et al., 2001).

  2. ii.Coalizões governistas adeptos do Welfare State: presença de itens de bem-estar nas ações programáticas.

  3. iii.Presidente pertence a partido de esquerda.

A variável consequente é a criação do programa de transferência de renda, e a congruência ocorrerá se tiver ocorrido durante o período democrático, sob a administração de coalizão marcada por Welfare State e presidente pertencente a partido de esquerda.

O artigo está organizado da seguinte forma: na primeira seção apresentamos uma discussão sobre as teorias que adotamos para analisar as políticas públicas de Welfare State, de modo geral, e de transferência de renda na América Latina, em particular: a abordagem do neoinstitucionalismo e a abordagem das ideias, do conhecimento e do discurso. Na segunda seção apresentamos a descrição dos programas de transferência de renda do Brasil, Bolívia, Uruguai, Paraguai e Argentina. Na terceira seção fazemos uma análise comparada dessas políticas à luz das teorias do neoinstitucionalismo e das ideias, conhecimento e discurso.

2. Uma aproximação teórica à análise de políticas públicas

A análise de políticas públicas é uma área acadêmica e científica com abordagem teórica e metodológica sobre a política pública. Apresentou formidável expansão, nas últimas décadas, adquirindo progressivamente sua autonomia como disciplina no interior da ciência política e, inclusive, tornando-se autônoma ao inaugurar cursos de graduação e pós-graduação em níveis de mestrado e doutorado, dispondo de razoável acervo de conhecimentos que possibilita um importante apoio a intervenções na realidade social.

As políticas públicas são o resultado (recurso, bem ou direito) das relações de poder entre Estado, sociedade e mercado, síntese dos conflitos, consensos e coalizões dos segmentos sociais e políticos interessados em realizar suas preferências, em regimes democráticos. Consideram as constantes transformações históricas e são permeadas por mediações de natureza variada. São materializadas por meio de políticas, programas, ações, estratégias que implicam coordenação, capacidade administrativa e burocrática, financiamento, e podem ser executadas diretamente ou mediante outras agências e, inclusive, em parceria com organizações privadas e do terceiro setor. A análise de políticas públicas é a reflexão científica sobre as políticas públicas. A avaliação de políticas públicas verifica a eficiência, eficácia e efetividade das ações dos governos.

A partir do reconhecimento de que é possível analisar cientificamente o que o governo faz ou não, surgiram inúmeros modelos explicativos empenhados em elucidar os processos de formulação, implementação e avaliação das políticas, conforme pode ser verificado em abundante bibliografia (Lasswell, 1936LASSWELL, Harold. Politics: who gets what, when, how. Chicago: University of Chicago, 1936.; Lowi, 1972LOWI, Theodor. Four systems of policy, politics, and choice. Public Administration Review, v. 32, n. 4, p. 298-310, 1972.; Marques e Faria, 2013MARQUES, Eduardo; FARIA, Carlos Aurélio P. (Org.). A política pública como campo multidisciplinar. São Paulo: Unesp; Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013.; Melo, 1999MELO, Marcus André. Estado, governo e políticas públicas. In: MICELI, Sérgio (Org.). O que ler na ciência social brasileira (1970-1995): ciência política. São Paulo: Sumaré; Brasília: Capes, 1999.; Frey, 2000FREY, Klaus. Políticas públicas: um debate conceitual e reflexões referentes à prática da análise de políticas públicas no Brasil. Planejamento e Políticas Públicas, n. 21, p. 211-259, jun. 2000.; Sabatier e Jenkins-Smith, 1993SABATIER, Paul; JENKINS-SMITH, Hank. Policy change and learning: the advocacy coalition approach. Boulder: Westview Press, 1993.; Souza, 2006SOUZA, Celina. Políticas públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, Porto Alegre, a. 8, n. 16, jul./dez.2006.), bem como o processo de definição da agenda setting, ou seja, da escolha do tema ou problema a ser tratado pela ação do Estado (Lowi, 1972LOWI, Theodor. American business, public policy, case studies and political theory. World Politics, v. 16, n. 4, p. 677-715, 1964.; Kingdon, 2011KINGDON, John. Agendas, alternatives and public policies. 2. ed. atual. Washington: Longman Classics in Political Science, 2011.; Sabatier e Jenkins-Smith, 1993SABATIER, Paul; JENKINS-SMITH, Hank. Policy change and learning: the advocacy coalition approach. Boulder: Westview Press, 1993.; Schattschneider, 1960SCHATTSCHNEIDER, Elmer E. The semi-sovereign people. Nova York: Holt, Rinehart and Winston, 1960.; Wildawski, 1964WILDAWSKI, A. Politics of the budgetary process. Boston: Little Brown, 1964.), entre outros.

Para este trabalho interessa incorporar duas teorias: o neoinstitucionalismo, concepção que ganhou grande prestígio na área da ciência política americana e brasileira no período contemporâneo, e o poder das ideias e do conhecimento, que tem importante contribuição analítica para o caso em tela.

O neoinstitucionalismo pode ser subdividido em três correntes internas, histórico, sociológico e de escolha racional, cujas diferenças foram bem exploradas por Hall e Taylor (2003HALL, Peter; TAYLOR, Rosemary. As três versões do neoinstitucionalismo. Lua Nova, n. 58, p. 193-223, 2003.). A utilização tardia desta abordagem como tabela teórico-analítica se deve ao fato de que a análise da ação do Estado surge, originalmente, em países consolidados institucionalmente, no caso, os Estados Unidos da América, o que dispensaria esse tratamento. No entanto, quando se reflete sobre contextos de fragilidade institucional, como o dos países pobres, em particular da América Latina, África e Ásia, essa perspectiva é bastante adequada.

Para os neoinstitucionalistas, as instituições governamentais possuem importância crucial para a consolidação democrática (Mainwaring et al., 2001MAINWARING, Scott; BRINKS, Daniel; PÉREZ-LIÑÁN, Aníbal. Classificando regimes políticos na América Latina, 1945-1999. DADOS - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 44, n. 4, p. 645-687, 2001.) e para a decisão, formulação e implementação de políticas públicas (Abrucio, 1998ABRUCIO, Fernando L. Os barões da federação. São Paulo: Hucitec, 1998.; Arretche, 1999ARRETCHE, Marta. Políticas sociais no Brasil: descentralização de um estado federativo. Revista Brasileira de Ciências Sociais {online}, São Paulo. v. 14, n. 40, p. 111-141, jun. 1999.). Adquirem notável papel no momento em que são responsáveis pela manutenção de regras gerais e entendimentos que prevalecem sobre cada sociedade, exercendo influência decisiva em interpretações e no próprio agir das pessoas. Possuem, ainda, duas virtudes principais: diminuem os custos de decisão ao dispensar grandes esforços para mapear as possibilidades de ação e, de outro lado, estimulam e exigem previsibilidade do comportamento premiando ou sancionando as ações conforme sua adequação. De fato, os atores políticos e sociais agem de acordo com seus próprios interesses; entretanto, as regras, deveres e direitos estimulados e garantidos pelas instituições formais do Estado, como o Congresso, a Presidência, o Judiciário, as burocracias estatais, influenciam na construção das preferências e, principalmente, permitem previsibilidade sobre as regras do jogo. Importantes estudos sobre o papel das instituições podem ser encontrados em March e Olsen (1983MARCH, James; OLSEN, Johan. The new institutionalism: organizational factors in political life. American Political Science Review, v. 78, n. 3, p. 734-749, 1983.), Reich (2000REICH, Simon. The four faces of institutionalism: public policy and a pluralistic perspective. Governance, v. 13, n. 4, p. 501-522, out.2000.) e Radaelli e colaboradores (2012RADAELLI, Claudio; DENTE, Bruno; DOSSI, Samuele. Recasting institutionalism: institutional analysis and public policy. European Political Science, n. 11, p. 537-550, fev. 2012.).

Isso significa afirmar que os atores políticos e sociais não agem somente de acordo com seus interesses pessoais, mas regrados por instituições que oferecem estabilidade ao processo das políticas públicas, coordenando os recursos cognitivos, mediando conflitos e oferecendo incentivos a certas ações políticas (Romano, 2009ROMANO, Jorge O. Política nas políticas: um olhar sobre a agricultura brasileira. Rio de Janeiro: Mauad X; Edur, 2009.).

Assim, a teoria neoinstitucionalista supera a perspectiva pluralista na medida em que nos ajuda a entender que não são só os indivíduos ou grupos sociais que detêm a força para influenciar no rumo das políticas públicas, mas igualmente as instituições, regras e organizações têm o potencial de conduzir a certa direção e definir o objeto, o foco e o conteúdo da política pública.

A abordagem que considera as ideias e o conhecimento para análise de políticas públicas surge a partir da obra de Schattschneider (1960)SCHATTSCHNEIDER, Elmer E. The semi-sovereign people. Nova York: Holt, Rinehart and Winston, 1960., para quem o modelo racional compreensivo (Deleon, 1997DELEON, Peter. Democracy and the policy sciences. Albany, NY: State University of New York, 1997.; Fischer, 2003FISCHER, Frank. Reframing public policy: discursive politics and deliberative practices. Oxford: Oxford University Press, 2003.) tanto quanto o modelo pluralista (Dahl e Lindblon, 1953DAHL, Robert A.; LINDBLON, Charles. Politics, economics and welfare. Chicago: University of Chicago Press, 1953.) tinham limitada capacidade de analisar a ação dos governos e, muito menos, a formação das preferências que dão materialidade às políticas públicas. O modelo racional compreensivo formulado originalmente por Lasswel (1936)LASSWELL, Harold. Politics: who gets what, when, how. Chicago: University of Chicago, 1936. afirmava que as políticas públicas deveriam ser tarefa de especialistas que, por meio do método científico e de sofisticados cálculos estatísticos, ofereceriam a melhor opção para o governo. De outro lado, a partir do advento das democracias modernas, o modelo pluralista irá identificar um conjunto de grupos de interesse que disputarão o poder de definir a preferência do governo, cujo resultado muito poucas vezes será o mais racional.

Reagindo a essas duas perspectivas, Schattschneider (1960)SCHATTSCHNEIDER, Elmer E. The semi-sovereign people. Nova York: Holt, Rinehart and Winston, 1960. afirma que a disputa pela definição das políticas não se dá de forma hermética, aberta e igual, mas, ao contrário, a disputa ocorre entre poucos grupos privilegiados, com muito capital econômico e político, que limitariam o acesso de outros setores à arena de disputa. A partir da expansão do conflito e da mobilização de viés, categorias-chave para Schattschneider, é possível inserir novos temas na arena de decisão, além de coordenar o debate pelo viés do segmento com mais poder de conduzi-lo. Schattschneider lança as bases daquele que rapidamente irá se constituir como modelo que considera o poder das ideias e do conhecimento para analisar as políticas públicas e, particularmente, para compreender a formação da agenda setting.

Como muito bem sintetiza Barcelos (2015BARCELOS, Márcio. O papel das ideias nos processos de construção de políticas públicas: abordagens sintéticas versus abordagens pós-empiricistas. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE CIÊNCIA POLÍTICA: ESTADO E DEMOCRACIA EM MUDANÇA NO SÉCULO XXI, 2015, Porto Alegre.. Anais...), no final da década de 1990 se desenvolve a perspectiva teórica que valoriza o “papel das ideias e do conhecimento” para interpretar as políticas públicas. Os principais nomes dessa perspectiva são Peter John (1998)JOHN, Peter. Is there life after policy streams, advocacy coalitions, and punctuations: using evolutionary theory to explain policy change? The Policy Studies Journal, v. 31, n. 4, p. 481-498, 2003., que afirma ser impensável a política sem ideias e conceitos que possibilitam aos agentes construírem suas percepções e argumentos e movimentarem-se nas disputas políticas; John Kingdon (2011KINGDON, John. Agendas, alternatives and public policies. 2. ed. atual. Washington: Longman Classics in Political Science, 2011.), que desenvolve a teoria dos fluxos múltiplos; Baumgartner e Jones (2009BAUMGARTNER, Frank; JONES, Bryan. Agendas and instability in American politics. 2. ed.Chicago: University of Chicago Press, 2009.), que lançam as bases da teoria do equilíbrio pontuado; e Sabatier e Jenkins-Smith (1993SABATIER, Paul; JENKINS-SMITH, Hank. Policy change and learning: the advocacy coalition approach. Boulder: Westview Press, 1993.), que desenvolvem o modelo das coalizões de defesa.

Essas abordagens são definidas como sintéticas por John (2003JOHN, Peter. Is there life after policy streams, advocacy coalitions, and punctuations: using evolutionary theory to explain policy change? The Policy Studies Journal, v. 31, n. 4, p. 481-498, 2003.), pois articulam as mais importantes tradições das ciências sociais, tais como o próprio neoinstitucionalismo, a escolha racional, os modelos de redes, as abordagens socioeconômicas e aquelas que dão ênfase ao papel das ideias e do conhecimento. “Essas tabelas de análise podem ser chamadas de sintéticas porque articulam o conhecimento produzido pela pesquisa em instituições, redes, processos socioeconômicos, escolha racional e ideias” (John, 2003JOHN, Peter. Is there life after policy streams, advocacy coalitions, and punctuations: using evolutionary theory to explain policy change? The Policy Studies Journal, v. 31, n. 4, p. 481-498, 2003.:487). Essas “teorias sintéticas” têm a virtude de articular elementos distintos para interpretar a construção de políticas públicas, com destaque particular para o peso das ideias que, contudo, não são a única variável independente. Ideias, valores e princípios definem visões de mundo que são naturalmente dinâmicas e interagem constantemente com instituições, processos sociais e econômicos, redes sociais e escolhas racionais individuais.

Outra importante perspectiva teórica que surge com base na força das ideias para a formação das políticas públicas é aquela que surge a partir da chamada “virada argumentativa”, que considera central a forma como os atores articulam as ideias e o conhecimento mediante os discursos. Ficher e Forrester (1993) sintetizam essa concepção afirmando que a formação das políticas públicas ocorre a partir de ideias, discursos e argumentos que são os responsáveis pela construção de imagens e percepções em relação aos mais diversos temas ou problemas públicos.

A partir da sistematização de Ficher e Forrester, a análise de políticas públicas sofre uma importante inflexão, obrigando a ciência política a superar as interpretações que reduzem a realização das preferências às disputas e jogos de poder e interesse. Exemplo de superação é a teoria das “narrativas causais” de Debora Stone (1997STONE, Debora. Policy paradox: the art of political decision making. Nova York: W. W. Norton & Company, 1997.), para quem os interesses individuais, que se entrelaçam em disputas e conflitos de poder pela definição de preferências, não são dados e sim construídos socialmente. Por isso, é central entender como e onde os indivíduos formam suas imagens e percepções sobre o mundo e como essas imagens influenciam as preferências e definem as estratégias de ação nas políticas públicas.

As abordagens sintéticas mudam o foco da agenda das políticas públicas jogando luzes sobre o papel do ator, lócus onde se constroem as ideias e o conhecimento. As abordagens da virada argumentativa darão mais importância para o discurso e seus contextos sociais. Isto porque o discurso é produzido num determinado contexto e, por sua vez, contribui com a construção ou reforço deste ou outro contexto social, político e simbólico.

A consideração de ideias, de crenças, de argumentos e de discursos ampliou a possibilidade interpretativa das políticas públicas para além das instituições, das relações econômicas, das disputas de poder e interesse e da gestão.

Este pequeno balanço acerca das abordagens teóricas neoinstitucionalistas e aquelas que dão crédito a ideias, conhecimentos e discursos serve para avaliar o papel da redemocratização, a estruturação de um estado de direito democrático e do acesso de partidos ou coalizões simpáticas ao Welfare State e líderes governistas (presidentes) oriundos de partidos de esquerda, que são nossas variáveis independentes que explicam a formação de políticas de transferência de renda na América Latina no século XXI.

3. Transferência de renda na América Latina

A pobreza é uma preocupação na história da humanidade, pois é causa e consequência de guerras civis, violência, morbidade, doença e cidadania incompleta (Marshall, 1967MARSHALL, Thomas. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.) ou inconclusa (Carvalho, 2007CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 9. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.). Para a Organização das Nações Unidas (ONU), pessoas em situação de pobreza extrema são aquelas que apresentam uma renda média de R$ 2,36 por dia, ou R$ 71,75 por mês. Segundo dados apresentados pelo Relatório dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio 2013, o mundo alcançou a meta de reduzir a pobreza extrema à metade do nível registrado em 1990, porém, ainda que a parcela da população mundial considerada extremamente pobre tenha passado de 47% para 22%, mais de 1,2 bilhão de pessoas continua a viver nessa condição, ou seja, a cada oito indivíduos, pelo menos um não tem acesso regular a quantidades suficientes de alimento para suprir suas necessidades energéticas. Além disso, mais de 100 milhões de crianças continuam em estado de desnutrição, enquanto 165 milhões são raquíticas (PNUD, 2015PNUD. Erradicar a extrema pobreza e a fome. 2015. Disponível em: <Disponível em: http://www.pnud.org.br/ODM1.aspx >. Acesso em:30 abr. 2015.
http://www.pnud.org.br/ODM1.aspx...
).

Iniciativas individuais e grupais para diminuir a fome e a pobreza remontam à origem da humanidade. No entanto, segundo Marshall (1967MARSHALL, Thomas. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.), a primeira ação sistemática por parte de uma autoridade estatal ocorre pela primeira vez no século XII, quando a corte inglesa institui a poor law. A lei dos pobres objetivava abrandar a fome; contudo, para ter acesso a esse benefício, o indivíduo necessitava abrir mão da sua condição de cavalheiro, declarando-se incapaz de subsistir às suas próprias custas. Situação completamente distinta ocorre no século XX depois do advento da democracia e da construção da cidadania, quando os indivíduos passam a ser portadores de direitos.

A partir da constituição dos Estados nacionais modernos, as ações de combate à fome e à pobreza passam a integrar a agenda das autoridades, senão por compromisso social ou programático, pelo menos como necessário para impedir a conflagração e os conflitos internos. A partir do advento da cidadania política e da extensão do sufrágio, tais ações resultavam em apoios eleitorais.

Após as grandes guerras mundiais, duas concepções distintas de Estado polarizaram praticamente todo o planeta. De um lado, o comunismo, formulado por Lênin e Stálin, que influenciou de forma determinante a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), defendia o dever do Estado de descentralizar todo o planejamento e a produção econômica, bem como a necessidade de distribuição da riqueza de forma igual para todos os cidadãos, independendo de sua contribuição. De outro lado, o Welfare State, formulado por Keynes, influenciou de forma determinante a Europa e os Estados Unidos, defendendo uma concepção segundo a qual o Estado é o ator principal para impulsionar e gerir o progresso econômico e, do lado social, o responsável por garantir o mínimo necessário para a sobrevivência de todo e qualquer indivíduo, independentemente da sua contribuição para a construção da riqueza nacional.

Na segunda metade do século XX, essas duas concepções passam a disputar o restante do planeta, leia-se África e América Latina, com programas de desenvolvimento econômico e ajuda internacional. Do lado ocidental, o Banco Mundial e a Organização das Nações Unidas (ONU), particularmente seu braço para a alimentação e agricultura (FAO), desenvolvem vários programas para apoiar os governos da América Latina que, no entanto, não avançam muito em razão das limitações financeiras, falta de prioridade e, principalmente, por serem na maioria presididos por ditaduras, onde a variável eleitoral inexiste, e a disputa de interesses é completamente controlada.

Não é por outra razão que as políticas públicas criadas no período pós-redemocratização terão outro caráter na América Latina que, mesmo muitas vezes contraditórias e, inclusive, retrógradas, representam o estado da arte da correlação de poder político, materializado na autoridade dos governos. Junto a isso, no início do século XX, vários países da América Latina elegerão presidentes reformistas, alguns deles, inclusive, claramente de esquerda. Esse é o caso da Venezuela, Chile, Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia e Equador. É nesse momento e ambiente que os países da região passam a enfrentar o diagnóstico da grande pobreza e exclusão social com o desenvolvimento de políticas públicas específicas.

Segundo o Banco Mundial, em 1997 apenas três países possuíam programas de transferência de renda com o objetivo de diminuir a pobreza e aplacar a fome: México, Brasil e Bangladesh (World Bank, 2015). Onze anos depois, em 2008, já eram 28 países: Burquina Fasso, Nigéria, Turquia, Paquistão, Iêmen, Quênia, Índia, Bangladesh, Camboja, Filipinas, Indonésia, sendo 17 somente na América Latina (México, Guatemala, El Salvador, Costa Rica, Panamá, Equador, Peru, Chile, República Dominicana, Jamaica, Honduras, Nicarágua, Colômbia, Brasil, Bolívia, Paraguai e Argentina).

Os programas escolhidos para análise serão descritos adiante.

3.1 Programa Prospera (México)

O México foi o primeiro país da América Latina a adotar medidas de combate à pobreza extrema. Em 1997, o presidente Ernesto Zedillo (1994YAÑEZ, Ernesto; ROJAS, Ronald; SILVA, Diego. El Bono Juancito Pinto en Bolivia: Un análisis de impacto sobre la educación primaria. Revista Focal: Diálogo, Investigación, Soluciones, p. 1-7, maio2011.-2000), do Partido Revolucionário Institucional (PRI), instituiu o Progresa, como uma estratégia para apoiar as famílias rurais em situação de extrema pobreza.

Em 2014, o presidente Henrique Peña Nieto (2012), do Partido Revolucionário Institucional (PRI), rebatizou o programa com o nome de Prospera, que, de acordo com a Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedesol, 2015SEDESOL. Secretaria del Desarrollo Social. Prospera. Disponível em: <Disponível em: http:/www.prospera.gob.mx/Portal/ >. Acesso em: 20 maio 2015.
http:/www.prospera.gob.mx/Portal/...
), oferece benefícios nas áreas de educação, saúde e inclusão financeira, e no mercado de trabalho.

Na educação oferece bolsas de estudos para cada uma das crianças e jovens integrantes de famílias beneficiárias que frequentam e concluem os seus estudos de ensino fundamental e médio, bem como apoio para a compra de material escolar. Além disso, o programa apoia os emancipados para que continuem estudando por meio de bolsas de estudo universitárias, bolsas para jovens com deficiência, bolsas para formação profissional técnica.

Na área da saúde oferece acesso a um pacote básico com oficinas de autocuidado, cuidados médicos, prevenção e tratamento de desnutrição, apoio às pessoas idosas, suporte para os membros de zero a nove anos, apoio alimentar suplementar, vinculação de crianças menores de cinco anos ao seguro de saúde. Além disso, oferece apoio monetário mensal às famílias beneficiárias, a fim de contribuir para a compra e a diversificação de sua alimentação.

Na área da inclusão no mercado de trabalho, oferece apoio para que as famílias beneficiárias encontrem um trabalho, por meio do Serviço Nacional de Emprego. Além disso, oferece acesso prioritário a 15 programas federais de estímulo à criação de rendimentos de forma autônoma e sustentável.

O critério de acesso ao Prospera é rendimento familiar per capita diário inferior a US$ 1,79 dólar nas áreas rurais e US$ 2,34 dólares nas áreas urbanas. As condicionalidades são: (i) participação de mães (beneficiárias) em palestras governamentais sobre nutrição e saúde, (ii) regularidade em consultas médicas, (iii) cumprimento do calendário de vacinação das crianças, (iv) frequência escolar regular das crianças, dos adolescentes e dos jovens, nos ensinos fundamental, médio e superior.

3.2 Programa Bolsa Família (Brasil)

Em 2003 o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), criou o Programa Bolsa Família (PBF), inspirado no Programa Bolsa Escola (PBE), uma ideia pioneira proposta por Cristovam Buarque enquanto reitor e professor da Universidade de Brasília (UnB) em 1986. A ideia de Buarque embasava-se na percepção de que as mulheres muito pobres não podiam trabalhar por ter que cuidar de seus filhos. Assim, propôs a instituição de uma bolsa que permitisse a manutenção das crianças na escola para as mães poderem trabalhar.

O Programa Bolsa Família (PBF) consistiu na ampliação desse programa social, com cadastro e administração centralizados no Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), o que aumentou sua eficiência e ampliou o número de famílias beneficiadas (MDS, 2015cMDS. Ministério do Desenvolvimento Social. Disponível em: <Disponível em: http://www.mds.gov.br/ >. Acesso em: 24 abr. 2015a.
http://www.mds.gov.br/...
). Segundo Senna e colaboradores (2007SENNA, Monica de C. M. et al. Programa Bolsa Família: nova institucionalidade no campo da política social brasileira? Rev. Katál, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 86-94, jan./jun. 2007.:86), o PBF foi implantado pelo governo brasileiro, em outubro de 2003, “com a perspectiva de combater a pobreza e a fome no país e promover inovações no padrão histórico de intervenção pública na área social”.

As condicionalidades do PBF são: (i) acompanhar o calendário de vacinação e do crescimento e desenvolvimento para crianças menores de sete anos, (ii) acompanhar o pré-natal das gestantes e as nutrizes na faixa etária de 14 a 44 anos, (iii) famílias com crianças entre seis e 15 anos precisam comprovar a matrícula e a frequência escolar mínima de 85% e de 75% para adolescentes entre 16 e 17 anos, (iv) crianças e adolescentes com até 15 anos, em risco ou retiradas do trabalho infantil, devem participar dos serviços de convivência e fortalecimento de vínculos e obter frequência mínima de 85% da carga horária mensal (MDS, 2015cMDS. Ministério do Desenvolvimento Social. Disponível em: <Disponível em: http://www.mds.gov.br/ >. Acesso em: 24 abr. 2015a.
http://www.mds.gov.br/...
).

O Programa Bolsa Família (PBF) objetiva a redução imediata da pobreza por meio da transferência direta de renda, o incentivo ao acesso a direitos sociais básicos por meio das condicionalidades nos campos da educação, saúde e assistência social, e a integração com programas complementares, que objetivam suplementar e qualificar as famílias de modo que os beneficiários possam ultrapassar a situação de insegurança e pobreza.

O PBF é um programa de transferência direta de renda que beneficia famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza em todo o país. Integra o Plano Brasil Sem Miséria, cujos beneficiários são os cidadãos com renda familiar per capita inferior a R$ 77,00 mensais e está baseado na garantia de renda, na inclusão produtiva e no acesso aos serviços públicos. Possui três eixos principais: a transferência de renda promove o alívio imediato da pobreza, as condicionalidades reforçam o acesso a direitos sociais básicos nas áreas de educação, saúde e assistência social, e as ações e programas complementares objetivam o desenvolvimento das famílias para superar a situação de vulnerabilidade.

3.3 Tekoporã (Paraguai)

Em 2005, o presidente do Paraguai, Nicanor Duarte Frutos (2003-08), do Partido Colorado, criou o programa de transferência de renda Tekoporã que tem como objetivo principal romper com as cadeias de transmissão geracionais da pobreza mediante transferências monetárias e condicionalidades que proporcionem às famílias beneficiadas a inclusão em outros direitos sociais. As responsabilidades para o progresso do programa são conjuntas entre os beneficiários e o próprio Tekoporã, e estão relacionadas com os cuidados com a saúde e a educação e com o desenvolvimento de atividades de apoio (Ribas, Hirata e Soares, 2010RIBAS, Rafael; HIRATA, Guillerme; SOARES, Fábio V. El programa Tekoporã de transferencias monetárias de Paraguay: un debate sobre métodos de selección de beneficiários. Revista Cepal, v. 100, p. 209-221, abr. 2010.:210-211).

O programa Tekoporã significa “estar bem” em guarani, faz parte do Programa Nacional de redução da pobreza Semeando Oportunidades.

Baseado no Programa Bolsa Família (PBF) do Brasil e no Programa Oportunidades do México, o Tekoporã beneficia mais de 100 mil famílias em situação de vulnerabilidade e risco social (SAS, 2015SAS. Secretaria de Assistência Social. Disponível em: <Disponível em: http://www.sas.gov.py/pagina/54-tekopor.html >. Acesso em: 27 maio 2015.
http://www.sas.gov.py/pagina/54-tekopor....
).

Para identificar as famílias beneficiárias, a Secretaria de Ação Social (SAS) utiliza um índice de qualidade de vida (IQV) que, de acordo com Ribas, Hirata e Soares (2010RIBAS, Rafael; HIRATA, Guillerme; SOARES, Fábio V. El programa Tekoporã de transferencias monetárias de Paraguay: un debate sobre métodos de selección de beneficiários. Revista Cepal, v. 100, p. 209-221, abr. 2010.), deriva de uma análise de componentes principais como condições de moradia, acesso a serviços públicos, água potável e telefone, educação dos pais da família, escolaridade das crianças de 6-24 anos de idade, ocupação do chefe de família, posse de bens duráveis e composição familiar. Os critérios de acesso ao programa são baixa qualidade de vida através do Índice de Qualidade de Vida (IQV) e existência de pessoas com deficiência grave (físicas, intelectuais, sensoriais, psicológicas ou múltiplas).

O programa fornece acompanhamento familiar de técnicos sociais chamados “guia da família”, que são responsáveis por visitar casas para verificar se as condicionalidades estão sendo cumpridas e fornecer orientações para a melhoria do ambiente familiar e hábitos de higiene, ideias e ações para melhorar a qualidade da alimentação e saúde, e orientar as famílias a acessarem distintos serviços públicos aos quais têm direito. Além disso, os beneficiários escolhem um representante da comunidade, responsável por canalizar as preocupações da comunidade, apoiar o trabalho dos guias da família e gerenciar a prestação de serviços públicos (SAS, 2015SAS. Secretaria de Assistência Social. Disponível em: <Disponível em: http://www.sas.gov.py/pagina/54-tekopor.html >. Acesso em: 27 maio 2015.
http://www.sas.gov.py/pagina/54-tekopor....
).

3.4 Bono Juancito Pinto (Bolívia)

No ano de 2006, o presidente da Bolívia, Evo Morales (2006), do Partido Movimento para o Socialismo (MAS), criou o Bono Juancito Pinto (BJP), vinculado ao Ministério da Educação da Bolívia, com o objetivo principal de melhorar o acesso à educação, promover mobilidade social e diminuir a pobreza para as futuras gerações (Yañez, Rojas e Silva, 2011YAÑEZ, Ernesto; ROJAS, Ronald; SILVA, Diego. El Bono Juancito Pinto en Bolivia: Un análisis de impacto sobre la educación primaria. Revista Focal: Diálogo, Investigación, Soluciones, p. 1-7, maio2011.), amparando as famílias na garantia dos investimentos em materiais escolares, de transporte, alimentação para as crianças e adolescentes (Navarro, 2012NAVARRO, Flavia M. El Bono Juancito Pinto del Estado Plurinacional de Bolivia: programas de transferencias monetarias e infância. Documentos de Proyectos e Investigaciones. Cepal, 2012. Disponível em: <Disponível em: http://www.cepal.org/es/publicaciones/4005-el-bono-juancito-pinto-del-estado-plurinacional-de-bolivia-programas-de >. Acesso em: 16 abr. 2015.
http://www.cepal.org/es/publicaciones/40...
). Diferentemente dos outros programas de redistribuição abordados neste artigo, o repasse do benefício é feito anualmente.

Embora as taxas de frequência no ensino primário sejam altas, existem grupos com dificuldade para estudar, como as meninas, os indígenas e as pessoas que vivem no meio rural.

Inicialmente o programa se propunha a atender as crianças do ensino fundamental, mas, a partir do ano de 2012, o benefício foi expandido para os estudantes de ensino médio. Logo, as famílias que se tornaram beneficiárias em 2006 e que mantiveram seus filhos na escola não deixaram de receber o BJP, fato que resultou no aumento de atendidos pelo programa (Romão, 2013ROMÃO, Wagner de Melo. Os programas de transferência condicionada nos países andinos: é possível pensar em políticas sociais de âmbito regional? In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS, 4., 2013, Belo Horizonte.:15).

Uma das críticas feitas ao BJP por parte de Yañez, Rojas e Silva (2011YAÑEZ, Ernesto; ROJAS, Ronald; SILVA, Diego. El Bono Juancito Pinto en Bolivia: Un análisis de impacto sobre la educación primaria. Revista Focal: Diálogo, Investigación, Soluciones, p. 1-7, maio2011.) é que ele poderia melhorar a oferta de educação mais rapidamente aumentando os níveis de assistência e melhorando a infraestrutura. Além disso, para os autores, existe a ausência de programas complementares que ofereçam incentivos para facilitar o acesso de mais pessoas, assim como a criação de algum mecanismo de cadastramento mais eficiente que permita uma avaliação mais detalhada do BJP.

Vale ressaltar que o “financiamento do BJP é promovido pela renda da exportação de petróleo e gás para o Brasil e a Argentina” (Romão, 2013ROMÃO, Wagner de Melo. Os programas de transferência condicionada nos países andinos: é possível pensar em políticas sociais de âmbito regional? In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS, 4., 2013, Belo Horizonte.:15). Além das similaridades entre os programas de transferência de renda, pode-se observar que tais programas são de suma importância às relações econômicas entre os países pesquisados para a integração da América do Sul e a prosperidade do combate à fome.

3.5 Plano de Atenção a Emergência Social, Cercanias e Asignaciones Familiares (Uruguai)

Em 2005, o presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez (2005-10), do Partido Frente Ampla (FA), criou o Plano de Atenção a Emergência Social (Panes) que foi desmembrando em diversos outros programas. Originalmente era formado por um conjunto de intervenções, incluindo a Renda do Cidadão (RC), que consistia na transferência em dinheiro de $ 54 dólares mensais, independentemente do número de membros do agregado familiar, por um período de até dois anos e nove meses (Baráibar, 2012BARÁIBAR, Ximena. Evitando el riesgo de la complacencia: aportes y límites de los Programas de Transferencia Condicionada a partir del caso uruguayo. Revista Políticas Públicas, São Luís do Maranhão, N. Esp., p. 219-230, out. 2012. Disponível em: <Disponível em: http://www.periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rppublica/article/view/1225/1100 >. Acesso em: 28 abr. 2015.
http://www.periodicoseletronicos.ufma.br...
).

No ano de 2012, o presidente José Mujica (2010-15), da Frente Ampla, criou o Programa Cercanias, que desenvolve um trabalho de aproximação do poder público com as famílias, promovendo acesso efetivo aos benefícios sociais a que elas têm direito. Seu principal objetivo é a socialização dessas famílias em situação de pobreza por meio de educação e desenvolvimento. É dirigido para as famílias em situação de violação de direitos e necessidades críticas, em especial com a presença de crianças e adolescentes com menos de 18 anos.

O programa é gerenciado pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Instituto da Infância e Adolescência do Uruguai (Mides) e faz parte da Estratégia Interinstitucional de Fortalecimento das Capacidades Familiares. Tem o objetivo explícito de fortalecer o capital social de ponte entre os diversos provedores de serviços sociais e, por meio de intervenções supervisionadas de ONGs, busca promover capital social (Gonçalves, 2013GONÇALVES, Flávio de O. Programas de acompanhamento familiar na América Latina. BANCO Interamericano de Desenvolvimento (BID), 2013. p. 5-51. Disponível em: <Disponível em: http://www.idbdocs.iadb.org/wsdocs/getDocument.aspx?DOCNUM=37545020 >. Acesso em:25 abr. 2015.
http://www.idbdocs.iadb.org/wsdocs/getDo...
:27).

Os beneficiários são selecionados por um índice que inclui a pobreza extrema e a vulnerabilidade social da família. Tais famílias são identificadas por equipes de campo da Direção Nacional de Avaliação e Monitoramento (Dinem) e mediante um diagnóstico feito pelos serviços sociais no território (Inau, 2015INAU. Instituto del Niño y Adolescente del Uruguay. Disponível em: <Disponível em: http://www.inau.gub.uy/index.php/ninerz/item/1831-programa-cercania >. Acesso em: 22 abr. 2015.
http://www.inau.gub.uy/index.php/ninerz/...
).

O trabalho com as famílias é feito por meio das Equipes Territoriais de Atenção Familiar (Etaf) que têm o papel de buscar as famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza. Diferentemente de outros programas, o Cercanias não espera a família demandar o benefício e sim investiga, busca quem necessita. Essa estratégia tem como objetivo melhorar a coordenação dos serviços em nível local, promovendo o trabalho em rede e abrangência nas respostas, superando a fragmentação (Mides, 2015).

3.6 Asignación Universal por Hijo (Argentina)

No ano de 2009, a presidente da Argentina, Cristina Fernández de Kirchner (2007), do Partido Justicialista (PJ), criou o programa Asignación Universal por Hijo para Protección Social (AUH) com o objetivo de melhorar indicadores relacionados com quatro dimensões centrais do bem-estar da população: a pobreza, a falta de moradia, a desigualdade e a vulnerabilidade relativa (Cepal, 2015CEPAL. CEPAL Disponível em:<Disponível em:http://www.dds.cepal.org/bdptc/programa/?id=22 >. Acesso em: 19 maio 2015.
http://www.dds.cepal.org/bdptc/programa/...
).

A AUH estabelece um pagamento mensal básico para cada criança com menos de 18 anos, correspondente a 80% do benefício total, enquanto os 20% restantes são repassados às famílias de maneira agregada, uma vez por ano, desde que cumpram a condicionalidade estabelecida pelo programa que é a apresentação dos certificados de saúde e assistência educacional. Os requisitos de acesso e as condicionalidades variam de acordo com a idade: (i) a frequência escolar de crianças de cinco anos de idade, (ii) o plano de registro de nascimento e a carteira de vacinação obrigatória para as crianças menores de sete anos, e (iii) a realização do acompanhamento de saúde para pessoas com mais de seis anos. O valor total do subsídio por menor de idade foi fixado, em 2012, em US$ 340 (pesos argentinos), o que equivale a aproximadamente R$ 170 per capita (Anses, 2015ANSES. Administración Nacional de la Seguridad Social de la Argentina. Disponível em: <Disponível em: http://www.anses.gob.ar/ >. Acesso em: 27 maio 2015.
http://www.anses.gob.ar/...
).

Segundo Agis, Cañete e Panigo (2010AGIS, Emmanuel; CAÑETE, Carlos; PANIGO, Demian. El impacto de la asignación universal por hijo en Argentina. Buenos Aires, Centro de Estudios e Investigaciones Laborales, 2010. Disponível em: <Disponível em: http://www.ceil-piette.gov.ar/docpub/documentos/AUH_en_Argentina.pdf >. Acesso em:10 maio 2015.
http://www.ceil-piette.gov.ar/docpub/doc...
), o resultado mais importante do AUH na Argentina não é quantitativo, mas qualitativo. Pela primeira vez em décadas, a política social tem alcançado os grupos de população historicamente vulneráveis, tais como crianças, mães solteiras e famílias numerosas (Agis, Cañete e Panigo, 2010AGIS, Emmanuel; CAÑETE, Carlos; PANIGO, Demian. El impacto de la asignación universal por hijo en Argentina. Buenos Aires, Centro de Estudios e Investigaciones Laborales, 2010. Disponível em: <Disponível em: http://www.ceil-piette.gov.ar/docpub/documentos/AUH_en_Argentina.pdf >. Acesso em:10 maio 2015.
http://www.ceil-piette.gov.ar/docpub/doc...
:36).

Na próxima seção, serão analisadas as semelhanças e diferenças desses programas, bem como sua relação com a democracia e a pobreza.

4. Redemocratização e políticas públicas

Os programas de transferência de renda possuem diferenças importantes, pois foram desenvolvidos em países e períodos distintos, com diferentes situações econômicas, sistemas políticos, estruturas institucionais e composições populacionais. Contudo, existem algumas semelhanças importantes que, a nosso ver, determinam a constituição dos programas: a relevância da pobreza, a redemocratização e o acesso de lideranças reformistas aos cargos de presidente.

A tabela 1 sistematiza algumas informações importantes para compreender a relação entre a pobreza e as políticas públicas de transferência de renda na região.

Os dados mostram que os países da região são muito distintos quanto ao tamanho da população e do PIB e quanto ao investimento nos programas de transferência de renda. O país que mais investe no programa de transferência de renda, proporcionalmente, é a Bolívia com 0,64% do PIB, beneficiando 16,9% da população, 1.824.577 habitantes. Não obstante, a Bolívia é também o país com o maior percentual de subnutridos, 19,5%, ou seja, atende parcela menor do que aquela em situação de extrema pobreza. O país que menos investe é o Paraguai com 0,23% do PIB, beneficiando 8,2 da população, 565.020 habitantes, contudo, tem o segundo maior percentual de subnutridos, 11,5%, atendendo também parcela menor que aquela em extrema pobreza.

Tabela 1
Sistematização PIB/programas de transferência de renda

Chama atenção o investimento do México e do Brasil. Embora tenham um percentual de subnutridos menor que 5%, beneficiam os maiores percentuais da população, 21,4%, 27 milhões, e 24,9 %, 50.353.431 habitantes com percentuais do PIB de 0,41% e 0,47%, respectivamente. Ou seja, os programas Prospera, do México, e PBF, do Brasil, beneficiam parcela da população acima daqueles em situação de pobreza extrema.

O PBF do Brasil investe 0,47% do PIB beneficiando mais de 50 milhões de pessoas, ou seja, população maior que a soma da população da Bolívia, Uruguai e Paraguai; é também maior que a população da Argentina.

A tabela 1 mostra que nenhum dos países chega a investir 1% do PIB nesses programas e, mesmo assim, quatro deles beneficiam parcela maior que aquela em situação de extrema pobreza. Ainda no sentido do investimento, parece evidente que, se investissem 1% do PIB, a Bolívia e o Paraguai conseguiriam atender minimamente aos subnutridos e os outros países conseguiriam ampliar ainda mais os beneficiários ou qualificar ou aumentar seu valor nominal.

Mas qual a relação disso com a democracia? É o que veremos adiante.

Na primeira seção definimos as políticas públicas como o resultado das relações de poder político que se materializam em bens, recursos ou direitos disponibilizados à sociedade ou a grupos sociais, em regimes democráticos. Importa frisar a relevância da democracia para a conceituação de políticas públicas, para distingui-la daquelas que a definem como o “estado em ação” sem atribuir importância determinante à variável regime político. Para essa definição, toda ação do Estado seria uma política pública independentemente do regime sob o qual ela se configura e materializa (Gobert e Muller, 1987 apud Höfling, 2001HÖFLING, Eloisa de M. Estado e políticas (públicas) sociais. Caderno Cedes, v. 21, n. 55, p. 30-41, 2001.).

No caso de se concordar que as políticas públicas são a ação do Estado, independentemente do regime político, aceita-se que Estados com regimes totalitários, autoritários ou teocráticos são, de alguma forma, públicos, ou seja, estão sujeitos a algum tipo de avaliação do público, da sociedade. Ora, nada mais absurdo, mesmo que utilizemos uma definição minimalista de democracia, como o fazem Mainwaring e colaboradores (2001MAINWARING, Scott; BRINKS, Daniel; PÉREZ-LIÑÁN, Aníbal. Classificando regimes políticos na América Latina, 1945-1999. DADOS - Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 44, n. 4, p. 645-687, 2001.), pois uma das categorias que definem o regime democrático é a existência de eleições livres e limpas, o que garante no mínimo o accountability vertical a cada nova rodada de eleições, situação impensável em qualquer regime não democrático. Isso não quer dizer que governos não democráticos não ajam, e sim que suas ações não são políticas públicas.

Essa perspectiva já era observável nas preocupações dos fundadores da análise de políticas públicas, como Harold Lasswell (1936LASSWELL, Harold. Politics: who gets what, when, how. Chicago: University of Chicago, 1936.), que analisavam a possibilidade de planejar a ação do Estado de forma a superar os riscos à paz e garantir a consolidação da democracia.

Nesse sentido, argumenta-se que, após a redemocratização, os Estados latino-americanos passam a atuar por meio de políticas públicas. Os programas de transferência de renda são de tipo redistributivo, conforme define Lowi (1972LOWI, Theodor. Four systems of policy, politics, and choice. Public Administration Review, v. 32, n. 4, p. 298-310, 1972.), já que direcionam recursos do conjunto da sociedade para um grupo social específico e, pelo menos na origem, são gestados sob fortes conflitos. O quadro 1 ilustra essa afirmação.

Quadro 1
A política partidária e os programas de transferência de renda

O quadro 1 mostra que todos os programas de transferência de renda foram criados após a última onda de redemocratização da América Latina, no final da década de 1990 e início dos anos 2000, quando, também, sobem ao poder muitos presidentes que lideram partidos e coalizões reformistas e/ou de esquerda. Isto fica bastante evidente quando se compara a coluna “criação” com a coluna “democrático a partir de”, que mostra que todos os países criaram seu programa após a emergência da democracia.

Essas informações revelam a congruência da utilização da teoria neoinstitucionalista para interpretar políticas públicas de transferência de renda. A redemocratização na América Latina foi estruturada com base na confecção de marcos legais sólidos, as constituições nacionais que, ao mesmo tempo que não provocaram grandes transformações sociais, estabeleceram regras claras para o jogo democrático, sinalizando que o ganhador das eleições assumiria o governo. Essa situação irá depor claramente a favor de iniciativas de bem-estar como as políticas de transferência de renda. Governos marcados por características de Welfare State não terão suas posses e mandado impedido ou violado, graças à normalidade institucional.

É exatamente por essa razão que a relação entre política pública, democracia e accountability revela-se completamente congruente como variável independente da criação dos programas de transferência de renda, já que o regime permite que toda a sociedade, inclusive os grupos sociais mais excluídos ou empobrecidos, participe da disputa pelo poder, materializada nos processos eleitorais e, mais cotidianamente, nas disputas entre os grupos de interesse e pressão no Legislativo, no Executivo e, muitas vezes, entre os dois poderes.

É possível a incorporação dos segmentos sociais excluídos graças ao estabelecimento do estado de direito, ou da consolidação institucional, que possibilita previsibilidade para a ação futura e garante as regras do jogo para a definição das preferências, além da segurança de que comportamentos inadequados serão desestimulados.

A relação entre a criação dos programas de transferência de renda, como variável dependente, e a chegada ao poder de lideranças reformistas ligadas a partidos também parece bastante evidente. Como se pode observar no quadro 1, apenas o Partido Colorado, do Paraguai, se define como de centro-direita no espectro ideológico, quando da criação do Prospera em 1997; nos demais cinco países, todos os partidos políticos dos presidentes localizam-se no espectro do centro à esquerda.

Esta variável é bastante relevante quando considerado o fato de que o período de redemocratização da América Latina coincidiu com a crise do Estado e com os ajustes neoliberais e, de outro lado, com a retomada da abordagem desenvolvimentista e de Welfare State que primam pela intervenção do Estado na economia e na regulação da distribuição da riqueza socialmente produzida. Perspectivas dessa natureza influenciam sobremaneira os programas dos partidos de centro-esquerda e atraem apoio político e eleitoral. Isso significa que diagnósticos de pobreza e exclusão social serão tratados com destaque em razão dos segmentos eleitorais que apoiam tais governos, com presença importante de movimentos sindicais de trabalhadores urbanos e rurais, movimento indígena e classe média. Nesse sentido, como afirma a abordagem que valoriza o papel das ideias, do conhecimento e dos discursos, os ideais e discursos reformistas serão construídos com base na pobreza e miséria evidentes e, por sua vez, produzirão uma inflexão no contexto social e político de forma a obter êxito na formação de algumas agendas de bem-estar, tais como os programas de transferência de renda.

Em relação ao papel dos atores, segundo as teorias da virada discursiva (Stone, 1997STONE, Debora. Policy paradox: the art of political decision making. Nova York: W. W. Norton & Company, 1997.), é bastante evidente o papel desempenhado pelas ideias dos presidentes eleitos e pelos programas e discursos de suas coalizões francamente influenciadas por iniciativas de políticas sociais. Para além disso, os contextos sociais, políticos e econômicos de pobreza e exclusão constroem e legitimam ideias e discursos produzidos pelos presidentes e suas coalizões, e que influenciam na formação de políticas públicas de transferência de renda que têm, em última instância, o objetivo de transformar aqueles contextos. É inegável o protagonismo dos discursos proferidos por Lula, no Brasil, Evo Morales, na Bolívia, Tabaré Vázquez, no Uruguai, e Kirchner, na Argentina, na inflexão do Estado no sentido de desenvolver as políticas sociais.

5. Considerações finais

As políticas públicas de transferência de renda na América Latina, particularmente no México, Brasil, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Argentina, enfrentam de forma bastante importante o problema social da fome e da pobreza nesses seis países, cujo diagnóstico original era de parcela significativa da população em situação de desnutrição.

O artigo mostra a congruência entre as políticas públicas de transferência de renda, como variável consequente, e a redemocratização, e a assunção de elites políticas reformistas e de partidos ou coalizões políticas com programas marcados pela concepção do Welfare State.

As diferenças evidenciadas estão relacionadas com os países propriamente ditos, que têm diferença quanto ao PIB, PIB per capita, população, população desnutrida, além das distinções dos programas: período de criação, influências, institucionalidade, focalização, condicionalidades, acesso, emancipação, volume de recursos investido, formato do benefício, número de beneficiários.

De outro lado, entende-se que as semelhanças mais relevantes são aquelas que se configuram como variáveis independentes: a redemocratização e as ideias e os discursos dos presidentes e partidos reformistas.

Todos os programas de transferência de renda na América Latina são criados após o período de redemocratização das décadas de 1990 e 2000, que instaura na região a possibilidade de construção de políticas públicas, como materialização da correlação de forças políticas presentes na sociedade nacional. A partir daí, a definição da agenda setting do ciclo de política terá vários momentos e mecanismos de checks and balances da oposição e dos vários grupos de pressão e interesse, bem como dos outros poderes democráticos.

O acesso de elites políticas reformistas coincide com o arrefecimento do entusiasmo com o neoliberalismo como panaceia para resolver a crise fiscal, financeira e a hiperinflação da década de 1980, e com a retomada de perspectivas programáticas de Welfare State e desenvolvimentistas, marcas programáticas dos partidos do espectro político do centro até a esquerda na região.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2017

Histórico

  • Recebido
    11 Jun 2015
  • Aceito
    18 Maio 2016
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