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O empresário industrial e a revolução brasileira

ARTIGOS

O empresário industrial e a revolução brasileira

Luiz Carlos Bresser Pereira

Professor-Adjunto da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, Departamento de Administração Geral & Relações Industriais

"A preocupação de trabalho, que domina (os industriais), não nos torna egoístas; ao contrário, aumenta nossa capacidade de compreensão dos problemas nacionais, alonga as antenas da nossa sensibilidade, para tudo quanto diz respeito a política geral do País e à posição que vamos conquistando no concerto das nações."

ROBERTO SIMONSEN, 1943

"Emprêsa já não é mais sinônimo de fábrica ou de loja de comércio; empresa é hoje todo um sistema sócio-econômico integrado, com planos de produção, estratégia mercadológica, diretrizes administrativas globais, intrincados controles financeiros e até mesmo uma bem organizada e ativa plataforma política."

RAPHAEL DE SOUSA NOSCHESE, 1963

As últimas três ou quatro décadas poderão ser consideradas no futuro como a época em que ocorreu a Revolução Brasileira O País passou nesse período por uma revolução sem sangue, por uma profunda transformação de sua estrutura econômica, de seu sistema social. Industrializou-se, suas classes sociais diversificaram-se, sua cultura tornou-se mais nacional, sua estrutura política modificou-se, novas ideologias surgiram como expressão de grupos sociais em formação, e também para refletir as transformações por que passava o cenário político internacional.

Durante essas três décadas o desenvolvimento econômico e social brasileiro foi acelerado. Três grupos sócio-econômicos de secundária importância no Brasil do Império e da Primeira República surgiram: os empresários industriais, a nova classe média ligada à indústria e ao comércio interno, e os operários urbanos. Tomou-se consciência do caráter semicolonial e semifeudal de sua sociedade, e, sob a liderança dos novos grupos sociais, ganhou impulso o processo de transformação dêsse estado de coisas. O centro de decisões sôbre os problemas nacionais passou do exterior para o País. Nossa dependência dos grandes países industriais diminuiu consideravelmente. O sistema de latifúndios passou a ceder paulatinamente às pressões do processo industrial e da extensão à agricultura de métodos capitalistas de produção. A população brasileira deixava aos poucos de ser simples massa, para transformar-se em povo que participa das decisões políticas da vida nacional. O Brasil, no decurso de trinta anos, deixava de ser um país semifeudal, para transformar-se em capitalista, abandonava seu estado semicolonial para configurar-se como uma Nação.

Êsse processo, a Revolução Brasileira, está longe de ser concluído. O Brasil ainda se encontra em uma fase de transição. Seus rumos e estrutura ainda não foram perfeitamente definidos. E é dentro dêsse contexto que nós nos perguntamos: qual foi o papel dos empresários brasileiros dentro dessa Revolução? O que realizou? Que partidos tomou? Que bandeiras levantou? E quais as perspectivas políticas que o momento presente oferece? São estas perguntas que tentaremos responder sumariamente nas páginas que se seguem.(1 1 ) Êste é um artigo de análise política global. Dada a amplitude, inclusive -no tempo, dos temas que trata, não se baseia em pesquisa formal, mas na observação cotidiana da realidade brasileira, no contacto com pessoas, na leitura de jornais e outros meios de divulgação. Demos especial atenção aos discursos, manifestos e outras declarações públicas realizadas por empresários, seja individual, seja organizados em associações de classe. De qualquer forma, as afirmações feitas neste artigo têm o caráter de hipóteses exploratórias. Por sua própria natureza, prestam-se a controvérsias. )

O EMPRESÁRIO E A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL

O principal aspecto dêste fenômeno que estamos chamando de Revolução Brasileira, desta grande transformação econômica, política e social por que passou o País nos últimos trinta anos, foi a Revolução Industrial. Quase duzentos anos após a Grã-Bretanha, cêrca de cem anos atrasados em relação aos Estados Unidos e a França, nós realf zamos a nossa Revolução Industrial. E, sem dúvida, foi essa transformação econômica radical por que passou o Sul do País e principalmente São Paulo, foi essa passagem de uma fase agrícola para uma fase industrial já consideràvelmente desenvolvida, o elemento dinâmico por excelência dêsse processo global de transformação a que nos estamos referindo.

O papel que coube aos empresários brasileiros, dentro da industrialização do País, foi indiscutivelmente o de liderança. Uma série de fatores favoráveis, surgidos mais ou menos por obra do acaso, abriram no País, especialmente a partir de 1930, oportunidades para investimentos lucrativos na indústria. Essas oportunidades se consubstanciavam, em têrmos sumários, na existência, dentro de nossas fronteiras, de um mínimo de capital disponível, de um princípio de mercado interno, de uma impossibilidade efetiva de importar os produtos industriais de consumo que o mercado exigia, a qual era devida, inicialmente, à depressão mundial dos anos 30, e logo após, à Segunda Guerra Mundial. E essas oportunidades não foram perdidas. O Brasil dispunha naquele momento de um grupo de homens, que uniam um mínimo de habilitação técnica para acelerar um processo industrial, a um enorme desejo de ascensão e afirmação social. Êstes homens transformaram-se rápidamente em empresários no sentido Schumpeteriano do têrmo, em inovadores que recombinavam os fatores de produção e lideravam o processo de acumulação de capital, promovendo assim o aumento da produtividade e conseqüente desenvolvimento econômico. (2 2 ) Para uma análise do conceito de empresário e de suas relações com o desenvolvimento econômico e com o Estado vide: Luiz Carlos Bresser Pereira, "Desenvolvimento Econômico e o Empresário", em REVISTA DE ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS, vol. II, n.º4, maio/agôsto de 1962, págs. 79 e seguintes. )

Essa classe de empresários capitalistas que assim surgia no País contou inicialmente com pouco auxílio por parte do Govêrno. Êste passara por profunda transformação por ocasião da Revolução de 1930, e era constituído principalmente por elementos oriundos de grupos sociais e econômicos novos, que se opunham ao domínio secular do País pela velha aristocracia rural de cafeicultores e senhores-de-engenho. Êsse Govêrno, embora marcado pelo compromisso, pelas concessões parciais aos grupos de pressão em choque, era constituído, em grande parte, de homens da classe média, que ou viam com bons olhos, ou então participavam diretamente do processo de industrialização. Entretanto, êsse Govêrno não estava técnicamente preparado para auxiliar efetivamente a indústria. Pouco mais pôde fazer, além de não criar obstáculos ao crescimento industrial, além de não dar ouvidos à velha aristocracia, que se via ameaçada em sua posição de liderança na sociedade brasileira face à ascensão de um grupo de empresários industriais.

As condições econômicas gerais, entretanto, eram favoráveis à industrialização, e esta se realizou, em uma primeira fase, mesmo sem um apoio mais direto do Govêrno. Após a Segunda Guerra Mundial, porém, a nascente indústria nacional se viu ameaçada pela importação, a baixo preço, dos mesmos artigos produzidos internamente. É nesse momento, especialmente a partir de 1948, que o Govêrno Federal, então técnicamente melhor aparelhado, e sob pressão das novas forças, passa a desenvolver uma política cada vez mais coerente e deliberada de apoio à indústria, através de sua proteção contra as importações de similares do exterior e da transferência de renda do setor cafeeiro (através principalmente do confisco cambial) para o setor industrial.

Foi, portanto, só em um segundo momento do processo industrial brasileiro em uma fase antes de consolidação do que de surgimento do grupo empresarial, que o Governo surge de forma efetiva. O aparecimento dos empresários nacionais ocorreu mais por obra do acaso, daquela conjugação de fatores favoráveis acima referida, do que da deliberação e do cálculo, mais devido à iniciativa, ao pioneirismo e ao desejo de maiores lucros de alguns homens com espírito empresarial, do que ao planejamento.

O EMPRESÁRIO E A REVOLUÇÃO IDEOLÓGICA

Um segundo aspecto de grande importância da Revolução Brasileira, e que nos interessa particularmente neste artigo, foi a Revolução Ideológica. O estabelecimento das bases industriais da economia brasileira foi acompanhado de modificações, às vêzes radicais, no modo de pensar, nos valores e crenças da sociedade brasileira. Se compararmos o Brasil de hoje com o de há trinta ou quarenta anos atrás, sob o ponto de vista das idéias políticas mais em evidência, verificaremos que as diferenças são enormes. Durante êsse período, um grande número de idéias novas surgiu, para se chocar com as idéias tradicionais. E o País foi então o cenário de uma série de lutas ideológicas, que refletiam os interêsses dos grupos em choque. Foram lutas sem derramamento de sangue, batalhas de palavras, travadas nos parlamentos, na imprensa, na praça pública, em reuniões sociais; mas foram sem dúvida choque cujo resultado era de vital importância para o desenvolvimento econômico e social do País.

Entre essas lutas ideológicas salientamos quatro: o industrialismo versus o agriculturalismo, o desenvolvimentismo intervencionista versus o liberalismo, o nacionalismo versus o cosmopolitismo (3 3 ) A expressão "cosmopolitismo" é usada por Hélio Jaguaribe, "Desenvolvimento Econômico e Político", Fundo de Cultura, Rio de Janeiro, 1962. Preferimos essa expressão à mais comumente usada "entreguismo", por ter caráter menos valorativo e faccioso. ), e o reformismo versus o conservadorismo. Em tôdas elas era o velho que se chocava com o nôvo, o Brasil jovem e dinâmico do Século XX que se via em confronto com seu passado semicolonial e semifeudal. Em todas essas lutas, o papel dos empresários nacionais, como grupo nôvo que era, foi sempre da maior relevância. Raramente êles eram os mais extremados na defesa das idéias novas, mas se punham claramente a favor das mesmas.

Industrialismo versus agriculturalismo foi provàvelmente a mais importante das lutas ideológicas, e sem dúvida aquela em que os empresários intervieram mais diretamente. Durante séculos havia-se desenvolvido no Brasil a idéia de que éramos "um País essencialmente agrícola". Nossos recursos naturais e nossa população adaptavam-se melhor ao trabalho agrícola do que ao industrial. Nunca seríamos capazes de produzir bens manufaturados tão eficientemente quanto o café. Seria portanto um êrro promover o desenvolvimento industrial. Assim se pronunciava o agriculturalismo, que tinha por maiores interessados os senhores de terra brasileiros, os importadores nacionais, e os exportadores estrangeiros de produtos manufaturados. A sacramentação da teoria era dada pela lei de Economia Internacional das vantagens comparativas. Não cabe aqui nos estendermos na discussão do problema. Basta dizer que foi uma grande batalha ideológica, que teve entre seus pioneiros o industrial Roberto Simonsen. A vitória do industrialismo, da crença nas possibilidades econômicas da indústria nacional, era essencial para o desenvolvimento do País. E a disposição de luta dos empresários brasileiros foi fundamental para que essa vitória fôsse alcançada.

O choque do desenvolvimentismo intervencionista contra o liberalismo econômico acha-se intimamente relacionado à luta anterior. Foi a partir do fim da Segunda Guerra Mundial que começou a ficar claro - não apenas aos grupos de extrema esquerda, que apoiavam a imediata socialização do País, mas a todos aquêles para os quais o desenvolvimento econômico se tornava um objetivo fundamental - que o liberalismo econômico estava superado, era um fenômeno que se justificara no Século XIX, e que uma maior participação do Estado se impunha como condição de um maior desenvolvimento. Um determinado grau de intervenção do Estado na economia, plane jando-a e realizando investimentos em setores básicos como os serviços públicos, a indústria do aço, do petróleo, na verdade não criava embaraços ao desenvolvimento capitalista, mas era condição para que êste se efetivasse. A industrialização, a superação da fase agrícola e semifeudal em que nos encontrávamos, o crescimento rápido e contínuo de nossa economia não seria possível se emprêsas e Estado não se aliassem na realização de uma obra comum, se ao último não fôsse confiado um papel maior do que vinha tendo na promoção do desenvolvimento nacional.

Entre os grupos que compreenderam êste fato situa-se, , indiscutivelmente, a maioria dos empresários brasileiros. Viram êles com lucidez que a sorte de suas emprêsas e o futuro da industrialização brasileira estariam em sério perigo se não contasse com o amparo do Govêrno. Teorias abstratas a respeito dos perigos que a intervenção governamental representava para o sistema da livre iniciativa não os impressionaram. Mantinham, é claro, um posição cautelosa, moderando o grau de intervenção do Estado. Mas isso não os impedia de não só apoiar mas inclusive promover tal intervenção, seja para que o Estado investisse no setor da energia elétrica, por exemplo, seja para que realizasse uma política cambial, tarifária e creditícia de acordo com os interêsses da indústria.

A luta do nacionalismo versus o cosmopolitismo está também ligada às anteriores. A Revolução Industrial brasileira e o surgimento de uma classe empresarial abriu para o País a perspectiva de sua afirmação como Nação, como país autônomo, independente. Nossa independência política, em 1822, só nos levara a passar do estágio colonial para o semicolonial. A economia brasileira continuava na dependência estrita das decisões tomadas no exterior. O desenvolvimento econômico não tinha qualquer caráter autônomo: era função dos impulsos positivos ou negativos originados fora do País. Continuávamos exportadores de produtos primários e importadores de produtos manufaturados. E os ganhos em produtividade verificados na produção de manufaturas não importavam em preço muito menores para nós, já que eram transformados em maiores salários e maiores lucros, respectivamente para os operários e capitalistas estrangeiros. A lei das vantagens comparativas deixava de operar, mas continuava a nos ser imposta como artigo de fé. A aliança do capitalismo internacional ao latifundiarismo local subjugava o País, impedindo seu desenvolvimento. E não percebíamos isto porque nossa própria cultura era alienada e inautêntica, transplantada que era do exterior.

Foi a partir dos anos 50 que êste problema começou a ser cada vez melhor compreendido pelos novos grupos sócio-econômicos que então surgiam, pela nova classe média ligada à indústria e ao comércio interno, pelos operários e pelos empresários industriais. A luta pela proteção à indústria nacional contra a concorrência estrangeira, pelo controle dos investimentos estrangeiros realizados no País, pelo monopólio estatal do petróleo e das areias monazíticas, pela encampação dos serviços públicos controlados por capitais estrangeiros, pela execução de uma política internacional independente fazem parte da ideologia nacionalista. Infelizmente, o nacionalismo foi também adotado como bandeira por grupos extremados, inclusive os comunistas, de tal forma que seu sentido altamente positivo para a realização da Revolução Brasileira foi, às vêzes, deturpado, e tornou-se alvo fácil de ataques indiscriminados de seus opositores partidários do cosmopolitismo.

A posição dos empresários em relação a esta luta ideológica foi contraditória. Apoiavam o nacionalismo quase que totalmente quando se tratava de proteger a indústria nacional, mas dividiam-se em relação aos demais problemas. Viam no nacionalismo a ideologia que mais se adaptava às condições do País, mas preferiam não adotar todas as suas teses, ou porque algumas eram realmente extremadas e perigosas para o regime capitalista, ou porque, embora sem os prejudicar, nem tôdas estavam mais diretamente ligadas a seus interêsses.

A última luta ideológica a que nos referimos é a do reformismo versus o conservadorismo. Em um sentido geral, o reformismo engloba tôdas as ideologias ascendentes - o industrialismo, o desenvolvimentismo e o nacionalismo - que acabamos de discutir. Em uma acepção mais específica, traduz-se na luta por reformas sociais. No primeiro perícdo da Revolução Brasileira deu-se mais ênfase ao aspecto trabalhista das reformas sociais. Ültimamente, a atenção dos reformistas tem sido voltada para problemas de caráter mais estrutural, como a reforma agrária, ou que digam respeito diretamente ao desenvolvimento econômico, como a própria reforma agrária, as reformas tributária, bancária e administrativa. Em relação ao trabalhismo a posição dos empresários foi sempre de reserva, mas jamais chegou a transformar-se em uma atitude de resistência cega e inflexível. Quanto ao movimento reformista mais recente, deixamos para discutir o papel dos empresários mais adiante.

Em conclusão, observamos que o papel dos empresários nas quatro lutas ideológicas a que nos referimos teve geralmente um caráter renovador, embora não extremado. Os empresários constituíam uma classe nova que, para sobreviver e desenvolver-se, precisava lutar tanto no campo econômico, investindo e tornando eficiente suas emprêsas, quanto no campo político, adotando posições ideológicas novas, que transformassem o sistema de valores vigentes. Assim êles fizeram, em ordem decrescente de dedicação, em relação ao industrialismo, ao desenvolvimentismo, ao nacionalismo e ao reformismo. Seu papel não chegou a ser revolucionário, na medida em que sempre se pautou por uma certa prudência, e porque nunca se manifestou politicamente com plena coesão e coerência; mas indiscutivelmente, a contribuição dos industriais brasileiros foi positiva para a Revolução Ideológica por que o Brasil ainda hoje está passando.

FATOS NOVOS MODIFICAM A SITUAÇÃO

O empresário foi um líder da Revolução Industrial, ou mais freqüentemente um colaborador prudente da Revolução Ideológica. Perguntamos agora: continua êle, no momento presente, merecedor dêstes títulos? Em relação ao desenvolvimento industrial já vimos que hoje êle divide e disputa as responsabilidades e iniciativas com o Govêrno, cujo papel nesse campo só pode sofrer contestações na medida em que se torna incoerente no conjunto ou na seqüência das ações. E em relação à Revolução Ideológica? Continuam os empresários a ter uma posição de vanguarda, continuam a representar um grupo em ascensão, que tem que combater os grupos tradicionais, particularmente a velha aristocracia rural brasileira? Uma série de fatos novos ocorridos todos êles durante o govêrno Juscelino Kubitschek, nos levam a responder a esta pergunta negativamente. Êsses fatos fazem crer que os industriais brasileiros estão deixando de se colocar entre os principais promotores da Revolução Brasileira, que estão perdendo seu espírito renovador e mesmo revolucionário, , para se incluírem entre os grupos conservadores, que estão tendendo a acomodar-se face aos resultados até agora obtidos e abandonar a liderança do processo social para outros, Vejmos quais são êsses fatos.

Em primeiro lugar, temos a vitória da luta pela industrialização, ocorrida durante o govêrno Kubitschek. Êste presidente foi um promotor decidido da industrialização brasileira e um defensor vigoroso da ideologia do industrialismo. Alguns intérpretes de seu govêrno pretendem ver nêle o início da fase de decolagem, o início da Revolução Industrial brasileira. Isto não faz sentido. Já vimos que o comêço do processo de aceleração de nosso desenvolvimento industrial data dos anos 30. Juscelino Kubitschek já encontrou indústria formada e uma classe de empresários industriais já amplamente participante da vida nacional. O que ocorreu em seu govêrno foi o aceleramento do desenvolvimento econômico, e principalmente a consolidação da indústria nacional, pela introdução de planificação setorial, com prioridades representadas por exigências e favores em relação aos setores industriais básicos.

Terminado o seu govêrno, o êxito dessa indústria já era um fenômeno tão evidente que ninguém mais se aventurava a defender as teses do agriculturalismo. Com sua vitória, o industrialismo perdia o caráter de uma ideologia renovadora, revolucionária mesma. E os industriais perdiam uma das bases do caráter de vanguarda de suas posições políticas, perdiam um dos pontos de contatos que os identificavam com as forças políticas mais vivas e renovadoras da Nação.

Um outro fato vem dar mais fôrça a êsse processo de consolidação da indústria nacional, que passa a ser o grupo econômico claramente dominante no País. A crise de superprodução do café, ocorrida a partir de 1957, arrebata da velha aristocracia brasileira, e particularmente dos cafeicultores, seu maior argumento contra a indústria: o confisco cambial, que desviava a renda do setor agrícola de exportação para o Govêrno e para a indústria. Não que o confisco fôsse eliminado. Até hoje êle continua a existir, mas o Govêrno Federal passa a compensá-lo através da compra dos excedentes de produção. A posição dos fazendeiros, que era de fôrça, passa a ser de fraqueza, levando-os gradativamente a reconhecer a liderança da indústria. Por outro lado, ambos os grupos, e especialmente os industriais, começam a perceber que seus interêsses não são necessàriamente antagônicos. Muito pelo contrário. O desenvolvimento da indústria cria mais mercado para a agricultura, e vice-versa. Para os agricultores dedicados exclusivamente à cultura de produtos de exportação tal fato não tinha grande significação. O que êles viam era sua renda, através do confisco, ser canalizada para outros setores da economia. Mas no momento em que a luta contra o confisco perde a maior parte do seu sentido, e que o processo industrial parecia um fato consumado, a possibilidade de união de industriais com os grandes agricultores e comerciantes em tôrno de interêsses comuns estava aberta. Realizando-se essa união os industriais deixavam novamente de ser um grupo de luta, um agente de renovação dentro do cenário político do País.

Um terceiro fato, relacionado com o anterior, que leva os industriais a uma posição de defesa é o recrudescimento do movimento sindical e o crescente grau de organização que êle atinge. No comêço dos anos 50 falava-se na possibilidade da união de operários e patrões na luta pela industrialização. Pretendia-se que a união de partidos como PTB e PSD fôsse um símbolo disto. Se tal possibilidade era muito discutível naquela época, no fim do govêrno Kubitschek tornou-se clara sua inviabilidade. E os industriais sentiram a necessidade de unir-se cada vez mais aos demais ramos das classes produtoras para armar-se contra o adversário comum. O mesmo se diga em relação à revolução cubana de Fidel Castro em 1959. Embora as condições econômicas, políticas e sociais do Brasil sejam muito diversas daquelas da Cuba de Batista, os empresários sentiram-se ameaçados, e passaram a acentuar suas posições conservadoras.

Finalmente, o caráter nacionalista da ideologia dos empresários brasileiros sofreu dois sérios impactos durante o govêrno Kubitschek. Em primeiro lugar, o aspecto do nacionalismo que era mais importante para os industriais brasileiros - o da proteção da indústria nacional contra a concorrência estrangeira - transformou-se em matéria vencida com a aprovação, em 1958, da Lei de Tarifas pelo Congresso Nacional. Os industriais já não dependiam de mecanismos cambiais que poderiam ser modificados a qualquer momento ou de licenças de importação para proteger suas indústrias. Tinham a seu favor um instrumento legal estável e poderoso. Vencida essa batalha, as demais que os nacionalistas encetavam, e principalmente a do controle da remessa de lucros, não interessavam particularmente aos industriais brasileiros. Seu nacionalismo se esvaziava de conteúdo. Êste fenômeno mais se acentua com a ocorrência de um segundo fato. A Instrução 113 da SUMOC, datada ainda do govêrno Café Filho, e o crescente fechamento do mercado brasileiro aos produtos manufaturados no exterior, trazem para o País, e principalmente para São Paulo, um grande volume de investimentos estrangeiros. Muitas vêzes, o capitalista estrangeiro se associa ao nacional na realização de projetos. Em outras ocasiões, o empresário nacional é fornecedor de empresas estrangeiras instaladas no País. Enfim, as relações econômicas entre emprêsas nacionais e estrangeiras aumentam decisivamente, tornando cada vez mais difícil a tomada de posições nacionalistas por parte dos industriais brasileiros.

CONSEQÜÊNCIAS POLITICAS

A influência da série de fatos que acabamos de citar não se limitou ao comportamento político da classe de empresários industriais. Todos os grupos sofreram direta ou indiretamente o impacto dêstes acontecimentos que, em última análise, modificaram o equilíbrio de forças da sociedade brasileira, a favor da classe empresarial.

Êsses acontecimentos, aliados a uma crescente politização do povo brasileiro, auxiliam-nos, por exemplo, a compreender a eleição do Sr. Jânio Quadros, em 1960. A passagem dos industriais da posição de classe ideologicamente combativa, em ascensão, lutando por firmar-se, à situação de classe dominante, em um país em que a industrialização era um fato consumado, provocou uma desorientação geral por parte dos grupos políticos de esquerda e de direita.

A esquerda moderada tinha como uma de suas bandeiras a industrialização, que se identificava com o nacionalismo, e tinha nos industriais eventuais aliados. "A primeira fase da revolução social é a revolução burguesa, industrial", diziam êsses elementos. E passavam a apoiá-la. Subitamente, verificaram que a Revolução Industrial já ocorrera e se consolidara, e que os industriais alinhavam-se cada vez mais claramente entre os grupos de direita, aliados a seus antigos adversários da aristocracia rural e do alto comércio importador e exportador. A esquerda tinha agora •que reformular totalmente suas posições. Alguns se radicalizaram. Outros encontraram a solução na luta pelas reformas de base. Mas em 1960 êsse problema ainda não estava claro. Estávamos ainda em pleno processo de mudança. Não é surpreendente, portanto, que o "New York Times", fazendo a cobertura jornalística da campanha presidencial de 1960, afirmasse que o candidato de esquerda era apoiado pelos grupos de direita e o candidato de direita contava com o apoio dos elementos de esquerda... E não há dúvida que, embora simplificando o problema, a afirmação do grande jornal norte-americano era, em linhas gerais, correta. Dessa forma, a campanha presidencial de 1960 ilustra bem a confusão ideológica do País naquele momento. Uma série de fatos novos havia introduzido modificações profundas nas relações políticas entre os diversos grupos sociais. Em um primeiro momento, entretanto, esquerda e direita não se aperceberam das transformações ocorridas, e tentaram aplicar seus antigos esquemas conceptuais à realidade. O resultado foi que esquerda e direita se confundiram ao ponto de apoiarem candidatos realmente incompatíveis com suas posições políticas.

Sôbre a classe empresarial a influência de tôda aquela série de fatos foi naturalmente mais direta. A vitória da ideologia do industrialismo, a crise da agricultura de exportação e particularmente da cafeicultura, a perda de -significação do confisco cambial, o recrudescimento do movimento sindical, a Lei de Tarifas e a associação em grande escala de capitais nacionais e estrangeiros - todos êsses fatos tiveram duas conseqüências fundamentais para os industriais brasileiros.

Em primeiro lugar, tais fatos asseguraram-lhes uma posição de liderança entre as classes produtoras. O caráter positivo desta conseqüência é indiscutível. Mas em segundo lugar, aquêles fatos levaram os industriais a um processo de acomodamento político, a uma tendência de lutar apenas pela manutenção das vantagens obtidas. Isto •os leva pender para a direita e os transforma em uma fôrça não mais a favor mas contra ou indiferente à Revolução Brasileira. Todo o caráter renovador, às vêzes mesmo revolucionário, de que os industriais estavam revestidos começa a se perder, quando a Revolução Brasileira tem ainda tôda uma tarefa a cumprir, enquanto os desníveis de riqueza, a miséria mesmo, a desigualdade de oportunidade, a liberdade de fachada continuam presentes dentro da realidade brasileira. Teses tipicamente conservadoras, incompatíveis com um país em pleno processo de transformação social, começam a ser adotadas pelos industriais, O alarmismo político, a crença na iminência de uma revolução sangrenta de tipo comunista, é uma dessas teses ! Na medida em que os grupos de direita mais extremada conseguem convencer os industriais de tal fato, verifica-se imediatamente um processo de radicalização para a direita. A excessiva prudência, senão a oposição decidida às reformas que ora se discutem, particularmente à reforma agrária e à tributária, implicam novamente na adoção de uma linha conservadora pelos industriais brasileiros.

Êstes são apenas alguns exemplos do processo que ora se verifica de transformação dos empresários brasileiros em um grupo conservador. Caso tal fato se consume, a conseqüência mais significativa que daí advirá será provàvelmente a perda de qualquer liderança do processo social por parte dos empresários. A Revolução Brasileira deverá continuar, mas sob o impulso de outros grupos sociais, dos operários, da parte da classe média, dos estudantes, de grupos políticos de esquerda moderada. Será uma revolução sem sangue - na medida em que ela continue a ocorrer sem obstáculos mais sérios, em que o alarmismo dos grupos de direita não nos leva a uma ditadura parafascista, em que o diálogo democrático seja suprimido, em que, reformas sociais sejam introduzidas, reciuzindo os desníveis sociais e na medida em que uma política humanista assegure liberdade, educação e oportunidade de auto-realização para todos indiscriminadamente. Mas será lima revolução pacífica sem o apoio e a liderança de uma classe que poderia participar com grande eficiência dêsse processo - a classe empresarial.

CONCLUSÃO

Em conclusão, portanto, vemos que a classe industrial, que adotou no passado posições políticas abertas, progressistas, tende agora, depois de consolidada sua posição econômica no País, a adotar uma ideologia cada vez mais conservadora. De elemento atuante e dinâmico no processo social que chamamos de Revolução Brasileira, a classe industrial tende agora a se retrair, procurando apenas conservar suas próprias conquistas. Enquanto isso, a Revolução Brasileira continua - mas agora sem a liderança ou pelo menos a participação direta do industrial brasileiro. Sua contribuição positiva limita-se cada vez mais à ação que exerce dentro de sua emprêsa, investindo, aumentando a produtividade e a produção. Politicamente, entretanto, êle vai se transformando de defensor em opositor, de incentivo em freio à Revolução Brasileira.

Pergunta-se, então: é esta tendência irreversível? Não cremos. A existência dessa classe de empresários industriais no País nos assegura que o desenvolvimento econômico e social brasileiro pode ser realizado em têrmos capitalistas. O Brasil está em posição muito diferente da do Egito, de Gana, da Indonésia, e de outros países de nível de desenvolvimento extremamente baixo, em que, para se promover êsse desenvolvimento, é preciso antes criar uma classe de empresários. Nesses países, como não se conhece nenhum sistema seguro de se criar em tempo relativamente curto essa classe de empresários, os políticos e militares de classe média que assumem o poder em oposição às velhas aristocracias locais, são levados a transferir a responsabilidade da ação empresarial para o Estado. Surgem então sistemas socialistas ou semi-socialistas. No Brasil, porém, já existe essa classe de empresários capitalistas, aptos a continuar a liderar o processo de desenvolvimento industrial brasileiro. Seria natural, portanto, que êles também liderassem o processo de desenvolvimento social do País.

E a nosso ver tal liderança é viável, pelo menos em parte. Ela só se efetivará, entretanto, se houver uma nova guinada nas tendências políticas dos industriais brasileiros; se êles abandonarem suas posições conservadoras, de prudência senão decidida resistência às reformas e transformações em que se consubstancia o processo social, e adotarem uma atitude positiva para com tais reformas; se êles estiverem dispostos a sacrificar a curto prazo algumas; das vantagens de hoje se beneficiam, em favor da paz e da justiça social, de um desenvolvimento econômico mais rápido, de uma distribuição de renda mais eqiiitativa, de uma maior igualdade de oportunidade.

São essas as condições para que sua liderança se efetive. E embora admita que o atendimento na prática dessas condições é difícil, não vejamos por que seja impossível. Seria impossível se a adoção de uma política decidida de reformas sociais viesse realmente contrariar os interêsses da classe empresarial. Mas não cremos que tal aconteça. Se um maior bem-estar, se uma maior igualdade de oportunidade, se um maior grau de liberdade são ao mesmo tempo o resultado final do processo social e a conseqüência das reformas sociais, pode ocorrer aos empresários que é preferível estar à frente dessas reformas, que é melhor, apoiando-as, orientá-las e controlá-las, do que vê-las ocorrer apesar de sua oposição e totalmente fora de seu controle.

  • 3) A expressão "cosmopolitismo" é usada por Hélio Jaguaribe, "Desenvolvimento Econômico e Político", Fundo de Cultura, Rio de Janeiro, 1962.
  • 1
    ) Êste é um artigo de análise política global. Dada a amplitude, inclusive
    -no tempo, dos temas que trata, não se baseia em pesquisa formal, mas na observação cotidiana da realidade brasileira, no contacto com pessoas, na leitura de jornais e outros meios de divulgação. Demos especial atenção aos discursos, manifestos e outras declarações públicas realizadas por empresários, seja individual, seja organizados em associações de classe. De qualquer forma, as afirmações feitas neste artigo têm o caráter de hipóteses exploratórias. Por sua própria natureza, prestam-se a controvérsias.
  • 2
    ) Para uma análise do conceito de empresário e de suas relações com o desenvolvimento econômico e com o Estado vide: Luiz Carlos Bresser Pereira, "Desenvolvimento Econômico e o Empresário", em REVISTA DE ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS, vol. II, n.º4, maio/agôsto de 1962, págs. 79 e seguintes.
  • 3
    ) A expressão "cosmopolitismo" é usada por Hélio Jaguaribe,
    "Desenvolvimento Econômico e Político", Fundo de Cultura, Rio de Janeiro, 1962. Preferimos essa expressão à mais comumente usada "entreguismo", por ter caráter menos valorativo e faccioso.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jul 2015
    • Data do Fascículo
      Set 1963
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