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O poder africano

RESENHA BIBLIOGRÁFICA

O poder africano

Maria Cecília Spina Forjaz

O Poder Africano

Por Jean Ziégler, D.E.L 1972.

PARTE 1 - A HISTORIA MÚLTIPLA

É impressionante a identidade de situação existente entre a sociologia africana de nossos dias e a geografia da África do inicio do século XVIII. Ergue-se hoje diante dos sociólogos a mesma exigência com que ontem se defrontavam os geógrafos: a de destruir até os fundamentos de um edifício de interpretação totalizante e de colocar em seu lugar o complexo mosaico do conhecido e do ignorado.

Compõem nosso livro quatro monografias interligadas por um mesmo fluxo semântico. A primeira e a segunda apresentam duas figuras ignoradas da sociologia contemporânea: o reino migratório dos batutsi do Burundi e o candomblé Retu de Salvador-Bahia.

As partes 4 e 5 ampliam o debate: as experiências mututsi e alaketu evidenciam a capacidade estruturadora de determinadas motivações africanas: de um lado a noção do tempo unitário e cíclico; e do outro, a noção de tradição oral.

A sexta e última parte do livro tem como título Revolução africana: através de alguns exemplos concretos, gostaríamos de mostrar de que maneira certas motivações africanas específicas servem de inspiração para esta luta contemporânea de libertação.

PARTE 2 - OS REIS ERRANTES DE BURUNDI

Com a teoria do candomblé a realeza sagrada constitui uma das formas fundamentais do poder africano.

Poderíamos tentar circunscrever as variáveis deste sistema de governo e procurar formular uma espécie de teoria da realeza sagrada. Nós o deixamos de lado. Outro caminho mais interessante e promissor para a pesquisa parece-nos ser o seguinte: o reino de Burundi, uma das estruturas reais mais complexas e poderosas, permaneceu até o momento praticamente inexplorado.

A ignorância bastante acentuada que caracteriza o estado da pesquisa sociológica no Burundi deriva do fato de não possuir este país uma história escrita e da pobreza de sua tradição oral.

Definiremos a estratificação do poder burundi da seguinte maneira: um rei eleito, fonte mítica e detentor de todos os poderes sobre os homens, as vacas e as terras. Os baganwa, os homens mais influentes do país. Em seguida os batutsi ordinários, abaixo dos quais estaria situada uma terceira classe, os bahima. Além desses povos provenientes de migrações e que constituem o verdadeiro arcabouço político do Burundi, existe a vasta massa de camponeses Bahutu, homens de raça bantu, habitantes do espinhaço Congo-Nilo desde épocas anteriores à chegada dos pastores batutsi (provavelmente por volta de meados do século XVII). Abaixo deles situa-se uma classe de párias, os batwa, descendentes dos pigmóides.

A estratificação política não corresponde necessariamente à econômica. Os baganwa são verdadeiros latifundiários. O próprio rei, embora represente para a fé do povo e para a ideologia do Estado o proprietário único, só é dono pessoalmente de poucas terras. Não existe uma diferença econômica apreciável entre os batutsi ordinários, os bahima e os bahutu. Em compensação a clivagem aparece nitidamente entre os batwa e o resto dos burundi.

A unidade familiar mais sólida e também a de laços mais estreitos, a verdadeira célula da sociedade burundi é o rugo. Este vocábulo designa a cabana, o jardinzinho circundado por uma sebe e o renque de bananeiras. O Burundi também o utiliza para a unidade familiar constituída pelo pai, mãe e pelos filhos solteiros que vivem todos juntos debaixo do mesmo teto. O Burundi desconhece as aldeias. As poucas cidades são criações do colonizador. Outro termo que também designa simultaneamente uma realidade geográfica e uma estrutura social é a noção de colina. Uma família inteira e freqüentemente muito numerosa agarra-se aos flancos de uma mesma colina. Assim a colina constitui o alicerce territorial por excelência do poder político. O clã representa uma terceira noção de significado político. A palavra é vaga e designa antes de tudo uma realidade subjetiva, muitas vezes imaginária. Todos os rugos, todas as colinas que admitem um ancestral comum declaram-se pertencentes ao mesmo clã.

A tradição oral burundi só se interessa por duas épocas do reino e é de um modo geral desconhecida do povo. Oferece muitas versões sobre a origem do reino e é igualmente copiosa sobre as guerras civis que no século XIX criaram as oposições, ódios e alianças da atualidade. Em segundo lugar os burundi têm número limitado de veículos verbais.

A explicação mais verossímel para esta ausência de qualquer auto-interpretação elaborada está aparentemente no seguinte fato: dentre todos os reinos da África central, o Burundi talvez seja aquele em que os direitos adquiridos desempenham o papel mais insignificante, sendo as relações atuais de poder as únicas a determinarem, quase de dia para dia, as relações de comando/obediência.

O Burundi foi desde a origem um reino migratório: deslocando-se sempre de uma residência para outra e permanecendo em cada uma delas um período relativamente curto, o rei cobre o centro do país com sua migração. A rainha-mãe descrevia um círculo que cobria as regiões periféricas do reino. A realeza errante conseguiu governar, dominar com justiça um vasto território sem o apoio de nenhuma administração estável e sedentária.

Nos reinos da África central os mecanismos de sucessão eram presididos por uma regra elementar: o rei deve desaparecer assim que o príncipe herdeiro atinge a idade de homem.

São fragmentários os conhecimentos de que dispomos a respeito dos primórdios do reino. Parece terem sido os batwa pigmóides, que ainda vivem num estágio de civilização muito próximo do neolítico, os primeiros a habitarem o reino. Parece igualmente assentado que os senhores batutsi e os pastores bahima, ao chegarem à região em levas sucessivas, já encontraram pequenos grupos autônomos de bahutu sedentários estabelecidos nas colinas.

Segundo alguns autores, os demais povos etiópicos da África central se dispersaram a partir do alto vale do Nilo e dos planaltos etíopes. Podem ser muitas as causas de uma migração de tamanho vulto.

Em seguida o autor conta a história provável dos reis de Burundi.

Foi preciso que raiasse o ano de 1 894 com a chegada das colunas alemãs para que os exércitos burundi se vissem pela primeira vez forçados a recuar diante do invasor. O domínio colonial alemão findou em 1917. A Sociedade das Nações concedeu ao reino o estatuto de território sob mandato, confiado à Bélgica. A ONU transformou o Burundi em território tutelado e a Bélgica continuou incumbida da tutela. A 1.º de julho de 1962 o Burundi recuperou sua independência total.

A vaca, que representa simultaneamente um instrumento de domínio, um valor social e uma moeda corrente, imprime seu cunho a um grupo inteiro de civilizações da África oriental e central. Não encontramos na literatura atual nenhuma explicação satisfatória para esta apaixonada veneração de que é objeto a vaca. No Burundi uma poesia cheia de imagens e carregada de maravilhosas emoções é consagrada a celebrar as vacas.

A descrição esquemática do apego quase passional e da veneração pela vaca era indispensável para que se pudesse compreender a importância de uma instituição política chave: o ubugabira, contrato de clientela. Por este contrato ficam ligados um senhor proprietário de bovinos e um indivíduo mais pobre que ele. O contrato apresenta uma dupla dimensão: é o veículo principal de que se serve um membro do grupo para ascender na hierarquia social e, para os grandes proprietários de gado, representa um meio de manter o domínio sobre outrem. Possuir vacas implica ser objeto de consideração e exercer sobre outrem um poder indiscutido.

Possuidor de um número considerável de bovinos o rei negocia multiplicidade de contratos com os baganwa e muitas vezes também com clientes de origem humilde.

Essas estruturas sociais complexas provenientes das múltiplas variações do ubugabira se transformaram em época de guerra em estruturas militares. O exército do rei se denomina exército bovino. É formado pelos filhos dos clientes diretos do rei. Os senhores mais importantes do reino, aqueles que de fato, ou de acordo com o mito, receberam seus rebanhos diretamente do rei, funcionam como generais.

Uma observação final: à primeira vista seria lícito acreditar que as estruturas sociais deste Estado-vulcão que é o Burundi caracterizam-se por uma fluidez constante. Os contratos de clientela são negociados em caráter permanente. Um usufrutuário liga-se de diversas maneiras a diversos senhores: sua ou suas vacas lhe tornam possível sujeitar subclientes, assumir novos compromissos e desligar-se de outros. O mesmo acontece com o senhor: dá, retoma e torna a dar as vacas.

Não existe nenhum direito consuetudinário ou escrito que garanta uma proteção qualquer para o camponês e sua família. Somente o ubugabira lhe possibilita colocar-se ao abrigo. Sendo um proletário no sentido exato do termo, o camponês bahutu serve-se do contrato para obter um mínimo de proteção.

Numa estrutura política em que a totalidade dos poderes se encarna num ser perecível, o problema da sucessão se reveste de especial importância. A morte do rei é a morte do reino, ela acarreta a anomia. Quando da coroação, sente-se o observador ocidental mais uma vez impressionado com a inteligência política e a profunda sabedoria da sociedade burundi: o novo rei embora seja em princípio filho do rei defunto, rompe inteiramente com a camarilha de seu pai. A vantagem deste sistema de governo é evidente: de 30 em 30 anos é renovado todo o aparelho de Estado. Ê importante notar que a qualidade de príncipe herdeiro cria somente uma presunção favorável ao acesso ao trono. Os reis de Burundi são eleitos.

O reino de Burundi sofreu várias tentativas de penetração por parte do europeu. A mais violenta foi a que pretendeu introduzir numa sociedade teocrática os princípios de participação e contestação peculiares às sociedades ocidentais. Ora, como a abolição do ubugabira pelo regime colonial não alterou fundamentalmente a relação cliente/senhor e não destruiu o poder autocrático da classe dos dirigentes tradicionais, a introdução do sufrágio universal não acarretou alterações fundamentais à estrutura das relações comando/obediência.

No Burundi o período medeante entre as primeiras negociações, 1958 e a independência, 1962, é interessante por dois fatores: é o período em que surge os partidos políticos e surge uma ordem constitucional escrita. Dentre os partidos, o mais poderoso era o UPRON A criado por Louis Rwagasoré, que personifica a livre escolha de um líder a favor de um populismo nacionalista.

Antes de partir o colonizador outorgou ao Burundi um texto constitucional que constitui uma cópia da constituição belga. Ora, os cinco estratos da nação se mantêm tenazmente apegados à cosmogonia burundi, pautam seu comportamento por motivações tradicionais e acatam escrupulosamente a ordem social tal como esta lhes foi transmitida pelo costume e pela tradição oral. Ao mesmo tempo, os responsáveis pelo reino se entregam a uma espécie de bailado de máscara, procurando impingir ao mundo inteiro a impressão de que o Burundi renunciou à sua história para se transformar nessa coisa híbrida que é a monarquia constitucional de tipo europeu.

PARTE 3 - O PODER DOS ORIXÁS

Os candomblés, sobretudo o "Ilê Morojalaia", objeto principal de nossa segunda monografia, representam tipicamente essas numerosas "sociedades reinventadas" de que fala Edson Carneiro. Desarticuladas de suas raízes ecológicas, atomizadas pela deportação e finalmente esgotadas pelo estafante trabalho escravo, centenas de sociedades africanas puderam, não obstante, ressurgir nas Américas. Sua "ressurreição" suscita uma série de interessantes problemas metodológicos. Dentro do esquema marxista o candomblé continua a ser uma ideologia "falsa", uma percepção errônea da realidade. Ora, por mais rico e cheio de sutilezas que seja, o aparelho conceituai marxista não pode apreender de maneira completa esse fenômeno infinitamente complexo que é o candomblé. Pois, quer nos parecer evidente que não estamos aqui diante de uma ideologia. O candomblé é uma sociabilidade, uma cosmogonia, uma estrutura motivacional sui generis. Oriundo de uma praxis social determinada, adquiriu no decorrer dos séculos uma espécie de independência reconhecida. Em outras palavras, o candomblé constitui hoje uma consciência autônoma.

A congada constitui, logo após o candomblé uma segunda estrutura política da diáspora. Seus elementos principais são os seguintes: senhores de engenho viam com bons olhos a eleição periódica e a solene investidura dos "Reis Congo". Esses reis exerciam um poder real que se estendia às massas anônimas dos escravos. A cerimônia de investidura, denominada congada, ainda subsiste, embora sob uma forma despojada, em diversas zonas do Brasil atual.

Existem atualmente milhares de candomblés, que atingem a quase um milhar só na Bahia. Não há o menor laço orgânico entre eles. Não os preside nenhuma instituição central. Onde o europeu busca em vão descobrir uma doutrina coerente, estende-se um fabuloso mosaico de crenças. Há um povo que parece gozar de uma espécie de direito de precedência: são os iyorubá.

Com o ciclo do ouro em Minas Gerais eram necessários operários, homens habituados a manejar uma pá e afeitos ao trabalho de mineração. Difundiu-se uma lenda pela Europa: os negros do golfo da Guiné sabiam minerar ouro.

Mandaram comprar dezenas daqueles pseudo-escravos mineradores. Rapidamente o porto de Salvador e logo todo o Recôncavo foram inundados desses negros da África ocidental, oriundos das mais altas culturas africanas. Dentre a multiplicidade de ritos que traziam consigo havia um que demonstrava uma especial capacidade de estruturação: era o rito nagô. De modo que foi o candomblé nagô que se tornou o modelo de comportamento para a maior parte dos africanos da diáspora lusitana.

Um Deus único e suprema governa o Universo: Olorum. Eis o mito basilar: Olorum tem um filho Oxalá que um dia foi chamado pelo pai, que lhe entregou os elementos da natureza, ordenando-lhe que com os mesmos fizesse um mundo. Oxalá obedeceu e foi assim que se criou o mundo. Este mito explica unia primeira coisa de muita importância: a origem divina dos orixás. Tratando-se de personificações de forças da natureza, os orixás saíram das mãos de Deus. A eles, e somente a eles, cabe agora o governo do mundo.

A cosmogonia da diáspora brasileira ainda possui outra dimensão: paralelamente à religião dos orixás existe o culto dos eguns, que são os mortos.

Iniciando sempre novas Yawôs e fazendo soar o tambor segundo um ritmo convencionado, os sacerdotes (pais-de-santo) tornam possível que os orixás se encarnem. Quando as divindades desejam falar, é preciso que algum ser humano se deixe possuir por elas. E quando os humanos desejam conhecer a vontade dos orixás é necessário que façam soar o tambor e se entreguem até a inconsciência, para ouvir sua palavra. Não existe nenhum parentesco genético entre os homens e os orixás. Estes, no entanto, vivem uma existência antropomórfica: ligam-se uns aos outros por múltiplas e muito complexas relações de parentesco.

Os orixás são forças e a possessão é o aparecimento dessa força no corpo de uma mulher ou mais raramente no de um homem. Assim cada orixá constitui de per si um arquétipo do psiquismo africano, vivenciado na possessão. Esta, porém, é socializada. Ou melhor, a multiplicidade de arquétipos é traduzida em termos rituais em figuras conscientes. Desta maneira são abertamente vividos - e por conseguinte sanados - os conflitos mais íntimos do grupo. Em outras palavras, a possessão ritualizada representa a catarse do grupo.

Última evidência terapêutica: os erês. Pretende o psicanálise que nossos conflitos mais dolorosos e mais secretos têm origem durante os primeiros meses de nossa infância. O candomblé veicula idêntica convicção. O erê designa um estado peculiar de semiconsciência situado entre a possessão e o estado consciente em que os indivíduos revivem os primeiros momentos de sua existência.

A arte do babalaô consiste por conseguinte em determinar de maneira correta o orixá de cada um.

O candomblé constitui um universo em três estágios: um tempo único habita os vivos, os mortos e os orixás; em outras palavras, três categorias de seres vivem três formas diferentes de existência no interior de um mesmo tempo único. Ou seja, no candomblé manifesta-se com toda a evidência o caráter unitário da temporalidade africana. Se estivéssemos diante de uma dualidade, de um ano litúrgico coexistente com o ano civil não nos seria lícito falar de uma especialidade do tempo africano. Mas o candomblé desconhece a dualidade temporal: vive a unicidade do tempo.

O candomblé é uma comunidade teocrática, um reino sagrado em miniatura, É governado pela iyalorixá, sacerdotisa suprema e soberana absoluta que preside à vida cotidiana do grupo. Ela também governa o trabalho profano, É quem estabelece a distribuição das tarefas cotidianas específicas. É a única pessoa que dispõe de um rendimento financeiro regular. Cura os pobres e os ricos e estes devem pagar. Será então o candomblé um regime opressor, desprovido de mobilidade vertical, incapaz de renovar seus quadros, um universo no qual o poder é exercido de forma autocrática e incontrolável? Não, o poder no candomblé não é totalitário. A onipotência da iyalorixá é apenas aparente. Seu poder é contrabalançado pela multiplicidade de especialistas cuja colaboração é imprescindível à realização do rito.

A homogeneidade de um tempo não fracionado, eternamente semelhante a si mesmo, desconhecendo passado e futuro, progresso e história, corresponde um espaço homogêneo. Vivos e mortos vivem na mesma terra, a dos ancestrais.

PARTE 4 - O TEMPO DOS AFRICANOS

Tentaremos formular os elementos essenciais de uma teoria africana do tempo. Prende-se o tempo a três categorias grosseiramente definidas: tempo físico, psicológico e social. Não precisamos nos deter na análise do tempo físico que é o mesmo para todos os seres humanos, independentemente de seu grupo de origem, de seu lugar de habitação e da representação mental que fazem do mundo. É o tempo expresso por nosso corpo.

O tempo psicológico engloba as possíveis reações da consciência frente ao tempo.

Quanto ao tempo social, as sociedades da Europa criaram um aparelho regulador cujos princípios de organização foram extraídos do movimento dos astros. Através de alguns ajustes arbitrários esses grupos codificaram desta maneira um tempo social chamado calendário. Mecanizaram a seguir os movimentos fracionados desse tempo social e criaram o relógio.

O tempo social é um tempo convencional e está portanto funcionalmente ligado ao grupo que formula a convenção. Portanto não é idêntico na África e na Europa. Ainda mais, cada grupo africano regula sua vida social de acordo com um "relógio" particular.

Antes de proceder a uma análise seletiva de alguns tempos sociais africanos, cumpre refutar uma afirmação corrente nos meios sociológicos: certos pesquisadores opõem o tempo "preciso" das sociedades industrializadas, ao tempo "impreciso e vago" das sociedades africanas.

Além de um tempo social elaborado, as sociedades européias formulam a pura negação desse mesma tempo, isto é, a eternidade. Todavia, ao usar a palavra eternidade, uma sociedade européia o faz para expressar o limite extremo da temporalidade. Em outras palavras, a eternidade constitui a noção antinómica do tempo. Na África as coisas são muito diferentes. A eternidade é aqui um tempo sui generis. Ela coexiste com o tempo social do grupo. Faz parte integrante da cosmogonia do mesmo. Numa palavra, de certa forma ela permanece de ordem temporal.

Em seguida o autor descreve o calendário jukun, yorubá e burundi.

Para o camponês africano o tempo é uma das categorias essenciais do pensamento, é através desta categoria que ele apreende o mundo. Em outras palavras, a partir de uma certa situação material, o grupo cria suas próprias categorias de mediação. É graças a essas categorias que o africano percebe suas relações com a natureza, com o grupo e consigo mesmo.

O tempo amolda-se estritamente às atividades do grupo. Elas lhe fornecem suas medidas e seus pontos de apoio fundamentais.

Em contraposição, o calendário gregoriano adotado pelas sociedades industriais mantém total independência entre o aparelho de produção e o tempo social.

O caráter unitário da temporalidade africana cria uma série muito grande de motivações irracionais. Esta eternidade animada, supra-sensível do grupo africano transmite permanentemente muitas outras mensagens que, decifradas, se transformam em poderosas motivações para comportamentos concretos. O sonho é quase sempre encarado como uma espécie de chave para a compreensão de um futuro iminente ou de um passado inexplicado. Nenhuma das sociedades africanas do continente ou da diáspora põe em dúvida seu caráter de mensagem.

Finalmente, para concluirmos esta análise de determinados problemas do tempo africano pretendemos nos deter na noção de "tempo suspenso".

Na África abundam os exemplos de "ruptura do tempo" pela morte do rei. Ou seja, a vacância do poder é sinônimo de morte do grupo. Para que o povo torne a viver é preciso que um novo rei suba ao trono e ponha o universo em movimento.

PARTE 5 - A IDEOLOGIA AFRICANA

Nesta quinta parte será necessário cotejar dois métodos de entesouramento e de interpretação la vida vivida: o empregado pela tradição oral africana e o utilizado pela história, ciência das sociedades européias. Através da análise comparada das tradições do Ruanda e do Burundi, tentaremos em seguida compreender a interdependência que atua entre uma estrutura social determinada e o sistema de auto-interpretação gerado por essa mesma estrutura. Finalmente, através do exame de alguns mitos fundadores, gostaríamos de tornar compreensível a desesperadora situação enfrentada pelo homem africano que se encontra numa situação de desacordo pessoal com a sociedade que o define.

Não é no quadro hipotético da duração universal que as sociedades africanas articulam os vários momentos de transformação mas, sim, em função de uma estrutura social determinada. Consideram essa estrutura como a única no tempo e no espaço. O passado não é estruturado, não é codificado ou numerado.

A sociedade histórica possuiria uma história, a qual, tendo-se tornado consciente na história-ciência, a informaria de seu passado. O que significa que a sociedade histórica conhecer-se-ia como um processo histórico. As sociedades sem história, pelo contrário, não apenas desconheceriam seu próprio devir como também permaneceriam indiferentes quanto a seu passado. No estágio atual de nosso raciocínio estas premissas podem ser descartadas: já vimos, com efeito que as "sociedades históricas" talvez desejem e se proponham explorar seu passado; entretanto as próprias dificuldades metodológicas da codificação por elas utilizadas as tornam incapazes de refazer para sua consciência a continuidade de sua evolução. Em suma, a história-ciência parece, com efeito, ausente nas sociedades africanas; todavia ela se revela inoperante, quando não impossível, nas sociedades européias.

Encaremos agora a outra face desta pretensa antinomia, a sociedade dita sem história. A maioria das sociedades africanas são de tradição oral. Fato interessante é que a história dos Estados é a mais veiculada pela tradição oral. Sempre que encontramos o Estado, encontramos igualmente uma história coerente e sistematizada. As tradições não existem onde não há estruturas políticas.

O mito fundador, chave da medos infelizes como a força represmória africana, projeta na imagisiva dos opressores. Contudo panação dos homens uma "figura rece-nos agora evidente que essa total". Isto é: o poder africano análise não pode ser aplicada à não tolera a subdivisão em poder África. religioso, político, econômico, simDe onde provém essa incombólico. O poder é um fenômeno topreensão entre revolucionários tal. E evidentemente de ordem diafricanos e ocidentais? Em privina. É sagrado. Abrange e ordena todas as dimensões da vida, individual e coletiva. Numa construção única e grandiosa, a tradição oral tudo explica: a fonte do poder, a explicação única de seu devir, a estrutura fundamental do grupo, assim como a organização do universo, a cosmogonia e a ideologia política, o regime econômico e a regulamentação das relações sociais. Não se discute a tradição. Como o homem só se defronta com uma imagem de si mesmo, do grupo, do poder e do mundo, só lhe é oferecida uma opção entre uma adesão pela recusa e uma adesão pela fé.

PARTE 6 - A REVOLUÇÃO AFRICANA

Dentre todos os povos do efervescente terceiro mundo, os africanos são os únicos que não ofererecem muita margem à análise marxista.

O mal-entendido entre revolucionários africanos e marxistas brancos já conta quase meio século: suas raízes estão na III Internacional.

A " questão colonial" foi inscrita na ordem do dia, durante o VI Congresso do Komintern (Moscou 1928). A influência de Stalin fez triunfar uma tese rígida e dogmática. A impaciência dos revolucionários africanos é contrarevolucionária. O colonialismo é um e pifenômeno. A luta proletária nos Estados industrializados deve ser atribuída uma prioridade a bsoluta. Sendo o colonialismo e o imperialismo um prolongamento necessário da sociedade capita lista, seria o bastante aguardar o desmoronamento dessa sociedade.

Guevara estava convencido de que uma idêntica situação de alienação, de misena e de ameaça do imperialismo tem de provocar idêntica resposta. Um grupo de guerrilheiros iria instalar-se no meio dos mais oprimidos, manifestaria sua presença e desta maneira acabaria materializando tanto a reivindicação qualitativa dos infelizes como a força repressiva dos opressores. Contudo parece-nos agora evidente que essa análise não pode ser aplicada à África.

De onde provém essa incompreensão entre revolucionários africanos e ocidentais? Em primeiro lugar, de natureza ideo lógica: ao complexo conjunto de movimentos revolucionários africanos pode-se aplicar o nome de nacionalismo africano. Subjetivamente esses homens não têm absolutamente a sensação de que fazem parte do movimento planetário de rejeição ao imperialismo. Lutam pela libertação de sua terra e para conquistar o direito a uma exi stência condigna.

Passemos agora às razões sociológicas: contra o opressor branco o a fricano e rgue-se em primeiro lugar como homem africano e não como marxista.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2015
  • Data do Fascículo
    Jun 1973
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