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A influência da mídia e da heurística da disponibilidade na percepção da realidade: um estudo experimental

The influence of the media and of the availability heuristic: an experimental study

Resumos

No seu dia a dia as pessoas utilizam atalhos mentais - chamados heurísticas - que facilitam e tornam mais rápido o processo de tomada de decisão. Algumas vezes, contudo, tais atalhos podem gerar uma visão distorcida da realidade. Pesquisas estrangeiras constataram que a mídia tem preferência por noticiar acontecimentos que são mais dramáticos e espetaculares, e que isso pode ter um efeito na disponibilidade de certos eventos em nossas mentes, distorcendo nossa percepção e influenciando nosso julgamento. Apesar da importância do tema, inclusive para a definição de prioridades de investimento de recursos públicos, não foi encontrado no Brasil nenhum estudo buscando confirmar a existência de alguma influência das notícias veiculadas, em conjunto com vieses de julgamento causados pelos atalhos mentais, na percepção dos brasileiros. Nessa direção, este artigo testou, através de experimentos, a hipótese de que a maneira e a frequência que a mídia noticia certos assuntos pode influenciar o julgamento das pessoas a respeito da frequência e probabilidade de eventos do cotidiano, obtendo resultados que confirmam essa hipótese.

influência da mídia; heurísticas de julgamento; percepção de risco


In our daily lives we use mental shortcuts - called heuristics - that help our decision-making process, making it easier and faster. In some cases, however, these same shortcuts can present a distorted view of reality. Foreign (non-Brazilian) empirical researches have shown that the media prefers to report on more dramatic and sensational events, and that this can have a decisive effect on the availability of certain events in our minds, twisting our perception of their probability and influencing our judgment. In spite of the importance of the matter, no study was found in Brazil trying to confirm the existence of influence of the news shown in the media, together with the judgment biases. The study presented in this article applied empirical tests in order to verify the hypothesis that the manner and frequency in which the media shows certain topics can influence the Brazilians' perception of frequency and probability of some specific events. The results confirmed this hypothesis.

media influence; judgment heuristics; risk perception


ARTIGOS

A influência da mídia e da heurística da disponibilidade na percepção da realidade: um estudo experimental

The influence of the media and of the availability heuristic: an experimental study

Gustavo CiarelliI; Marcos ÁvilaII

IDoutorando em administração pela Michigan State University. Mestre em administração pelo Instituto Coppead de Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Endereço: N370 North Business Complex, East Lansing - 48824, MI, Estados Unidos. E-mail: ciarell2@msu.edu

IIPhD em Accounting pela New York University. Professor adjunto do Instituto Coppead de Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Endereço: Rua 36, 355 - Ilha do Fundão - CEP 21949-900, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: marcos@coppead.ufrj.br

RESUMO

No seu dia a dia as pessoas utilizam atalhos mentais - chamados heurísticas - que facilitam e tornam mais rápido o processo de tomada de decisão. Algumas vezes, contudo, tais atalhos podem gerar uma visão distorcida da realidade. Pesquisas estrangeiras constataram que a mídia tem preferência por noticiar acontecimentos que são mais dramáticos e espetaculares, e que isso pode ter um efeito na disponibilidade de certos eventos em nossas mentes, distorcendo nossa percepção e influenciando nosso julgamento. Apesar da importância do tema, inclusive para a definição de prioridades de investimento de recursos públicos, não foi encontrado no Brasil nenhum estudo buscando confirmar a existência de alguma influência das notícias veiculadas, em conjunto com vieses de julgamento causados pelos atalhos mentais, na percepção dos brasileiros. Nessa direção, este artigo testou, através de experimentos, a hipótese de que a maneira e a frequência que a mídia noticia certos assuntos pode influenciar o julgamento das pessoas a respeito da frequência e probabilidade de eventos do cotidiano, obtendo resultados que confirmam essa hipótese.

Palavras-chave: influência da mídia; heurísticas de julgamento; percepção de risco.

ABSTRACT

In our daily lives we use mental shortcuts - called heuristics - that help our decision-making process, making it easier and faster. In some cases, however, these same shortcuts can present a distorted view of reality. Foreign (non-Brazilian) empirical researches have shown that the media prefers to report on more dramatic and sensational events, and that this can have a decisive effect on the availability of certain events in our minds, twisting our perception of their probability and influencing our judgment. In spite of the importance of the matter, no study was found in Brazil trying to confirm the existence of influence of the news shown in the media, together with the judgment biases. The study presented in this article applied empirical tests in order to verify the hypothesis that the manner and frequency in which the media shows certain topics can influence the Brazilians' perception of frequency and probability of some specific events. The results confirmed this hypothesis.

Key words: media influence; judgment heuristics; risk perception.

1. Introdução

Quando pessoas comuns são convidadas a avaliar os riscos aos quais estão submetidas na sua rotina diária, elas, na maioria das vezes, têm pouco ou nenhum acesso direto a evidências estatísticas. Como tais avaliações são então exercidas? Pesquisas na área de psicologia da incerteza (Tversky e Kahneman, 1974) indicam que tendemos a adotar um conjunto limitado de regras informais de avaliação da frequência e probabilidade de eventos incertos ocorrerem. Uma delas é a denominada regra da disponibilidade. Ao adotarmos essa regra de julgamento, avaliamos a frequência ou chances de ocorrência de um evento em função da facilidade com que ocorrências do evento podem ser lembradas, isto é, estão disponíveis na memória (Tversky e Kahneman, 1973). Embora a regra faça sentido - a frequência de ocorrência de um evento e a facilidade de lembrança do mesmo são positivamente correlacionadas - existem outros fatores que também facilitam a lembrança de um evento, influenciando o julgamento sobre sua frequência e probabilidade de ocorrência sem que, na verdade, haja de fato uma mudança real das mesmas. Logo, existe um potencial de viés ao adotarmos essa regra como base de julgamento (Tversky e Kahneman, 1973).

Este artigo apresenta os resultados de um experimento conduzido para testar o papel da mídia como uma possível fonte geradora do viés. A mídia é uma das principais fontes de informação a que temos acesso e apresenta o potencial de definir, por meio das notícias que divulga, a disponibilidade, na memória, da ocorrência de eventos. A correlação, entretanto, entre o interesse da mídia por noticiar certos eventos e a frequência de ocorrência desses eventos é, sem dúvida, imperfeita.

A discussão e compreensão sobre como funcionamos no nosso julgamento sobre riscos é de especial relevância para os gestores de políticas públicas. Violência urbana, contaminação de alimentos e distúrbios alimentares são apenas alguns exemplos de riscos que recentemente têm tomado significativo espaço nas páginas dos principais jornais do país. Até que ponto o espaço dado a cada um desses tópicos corresponde ao risco envolvido? À medida que estamos subestimando ou superestimando determinados riscos, atenção e alocação de recursos podem estar sendo deslocados de perigos maiores.

2. O julgamento sobre a incerteza e a regra da disponibilidade

A escolha de Daniel Kahneman para receber, ao lado de Vernon Smith, o Prêmio Nobel de Economia de 2002 reconhece o admirável vigor de um paradigma de pesquisa que, desde a década de 1960, tem mostrado que não somos tão racionais e consistentes quanto gostaríamos nas decisões e julgamentos que exercemos diariamente.

Seguindo a tradição das pesquisas de Herbert Simon, Prêmio Nobel de Economia de 1978, as pesquisas de Kahneman, em parceria com Amos Tversky, também psicólogo e falecido em 1997, partem do princípio de que dificuldades cognitivas limitam a nossa capacidade de solucionar problemas complexos dentro dos padrões exigidos por um comportamento racional. Julgamos e decidimos, muitas vezes inconscientemente, em um contexto de busca constante de atalhos computacionais e estratégias mentais simplificadoras.

No caso de julgamento sobre as chances de ocorrência de eventos incertos, tais estratégias, ou heurísticas, como foram denominadas por Tversky e Kahneman, "reduzem as tarefas complexas de estimar probabilidades e predizer valores a operações de julgamento mais simples" (Tversky e Kahneman em Kahenman e colaboradores, 1982:3).

Uma dessas regras informais de julgamento é a chamada regra da disponibilidade: "existem situações nas quais as pessoas avaliam a frequência de uma classe ou a probabilidade de um evento pela facilidade com que instâncias ou ocorrências podem ser trazidas à mente" (Tversky e Kahneman em Kahneman e colaboradores, 1982:11). A regra da disponibilidade "é um guia útil para a estimação de frequências ou probabilidades, porque exemplos de grupos grandes são geralmente alcançados de maneira melhor e mais rápida do que exemplos de grupos menores" (Tversky e Kahneman em Kahneman e colaboradores, 1982:11), de forma que essa heurística leva geralmente a um julgamento acurado (Bazerman, 2002:7). Todavia, a facilidade com que os pensamentos e exemplos vêm à mente é afetada também por fatores diversos de sua frequência e probabilidade. Como descreve Bazerman (2002), "um evento que evoca emoções e é vívido, facilmente imaginado e específico será mais disponível do que um evento que é não emocional em sua natureza, insípido, difícil de imaginar, ou vago".

O viés de julgamento devido à facilidade de lembrança é descrito por Tversky e Kahneman (1974): quando a estimativa de um indivíduo sobre a frequência, probabilidade ou causa provável de eventos é feita a partir da disponibilidade em sua mente de exemplos desses eventos, aqueles que forem mais facilmente lembrados parecerão mais numerosos (e, portanto, mais frequentes ou prováveis) do que os que estão menos disponíveis. Diversos fatores podem facilitar a disponibilidade de exemplos em nossa memória, além de sua frequência e probabilidade (Tversky e Kahneman em Kahneman e colaboradores, 1982), como a familiaridade com os exemplos - nos lembramos mais daqueles eventos com os quais estamos acostumados; o destaque a eventos marcantes, como um desastre aéreo, ficam mais vívidos na memória; ou a distância temporal do evento - exemplos recentes são mais facilmente lembrados. Outro fator importante que pode distorcer a disponibilidade de um exemplo na memória é a superexposição de um indivíduo a determinada situação - como uma veiculação massiva de determinados eventos ou circunstâncias na mídia (Bazerman, 2002:15).

3. A mídia e a regra da disponibilidade

Wahlberg e Sjöberg (2000:31) chamam a atenção para o fato de que, antigamente, a fonte de informação para muitos dos julgamentos sobre a incerteza que exercíamos eram aqueles que nos rodeavam, fossem da família, do trabalho ou amigos apenas. Há algum tempo, contudo, como colocam os autores "os tempos mudaram e nós não conseguimos mais a maior parte de nossas informações através de fontes tradicionais (pessoas), de maneiras tradicionais (oralmente). Hoje recebemos um monte de informação, sobre várias coisas, da mídia".

Embora a mídia não seja o único fator de informação sobre a realidade que nos cerca, ela tem um impacto significativo nesse sentido e pode levar a distorções de julgamento conforme evidenciado em diversos estudos empíricos (Lichtenstein e colaboradores, 1978; Slovic, Fischhoff e Lichtenstein, 1979; Combs e Slovic, 1979). Combs e Slovic (1979) examinaram a cobertura de causas de morte em dois jornais americanos de diferentes regiões dos Estados Unidos. Diversas medidas de frequência de cobertura foram adotadas em meses alternados pelo período de um ano. Os resultados mostraram que ambos os jornais apresentavam vieses similares na cobertura de causas de morte: eventos fortes, violentos, com potencial de catástrofe - como incêndios, homicídios e acidentes de carro - foram reportados de forma significativamente mais frequente do que causas de morte menos dramáticas (como câncer ou diabetes), ainda que o número de mortes em consequência destas últimas fosse semelhante ou mesmo superior ao gerado pelas primeiras. Além disso, eles também relataram uma similaridade entre a cobertura da mídia e a percepção do público a respeito da frequência de mortes: ambas eram viesadas em direção às causas de morte violentas (dramáticas e sensacionais), apesar delas serem responsáveis por um número bem menor de óbitos do que aquelas causas chamadas "silenciosas", que matam uma pessoa por vez e são comuns também em situações não fatais.

Reiner (2002:380) sugere que o desvio, definido como um evento que "foge ao normal", é "a essência da notícia"; "o desvio é a característica que define o que jornalistas consideram apropriado para o noticiário". Nerb e colaboradores (2001) listam alguns critérios qualitativos usados para a seleção de notícias. Primeiro, segundo eles, a excepcionalidade de um evento é um fator que favorece sua menção em noticiários. Um segundo critério citado é o valor de "entretenimento" da história, ou seja, fazendo uma correlação direta com as necessidades listadas por Katz e colaboradores (1973), o quanto a notícia supre a necessidade do receptor de liberação de tensão - escapismo, diversão etc. Um estudo de McCartney (1997, citado por Nerb e colaboradores, 2001) mostra que as pessoas que selecionam as matérias que serão divulgadas baseiam suas escolhas, pelo menos em parte, no potencial da notícia em "entreter". O terceiro critério mencionado para a seleção de informações é o de identificação do público-alvo com a matéria. "A mídia cobre mais frequentemente tópicos que são geograficamente ou culturalmente relevantes para o receptor" (Nerb e colaboradores, 2001).

Um último ponto que pode ser comentado, diretamente relacionado com os anteriores, que também influencia o que será noticiado e, principalmente, como o será, são as próprias limitações, estruturais e psicológicas, tanto dos agentes de comunicação (repórteres, editores etc.) quanto daqueles que recebem sua mensagem. Os primeiros, sempre pressionados por limites apertados e pela concorrência intraindústria pela melhor fonte ou história, acabam se concentrando em noticiar apenas eventos específicos - como já discutido, marcantes - sem se deter em análises mais aprofundadas sobre as causas ou consequências (processos causais, políticas, problemas históricos etc.) desses eventos (Reiner citado por Maguire e colaboradores, 2002; Nerb e colaboradores, 2001). É importante lembrar também que há, para qualquer meio de comunicação, a necessidade de se falar da maneira que atinge seu público-alvo sobre aqueles assuntos que o interessam. Como observado em alguns estudos (Slovic e colaboradores em Kahenman e colaboradores, 1982; Konheim citado por Wahlberg e Sjõberg, 2000), o público leigo não entende, ou não tem interesse nos mesmos aspectos das notícias que os especialistas em determinados assuntos - segurança pública, energia nuclear etc. Sandman (1994) nota que "colocar informações técnicas na mídia não somente é difícil; é também quase totalmente inútil". Assim, ao buscar atingir de maneira mais efetiva sua audiência, atraindo sua atenção para a notícia, talvez o jornalista ou editor deixe propositalmente de focar alguns detalhes que poderiam levar a uma avaliação mais acurada da realidade, mas que não seriam do interesse imediato do leitor.

Observados tais critérios para a escolha daqueles eventos que serão noticiados, torna-se mais fácil percebermos como a mídia pode influenciar a disponibilidade de determinados aspectos da vida cotidiana - como violência urbana, visões políticas, preconceitos sociais, causas de morte etc. - para aqueles que recebem sua mensagem. Tendo visto também como a facilidade de lembrança pode influenciar o julgamento dos indivíduos, pode-se discutir o potencial que a maior disponibilidade desses eventos específicos tem de gerar vieses na visão de realidade da população em geral. Como já mencionado, ao avaliar a "realidade objetiva", como o mundo ao seu redor realmente é, as pessoas geralmente não têm à sua disposição evidências estatísticas com dados concretos que lhes ajudem a fazer um julgamento acurado. Elas precisam chegar a conclusões baseadas naquelas informações que se lembram de ter visto, ouvido ou lido em algum lugar. Como atualmente grande parte - senão a maioria - dessas informações é proveniente da mídia (Gerbner e colaboradores, 1986; Wâhlberg e Sjõberg, 2000), sua percepção de realidade acaba bastante influenciada pelo mundo como é mostrado pelos diversos meios de comunicação. Seu mundo "perceptual" deixa de ser gerado pela "realidade objetiva" que as cerca, passando a ser consequência direta da "realidade simbólica" midiática que elas veem através das notícias recebidas.

4. Hipóteses

A hipótese de pesquisa deste artigo é de que a mídia tem um impacto significativo nos julgamentos quanto à frequência e probabilidade de ocorrência de eventos: os mais noticiados tenderão a ser considerados mais frequentes e/ou prováveis do que eventos menos noticiados pela mídia (ainda que estes sejam na realidade mais frequentes). O motivo para esse viés de julgamento é, sugerimos, dado pelos resultados referentes à adoção da regra de disponibilidade como forma de julgamento sobre a incerteza. Ao final desta seção a hipótese de pesquisa será escrita de forma mais detalhada.

Para testar essa hipótese, foram concebidas duas perguntas, ambas inspiradas pelos estudos de Lichtenstein e colaboradores (1979) e Combs e Slovic (1979). A primeira pergunta relaciona em duplas 10 causas de morte e pede para que os participantes escolham, dentro de cada dupla, a que é responsável pela maior causa de mortes no Rio de Janeiro. Seu enunciado é:

Abaixo estão relacionadas algumas causas de morte, organizadas em duplas. Por favor, dentro de cada dupla escolha qual causa de morte no Rio de Janeiro é responsável pelo maior número de mortes em comparação ao seu par (marcando um X ao seu lado).

As causas de morte foram organizadas por critério de "dramaticidade": aquelas com maior potencial para gerar notícias e imagens impactantes, fortes e sensacionais (roubo seguido de morte, acidentes de trânsito, homicídios) foram emparelhadas com causas de morte que tendem a ser "não dramáticas" e que também existem em formas não fatais, controladas. Esse critério foi estabelecido pelo fato - discutido acima - de que os meios de comunicação dão preferência por notícias "excepcionais" e que gerem "excitação". Assim, utilizá-lo possibilita verificar dois fenômenos: se as causas mais "dramáticas" realmente recebem mais atenção da mídia; e se o número de notícias de uma causa de morte tem uma associação com suas estimativas de frequência. As exceções a esse critério são o item "câncer de pulmão", que talvez devesse estar nas causas "não dramáticas", mas que foi emparelhado com outra causa de morte "não dramática" ("diabetes") devido à sua grande exposição pela ligação ao tabaco e uma massiva campanha antitabagismo, intensificada no Brasil a partir do ano 2000; e os itens "ataque de tubarão" e "atingido por um raio", ambos com potencial de "dramaticidade" mas que, por serem causas muito raras, ficaram na mesma dupla para fins de comparação entre si.

A respeito dos dados sobre a cobertura da mídia relativa a cada evento, necessários para se estabelecer uma relação entre as respostas do formulário e os números de notícias veiculadas, foi preciso o estabelecimento prévio de um critério para a busca, de forma a manter sua objetividade. Primeiro, como a amostra usada no experimento reside na cidade do Rio de Janeiro, considerou-se razoável que a mídia pesquisada estivesse também nessa cidade, pois o fator relevância geográfica pode ser um influenciador importante na escolha das notícias veiculadas pelos agentes de cada meio (Nerb e colaboradores, 2001). Assim, usou-se o jornal O Globo como exemplo da mídia carioca - ele não é apenas o jornal de maior circulação da cidade como também faz parte de um grande conglomerado de mídia que engloba estações de rádio e televisão, podendo ser considerado uma fonte representativa do total de notícias disponível para a população da cidade. A pesquisa das notícias foi feita na ferramenta de pesquisa disponibilizada pelo jornal em seu website.

Quanto ao período englobado pela pesquisa, considerando-se que exemplos mais recentes são mais disponíveis do que os mais antigos (Tversky e Kahneman, 1974), optou-se por restringir o período de busca ao semestre anterior à aplicação dos questionários - 21 de dezembro de 2003 a 20 de junho de 2004 -, intervalo de tempo considerado suficientemente próximo para influenciar a disponibilidade dos eventos na mente dos indivíduos e, consequentemente, sua percepção de probabilidade e frequência.

Finalmente, em relação aos critérios para os termos usados na busca de notícias sobre as causas de morte através da ferramenta de pesquisa disponibilizada pelo website do jornal, como nem todas essas causas são necessariamente fatais e, portanto, nem todas as notícias nas quais aparecem são efetivamente sobre mortes causadas por elas, optou-se por acrescentar nos termos de busca, além da expressão referente à causa de morte em si ("diabetes", por exemplo), a palavra "morte", a fim de achar notícias mais específicas sobre fatalidades relacionadas a cada causa. Assim, o termo de busca usado para achar notícias sobre "diabetes", por exemplo, foi "morte diabetes".

A segunda pergunta relaciona capitais de estados brasileiros, organizadas em duplas, e pede que os pesquisados escolham, dentro de cada dupla, a cidade onde os habitantes têm a maior probabilidade de sofrer uma morte violenta, em comparação ao seu par. Seu enunciado é:

Abaixo estão relacionadas, organizadas em duplas, 10 capitais de estados brasileiros. Por favor, dentro de cada dupla escolha qual a cidade onde os habitantes têm a maior probabilidade de sofrer uma morte violenta, em comparação ao seu par (marcando um X ao seu lado). Considere mortes violentas como aquelas ocorrências que resultaram vítima fatal: homicídio, acidentes de trânsito, roubo seguido de morte, morte suspeita e resistência seguida de morte.

As capitais foram organizadas por critério de população e importância econômica do estado (participação no PIB). As cidades maiores de estados economicamente mais relevantes foram colocadas ao lado das cidades menores. Esse critério foi estabelecido devido à preferência da mídia por noticiar fatos geograficamente e culturalmente relevantes para o receptor, que podem ser vistos como tendo algum tipo de conexão com seu público (Nerb e colaboradores, 2001). A exceção a esse critério foi a dupla de cidades "Curitiba x Porto Alegre": apesar de Curitiba ter uma população maior, o Rio Grande do Sul é economicamente mais relevante do que o Paraná. Contudo, por causa da semelhança entre população e relevância econômica dessas cidades e seus estados, elas foram consideradas equivalentes em termos de potencial de exposição na mídia, ficando na mesma dupla para fins de comparação entre si.

Quanto aos critérios para os termos usados na busca de notícias através da ferramenta de pesquisa disponibilizada pelo website do jornal para essa segunda pergunta, optou-se por uma abordagem menos específica do que a abordagem adotada para a primeira pergunta por dois motivos: primeiro, pesquisar apenas pelo nome da cidade traria como resultado uma quantidade enorme de notícias não relacionadas com mortes violentas. Por outro lado, pesquisar por um termo específico ao lado da cidade, por exemplo, "Belo Horizonte morte homicidio" e "Belo Horizonte morte roubo" poderia gerar uma duplicidade de notícias - afinal de contas, uma mesma notícia poderia falar sobre homicídios e roubos seguidos de morte. Assim, optou-se por fazer uma busca utilizando o nome da cidade ao lado da palavra "violência" - "Belo Horizonte violência". Considerou-se que qualquer notícia que associasse o nome da cidade à violência geraria maior disponibilidade para eventos violentos na mesma, aumentando colateralmente também a percepção de probabilidade de seus habitantes serem vítimas de mortes violentas.

Tanto para a primeira pergunta quanto para a segunda pode-se prever, de acordo com o viés da facilidade de lembrança relatado na seção 2 (Tversky e Kahneman, 1974), que os eventos que aparecerem mais nas notícias do jornal serão também, em média, os mais frequentes ou mais prováveis pelas pessoas que responderem ao questionário.

Assim, a hipótese do experimento na forma de hipótese nula é de que não existirá um viés significativo na estimação de probabilidade e frequência dos eventos. Logo, considerou-se para fins do teste que cada item de uma dupla deveria ter aproximadamente o mesmo número de respostas:

Onde p1 se refere à probabilidade de uma pessoa escolher o item da esquerda da dupla e p2 a probabilidade de uma pessoa escolher o item da direita da dupla. Correspondentemente, a hipótese alternativa será:

Ou seja, existirá um viés significativo na estimação de probabilidade e frequência dos eventos em direção a estimar como mais prováveis ou frequentes aqueles eventos com um maior número de notícias sobre eles veiculadas pela mídia.

Amostra e procedimentos

Participaram do estudo 143 pessoas (57 homens, 86 mulheres; média de idade de 21,5 anos, variando entre 17 e 53 anos, mediana de 19 anos) dos cursos de economia e comunicação social da UFRJ e história e pedagogia da PUC-Rio. Os dados para o experimento foram coletados através da aplicação de um questionário composto de capa - com instruções e dados pessoais a serem preenchidos (sexo, idade, curso e universidade) - e as perguntas descritas acima, distribuído para os participantes em sala durante o horário de aula. Não houve nenhum incentivo financeiro ou qualquer outra recompensa para tomar parte do experimento.

Para evitar qualquer viés nas respostas, não era dada nenhuma explicação sobre as hipóteses do experimento ou sobre a heurística da disponibilidade. Após a leitura das instruções adicionais - usar a intuição para responder às perguntas e não olhar as respostas dos outros participantes - era iniciado o preenchimento do questionário. O pesquisador permaneceu na sala durante toda a duração do experimento e os questionários foram retornados à medida que foram completados.

Para a fase de análise dos dados, foi prevista uma comparação entre as probabilidades e frequências dos eventos descritos estimadas pelos respondentes e aquelas encontradas nas estatísticas oficiais, a fim de se verificar a existência de uma discrepância entre elas. Logo, estatísticas confiáveis sobre as causas de morte listadas na pergunta 1 e sobre o número de mortes violentas das cidades listadas na pergunta 2 se tornavam necessárias. Foram usados os dados mais atualizados existentes - desde que provenientes de fontes consideradas confiáveis - de maneira que as estatísticas objetivas refletissem da forma mais fidedigna possível a realidade do momento da pesquisa.

Em relação às causas de morte,1 1 À exceção de "roubo seguido de morte", "ataque de tubarão" e "atingido por um raio". os dados estatísticos foram retirados da publicação Indicadores e dados básicos - Brasil 2005, do Datasus, disponível no website do Ministério da Saúde. Os dados mais atualizados disponíveis nessa fonte eram referentes a 2003. Em alguns casos os termos técnicos que designavam essas causas foram substituídos por termos mais coloquiais, usados no dia a dia - inclusive nas notícias veiculadas pela mídia - para que não houvesse problemas de reconhecimento por parte dos pesquisados. O dado sobre "roubo seguido de morte" para o ano de 2003 foi encontrado no website do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, e aquele sobre mortes por "ataque de tubarão" foi retirado do website International shark attack file, do Museu de História Natural da Flórida, EUA. Quanto ao dado sobre mortes "atingido por um raio", não existem estatísticas oficiais sobre o assunto no país, de maneira que duas fontes "não oficiais" foram usadas: o professor Osmar Pinto Jr., coordenador do Instituto Nacional de Pesquisas Atmosféricas (Elat) - uma das maiores autoridades do país sobre raios, entrevistado por telefone, e uma reportagem do jornal O Globo, de 21 de dezembro de 2003 (Brandão, 2003), específica sobre mortes por raios na cidade do Rio.

Finalmente, os dados usados na pergunta 2 sobre mortes violentas nas capitais referentes a 2003 - à exceção de "acidentes de trânsito" - foram retirados do website da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça. Aqueles referentes a mortes causadas por acidentes de trânsito foram encontrados na publicação Indicadores e dados básicos - Brasil 2005.

5. Resultados

As tabelas a seguir resumem os resultados do experimento. O número de respondentes para cada uma pode ser verificado no tamanho da amostra especificado na análise individual dos resultados. A pergunta 1 foi respondida por 134 pessoas. As escolhas consolidadas dos respondentes podem ser vistas na tabela 1.

Para o teste da hipótese de pesquisa foi adotado o teste não paramétrico qui-quadrado (χ2). No caso da pergunta 1 de pesquisa, a hipótese nula é verdadeira se p1 = p2 = 0,5. O valor esperado do número de respostas para cada item é dado por: E(ni) = npi = 134 x 0,5 = 67 respostas. A estatística de teste encontrada para cada dupla foi: Aids x roubo seguido de morte: χ2=60,44776; acidentes de trânsito x ataque cardíaco: χ2 =50,17910; câncer x homicídios: χ2 =23,40299; câncer de pulmão x diabetes: χ2 =18,65672; ataque de tubarão x atingido por um raio: χ2 =0,746269.

Finalmente, para podermos constatar se há um viés significativo devemos comparar a estatística de teste encontrada com um valor crítico. Se a estatística de teste χ2 for maior que o valor crítico para determinado nível de significância e k - 1 grau de liberdade (onde k é o número de escolhas possíveis), , a hipótese nula pode ser rejeitada. Para um nível de significância de 95% e grau de liberdade 1 temos = 3,84146. Esse valor crítico será o mesmo para todas as duplas.

Em todas as duplas, com exceção de "ataque de tubarão x atingido por um raio", a estatística de teste está acima do valor crítico para α = 0,05, observando-se então para elas a existência de um viés em favor de uma das respostas. Resta questionar se esse viés encontrado é em direção àquelas opções que são mais noticiadas. Para fazer essa análise, podemos pesquisar a tabela 2.

As notícias foram pesquisadas de acordo com o método descrito na seção 4. Observando-se o número de respostas versus o número de notícias para cada item de uma dupla nota-se uma tendência clara das respostas em direção à causa de morte mais noticiada. Isto ocorre em quatro das cinco duplas, e a média das respostas e notícias dos itens mais escolhidos em cada dupla 95,8 e 58, respectivamente, versus uma média de apenas 38,2 respostas e 18,2 notícias para os itens menos escolhidos em cada dupla. Assim, podemos concluir que, nessa pergunta, as pessoas tenderam a, na maioria das duplas, confirmar H1, viesando significativamente suas estimativas em direção àquelas causas de morte mais disponíveis na mídia.

A pergunta 2 foi respondida por 135 pessoas. As escolhas consolidadas dos respondentes podem ser vistas na tabela 3:

Devido à semelhança com o desenho da pergunta 1, na pergunta 2 é usado o mesmo procedimento estatístico para verificar se a hipótese nula (H0) é ou não verdadeira: o teste χ2.

A hipótese nula é de que não existirá um viés significativo na estimação de probabilidade dos eventos (sofrer morte violenta em determinada cidade). A ressalva a ser feita para essa pergunta é que, sendo o n dessa amostra igual a 135 (em vez de 134, como na pergunta 1), nesse caso o valor esperado do número de respostas para cada item da dupla será dado por: E(n) = np. = 135 x 0,5 = 67,5 respostas. O valor crítico para um nível de significância de 95% e grau de liberdade 1 para a análise dos resultados será o mesmo da pergunta anterior (= 3,84146). O resultado do cálculo da estatística de teste para as duplas será: Aracaju x Brasília: χ2 =9,07407; Rio de Janeiro x Vitória: χ2 =88,0074; Recife x São Paulo: χ2 =78,5852; João Pessoa x Belo Horizonte: χ2 =33,2519; Curitiba x Porto Alegre: χ2 =25,7852.

Em todas as duplas, a estatística de teste está acima do valor crítico para α = 0,05, observando-se então a existência de um viés em favor de uma das respostas em todas elas. Para descobrir se o viés encontrado é em direção às opções que são mais noticiadas devemos analisar a tabela 4.

Em todas as duplas nota-se uma tendência das respostas em direção à cidade mais noticiada, e a média das respostas e notícias delas 104,8 e 241,8, respectivamente, versus uma média de 30,2 respostas e 18,2 notícias para aquelas menos escolhidas em cada dupla. Podemos concluir que o viés detectado através do teste estatístico é em direção às cidades mais noticiadas e, portanto, confirmada H1 para todas as duplas.

6. Análise

Os resultados do experimento mostram, em termos sumários, que existe uma similaridade entre os vieses detectados na cobertura de eventos pela mídia e o julgamento das pessoas. Esses resultados são consistentes com a proposta de que as notícias veiculadas podem ter uma grande influência na disponibilidade dos eventos na mente das pessoas e, consequentemente, conforme a regra de disponibilidade seja adotada como base para o julgamento, que a cobertura da mídia explique a existência de vieses no julgamento dos indivíduos sobre a frequência e probabilidade de causas de morte. Em outras palavras, a sugestão é de que um número maior de notícias sobre determinado assunto torne mais fácil para as pessoas tanto se lembrarem de exemplos sobre ele quanto imaginá-los, aumentando assim a percepção de frequência e probabilidade dos eventos mais noticiados.

Em um mundo onde a mídia tem um peso significativo como fonte de informação sobre o ambiente que nos cerca é provavelmente natural que aqueles eventos cuja frequência de notícias é maior acabem também vistos como mais frequentes. O problema é que, devido aos critérios para seleção de notícias já descritos, não existe necessariamente relação entre o que aparece nos meios de comunicação e as estatísticas de frequência real: a tendência por noticiar eventos "fora do comum", que causam impacto, leva a um número maior de reportagens sobre causas de morte que, apesar de chocantes - homicídios, latrocínios, desastres etc. -, são responsáveis por um número muito menor de mortes do que outras que matam de maneira menos "dramática" e não violenta - câncer, ataque cardíaco. Essa falta de conexão entre notícias e frequência real pode ser constatada na tabela 5.

Nota-se que, em quase todas as duplas, aquela causa de morte com o maior número de ocorrências - geralmente uma causa de morte "silenciosa" - recebeu cobertura menor do que seu par - uma causa de morte que, apesar de menos frequente, é mais "espetacular" e, portanto, tem mais "valor de notícia". O número de respostas, por outro lado, não se guiou pela frequência real dos eventos, mas sim pela frequência midiática, tendendo sempre a, como mencionado acima, inclinar-se para o evento mais visível.

Não obstante o número de notícias ser um fator considerável no reforço da disponibilidade, outro fator também colabora nesse sentido: como a notícia é colocada para o leitor. A forma como a matéria é contextualizada, o nível de detalhes e o destaque que lhe é dado são condições que, entre outras, colaboram diretamente para uma maior impressão de excepcionalidade e vividez da informação, o que, por sua vez, influencia a facilidade de lembrança dos eventos e, consequentemente, sua estimação de probabilidade e frequência. Uma análise dos artigos pesquisados mostra que o destaque dado para cada tema dentro das reportagens também diferiu amplamente entre as causas de morte violentas e as causas "silenciosas". As primeiras comumente estavam inseridas em artigos sobre eventos específicos, com uma relação direta com a própria causa da morte e que eram frequentemente mais descritivos, fornecendo ao leitor todos os ingredientes para formar uma imagem mental da cena em que ocorreu o evento, com detalhes como a arma e local do crime, quem eram as vítimas, qual foi sua reação (surpresa, pavor etc.) e sofrimento (detalhes da morte etc.), e quem foram os culpados.

Enquanto isso, as mortes silenciosas geralmente foram citadas em artigos genéricos, em que o destaque não é a causa da morte em si, mas sim um tema sobre saúde, os quais eram muito menos descritivos do que os anteriores. Na verdade, quando um evento específico sobre elas é relatado, é mais comum que seja a história de uma pessoa que conseguiu vencer "bravamente" a doença - uma celebridade que sobreviveu ao câncer fazendo quimioterapia - ou então que se relatem casos em que elas são controladas - uma pessoa que convive há anos com a diabetes - de maneira que a disponibilidade dessas doenças aumenta não para o número de mortes que elas causam, mas sim para as situações nas quais elas não são fatais. Nos casos em que as doenças são citadas em artigos genéricos sobre saúde, geralmente essa menção se dá em apenas um ou dois parágrafos - dentro de artigos grandes, que falam também de várias outras doenças - e se fala mais das maneiras de se controlar a doença do que das mortes causadas por ela.

Também para as respostas da pergunta 2, não há, na maioria das duplas, uma conexão entre a probabilidade real de se sofrer morte violenta nas cidades e as respostas dadas. A tabela 6 mostra o número agregado de mortes violentas por 100 mil habitantes nas diversas capitais usadas na questão.

Percebe-se que em todas as duplas a cidade com o maior número de notícias encontradas na busca para o termo "violência cidade" também foi aquela com o maior número de estimativas dos respondentes a respeito da probabilidade de seus habitantes sofrerem morte violenta, apesar de, na maioria das vezes, não ser a cidade em que a probabilidade real de se sofrer esse tipo de morte seja efetivamente a maior.

Alguns questionamentos relevantes surgem a partir dessas observações. Por que, como se vê pelo número de notícias encontrado, algumas cidades recebem uma cobertura tão maior do que outras por parte da mídia? Essa diferença de cobertura é relevante na distorção da percepção de probabilidade encontrada entre os respondentes? Dois fatores podem ser factualmente sugeridos como influenciando diretamente o número de notícias encontrado para cada cidade: a relevância cultural e geográfica da notícia e a frequência absoluta dos eventos violentos. Sobre o fator relevância, já foi detectada em estudos a preferência da mídia em relatar eventos com os quais sua audiência se identifica (Nerb e colaboradores, 2001). Ao observar a quantidade de notícias encontrada para cada cidade, uma das coisas que mais chama a atenção é que a grande maioria delas se concentra nas quatro maiores cidades do país, principalmente nos seus três principais centros político-econômicos: Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. É bastante provável que a grande relevância que têm essas cidades colabore no sentido de que a cobertura sobre todos os seus eventos tenha muito espaço em relação ao total das notícias veiculadas.

O segundo fator que pode ter influenciado no número de notícias com os termos "violência cidade" encontrado é simplesmente o fato de que existem realmente, em termos absolutos, muito mais ocorrências de eventos violentos em metrópoles do que em cidades menores. Em relação a homicídios, latrocínios e acidentes, por exemplo, mais pessoas são vítimas desses crimes no Rio ou São Paulo do que em Vitória ou Recife. Um número maior de episódios violentos pode, naturalmente, gerar um número maior de notícias sobre eles.

Entretanto, o fato de existir um número absoluto maior de uma mesma ocorrência em um local não quer necessariamente dizer que as chances de ela acontecer com um de seus habitantes seja maior comparando-se a outra localidade em que o número de ocorrências é menor. Tais chances podem ser analisadas somente quando olhamos as frequências relativas - uma cidade de mil habitantes com 20 homicídios/ano pode ser plausivelmente considerada mais perigosa do que uma de 1 milhão de habitantes com 100 homicídios. Paralelamente, podemos dizer que as chances de se sofrer morte violenta em Recife, por exemplo, onde o número de mortes por 100 mil habitantes é 79,77, é maior do que em São Paulo, onde a mesma estatística é igual a 56,23. Recife pode ser, em outras palavras, considerada uma cidade mais perigosa. Por que então a percepção das pessoas quanto ao perigo das cidades, ou seja, as chances de seus habitantes sofrerem morte violenta, foi constantemente viesada em direção às cidades da dupla com menor número de mortes por habitantes? Esse é um bom momento para tratar do segundo questionamento: se a diferença de cobertura encontrada é relevante nessa distorção da percepção de probabilidade.

É justificável dizer que o maior número de notícias a respeito da violência das grandes cidades a torne mais disponível na mente das pessoas do que a violência das cidades pequenas. Como as pessoas geralmente não têm acesso às estatísticas de um evento ao fazerem julgamentos sobre suas probabilidades, tais julgamentos se baseiam na facilidade com que exemplos desses eventos vêm à mente. Examinando a tabela 6, observamos que as notícias relativas às cinco cidades escolhidas nas duplas como tendo maior probabilidade de seus habitantes sofrerem morte violenta, correspondem a 93% do total de notícias. Com uma participação tão expressiva - causada, como já visto, por fatores como relevância cultural e geográfica e número absoluto de ocorrências -, pode-se consistentemente esperar uma disponibilidade significativamente maior na mente dos indivíduos das suas ocorrências de eventos violentos e consequentemente uma maior percepção da probabilidade de uma morte violenta acontecer com um de seus habitantes.

7. Conclusões e pesquisas futuras

Pensar de forma clara sobre os riscos a que estamos submetidos no nosso cotidiano é difícil, mas necessário. Neste artigo foram analisados os fatores que levam às escolhas das notícias que serão divulgadas na mídia e como elas podem viesar a percepção da realidade que nos cerca, às vezes influenciando de maneira relevante nossas prioridades e ações, não só como indivíduos, mas também enquanto grupo sociopolítico. Também foi detectada a existência de um viés na estimativa de frequência e probabilidade de causas de morte em direção àquelas mais "espetaculares" ou "excepcionais", que são, como já argumentado, também as mais noticiadas pela mídia, confirmando assim, no Brasil, os resultados do experimento clássico de Combs e Slovic (1979).

Uma pergunta de pesquisa que surge a partir de resultados como os encontrados neste artigo se refere à confiança que depositamos nos julgamentos exercidos nos tipos de perguntas que foram formuladas. Genericamente, as pesquisas apontam para um padrão de excesso de confiança nos julgamentos sobre incerteza. Esse é um resultado que tem se mostrado bastante robusto na literatura (Slovic, Fischhoff e Lichtenstein em Kahenman e colaboradores, 1982; Koehler, Brenner e Griffin em Gilovich e colaboradores, 2002). À medida que essa tendência se mostra igualmente presente em julgamentos como os testados aqui, o potencial impacto dos vieses nos processos decisórios se torna mais relevante.

Por exemplo, Fischhoff e colaboradores (em Connolly et al., 2000:479) escrevem, a respeito de decisões que envolvem riscos, que "para tomar tais decisões sabiamente, as pessoas precisam entender os riscos e benefícios associados com caminhos alternativos de ação. Elas também precisam entender os limites de seu próprio conhecimento e os limites dos conselhos dados por especialistas". Da mesma maneira, para tomar decisões relativas às alternativas para se investir recursos estatais, os responsáveis pelas políticas públicas precisam analisar as diversas necessidades e procurar entender os custos e benefícios associados com cada uma delas, optando por investir naquelas que provavelmente trarão os maiores benefícios em relação ao investimento - seja porque precisam ser feitas com urgência (políticas antiterroristas após um ataque terrorista), seja por seus benefícios de longo prazo (investimento em pesquisa e desenvolvimento).

Algumas circunstâncias, contudo, como uma maior visibilidade de determinada alternativa na mente da sociedade e gestores públicos, podem distorcer a análise, levando a decisões de investimento que nem sempre maximizarão a utilidade. Novos estudos sobre o processo de percepção a respeito de eventos incertos e subsequente julgamento que fazemos sobre eles podem servir para identificar ou confirmar alguns possíveis vieses no processo de análise e aperfeiçoar a gestão e tomada de decisão tanto na administração pública quanto na privada, otimizando as decisões sobre quais áreas devem ser priorizadas e maximizando o retorno sobre o investimento, seja ele financeiro ou social.

Uma segunda pergunta refere-se ao grau de influência relativa que as notícias possuem sobre a percepção dos indivíduos em comparação a diversas outras fontes de informação como família, experiência pessoal, amigos ou local de moradia. Talvez um estudo comparando notícias e percepções em diferentes situações (várias localidades, pessoas com diferentes graus de exposição à mídia etc.) pudesse esclarecer um pouco mais quão forte é a relação "exposição à mídia x percepção" em relação a outras influências, o que poderia ajudar, entre outras coisas, a mensurar a eficácia e retorno de campanhas públicas sobre as diversas camadas da população.

Artigo recebido em jan. 2007 e aceito em abr. 2008.

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  • 1
    À exceção de "roubo seguido de morte", "ataque de tubarão" e "atingido por um raio".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jul 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009

    Histórico

    • Aceito
      Abr 2008
    • Recebido
      Jan 2007
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