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O sistema político brasileiro

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Amélia Cohn

O sistema político brasileiro

Por Celso Lafer, São Paulo, Editora Perspectiva, 1975. 130 p.

Todo o encaminhamento do livro é dirigido para a problemática central que o rege: a caracterização e definição de perspectivas do Governo Geisel, tendo como referência o sistema político brasileiro pós-64. Para tanto, o autor desenvolve, na primeira parte, todo um quadro teórico sobre política, sociedade e direito, e na segunda, com base nesse instrumental, análise de diversos modelos políticos brasileiros, particularmente no período pós-64. Nesse sentido, a relevância do trabalho está em ter o autor retido e analisado o problema central do atual modelo brasileiro: a tentativa de se conquistar um novo padrão de legitimação, via liberalização, e combiná-lo com seus elementos-bases - segurança e desenvolvimento - numa conjuntura econômica não-favorável. A contribuição está, portanto, no diagnóstico da "situação dilemática" em que se encontra o Governo Geisel, e nas tentativas de superá-la.

Para tratar de tema tão presente e complexo, Celso Lafer desenvolve seu quadro teórico partindo do problema do papel da política na sociedade, pondo em relevo, de um lado, a importância da construção do consenso, tanto para a legitimidade quanto para a eficiência dos mecanismos decisórios do Estado, e de outro, preocupando-se mais com a ciência política "como o estudo dos processos decisórios do Estado" (p. 32). São analisadas, então, as diversas dualidades de significado da palavra política: a política-realidade e a política-conhecimento; e a política programa de ação (policy) e a política dominação (campo de oposição dos diferentes programas de ação). Claro que, subjacentes a elas, estão os problemas da legalidade e da legitimidade dentro da perspectiva do exame das relações de força e autoridade, e da definição de poder como uma combinação dessas relações que, por sua vez, provém de um agir conjunto.

Finalmente, tanto o problema da policy, envolvendo risco e conjuntura, quanto o da exigência de eficácia são vistos dentro da contribuição da teoria dos sistemas. E é ainda dentro desta perspectiva que o autor desenvolve o tema da criatividade e eficácia no processo de tomada de decisões, destacando o processo de percepção do que chamou de "situações dilemáticas" e o problema do valor na escolha entre múltiplas alternativas heterogêneas. Diante deste quadro, analisa o papei dos indicadores econômicos no subsistema político, afirmando que "os indicadores econômicos são, sem dúvida nenhuma, importantes e indispensáveis, mas dada a especificidade do fenômeno político, o feedback por ele fornecido é insuficiente. Daí a importância de voice, isto é, dos mecanismos de articulação política" (p. 50). E são exatamente os mecanismos de articulação política que estão sendo discutidos quando se estuda o problema da distensão e institucionalização no Brasil, fato relevante, na medida em que o Estado necessita de novos mecanismos de percepção de "situações dilemáticas" que, por sua vez, requerem novos programas de ação e maior capacidade de articulação de respostas do próprio aparelho estatal. Na verdade, portanto, o que está por trás de toda a discussão é o problema da capacidade de racionalização e criatividade do aparelho estatal no período pós-64.

Celso Lafer inicia a segunda parte do livro com a apresentação de um modelo esquemático da República Populista, para depois tratar de suas transformações no atual modelo político brasileiro. E mostra como, a partir de 1964, temos a preponderância do Estado sobre a sociedade civil, onde a "linha de ação traçada pelo Governo, de 1964 a 1973, no seu modelo econômico, e que se apoiava num acréscimo da capacidade de regulamentar do Estado e numa expansão de seus investimentos, era e é uma hipótese que requeria - e requer - para sua efetivação no tempo, eficiência administrativa da máquina governamental" (p. 78). Mais do que isso, mostra como o modelo político pós-64, devido às características do pacto de dominação e da coligação de forças que o sustenta, pela desvalorização da moeda da popularidade eleitoral, e por aquilo tudo que isso implica, em termos de concentração de poder, foi capaz de ampliar os limites do próprio pacto, "diminuindo o atendimento de demandas que a República Populista não podia ignorar" (p. 80). Daí a ocorrência de processos de racionalização da arrecadação de recursos, da reforma tributária, administrativa etc.

Acompanhada historicamente a montagem do novo aparelho estatal, o autor procura detectar então os loci de poder e de controle e absorção de incertezas vitais no aparelho estatal, mostrando como, por exemplo, na gestão do Ministro Delfim Netto, o Conselho Monetário Nacional se converteu num órgão de coordenação de toda a política econômica do Governo. Afirma Lafer: "O sistema político brasileiro pós-64 tem misturado, deliberadamente, título com qualidade do exercício do poder, no seu processo de busca de legitimação, e é por isso que, paradoxalmente, insiste tanto na formulação da legalidade para justificar a sua legitimidade. A conclusão a que se pode chegar, destas formulações preliminares, é que a fundamentação positiva da legitimidade do sistema se calca na qualidade do exercício do poder, isto é, na sua atuação sobretudo na área econômica. Numa primeira etapa, pela racionalidade das decisões; numa segunda, pelos resultados em termos de desenvolvimento" (p. 75).

Chegando aos dias de hoje, Celso Lafer se propõe analisar a questão de até que ponto o Governo Geisel representa uma mudança ou uma continuidade em relação ao sistema político brasileiro pós-64, passando, então, a estudar as metas do máximo desenvolvimento possível e da mínima segurança indispensável, e as possibilidades e limites de uma liberalização coincidente com certos efeitos de diminuição da atividade econômica. E volta ao problema da legitimidade, para concluir que, "de fato, a liberalização acionada pelo Governo Geisel eliminou o monopólio por parte da máquina do Estado, da geração e discussão dos programas de ação. Entretanto, na medida em que não abriu mão dos instrumentos de exceção, continua a reter não só, como qualquer governo, o monopólio da conversão das preferências individuais em decisões públicas, mas também os termos de referência de sua própria legitimidade, que não se vêm legalmente balizados por regras definidas a priori e submetidas à aprovação dos governados. Em outras palavras, enquanto no sistema político brasileiro pós-64 circular, com predominância estrutural, e moeda da coerção organizada (poder militar), calcada na auto-referibilidade de sua legitimidade, não haverá democratização" (p. 127).

Apesar de inegável a contribuição de Celso Lafer para o entendimento do Brasil atual, cabe ressaltar que todo seu esquema teórico dá conta, muito mais, da política enquanto mecanismos formais e jurídicos do processo de tomada de decisões (modelo este que vem desenvolvendo desde seu trabalho The planning process and the political system on Brazil: a study of Kubitschek's target plan 1956-1961) não cobrindo, portanto, os aspectos propriamente estruturais da formação social brasileira, e do subsistema político, como um reflexo do padrão de organização estrutural dessa formação social. Em outros termos, não encontramos aí, e nem o autor se propõe fazê-lo, o estudo dos mecanismos que possibilitaram a preponderância do Estado sobre a sociedade civil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    Jun 1976
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