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Quem paga a conta do assédio moral no trabalho?

¿Quién paga las cuentas del asedio moral en el trabalho?

Who pays the bill of moral harassment at work?

PENSATA

Quem paga a conta do assédio moral no trabalho?

Who pays the bill of moral harassment at work?

¿Quién paga las cuentas del asedio moral en el trabalho?

Maria Ester de Freitas

FGV-EAESP

INTRODUÇÃO

É raro um tema social conseguir em pouco tempo uma cobertura simultânea nos meios acadêmicos, jornalísticos, organizacionais, sindicais, políticos, médicos e jurídicos. Tal é o caso do fenômeno denominado "assédio moral", cujos primeiros textos publicados no Brasil datam de 2001. Esta terminologia foi usada pela primeira vez no livro francês da psicoterapeuta e especialista em vitimologia Hirigoyen, em 1999, que causou verdadeiro furor público e levou a inúmeros debates em arenas universitárias, sindicais, empresariais, governamentais, médicas, políticas e midiáticas.

Considerando a gravidade do assunto, essa cobertura é, ao mesmo tempo, assustadora e bem-vinda. Assustadora, pela freqüência com que – sabe-se hoje – ele ocorre no mundo, e bem-vinda porque somente a partir da nomeação de um fenômeno o seu estudo é viável e possível de ser analisado comparativamente, ainda que devamos ser vigilantes para não banalizar o assunto e torná-lo mais um tema-moda que morre na irrelevância e na esterilidade prática. A OIT fez um balanço preocupante e adverte que a violência psíquica tem aumentado de forma vertiginosa no ambiente de trabalho em todo o mundo. Aceitar a violência como normal é torná-la ainda mais violenta.

Mas, trata-se de quê, afinal? É importante que a conceituação deste fenômeno comporte elementos que permitam a sua identificação no tempo e no espaço, além de descrever comportamentos exibidos pelas partes envolvidas (agressor e agredido), bem como as conseqüências deles resultantes. O assédio pode ocorrer tanto na esfera privada da família como no meio profissional-organizacional, e é neste último que concentraremos a nossa atenção. Assumimos que o assédio moral é uma conduta abusiva, intencional, freqüente e repetida, que visa a diminuir, humilhar, vexar, constranger, desqualificar e demolir psiquicamente um indivíduo ou grupo, degradando suas condições de trabalho, atingindo a sua dignidade e comprometendo a sua integridade pessoal e profissional.

É evidente que se o assédio ocorre no espaço organizacional – a partir de prerrogativas delegadas pelas organizações, sob condições organizacionais e entre atores organizacionais – estamos tratando de uma questão organizacional e não meramente individual. Assim, buscando contribuir para avançar na análise desse tipo de comportamento, este texto apresenta três idéias-força: (a) assume as organizações como o palco onde essas ações ocorrem, podendo estabelecer formas de estimular, coibir ou eliminar este problema; (b) explicita os prejuízos decorrentes da ocorrência de assédio moral no trabalho, cuja conta é alta e de contabilização complexa; e (c) faz sugestões para prevenir e reduzir a ocorrência de assédio no ambiente de trabalho.

AS ORGANIZAÇÕES COMO PALCOS

Toda organização define, explícita ou implicitamente, determinadas estruturas, padrões de relações e de intimidade entre as pessoas que nela trabalham, bem como o que é considerado importante e valorizado por ela. Constrói ainda as condições e o ambiente em que o trabalho deve ser feito e os níveis de autoridade e de responsabilidade dos envolvidos. Considerar o assédio moral uma questão organizacional implica assumir que algumas organizações deixam de cuidar de determinados aspectos que favorecem a ocorrência desse fenômeno. Porém, pressupomos que ele ocorre não porque os dirigentes queiram que ocorra, mas porque eles não dizem que não querem que ele ocorra. Na vida organizacional fazemos muitas interpretações e leituras da realidade, do que é possível, do que é certo, do que é desejável, do que é necessário. Os limites dessas interpretações são geralmente estipulados ou guiados pelas regras, pelas normas, pelos regulamentos e também pelas nossas consciências; a ausência de limites nos sugere que a fronteira é subjetiva e flexível ou que podemos empurrá-la um pouquinho para lá se isto for conveniente ao nosso objetivo ou ainda que o único julgamento de nossa ação é o resultado prático atingido.

Ademais, sabemos que não existe organização perfeita e que as organizações criam interações múltiplas, algumas mais previsíveis que outras, mais desejáveis que outras. É da natureza das organizações a busca de um comportamento controlado de pessoas e de grupos, e algumas condições internas, próprias da definição e do controle da organização do trabalho, favorecem ou dificultam interações mais saudáveis e produtivas. Acreditamos que o assédio moral ocorre porque ele encontra um terreno fértil e que tende a se cristalizar como uma prática porque os seus autores não encontram maiores resistências organizacionais nem nas regras, nem na autoridade, nem na filosofia, ou seja, uma instância que impeça e puna essas ocorrências perversas.

Analisando as organizações como palcos de interpretações e de ações de indivíduos e grupos, verificamos que algumas condições facilitam a emergência de comportamentos violentos, abusivos e humilhantes. Ambientes em que vigoram uma cultura e um clima organizacionais permissivos tornam o relacionamento entre os indivíduos desrespeitoso e estimulam a complacência e a conivência com o erro, o insulto e o abuso intencionais. Um ambiente em que existe uma competição exacerbada, onde tudo é justificado em nome da guerra para sobreviver, gera um álibi permanente para que exceções sejam transformadas em regras gerais e comportamentos degradantes sejam considerados normais. A supervalorização de hierarquias, em que os chefes são seres intocáveis e inquestionáveis, torna o comportamento decente e democrático uma falha ou uma debilidade em face da tirania dos intocáveis.

Reestruturações feitas sem planejamento em relação às pessoas e cargos afetados, sem transparência e sem critérios claros de avaliação e negociação de demissões, geram rancores, revanches, ressentimentos e lutos. O mesmo pode ser dito em relação aos casos de fusões, aquisições e parcerias em que algumas funções executivas e de coordenação podem ser duplicadas e nas quais não foram negociadas as saídas, as transferências ou as reconversões desses profissionais. Terceirizações podem gerar conflitos entre os funcionários efetivos e os prestadores de serviços, criando um ambiente de primeira e segunda classes para algumas categorias, o que estimula humilhações e exclusões; serviços com alto grau de rotina, como os desenvolvidos em telemarketing e call centers, empobrecem as relações sociais de trabalho e robotizam os indivíduos, que se tornam presas fáceis e objetos de ofensas tanto de chefes quanto de clientes insatisfeitos.

Expatriações feitas de forma descuidada colocam os profissionais em situações de risco pessoal e profissional, que podem ser ilustradas na transformação desses profissionais em alvos de boicotes e represálias caso a unidade que os receba não tenha sido devidamente envolvida na decisão. Igualmente graves são os casos de repatriação de profissionais sem planejamento e sem integrar na carreira a experiência adquirida por eles. Muitas empresas negligenciam os efeitos práticos da inveja e do desdém por parte dos colegas que ficaram na unidade de origem, e não raro perdem em pouco tempo um profissional altamente capacitado em virtude do ambiente desestimulante e hostil.

Na entrada de novos membros na organização é particularmente vulnerável a situação daqueles que são mais qualificados que as gerências dos setores que os recebem, podendo ocorrer revides dos mais antigos por sentirem-se ameaçados por esses jovens entrantes com maiores conhecimentos formais. Essa vulnerabilidade tem sido percebida inclusive em situações de inacreditáveis abusos, como em programas de estágios e de preparação de trainees. Mais que resquícios de uma sociedade e de uma organização autoritárias, alguns desses procedimentos desumanos são considerados como "inerentes" ao mundo competitivo e são legitimados por uma pseudocientificidade de práticas de recursos humanos, respaldadas no sadismo de algumas pessoas em cargos nos altos escalões das organizações, especialmente em grandes empresas. Aqui a complacência é o alimento, e o aplauso, cúmplice. Em alguns casos, a diversão perversa provoca o riso fácil de facínoras organizacionais, que não exibem a menor culpa por destruir a vida de alguém tão indefeso como um estagiário ou um trainee. Um verdadeiro crime contra o futuro perpetrado por organizações em que se cultivam a indiferença, a insensibilidade e o desrespeito ao outro. Nesses casos, a área de RH, mais preocupada com a sua própria sobrevivência e em mostrar serviços aplicando a última moda de pacote prêt-à-porter, se omite e deixa em aberto o caminho para que situações degradantes se repitam e se incorporem à cultura da organização. O setor que deveria ser guardião de alguns princípios básicos da boa convivência organizacional pode ser o primeiro a exibir a dolosa política de avestruz.

QUEM PAGA A CONTA?

O assédio moral tem sido estudado basicamente como uma questão individual, na qual um indivíduo submete o outro e o infelicita, levando-o a desenvolver problemas de saúde ou a perder o emprego. É certo que este é o ponto de partida do evento quando ele já se tornou uma causa médica ou jurídica, ou seja, a doença e o desemprego são resultantes diretas no nível individual. Todavia, acreditamos que as conseqüências nefastas do assédio moral no ambiente de trabalho são ainda mais amplas, mais graves e mais complexas. Advogamos que o assédio moral no trabalho é ao mesmo tempo um fenômeno que diz respeito à esfera individual, organizacional e social, sendo os seus impactos e prejuízos arcados ou imputados em diferentes graus sobrepostos. Vejamos como ele se manifesta em cada esfera.

No âmbito individual, é a vida psicossocial do sujeito que é acometida por esse fenômeno, que tem atingidas a sua personalidade, a sua identidade e a sua auto-estima. Diversos estudos demonstram que o assédio gera desordens na vida psíquica, social, profissional, familiar e afetiva do indivíduo, provocando diversos problemas de saúde, particularmente os de natureza psicossomática, de duração variável, que desestabiliza a sua vida. Essas desordens reduzem a capacidade de concentração do indivíduo, o induzem ao erro e colocam em risco tanto o seu emprego como a sua vida. Pesquisas européias e brasileiras trazem uma conta assustadora de problemas relacionados à depressão, aos pensamentos autodestrutivos e às tentativas de suicídio entre as vítimas desse tipo de violência. Afastamento do trabalho, perda do emprego, sentimento de nulidade e de injustiça, descrença e apatia podem ter efeitos colaterais assinados por alcoolismo e drogas, que geram um circuito fechado e que se auto-alimenta.

No âmbito organizacional, são vários os efeitos nocivos. Podem ser citados: afastamento de pessoal por doenças e acidentes de trabalho, elevação de absenteísmo e turnover com custos de reposição, perda de equipamentos pela desconcentração, queda de produtividade em face do moral do grupo e da qualidade do clima de trabalho, custos judiciais quando das indenizações, reforço ao comportamento negativo dos indivíduos perante a impunidade. Além disso, há os custos de imagem tanto para os clientes internos quanto externos expostos pela mídia, desmotivação por contágio e enfraquecimento da adesão ao projeto organizacional, redução da atratividade de talentos no mercado em virtude da exposição negativa do nome da organização e eventual redução do valor da marca.

O âmbito social tem sido completamente ignorado, porém existem preços pagos por todos numa sociedade quando indivíduos são massacrados pela prática de assédio, prática esta que atinge a todos nós. Basta que se atentem para eventos como acidentes de trabalho e a incapacitação precoce de profissionais, o aumento de despesas médicas e benefícios previdenciários (licenças, hospitalizações, remédios subsidiados, longos tratamentos médicos), a elevação do nível de suicídios na sociedade, as aposentadorias precoces, a desestruturação familiar e social das vítimas, a perda do investimento social feito em educação e formação profissional, o custo do potencial produtivo desse profissional afastado por invalidez ou redução do seu potencial empregatício. Cada vez que um profissional capaz é tornado incapaz, todos os indivíduos dessa sociedade pagam a conta. Às questões de natureza médica e trabalhista juntam-se outras relacionadas aos custos dos processos judiciais e à sobrecarga do nosso já combalido sistema judiciário, com causas que poderiam ter sido evitadas ou ser solucionadas na esfera organizacional. Podemos também pensar que existe um custo econômico dessas ações que será repassado aos preços e que será cobrado de forma indiscriminada aos consumidores dessa organização, visto que as empresas não têm o hábito de sacrificar margens de lucro para acomodar custos jurídicos ou financeiros.

É POSSÍVEL PREVENIR OU ELIMINAR A OCORRÊNCIA DE ASSÉDIO?

A nossa resposta é sim. No entanto, são necessárias a coragem e a vontade política das chefias (inclusive no primeiro escalão) em reconhecer a possibilidade de ocorrência, ou seja, admitir que essas coisas podem acontecer não apenas com os vizinhos e concorrentes. Reconhecida a possibilidade, a organização deve mostrar disposição em apurar, coibir, punir os responsáveis sem exceções, o que implica criar instrumentos de controle e assumir explicitamente que não existem pessoas intocáveis quando se trata de melhorar o comportamento organizacional e as condições do ambiente de trabalho.

Ora, quando uma organização enuncia em alto e bom-tom a sua posição sobre este tema e age com coerência, mostra que as pessoas podem confiar que serão tratadas igualitariamente, como seres humanos que merecem respeito, independentemente do cargo que ocupem. As palavras devem ser seguidas de instrumentos confiáveis criados para a denúncia e a apuração dos fatos. É ainda necessário que as pessoas envolvidas para zelar por essa atividade sejam consideradas legítimas e imparciais aos olhos dos membros da organização. De pouco vale um sistema que apure práticas de assédio e depois as deixe sem respostas exemplares ou que esses mecanismos sejam operados por pessoas que não desfrutam de credibilidade junto aos indivíduos e grupos da organização. Nesse, como em outros casos do comportamento organizacional, a experiência passada valida a seriedade e explicita a justiça com que as questões delicadas costumam ser tratadas.

Não queremos dizer que estas medidas sejam fáceis de serem implantadas e também não queremos dizer que elas possam ser executadas sem causar problemas a alguns membros da organização que se consideram acima da mortalidade banal de todos os demais. Pelo contrário, acreditamos que é difícil. Concedemos até que é muito difícil tomar um outro caminho quando já se consolidaram a impunidade e o descaso. Mas acreditamos também que as organizações, zelando pelos seus legítimos interesses, podem construir ou reconstruir uma mentalidade organizacional em que se tenha claro que todos perdem quando ocorrem assédios. É importante conscientizar a todos sobre o fato de que o assédio moral é algo devastador na vida de alguém, que diz respeito a todos nós e que os algozes dos raptos psíquicos nas organizações devem e podem ser punidos sem complacência. Ao fecharmos os olhos a esta questão endossamos um comportamento que fere o mais sagrado de todos os nossos direitos: o de ser tratado como um ser humano. Este argumento deveria ser o bastante, mas o assédio moral é tanto uma questão moral como econômica e social. É um crime, e como tal deve ser prevenido e evitado.

Artigo convidado. Aprovado em 30.01.2007

Maria Ester de Freitas

Professora da FGV-EAESP. Doutora em Administração de Empresas pela FGV-EAESP e pós-doutorado em Administração Intercultural pela HEC-França.

Interesses de pesquisa nas áreas de teoria e análise das organizações, cultura e imaginário organizacional, recursos humanos e administração intercultural.

E-mail: ester.freitas@fgvsp.br

Endereço: Av. 9 de Julho, 2.029, Bela Vista, São Paulo – SP, 01313-902.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2007
  • Data do Fascículo
    Jun 2007
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