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Esquecer Foucault

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

Afrânio Mendes Catani

Professor na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP-SP)

Baudrillard, Jean, Esquecer Foucault, Trad, Cláudio Mesquita e Herbert Daniel, Rio de Janeiro, Rocco,1984. 99 p.

Aos poucos, os livros mais interessantes de Jean Baudrillard vão chegando ao Brasil, através de excelentes traduções, Já foram editados aqui O sistema dos objetos (tese de doutoramento, que teve Roland Barthes como orientador, publicado em 1966), Partidos comunistas - paraísos artificiais da política, À sombra das maiorias silenciosas, o fim do social e o surgimento das massas e América (uma espécie de "caderno de viagem", reunindo suas cáusticas observações a respeito dos EUA). Além disso, estão editados em Portugal dois outros de seus livros fundamentais: A sociedade de consumo e Para uma crítica da economia politica do signo. Infelizmente, seu L'échange symbolique et la mort (Gallimard, 19761 continua inédito em língua português, Nascido em Reims (França) em 1929, atualmente Baudrillard é professor de sociologia na Universidade de Nanterre (Paris) e um dos diretores da revista Traverses.

Esquecer Foucault (Oubller Foucault, Éditions Galilée, 1977), lançado no Brasil há quase três anos, quando o autor veio dar um curso na Universidade Federal do Rio de Janeiro, aparentemente passou em brancas nuvens, pois é pouquíssimo citado, quer nos trabalhos dos que pesquisam na mesma perspectiva metodológica de Michel Foucault, quer nos textos daqueles que criticam a obra do pensador francês, falecido recentemente. É pena, pois Baudrillard, através de Mareei Mauss, Bataille e outros, realiza profunda reflexão sobre o pensamento de Foucault,chegando mesmo, em vários momentos, a complementar os caminhos esboçados por Marx e Freud - Baudrillard, não nos esqueçamos, foi o tradutor de Contribuição à crítica da economia política, de Marx, para o francês.

Impresso em letras enormes e cem uma excelente Apresentação do Prof, Muniz Sodré, Esquecer Foucault tem uma pequena história de bastidor, revelada por Muniz. Segundo ela, Baudritlard (amigo de Foucault) escreveu um artigo de crítica è sua obra, entregando o trabalho ao criticado e propondo que Foucault escrevesse uma réplica. Assim, ambos publicaríamos artigos no mesmo número de determinada revista. Foucault gostou da idéia e disse que tudo bem. Entretanto, o tempo foi passando e ele mantendo-se em silêncio. Baudrillard telefonou ao amigo e ouviu a seguinte resposta: "Decidi não escrever coisa nenhuma, pode publicar sozinho o seu texto." Quando Baudrillard remeteu o artigo à revista, conforme combinado com o editor, este, constrangido lhe deu a seguinte explicação: Foucault, "intelectual de grande Influência na editora, havia brandido o sinete do non imprimatur," Baudrillard reagiu, publicando Esquecer Foucault em forma de livro numa outra editora (p. 5-6; grifos do original).

Baudrillard afirma que o próprio movimento do texto de Foucault "traduz admiravelmente aquilo a que se propõe: esta espiral generativa do poder, que não é mais uma arquitetura despótica, mas um encadeamento em abismo, uma voluta e uma estrofe sem origem (nem catástrofe), de extensão cada vez mais vasta e rigorosa; por outro lado, esta fluidez intersticial do poder que impregna todo o sistema poroso do social, do mental e dos corpos, esta modulação infinitesimal das tecnologias do poder (onde relações de força e sedução estão indissoluvelmente misturadas) - tudo isso se lê diretamente no discurso de Foucault (que É também um discurso de poder): ele escorre, penetra e satura todo o espaço que abre, os menores qualificativos vão-se imiscuir nos menores Interstícios do sentido, as proposições e os capítulos se enrolam em espiral, uma arte magistral do descentramento permite que se abram novos espaços (espaços de poder, espaços de discurso) que são imediatamente obturados pelo desenvolvimento minucioso da sua escrita. Mão há vazios em Foucault, nem fantasmas, nem contracorrentes: uma objetividade fluente, numa escrita não-linear, orbital, sem falhas, O sentido não excede nunca o que é dito: nada de vertigens; em compensação não voa nunca num texto demasiado grande para ele: nada de retórica. Enfim, o discurso de Foucault é um espelho dos poderes que ele descreve" (p. 11-3; grifos do original),

Interpretando Baudrillard, Muniz Sodré afirma que ele "desconfia dos cartesianismos disfarçados, dos excessos lógico-racionalistas." E acrescenta: "caminha nesse sentido a sua crítica a Foucault, que talvez possa ser resumida assim: é lógico demais para ser verdadeiro. Ou então: enxergar tanto o poder não seria cegar-se numa relação sedutora com o próprio?" (p. 10).

A causticidade de Baudrillard prossegue ao analisar o poder (ou seja, ao analisar uma das questões centrais da obra de Foucault), pois afirma que quando se fala demais do poder "é porque ele não está em parte alguma'. Estendendo seu raciocínio, fala da onipresença de Deus: "a fase onde ele estava em toda parte precedeu de perto a da sua morte. Sem dúvida nenhuma a morte de Deus precedeu a fase em que ele estava em toda parte. Idem com o poder; é porque ele é defunto, fantasma, fantoche (...) do qual se fala tanto e tão bem: mesmo o refinamento e microscopia da análise são um efeito de nostalgia". (92-3). Para Baudrillard, o próprio poder nem sempre se deixa levar pelo poder, "e o segredo dos grandes políticos foi saber que o poder não existe, Que ele é apenas um espaço perspectivo de simulação, como o foi o espaço pictórico da Renascença, e que se o poder seduz, é justamente (...) porque é simulacro, porque se metamorfoseia em signos, se Inventa baseado em signos (...). O segredo da inexistência do poder, segredo dos grandes políticos, é também o dos grandes banqueiros, de saber que o dinheiro não é nada, que o dinheiro não existe, o dos grandes teologistas e inquisidores, de saber que Deus não existe, que está morro. Isto lhes dá uma superioridade fabulosa. Quando o poder descobre esse segredo e se lança esse próprio desafio, então se torna verdadeiramente soberano. Quando desiste de fazê-lo e procura encontrar-se uma verdade, uma substância, uma representação (na vontade do povo, etc.), perde então a soberania, e são os outros que lhe devolvem o desafio da sua própria morte, até que eie pereça efetivamente dessa presunção, desse imaginário, dessa superstição de si próprio como substância, desse desconhecimento de si mesmo como vazio, como reversível da morte. Antigamente matavam-se os chefes, assim que eles perdiam esse segredo", (p. 90-2).

Em vários momentos de Esquecer Foucault o leitor provavelmente se sentirá perdido, pois Baudrillard, além de escrever num estilo não dos mais diretos, se vale de categorias psicanalíticas e, também, de idéias centrais de Marx, Freud e de vários filósofos, realizando um verdadeiro trabalho interdisciplinar. Apesar das dificuldades de uma série de discordâncias que se podem experimentar ao longo das páginas deste livro, não se pode deixar de constatar a genialidade e erudição de Baudrillard, bem como reconhecer que Foucault se deparou, no caso, com um de seus críticos mais severos e argutos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Jun 1988
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