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O estudante, o médico e o professor de medicina perante a morte e o paciente terminal

The student, the medical doctor and the teacher of medicine facing death and terminal patients

Resumos

OBJETIVO: Determinar o perfil do estudante, do médico e do professor de medicina, em um hospital universitário, diante da morte e de pacientes terminais, e identificar possíveis mudanças de comportamento ao longo e após a formação médica. CASUÍSTICA E MÉTODO: Inquérito sobre morte e paciente terminal foi realizado entre 81 estudantes da fase pré-clínica e 139 da fase clínica do curso de medicina, 52 médicos e 54 professores da Faculdade de Ciências da Saúde. RESULTADOS: O interesse pelo assunto foi manifestado por 303 inquiridos (93%); 179 apresentaram dificuldade para tratar da matéria (55%). Apenas 136 procuraram informações sobre o tema (41,7%); 116 tinham dificuldade para encontrá-las (85,1%). Fontes de informação leigas foram as mais utilizadas (61,1%), em detrimento de fontes especializadas (38,9%). Apenas 20 médicos (38%) e 13 professores (24%) discutiram o assunto com pacientes; 47 alunos da fase pré-clínica discutiram com amigos (58%) e 40 com familiares (49,4%); 36 professores debateram com profissionais da área de saúde (66,6%). Pensam, eventualmente, na própria morte 263 entrevistados (80,7%) e, constantemente, 38 (11,6%); 157 sentem medo quando o fazem (52,2%). Nunca pensaram na própria morte 11 alunos da fase pré-clínica (13,8%), dez da fase clínica (7,2%) e quatro médicos (7,4%).Antes de iniciar o curso médico, 136 inquiridos tiveram algum contato com cadáver (41,8%). O interesse pelo assunto morte não se alterou, ou até aumentou, após contato com o cadáver, para 321 (98,5%), ou mesmo após as primeiras necropsias, para 236 (96,3%). Na fase clínica do curso, 111 alunos (79,9%) tiveram contato com pacientes terminais. CONCLUSÕES: Os autores sugerem que a educação formal sobre o assunto nas escolas de medicina, desde o início do curso, bem como a permanente atenção dispensada ao tema por parte dos profissionais, poderia modificar o comportamento do estudante e do médico, tornando-os mais aptos a lidar com a morte e com o paciente terminal.

Paciente terminal; Morte; Educação médica


OBJECTIVE: The aim of this investigation was to study the feelings and attitudes of medical students, medical doctors and teachers of medicine facing death and terminal patients. METHOD: An inquiry about death and terminal patient was applied to 81 pre-clinical students, 139 clinical students, 52 medical doctors and 54 teachers of the Faculty of Health Sciences. RESULTS: 303 responders showed interest in this subject (93%); 179 had problems in dealing with it (55%). Only 136 searched for information (41.7%) and 116 have dificulty in finding it (85.1%). Non-especialized sources of information were the most used ones (61.1%). Twenty medical doctors (38%) and 13 teachers (24%) discussed the subject more often with patients, 47 pre-clinical students (58%) did it with friends and 40 with relatives (49.4%); 36 teachers did it with health professionals (66.6%). 263 responders rarely think about their own death (80.7%), and 38 do it constantly (11.6%); 157 are afraid of thinking about their own death (52.2%). Eleven pre-clinical students (13.8%), ten clinical students (7.2%) and 4 medical doctors (7.4%) never thought of their own death. Before entering medical school, 136 responders had some kind of contact with corpses (41.8%). The interest about death did not change, after dealing with corpses in anatomy classes, to 321 responders (98.5%), the same hapening with 236 individuals (96.3%) after necroscopy. During the clinical year 111 students (79.9%) worked with terminal patients. CONCLUSIONS: The authors suggest that formal education about death and terminal patient in medical schools, starting early in the medical course, as well as permanent attention to the theme by professionals, could modify the attitudes of students and medical doctors toward a better way in dealing with this subject.

Terminal patient; Death; Medical education


Artigo Original

O estudante, o médico e o professor de medicina perante a morte e o paciente terminal

A. Vianna, H. Piccelli

Hospital Universitário de Brasília; Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília, Brasília, DF.

RESUMO — OBJETIVO: Determinar o perfil do estudante, do médico e do professor de medicina, em um hospital universitário, diante da morte e de pacientes terminais, e identificar possíveis mudanças de comportamento ao longo e após a formação médica.

CASUÍSTICA E MÉTODO: Inquérito sobre morte e paciente terminal foi realizado entre 81 estudantes da fase pré-clínica e 139 da fase clínica do curso de medicina, 52 médicos e 54 professores da Faculdade de Ciências da Saúde.

RESULTADOS: O interesse pelo assunto foi manifestado por 303 inquiridos (93%); 179 apresentaram dificuldade para tratar da matéria (55%). Apenas 136 procuraram informações sobre o tema (41,7%); 116 tinham dificuldade para encontrá-las (85,1%). Fontes de informação leigas foram as mais utilizadas (61,1%), em detrimento de fontes especializadas (38,9%). Apenas 20 médicos (38%) e 13 professores (24%) discutiram o assunto com pacientes; 47 alunos da fase pré-clínica discutiram com amigos (58%) e 40 com familiares (49,4%); 36 professores debateram com profissionais da área de saúde (66,6%). Pensam, eventualmente, na própria morte 263 entrevistados (80,7%) e, constantemente, 38 (11,6%); 157 sentem medo quando o fazem (52,2%). Nunca pensaram na própria morte 11 alunos da fase pré-clínica (13,8%), dez da fase clínica (7,2%) e quatro médicos (7,4%).Antes de iniciar o curso médico, 136 inquiridos tiveram algum contato com cadáver (41,8%). O interesse pelo assunto morte não se alterou, ou até aumentou, após contato com o cadáver, para 321 (98,5%), ou mesmo após as primeiras necropsias, para 236 (96,3%). Na fase clínica do curso, 111 alunos (79,9%) tiveram contato com pacientes terminais.

CONCLUSÕES: Os autores sugerem que a educação formal sobre o assunto nas escolas de medicina, desde o início do curso, bem como a permanente atenção dispensada ao tema por parte dos profissionais, poderia modificar o comportamento do estudante e do médico, tornando-os mais aptos a lidar com a morte e com o paciente terminal.

UNITERMOS: Paciente terminal. Morte. Educação médica.

INTRODUÇÃO

Facear a morte constitui permanente desafio para o homem desde as mais remotas civilizações. A Medicina, mais do que qualquer outra ciência, coloca diretamente a problemática da morte diante do profissional. O médico responde a esse desafio muitas vezes com ansiedade, medo e até como ameaça à sua própria vida1.

Nas duas últimas décadas, a literatura científica tem sido pródiga em publicações sobre as atitudes do médico diante da morte e do paciente terminal. Entretanto, há poucos indícios capazes de definir se tais reações surgem durante o exercício da profissão, em face de situações concretas envolvendo a morte de pacientes, ou se há predisposições trazidas ou desenvolvidas durante a formação médica.

O presente estudo tem como objetivos determinar algumas características do perfil do estudante, do médico e do professor de medicina, ligados a um hospital universitário, diante da morte e de pacientes terminais, e identificar possíveis mudanças de comportamento ao longo e após a formação médica.

MÉTODO

No período de agosto a novembro de 1993, questionário referente aos temas morte e paciente terminal foi aplicado a estudantes do curso de medicina, médicos residentes e assistentes, e professores do Hospital Universitário de Brasília e da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília. O inquérito continha questões objetivas, em número de 46, para os estudantes da fase pré-clínica do curso (primeiro ao quarto semestre), 79 para os estudantes da fase clínica (quinto ao décimo-segundo semestre), 79 para os médicos e 84 para os professores. Algumas questões ofereciam mais de uma opção como resposta. Não foi solicitada a identificação nominal do respondente, que assinalou apenas dados demográficos, como sexo, idade, naturalidade, o semestre que cursava (para estudantes), o ano de residência médica, especialidade e tempo de profissão (para médicos) e disciplina que ministrava (para professores). Os questionários aplicados aos estudantes da fase clínica e aos médicos continham questões que implicavam em alguma experiência clínica. Ao questionário dos professores foram acrescentadas questões referentes à experiência docente.

Estudo-piloto foi realizado, solicitando-se a indivíduos escolhidos aleatoriamente, de cada população a ser estudada, que fizessem críticas e sugestões sobre a clareza, facilidade de preenchimento e opções de respostas oferecidas no questionário, após o que as devidas correções foram efetuadas.

Devido ao grande volume de informações resultantes, a presente publicação inclui apenas parte das respostas obtidas no inquérito.

A análise estatística foi realizada utilizando-se o método do c2, sendo p<0,05 considerado significante.

RESULTADOS

Foram distribuídos 455 questionários e respondidos 326 (71,6% de índice de devolução), por 81 estudantes da fase pré-clínica (85,3%), 139 da fase clínica (64,6%), 52 médicos (residentes e assistentes) (67,5%) e 54 professores (79,4%).

Dos entrevistados, 195 eram do sexo masculino (60,3%) e 131 do feminino (39,7%). A idade variou de 16 a 66 anos (Mdn 27,3 anos): 16 a 27 anos entre alunos da fase pré-clínica (Mdn 19 anos), 19 a 41 anos entre os da fase clínica (Mdn 21 anos), 23 a 57 anos entre médicos (Mdn 32 anos) e 29 a 66 anos entre professores (Mdn 47,5 anos).

Noventa e oito estudantes do curso de graduação eram naturais do Distrito Federal (44,5%), 23 do Rio de Janeiro (10,4%), 16 de Minas Gerais (7,3%), 15 de São Paulo (6,8%), 13 de Goiás (5,9%), seis do Exterior (2,7%), além de 39 de 12 outros Estados da Federação (17,7%). Dez alunos não informaram sua naturalidade (4,6%). Entre os médicos e professores, 18 eram de Minas Gerais (16,9%), 14 do Rio de Janeiro (13,2%), 11 da Bahia (10,3%), sete do Distrito Federal (6,6%), seis de Goiás (5,6%), quatro do Exterior (3,7%), além de 39 de 12 outros Estados (36,7%). Sete indivíduos desse grupo não informaram sua naturalidade (6,6%).

A distribuição dos estudantes de medicina que responderam ao inquérito, nas fases pré-clínica e clínica do curso, de acordo com o semestre letivo que cursavam, é mostrada na tabela 1.

Entre os médicos residentes, cinco cursavam o primeiro ano de residência (20,8%), 14 o segundo (58,3%) e cinco o terceiro ano (20,8%). A experiência profissional dos médicos assistentes foi, em média, de 14,5 anos (sd ± 8,3 anos), e dos professores, de 21,8 anos (sd ± 8,8 anos).

A distribuição dos médicos assistentes e professores que responderam ao inquérito, por departamentos da Faculdade de Ciências da Saúde, é mostrada na tabela 2.

O interesse pelo assunto morte foi manifestado por 303 respondentes (93%), dos quais 179 (55,5%) experimentaram algum grau de dificuldade para tratar do tema. Essa dificuldade é relatada por 57 alunos da fase pré-clínica (70,4%), 86 da fase clínica (61,8%), 26 médicos (50,9%), 25 professores (46,3%), diferença estatisticamente não significante (p>0,05). Sete médicos (13,5%) e sete professores (13%) permaneceram com muita dificuldade para tratar do assunto. Evitaram o assunto morte quatro alunos da fase pré-clínica (4,9%), três da fase clínica (2,2%), um médico (1,9%) e três professores (5,6%).

Cento e trinta e seis inquiridos têm procurado informações sobre o assunto (41,7%), dos quais 116 têm dificuldade para encontrá-las (85,1%), índice que chega a 96,7% entre os professores. Informações sobre o assunto têm sido obtidas principalmente de fontes leigas (61,1%), como televisão (13,7%), cultos religiosos (12,7%), revistas leigas (11,6%), literatura em geral (10,5%), jornais (8,7%) e outras fontes (3,9%). As fontes especializadas têm sido menos utilizadas (38,9%) (p<0,001), tais como debates e seminários sobre morte (14,3%), livros (13,7%) e periódicos especializados (10,5%). As informações obtidas foram consideradas insatisfatórias, ou pouco satisfatórias, por 83 indivíduos (61,1%), índice que chega a 78,1% entre médicos.

Cento e cinqüenta inquiridos participaram, uma ou duas vezes apenas, de debates sobre morte (46%), e 130 deles já o fizeram várias vezes (40%). Nunca participaram de debates 46 entrevistados (14%): 24 alunos da fase pré-clínica (29,6%), sete da fase clínica (5,1%), cinco médicos (9,3%) e dez professores (18,5%) (p<0,001). Dentre os 280 que já participaram alguma vez de debates sobre o assunto, 212 foram influenciados de forma positiva por eles (75,7%).

Os diversos grupos com os quais foram debatidos os temas morte e paciente terminal são indicados na tabela 3.

Cento e noventa e oito respondentes (60,7%) já vivenciaram a morte de familiar próximo; 135, de um amigo (41,4%); 90, de um desconhecido (27,6%); 84, de familiar distante (25,7%). Com relação à morte de pacientes, esta vivência ocorreu com três alunos da fase pré-clínica (3,7%), 67 da fase clínica (48,2%), 34 médicos (65,3%) e 25 professores (46,2%). Quando o paciente estava sob os cuidados ou responsabilidade direta do entrevistado, essa vivência ocorreu com 21 alunos da fase clínica (15,1%), 49 médicos (94%) e 40 professores (74%). Vinte e sete alunos da fase pré-clínica (33,3%), 12 da fase clínica (8,6%) e um professor (1,8%) nunca vivenciaram a morte de outrem. Todos os 52 médicos já vivenciaram a morte de outrem. Dentre os 24 entrevistados que nunca vivenciaram a morte de outrem, 15 têm receio de que isso venha a ocorrer (61,2%).

Dentre os 302 que tiveram vivências prévias relacionadas à morte, estas ocorreram poucas vezes (uma a três vezes) com 47 alunos da fase pré-clínica (87,1%) e 83 da fase clínica (65,6%). Ocorreram várias vezes (mais de três vezes) com 45 médicos (86,5%) e 41 professores (76,9%) (p< 0,001).

Ainda dentre aqueles que tiveram vivências prévias, para 198 tais experiências relacionaram-se à morte após doença crônica de longa duração (65,5%); para 171, morte após alguns dias ou semanas de doença (56,6%); e para 193, morte súbita (63%) (p>0,05). Para 152 (50,3%), tais experiências influenciaram de forma positiva seu modo de encarar o assunto; para 29, elas influenciaram negativamente (9,6%); e para 29, elas não tiveram qualquer influência (9,6%). Oitenta entrevistados não souberam avaliar (26,4%).

Quando perguntados sobre sua possível reação, ao serem colocados diante de indivíduo portador de doença terminal, 155 entrevistados (47,4%) responderam que teriam receio em tratar do assunto, 32 deles (9,9%) evitariam abordar o assunto e 139 (42,7%) não teriam receio.

Pensam, eventualmente, na própria morte 263 respondentes (80,7%) e, constantemente, 38 deles (11,6%). Nunca pensaram na própria morte 11 alunos na fase pré-clínica (13,8%), dez da fase clínica (7,2%) e quatro médicos (7,4%). Todos os professores já cogitaram de sua própria morte (p<0,05). Dos 301 entrevistados que pensam na própria morte, 157 sentem medo quando o fazem (52,3%).

Quando perguntados se já haviam, de alguma forma, vivenciado a possibilidade concreta de sua própria morte, 227 responderam que não (69,6%), 75 que sim (23%), após acidente, e 24, após doença grave (7,4%). Dentre os 99 que já vivenciaram a possibilidade concreta da própria morte, 59 foram influenciados positivamente pela experiência (59,8%), para 12 a influência foi negativa (11,6%) e 28 não se deixaram influenciar (28,6%) (p<0,01).

Antes de iniciar o curso médico, 136 indivíduos tiveram algum tipo de contato com cadáver (41,8%), 147 não o tiveram por falta de oportunidade (45,1%) e 43, por falta de interesse (13,1%). Dentre os que tiveram contato prévio, tal experiência refletiu-se de forma positiva em 43 deles (31,3%), não influenciou 55 (40,4%), sendo negativa em 12 (9%). Vinte e seis não souberam avaliar (19,3%).

Nos primeiros semestres do curso de medicina, após contato com o cadáver na disciplina de Anatomia, o interesse pelo assunto morte não se alterou para 253 inquiridos (77,7%). Tal interesse aumentou entre 27 alunos da fase pré-clínica (2,9%), entre 29 da fase clínica (21,2%),entre oito médicos (15,1%) e entre quatro professores (7,4%). O interesse diminuiu entre cinco entrevistados (1,5%) (p<0,01).

Após assistirem às primeiras necropsias, na disciplina de Patologia, o interesse pelo assunto morte não se alterou para 170 respondentes (69,5%). O interesse aumentou para 49 alunos da fase clínica (35,6%), para nove médicos (17%) e para oito professores (15,1%), e diminuiu para 12 entrevistados (4,7%) (p<0,001).

A partir da fase clínica do curso de medicina, o contato com o paciente terminal ocorreu com 111 alunos (79,9%), com todos os médicos e com 50 professores (92,6%) (p<0,001). Tal contato influenciou de maneira positiva 142 respondentes (66,8%), negativamente 12 deles (5,4%) e não influenciou 59 deles (27,7%).

Gostaram de responder ao presente inquérito 267 indivíduos (81,9%). O questionário despertou atenção para o assunto morte, de forma positiva, em 247 inquiridos (75,6%), de forma negativa em 27 deles (8,3%) e em 52 não despertou atenção (15,9%). Sentiram-se motivados a buscar maiores informações sobre morte, ou discutir o assunto, 242 indivíduos (74,2%). Seis não gostaram de responder ao questionário (1,8%) e 53 permaneceram indiferentes a ele (16,3%), tendo 16 alegado dificuldades inerentes ao assunto (4,9%), 14 pela extensão do questionário (4,3%), para oito o assunto morte não agrada (2,4%) e, para um entrevistado, o questionário foi mal formulado (0,3%). Vinte alegaram outras razões (6,1%).

DISCUSSÃO

O homem de hoje, por razões históricas e culturais, encara a morte como um problema2-4. A despeito da enorme projeção alcançada pelo assunto em anos recentes, os sentimentos e atitudes dos estudantes de medicina e dos médicos com relação à morte e ao morrer são pouco conhecidos. Compreendê-los melhor poderia resultar não apenas na resolução de determinadas dificuldades inerentes ao tema, como aprimorar a relação médico-paciente terminal. O presente inquérito, além de procurar estabelecer um perfil dos grupos estudados na sua relação com a morte, buscou identificar possíveis dificuldades manifestadas por estudantes, comparando-as com aquelas apresentadas por médicos (residentes e assistentes) e professores de medicina.

Ao mesmo tempo que a grande maioria manifestou interesse pelo assunto morte, relatou também dificuldade para tratar do tema. Essa dificuldade foi maior entre os estudantes, mormente entre aqueles da fase pré-clínica do curso de medicina, quando comparados aos médicos e professores. Kalish e Reynolds5 estimam que 30% a 60% dos médicos aprendem a lidar com pacientes terminais durante a residência médica. A experiência clínica expõe o profissional da área de saúde ao contato com a morte e, possivelmente, diminui a dificuldade de se tratar do assunto, embora, em muitos casos, não a resolva completamente6. O presente inquérito evidenciou que número considerável de médicos e professores permanece com muita dificuldade para tratar do assunto, chegando mesmo a evitá-lo.

Em contraste com o interesse demonstrado, a maioria dos entrevistados não procura informações sobre o assunto e, quando o faz, relata dificuldade para encontrá-las. Além disso, as informações obtidas são consideradas insatisfatórias, provavelmente em função das fontes consultadas, leigas em sua maioria. Aquilo que poderia parecer paradoxal, isto é, interessar-se pelo assunto e não buscar informações sobre ele, pode ser explicado pelo fato de que pensar a morte, considerá-la em profundidade, é algo doloroso para o homem e traz à tona lembranças de perdas antigas, a dor do luto, o sentimento de finitude e o medo de um futuro completamente desconhecido e incerto7.

A participação em debates, conversas ou seminários sobre morte e paciente terminal foi relatada pela maioria, especialmente a partir da fase clínica do curso de medicina, quando se torna mais freqüente o contato com pacientes terminais. Okin8 relata que tal experiência é a principal fonte de aquisição de informações sobre como lidar com tais pacientes. O presente estudo mostrou que número expressivo de alunos da fase pré-clínica e, mais surpreendentemente, de professores, nunca participou de debates ou seminários sobre morte. A ausência de contato com pacientes terminais poderia justificar o desinteresse pelo assunto entre estudantes dessa fase do curso e professores de áreas básicas da medicina.

Entre os alunos, conversas ou debates com amigos e familiares constituíram as formas mais freqüentes de abordar o tema morte, o que sugere a busca de um grupo de identificação, com vivências, atitudes e faixa etária similares. Tal busca é descrita por Barton9, que recomenda discussões entre pequenos grupos de estudantes na mesma fase do curso, permitindo que os participantes exponham seus medos e dúvidas, comuns ao grupo, sem qualquer constrangimento. É de se notar que três quartos dos alunos da fase pré-clínica não discutiram o assunto com seus professores, possivelmente por falta de motivação ou de preparo dos docentes ligados às áreas básicas do curso. A discussão, por parte dos professores, preferencialmente com profissionais da área de saúde, pode sugerir um enfoque mais técnico do tema, sem que se possa afastar, também, a busca de um grupo de identificação.

O presente inquérito revelou que médicos e professores, com freqüência, já vivenciaram a morte de pacientes terminais; entretanto, a maioria deles relatou que nunca discutiu o assunto com tais pacientes, e que teria grande dificuldade para tratar do tema com um indivíduo portador de doença terminal. Klafke1 sugere que essa dificuldade seja decorrente da falta de preparo desses profissionais, além do comportamento apresentado pelos pacientes durante a evolução de uma doença terminal. Howels et al.10 relatam que o contato com pacientes terminais pode diminuir o medo de interagir com tais pacientes, porém persiste a dificuldade para se chegar a uma situação ideal, em que o médico não se deixa envolver pelo paciente, a ponto de já não conseguir atuar como profissional, nem se afasta, não deixando de tratá-lo como pessoa doente. Outros autores sugerem que a educação formal sobre morte e o morrer pode diminuir a dificuldade de tratar do assunto com pacientes terminais9,11-14, porém, no Brasil, poucas escolas de medicina oferecem tal disciplina em seu currículo7. Observou-se, no presente inquérito, que o contato com pacientes terminais intensificou-se com o aumento da experiência clínica e que teve influência positiva na maioria das vezes. O preparo mais adequado para a experiência com o paciente terminal poderia influenciar positivamente na maneira de encarar o assunto e melhorar o relacionamento médico-paciente terminal.

Dentre aqueles que nunca vivenciaram a morte de outrem, na sua maior parte alunos da fase pré-clínica do curso, percentagem elevada tem medo que isso venha a ocorrer. Howells et al.10 relatam, no tocante ao medo da morte, diferenças entre alunos que já possuem experiência clínica e aqueles que ainda não a possuem. Porém, mesmo entre os clinicamente experientes, o medo da morte de outrem remete ao medo da própria morte7, sem que se possa desprezar as marcas culturais da negação da morte que caracterizam o homem ocidental deste século.

Segundo Sontag15, "a boa morte é a repentina, e a melhor de todas é a que ocorre quando estamos inconscientes ou adormecidos". Ariès2 descreve o conceito de "boa morte" como sendo aquela que ocorre de modo rápido, asséptico e indolor. O presente inquérito revelou que, para dois terços dos inquiridos que já vivenciaram a morte de outrem, essa experiência relacionava-se a período mais ou menos prolongado de doença antecedendo à morte. Mesmo assim, para a maioria destes, essas vivências influenciaram positivamente sua maneira de pensar a morte.

A maioria dos entrevistados apenas eventualmente pensa na própria morte, o que pode ser interpretado como uma forma de negação, já que a maioria dos que pensam na própria morte sente medo quando o faz. Kovács16 relata que se o medo da morte estivesse constantemente presente, não se conseguiria realizar nada, e que a grande dádiva da negação é permitir que se viva num mundo de fantasia, onde, aparentemente, existe a ilusão da imortalidade. O presente estudo mostrou que os estudantes da fase pré-clínica pensam menos na própria morte que os da fase clínica, médicos e professores. A diferença de idade poderia explicar tal reação17, porém ela é mínima entre os alunos das fases pré-clínica e clínica, sugerindo que outros fatores, como o contato com os pacientes e com a doença, estejam envolvidos.

No presente inquérito, observou-se que aproximadamente um terço dos respondentes já vivenciou, após acidente ou doença grave, a possibilidade real ou imaginária da própria morte. Apesar de sentimentos como medo, fatalismo, vontade de viver e perda da onipotência estarem envolvidos18, para a maioria deles tal experiência refletiu-se positivamente em sua maneira de encarar o assunto. O medo da morte é universal, e diversas escalas para avaliá-lo têm sido utilizadas numa variedade de profissões, porém existem poucos dados relacionando o medo à preferência ocupacional19,20. Loneto e Templer21 encontraram pouca relação entre medo da morte e escolha da profissão, sem afastar, no entanto, a possibilidade de que a ocupação profissional possa ser, em parte, influenciada pela ansiedade e medo da morte. O contato com cadáver, por meio de visitas de indivíduos leigos a institutos de anatomia e medicina legal, pode ser considerado como uma forma de avaliar esse medo. Zaidhaft7 relata a angústia diante da experiência com o cadáver antes de ingressar no curso médico e as dúvidas decorrentes quanto à escolha da profissão. No presente estudo, observou-se que, mesmo antes de iniciar o curso médico, percentagem expressiva dos inquiridos teve algum tipo de contato com cadáver. Isso pode refletir uma característica inerente ao grupo que irá ingressar no curso médico, porém não há dados que permitam a comparação com outros grupos da população. No presente inquérito, tal experiência não teve qualquer repercussão para a maior parte dos entrevistados.

Kovács16 ressalta que, durante a disciplina de Anatomia, no início do curso médico, a doença e a morte são descaracterizadas, e os futuros médicos entram em contato com a morte despersonalizada, devendo reprimir qualquer sensação de repulsa, nojo ou desespero. Zaidhaft7 relata que durante as necropsias, apesar de os estudantes já terem algum contato com a ideologia e cultura médicas, o impacto é mais intenso do que aquele ocasionado pelo cadáver na Anatomia. Entretanto, o presente inquérito revelou que as experiências na Anatomia e com as necropsias não modificaram o interesse pelo assunto morte para a maioria, chegando mesmo a aumentá-lo, e que apenas uma percentagem muito pequena teve seu interesse diminuído.

O simples fato de responder ao questionário despertou a atenção da maioria dos respondentes, motivando-os a buscar maiores informações sobre o assunto. O problema existencial do homem diante da morte e do morrer não será resolvido facilmente, porém a educação formal a respeito do assunto nas escolas de medicina, desde o início do curso de graduação, bem como a permanente atenção dispensada ao tema por parte dos profissionais, poderia modificar o comportamento do estudante e do médico, tornando-os mais aptos a lidar com a morte e com o paciente terminal.

Obs.: Os questionários aplicados no presente estudo estão à disposição dos interessados, desde que solicitados ao Dr. André Vianna ¾ SQN 206 ¾ Bloco F ¾ apto. 202, CEP 70844-060, Brasília, DF.

SUMMARY

The student, the medical doctor and the teacher of medicine facing death and terminal patients

OBJECTIVE: The aim of this investigation was to study the feelings and attitudes of medical students, medical doctors and teachers of medicine facing death and terminal patients.

METHOD: An inquiry about death and terminal patient was applied to 81 pre-clinical students, 139 clinical students, 52 medical doctors and 54 teachers of the Faculty of Health Sciences.

RESULTS: 303 responders showed interest in this subject (93%); 179 had problems in dealing with it (55%). Only 136 searched for information (41.7%) and 116 have dificulty in finding it (85.1%). Non-especialized sources of information were the most used ones (61.1%). Twenty medical doctors (38%) and 13 teachers (24%) discussed the subject more often with patients, 47 pre-clinical students (58%) did it with friends and 40 with relatives (49.4%); 36 teachers did it with health professionals (66.6%). 263 responders rarely think about their own death (80.7%), and 38 do it constantly (11.6%); 157 are afraid of thinking about their own death (52.2%). Eleven pre-clinical students (13.8%), ten clinical students (7.2%) and 4 medical doctors (7.4%) never thought of their own death. Before entering medical school, 136 responders had some kind of contact with corpses (41.8%). The interest about death did not change, after dealing with corpses in anatomy classes, to 321 responders (98.5%), the same hapening with 236 individuals (96.3%) after necroscopy. During the clinical year 111 students (79.9%) worked with terminal patients.

CONCLUSIONS: The authors suggest that formal education about death and terminal patient in medical schools, starting early in the medical course, as well as permanent attention to the theme by professionals, could modify the attitudes of students and medical doctors toward a better way in dealing with this subject. [Rev Ass Med Brasil 1998; 44(1): 21-7.]

KEY WORDS: Terminal patient. Death. Medical education.

  • 1. Klafke TE. O médico lidando com a morte: aspectos da relaçăo médico-paciente terminal em cancerologia. In Cassorla RMS (ed): Da morte: estudos brasileiros Campinas, Papirus, 1991; 25-49.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jul 2000
  • Data do Fascículo
    Mar 1998
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