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Editorial1 1 Alketa Peci agradece enormemente a contribuição do professor Marcelo Neri na editoração deste número específico da RAP. Sua contribuição direta na elaboração e implementação de políticas de transferência condicionada de renda é nacionalmente e internacionalmente reconhecida. Os artigos aqui reunidos não foram resultado de uma chamada especial, mas refletiram uma agenda crescente de pesquisa no país e, mereciam serem avaliadas a partir do olhar atento de um pesquisador de renome da área.

Políticas públicas de combate à pobreza

A pobreza é moralmente condenável, socialmente custosa e territorialmente marcante. Ela não qualifica apenas determinados indivíduos ou grupos sociais, mas transborda numa dinâmica marcada por desigualdades econômicas, sociais, educacionais, informacionais, entre tantas outras, com profundos impactos para o bem-estar da sociedade como um todo. Pobreza também implica custos de (boa) governança e clientelismo na relação da sociedade com o sistema político - tornando-se um objeto indispensável de pesquisas em administração pública.

Enfrentar a pobreza e combater as mazelas sociais a ela associadas têm sido objetivos explícitos ou implícitos da ação do Estado moderno. O sucesso na erradicação da pobreza extrema refletiu a agenda do estado de bem-estar social concretizado em vários países europeus, mas nunca se transformou numa agenda globalizada de ação pública. De fato, a natureza das políticas de combate à pobreza, quando presentes, mudaram ao longo do tempo e em diferentes contextos, até porque as causas que sustentam e perpetuam a pobreza são múltiplas.

Nas duas últimas décadas, o Brasil foi capaz de elaborar e implementar um conjunto sofisticado de estratégias de combate à pobreza que começaram a servir de benchmarking para vários países em desenvolvimento. Priorizado como objetivo de política pública, o combate à pobreza gradualmente articulou uma sofisticada rede de administradores públicos e tecnologias de gestão que deram conteúdo e musculatura a sistemas de gestão pública até então fragilmente articulados, ao exemplo da assistência social.

As políticas de combate à pobreza foram também incorporadas na agenda de pesquisa de administração pública, como se reflete neste número especial da Revista de Administração Pública. Este volume reúne um conjunto de contribuições relacionadas com políticas de combate à pobreza de estudiosos localizados em quase todas as regiões do Brasil. Essa é uma evidência da importância assumida pelo tema em todo o país nos últimos anos.

As chamadas transferências de renda condicionadas (CCTs na sigla em inglês, de conditional cash transfers) são o principal denominador comum, direta ou indiretamente abordado nesses trabalhos. A característica intersetorial dos CCTs - que combinam áreas de assistência social, educação, saúde e trabalho, para citar apenas algumas, entre diferentes níveis de governo e com fortes intercâmbios internacionais de conhecimento - torna o tópico especialmente relevante para uma revista sobre administração pública como a RAP.

Os trabalhos reunidos neste número incorporam alguns dos elementos mais atuais da literatura técnica, como indicadores subjetivos e multidimensionais, que são críticos para analisar e operar na prática os programas de CCTs. Também acrescentam perspectivas históricas e comparativas internacionais ao assunto. São estudadas, ainda, as relações entre desigualdade de renda e despesas em saúde e educação, bem como possíveis alternativas para a definição e atualização da linha de pobreza adotada pelo governo federal. Também é oferecida visão esquemática dos canais de operação e dos resultados obtidos pelos CCTs, o que facilita a proposição de melhoria do seu desenho e a análise de seus impactos.

O artigo Uma próxima geração de programas de transferência de renda condicionada, de Marcelo Neri, avalia a expansão recente e discute o futuro dos CCTs a partir da integração de análises empíricas prévias relacionadas. Compara a performance desses com outros programas de transferência de renda federais como o BPC e a Previdência Social, e inspeciona os mecanismos microeconômicos pelos quais os CCTs operam, comparando evidências dos impactos sobre os indivíduos beneficiários desses programas vis-à-vis aqueles que não o são.

O artigo Satisfação Global de Vida e Bem-estar Financeiro: desvendando a percepção de beneficiários do Programa Bolsa Família, de Jéssica Pulino Campara, Kelmara Mendes Vieira e Ani Caroline Grigion Potrich, analisa as relações entre dimensões subjetivas reveladas em uma pesquisa de percepção com 595 pessoas cobertas pelo principal CCT brasileiro. Observa-se que respostas associadas a uma alta satisfação com a vida coexistem, entre os usuários do programa amostrados, com contas atrasadas, nomes “sujos” em cadastros negativos e incapacidade de poupar ou consumir além do essencial.

Em Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes: feedback effects, inflexões e desafios atuais, Geralda Luiza de Miranda reconstitui o percurso histórico conformador das instituições de assistência dedicadas a esse grupo socialmente vulnerável. A partir da análise de sucessivas normas nacionais sobre crianças e adolescentes em situação de risco e do quadro atual apontado pelo Censo Suas 2014, conclui-se que decisões tomadas na Era Vargas dificultaram a adoção de inovações pretendidas no Código de Menores de 1979, no Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 e nas iniciativas dos anos 2000 no setor.

Em Evidências sobre a pobreza multidimensional na região Norte do Brasil, Andréa Ferreira da Silva, Janaildo Soares de Sousa e Jair Andrade Araujo estimam a proporção de pobres multidimensionais residentes naquela região do país. Considerando seis dimensões de pobreza com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), o indicador construído diminui na população nortista entre 2006 e 2013.

O artigo Pobreza multidimensional no estado da Bahia: uma análise espacial a partir dos censos de 2000 e 2010, de Eli Izidro dos Santos, Ícaro Célio Santos de Carvalho e Ricardo Candéa Sá Barreto, analisa o comportamento espacial da pobreza no estado, encontrando evidências de clusters de pobreza regional. Os autores demonstram que as políticas públicas de combate à pobreza, com foco apenas na renda, não são suficientes para combatê-la, fazendo-se necessária a elaboração de políticas públicas mais eficazes, capaz de erradicar essa problemática.

O efeito da função orçamentária alocativa na redução da desigualdade de renda no Brasil: uma análise dos gastos em educação e saúde no período de 1995 a 2012, de Giovanni Pacelli Carvalho Lustosa da Costa e Ivan Ricardo Gartner, estuda a associação entre despesas públicas com educação e saúde e variações em índices de desigualdade de renda nas unidades da federação. No período considerado, o estudo mostra que a desigualdade caiu mais intensamente nos estados que aplicaram mais recursos em atenção básica, assistência hospitalar, suporte profilático e ambulatorial e educação infantil.

No artigo Linhas de pobreza no Plano Brasil Sem Miséria: análise crítica e proposta de alternativas para a medição da pobreza conforme metodologia de Sonia Rocha, Giordano Benites Tronco e Marília Patta Ramos defendem a regionalização da linha de pobreza oficial, com sua indexação automática aos níveis de preço de cestas de consumo observados em diferentes áreas do país.

Aspectos políticos e históricos também são abordados por Hemerson Luiz Pase e Claudio Corbo Melo em Políticas públicas de transferência de renda na América Latina. O artigo relaciona a instituição de CCTs em seis países da região - México, Brasil, Uruguai, Paraguai, Bolívia e Argentina - com seus respectivos processos de redemocratização, com a emergência de elites políticas reformistas e coalizões motivadas a enfrentar a pobreza por meio de programas de bem-estar social.

Finalizamos com a observação de que estratégias mais sofisticadas de combate à pobreza demandam o fortalecimento de capacidades burocráticas e/ou de boa governança (Grindle, 2004). Entretanto, estratégias que normalmente são consideradas indissociáveis à “boa governança” - redução da corrupção, melhoria de accountability, políticas eficazes de descentralização, melhor gestão de recursos públicos, estrutura e qualidade da burocracia pública, entre outras - nem sempre impactam positivamente as estratégias de combate da pobreza. Descentralização, considerada uma boa prática de gestão, e “empoderamento de parcelas de população desfavorecidas” podem levar a maiores desigualdades populacionais; uma forte burocracia pública pode tender ao insulamento ao invés de entrega de resultados. Existe, ainda, espaço para pesquisas que se situem na intersecção da administração pública com as políticas de combate à pobreza.

Buscamos, com este número especial, registrar parte do conhecimento acumulado em políticas públicas de combate à pobreza. Muito do que se discute nos artigos aqui apresentados tem a ver com o estabelecimento de prioridades, por parte dos governos, no combate à pobreza. Por sua vez, essas prioridades podem ser mais bem elaboradas com base em evidências - e esperamos que os artigos aqui reunidos possam contribuir para a base de evidências que sustentará e sofisticará as políticas de combate à pobreza no futuro próximo.

Boa leitura!

Alketa Peci

Editora-chefe

Marcelo Neri

Editor convidado

REFERÊNCIA

  • GRINDLE, Merilee S. Good enough governance: poverty reduction and reform in developing countries. Governance, v. 17, n. 4, p. 525-548, 2004.
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    Alketa Peci agradece enormemente a contribuição do professor Marcelo Neri na editoração deste número específico da RAP. Sua contribuição direta na elaboração e implementação de políticas de transferência condicionada de renda é nacionalmente e internacionalmente reconhecida. Os artigos aqui reunidos não foram resultado de uma chamada especial, mas refletiram uma agenda crescente de pesquisa no país e, mereciam serem avaliadas a partir do olhar atento de um pesquisador de renome da área.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2017
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