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MASCULINIDADES E FEMINILIDADES A BORDO: PROJETO(S) DE GÊNERO NA CARREIRA DE COMISSÁRIAS E COMISSÁRIOS DE VOO

Masculinidades y feminidades en el cielo: Proyecto(s) de género de la carrera de los/las auxiliares de vuelo

RESUMO

Este artigo retoma as bases interacionistas dos estudos de carreira com o objetivo de analisar a construção de projeto(s) de gênero, com referência a masculinidades e feminilidades, na carreira de comissárias(os) de voo. O percurso metodológico, de orientação qualitativa, ocorreu em cinco etapas principais: pesquisa bibliográfica e documental; imersão geral por 16 meses de observação do campo e registro de diários; imersão específica no campo com a participação em curso de formação para comissárias(os); coleta de biografias de 23 profissionais; e construção e análise temática de narrativas. O conjunto de informações foi analisado por narrativas coletivas em três momentos relacionais: formação, ingresso na companhia aérea e cotidiano da carreira. As discussões apontam para a construção do projeto de carreira como um projeto de gênero; o potencial de metamorfose individual ao enfatizar e corporificar masculinidades e feminilidades e as negociações das trajetórias no campo de possibilidades, dimensão temporal, dinâmica e contextual. As conclusões da pesquisa ampliam o debate de carreiras generificadas e trazem uma contribuição metodológica e teórica original para carreiras de coletividades.

Palavras-chave:
carreira; gênero; masculinidades; feminilidades; interacionismo simbólico

RESUMEN

Este artículo retoma las bases interaccionistas de los estudios de carrera con el objetivo de analizar la construcción de proyecto(s) de género, con referencia a masculinidades y feminidades, en la carrera de los/las auxiliares de vuelo. El diseño metodológico, con enfoque cualitativo, se desarrolló en cinco etapas principales: investigación bibliográfica y documental; inmersión general durante 16 meses de observación de campo y registro de diario; inmersión específica en el campo con participación en un curso de formación para auxiliares de vuelo; recopilación de biografías de 23 profesionales; y construcción y análisis temático de narrativas. El conjunto de informaciones fue analizado por narrativas colectivas en tres momentos relacionales: formación, ingreso en la aerolínea y día a día de la carrera. Las discusiones apuntan a la construcción del proyecto de carrera como un proyecto de género; el potencial de la metamorfosis individual al enfatizar y corporificar masculinidades y feminidades y las negociaciones de las trayectorias en el campo de posibilidades, dimensiones temporal, dinámica y contextual. Las conclusiones de la investigación amplían el debate de carreras generizadas y aportan una contribución metodológica y teórica original a las carreras de colectividades.

Palabras clave:
carrera; género; masculinidades; feminidades; interaccionismo simbólico

ABSTRACT

This article resumes the interactionist bases of career studies to analyze the construction of gender project(s) regarding masculinities and femininities in the careers of flight attendants. We used a qualitative-oriented research methodology divided into five main stages: documentary and bibliographical research; 16 months of general immersion with field observation and journaling; specific immersion with field observation (participating in a flight attendants’ training course); collection of 23 professionals’ biographies; and construction and analysis of thematic narratives. The information was analyzed based on the perspective of collective narratives in three relational moments: training, joining an airline, and work routine. The discussions point to the necessity of constructing career projects as gender projects and the potential for personal metamorphosis by emphasizing and embodying masculinities and femininities, as well as trajectories negotiations in the field of possibilities - temporal, dynamic, and contextual dimensions. The research findings broaden the debate on gendered careers and bring an original methodological and theoretical contribution to collective careers.

Keywords:
career; gender; masculinities; femininities; symbolic interactionism

INTRODUÇÃO

O conceito de carreira permite analisar a dinâmica relação entre pessoas, organizações e contextos (DeLuca, Rocha-de-Oliveira, & Chiesa, 2016; Gunz & Mayrhofer, 2018Gunz, H., & Mayrhofer, W. (2018). Rethinking career studies. Facilitating conversation across boundaries with the social chronology framework. Cambridge, UK: University Press.; Hughes, 1937Hughes, E. C. (1937). Institutional office and the person. American Journal of Sociology, 43(3), 404-413. Recuperado de https://www.jstor.org/stable/2768627
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). Contudo, essas interações que se estabelecem entre elementos contextuais, ações coletivas e trajetórias individuais ainda são pouco exploradas (Gunz, Mayrhofer, & Tolbert, 2011; Mayrhofer, Meyer, & Steyrer, 2007), apesar de tensionarem tanto a caracterização de tipos profissionais com valores universais como os estudos que abordam carreira sem apropriação do conhecimento teórico-científico (Grangeiro, Barreto, & Silva, 2018Grangeiro, R. R., Barreto, A. J. T. P., & Silva, J. S. (2018). Análise de artigos científicos sobre carreira em administração. Revista Pensamento Contemporâneo em Administração, 12(1), 47-60. doi: 10.12712/rpca.v12i1.1089
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). Neste estudo, considera-se que “carreiras são o produto de estruturas sociais como organizações ou instituições e, por sua vez, produzem e reproduzem essas estruturas” (Gunz et al., 2011Gunz, H., Mayrhofer, W., & Tolbert, P. (2011). Career as a social and political phenomenon in the globalized economy. Organization Studies, 32(12), 1613-1620. doi: 10.1177/0170840611421239
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, p. 1616).

As principais teoria de carreira são neutras em relação a questões de gênero (Fraga, Gemelli & Rocha-de-Oliveira, 2019Fraga, A. M., Gemelli, C. E., & Rocha-de-Oliveira, S. (2019). Cenário das publicações científicas em carreira e gênero. Revista Pensamento Contemporâneo em Administração, 13(3), 158-178. doi: 10.12712/rpca.v13i3.2
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; Mayrhofer et al., 2007Mayrhofer, W., Meyer, M., & Steyrer, J. (2007). Contextual issues in the study of careers. In H. P. Gunz & M. Peiperl (eds), Handbook of career studies (pp. 215-240). London, UK: Sage Publications.), além disso, a discussão sobre as influências das estruturas sociais no contexto do trabalho é restrita nos estudos organizacionais. A limitação decorre tanto da dicotomia entre masculino e feminino como da ausência de elementos culturais, sociais, econômicos e políticos envolvidos na construção das carreiras e de gênero (Fraga & Rocha-de-Oliveira, 2020Fraga, A. M., & Rocha-de-Oliveira, S. (2020). Mobilidades no labirinto: Tensionando as fronteiras nas carreiras de mulheres. Cadernos EBAPE.BR, 18, 757-769. doi: 10.1590/1679-395120190141
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). No cenário nacional, pesquisas sobre mulheres e/ou comparativas entre homens e mulheres são compreendidas como estudos de gênero (Ceribeli & Silva, 2017Ceribeli, H. B., & Silva, E. R. (2017). Interrupção voluntária da carreira em prol da maternidade. Revista Pensamento Contemporâneo em Administração, 11(5), 116-139. doi: 10.12712/rpca.v11i5.1056
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; Hryniewicz & Vianna, 2018Hryniewicz, L. G. C., & Vianna, M. A. (2018). Mulheres em posição de liderança: Obstáculos e expectativas de gênero em cargos gerenciais. Cadernos EBAPE.BR, 16(3), 331-344. doi: 10.1590/1679-395174876
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; Moreira & Silva, 2018Moreira, M. G., & Silva, A. H. (2018). A influência do conflito trabalho-família e o comprometimento com a carreira na percepção de sucesso na carreira de mulheres docentes. Revista Alcance, 25(2), 177-193. doi: alcance.v25n2(Mai/Ago).p177-193
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; Pagnussatto & Lucas, 2017Pagnussatto, L., & Lucas, M. G. (2017). Âncoras de carreira de mulheres da Geração Y. Revista de Carreiras e Pessoas, 7(3), 27-42. doi: 10.20503/recape.v7i3.33517
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; Santos, Lima, Paiva, Marques, & Guimarães, 2021Santos, I. C. O. D., Lima, T. C. B. D., Paiva, L. E. B., Marques, D. S., & Guimarães, E. T. (2021). Socialização profissional sob a ótica de cirurgiãs: Desafios e realização na carreira profissional. Revista de Administração Contemporânea, 25(4), 1-20. doi: 10.1590/1982-7849rac2021180303.por
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; Vieira, Monteiro, Carrieri, Guerra, & Brant, 2019Vieira, A., Monteiro, P. R. R., Carrieri, A. P., Guerra, V. A., & Brant, L. C. (2019). Um estudo das relações entre gênero e âncoras de carreira. Cadernos EBAPE.BR, 17(3), 577-589. doi: 10.1590/1679-395172911
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).

No cenário internacional, ainda que a discussão sobre carreira caleidoscópica e o movimento opt-out (Mainiero & Gibson, 2018Mainiero, L. A., & Gibson, D. E. (2018). The kaleidoscope career model revisited: How midcareer men and women diverge on authenticity, balance, and challenge. Journal of Career Development, 45(4), 361-377. doi: 10.1177/0894845317698223
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; Mainiero & Sullivan, 2005Mainiero, L. A., & Sullivan, S. E. (2005). Kaleidoscope careers: An alternate explanation for the “opt-out” revolution. Academy of Management Perspectives, 19(1), 106-123. doi: 10.5465/ame.2005.15841962
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) destaque trajetórias de mulheres, também adota uma compreensão pautada na diferença entre o universo considerado feminino e o masculino. Focando-se em um grupo específico e privilegiado, tais perspectivas analisam os padrões de escolhas que redirecionam (como um caleidoscópio) as carreiras de mulheres em busca de autenticidade, equilíbrio e desafio, bem como a saída (opt-out) de mulheres altamente qualificadas de carreiras corporativas, sobretudo pela incompatibilidade com a maternidade (Mainiero & Sullivan, 2005Mainiero, L. A., & Sullivan, S. E. (2005). Kaleidoscope careers: An alternate explanation for the “opt-out” revolution. Academy of Management Perspectives, 19(1), 106-123. doi: 10.5465/ame.2005.15841962
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). Além de universalizar as mulheres como um grupo homogêneo, isso reforça a ideia de gênero como equivalente a sexo. Assim, características masculinas ou femininas seriam adquiridas biologicamente, negligenciando as influências socioculturais dos contextos (Fraga & Rocha-de-Oliveira, 2020Fraga, A. M., & Rocha-de-Oliveira, S. (2020). Mobilidades no labirinto: Tensionando as fronteiras nas carreiras de mulheres. Cadernos EBAPE.BR, 18, 757-769. doi: 10.1590/1679-395120190141
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; Mayrhofer et al., 2007Mayrhofer, W., Meyer, M., & Steyrer, J. (2007). Contextual issues in the study of careers. In H. P. Gunz & M. Peiperl (eds), Handbook of career studies (pp. 215-240). London, UK: Sage Publications.).

Neste artigo, assume-se que gênero constrói relações sociais e estabelece assimetrias de poder entre grupos a partir de diferenças entre sexos (Connell & Pearse, 2015Connell, R., & Pearse, R. (2015). Gênero: Uma perspectiva global. São Paulo, SP: nVersos.). A inclusão dos conceitos de masculinidades e feminilidades (Connell, 2018Connell, R. (2018). Masculinities. Cambridge, UK: Policy Press.) nesta discussão oportuniza avanço na teoria, bem como corrobora a multiplicidade das vivências de gênero. Reconhece-se, outrossim, a necessidade de adotar bases teóricas interdisciplinares nos estudos de carreira (Arthur, 2008Arthur, M. B. (2008). Examining contemporary careers: A call for interdisciplinary inquiry. Human Relations, 61, 163-186. doi: 10.1177/0018726707087783
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; Maanen, 2015Maanen, J. Van. (2015). The present of things past: Ethnography and career studies. Human Relations, 68(1), 35-53. doi: 10.1177/0018726714552287
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; Parker, Khapova, & Arthur, 2009) e toma-se o interacionismo simbólico (Barley, 1989Barley, S. R. (1989). Careers, identities, and institutions: The legacy of the Chicago School of Sociology. Handbook of Career Theory, 41, 65. doi: 10.1017/CBO9780511625459.005
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; Mendonça, 2002Mendonça, J. R. C. (2002). Interacionismo simbólico: Uma sugestão metodológica para a pesquisa em administração. Revista Eletrônica de Administração, 8(2), 1-23. Recuperado de https://seer.ufrgs.br/index.php/read/article/view/46249/28826
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) para propor sua interlocução com gênero. Observa-se que, tal como ocorre na formação de uma profissão (Barros, Cappelle, & Guerra, 2021; Barros, Cappelle, Souza, & Lobato, 2018; DeLuca & Rocha-de-Oliveira, 2016DeLuca, G., & Rocha-de-Oliveira, S. (2016). Inked careers: Tattooing professional paths. BAR-Brazilian Administration Review, 13(4), art.3, 1-18. doi: 10.1590/1807-7692bar2016160081
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; DeLuca et al., 2016DeLuca, G., Rocha-de-Oliveira, S., & Chiesa, C. D. (2016). Project and metamorphosis: Gilberto Velho’s contributions to career studies. Revista de Administração Contemporânea, 20(4), 458-476. doi: 10.1590/1982-7849rac2016140080
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; Hughes, 1937Hughes, E. C. (1937). Institutional office and the person. American Journal of Sociology, 43(3), 404-413. Recuperado de https://www.jstor.org/stable/2768627
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, 1958Hughes, E. C. (1958). Men and their work. London, UK: The Free Press of Glencoe.), gênero é uma construção individual e coletiva em contextos sócio-históricos.

Considera-se que a carreira é uma trajetória individual e coletiva que se constrói e que se modifica ao longo do tempo por meio das negociações entre projetos e com o campo de possibilidades que se apresentam (DeLuca et al., 2016DeLuca, G., Rocha-de-Oliveira, S., & Chiesa, C. D. (2016). Project and metamorphosis: Gilberto Velho’s contributions to career studies. Revista de Administração Contemporânea, 20(4), 458-476. doi: 10.1590/1982-7849rac2016140080
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). Assim, três elementos ganham destaque: o tempo, como dimensão que marca as trajetórias; o dinamismo, em que pessoas, grupos e organizações negociam as construções de carreira; e a ampliação da ideia de carreira coletiva (DeLuca et al., 2016DeLuca, G., Rocha-de-Oliveira, S., & Chiesa, C. D. (2016). Project and metamorphosis: Gilberto Velho’s contributions to career studies. Revista de Administração Contemporânea, 20(4), 458-476. doi: 10.1590/1982-7849rac2016140080
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). Com essas premissas, lança-se a base teórica para compreender como ocupações constroem suas trajetórias por meio de negociações internas e externas, incorporando, somando e modificando projetos individuais ou de grupos definidos por marcadores sociais de diferença, como gênero.

A abordagem teórico-metodológica proposta neste estudo considera que carreiras são lentes para vislumbrar processos sociais coletivos, os quais ocorrem tanto em profissões tradicionais como desviantes. Elegeu-se o campo da aviação, de histórico tradicional, normativo e masculino e, especificamente, a carreira de tripulante de cabine, inicialmente reservada para um grupo específico de mulheres, com construções de desvio. Nesse contexto, vislumbram-se possibilidades de pensar gênero como uma estrutura central e um marcador que atravessa todos os processos de construção profissional.

A essência feminina socialmente construída no interior da profissão e a mobilidade incomum para mulheres, especialmente nos anos 1920, época em que surgiu a profissão (Barry, 2007Barry, K. (2007). Femininity in flight: A history of flight attendants. Durham, USA: Duke University Press.; Duffy, Hancock, & Tyler, 2017; Sangster & Smith, 2016Sangster, J., & Smith, J. (2016). Beards and bloomers: Flight attendants, grievances and embodied labour in the Canadian airline industry, 1960s-1980s. Gender, Work & Organization, 23(2), 183-199. doi: 10.1111/gwao.12120
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; Tiemeyer, 2013Tiemeyer, P. (2013). Plane queer: Labor, sexuality, and AIDS in the history of male flight attendants. Oakland, USA: Univ. of California Press.; Whitelegg, 2007Whitelegg, D. (2007). Working the skies: The fast-paced, disorienting world of the flight attendant. New York, USA: New York University Press.), ativam um processo recursivo de memória pertinente para o estudo de carreira (DeLuca et al., 2016DeLuca, G., Rocha-de-Oliveira, S., & Chiesa, C. D. (2016). Project and metamorphosis: Gilberto Velho’s contributions to career studies. Revista de Administração Contemporânea, 20(4), 458-476. doi: 10.1590/1982-7849rac2016140080
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). O instinto cuidador e a aptidão para atividades domésticas, características consideradas naturais das mulheres, representaram o que se esperava do atendimento na aeronave: “elas conseguiram voar, mas no processo as companhias reivindicaram propriedade sob seus corpos e passaram a comercializar sua feminilidade” (Whitelegg, 2007Whitelegg, D. (2007). Working the skies: The fast-paced, disorienting world of the flight attendant. New York, USA: New York University Press., p. 35). Esse lugar feminizado também oportunizou um refúgio ocupacional para homens gays (Tiemeyer, 2013Tiemeyer, P. (2013). Plane queer: Labor, sexuality, and AIDS in the history of male flight attendants. Oakland, USA: Univ. of California Press.).

A partir do arcabouço teórico de Raewyn Connell (1987Connell, R. (1987). Gender and power: Society, the person, and sexual politics. Stanford, USA: Stanford University Press., 2016Connell, R. (2016). Gênero em termos reais. São Paulo, SP: nVersos., 2018Connell, R. (2018). Masculinities. Cambridge, UK: Policy Press.), considera-se que a atuação profissional construída em espaços generificados (Fraga & Rocha-de-Oliveira, 2020Fraga, A. M., & Rocha-de-Oliveira, S. (2020). Mobilidades no labirinto: Tensionando as fronteiras nas carreiras de mulheres. Cadernos EBAPE.BR, 18, 757-769. doi: 10.1590/1679-395120190141
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), como a aviação (Barry, 2007Barry, K. (2007). Femininity in flight: A history of flight attendants. Durham, USA: Duke University Press.; Castellitti, 2019Castellitti, C. (2019). Varig, “a Real Brazilian Embassy Outside”: Anthropological reflections on aviation and national imaginaries. The Journal of Transport History, 40(1), 82-105. doi: 10.1177/0022526618822132
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, 2020Castellitti, C. (2020). Sobre mães, navios e cachaça: Carreira, crise e desilusão numa empresa brasileira representada como “patrimônio da nação”. Mana, 26(3), 1-34. doi: 10.1590/1678-49442020v26n3a201
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; Silva, Uziel, & Rotengerg, 2014Silva, F. R. D., Uziel, A. P., & Rotenberg, L. (2014). Mulher, tempo e trabalho: O cotidiano de mulheres comissárias de voo. Psicologia & Sociedade, 26, 472-482. doi: 10.1590/S0102-71822014000200023
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; Tiemeyer, 2013Tiemeyer, P. (2013). Plane queer: Labor, sexuality, and AIDS in the history of male flight attendants. Oakland, USA: Univ. of California Press.; Whitelegg, 2007Whitelegg, D. (2007). Working the skies: The fast-paced, disorienting world of the flight attendant. New York, USA: New York University Press.), é marcada pela (re)produção de masculinidades e feminilidades que se traduzem em projetos de gênero (Connell; 2018; Schippers, 2007Schippers, M. (2007). Recovering the feminine other: Masculinity, femininity, and gender hegemony. Theory and Society, 36(1), 85-102. doi: 10.1007/S11186-007-9022-4
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). Este artigo retoma as bases interacionistas dos estudos de carreira com o objetivo de analisar a construção de projeto(s) de gênero, com referência a masculinidades e feminilidades, na carreira de comissárias e comissários de voo.

A CONSTRUÇÃO INTERACIONISTA DE CARREIRA

A teoria de carreira tem sua própria carreira (DeLuca et al., 2016DeLuca, G., Rocha-de-Oliveira, S., & Chiesa, C. D. (2016). Project and metamorphosis: Gilberto Velho’s contributions to career studies. Revista de Administração Contemporânea, 20(4), 458-476. doi: 10.1590/1982-7849rac2016140080
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), voltando-se ora para trajetórias individuais, ora para percursos nas organizações (Bendassolli, 2009Bendassolli, P. (2009). Recomposição da relação sujeito-trabalho nos modelos emergentes de carreira. RAE-Revista de Administração de Empresas, 49(4), 387-400. doi: 10.1590/S0034-75902009000400003
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; Gunz & Mayrhofer, 2018Gunz, H., & Mayrhofer, W. (2018). Rethinking career studies. Facilitating conversation across boundaries with the social chronology framework. Cambridge, UK: University Press.). Os primeiros estudos surgiram na área de Sociologia, no contexto norte-americano, sobretudo a partir do trabalho de Everett Hughes (1937Hughes, E. C. (1937). Institutional office and the person. American Journal of Sociology, 43(3), 404-413. Recuperado de https://www.jstor.org/stable/2768627
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, 1958Hughes, E. C. (1958). Men and their work. London, UK: The Free Press of Glencoe.), que destacava as dimensões objetivas e subjetivas de uma trajetória e a relação dinâmica entre indivíduo e contexto.

Nos anos 1970, as pesquisas focaram a compreensão das carreiras organizacionais (Hall, 1996Hall, D. T. (1996). Protean careers of the 21st century. Academy of Management Perspectives, 10(4), 8-16. Recuperado de https://www.jstor.org/stable/4165349
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; Maanen, 1978Maanen, J. Van. (1978). People processing: Strategies of organizational socialization. Organizational Dynamics, 7(1), 19-36. doi: 10.1016/0090-2616(78)90032-3
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; Schein, 1978Schein, E. H. (1978). Career dynamics: Matching individual and organizational needs (Vol. 6834). Boston, USA: Addison-Wesley.) e a particularidade da mobilidade intraorganizacional. A partir dos anos 1990, a perspectiva individual torna-se central, assim os trabalhos apontam para a capacidade de agência e indicam o arrefecimento das carreiras organizacionais. Nesse cenário, ganham destaque os modelos de carreira sem fronteiras de Arthur (1994)Arthur, M. B. (1994). The boundaryless career: A new perspective for organizational inquiry. Journal of Organizational Behavior, 15(4), 295-306. doi: 10.1002/job.4030150402
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e a carreira proteana de Hall (1996)Hall, D. T. (1996). Protean careers of the 21st century. Academy of Management Perspectives, 10(4), 8-16. Recuperado de https://www.jstor.org/stable/4165349
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, os quais dominam a discussão no campo por mais de uma década.

No início dos anos 2000, cresceu o número de trabalhos que indicavam a necessidade da retomada de uma análise interdisciplinar (Arthur, 2008Arthur, M. B. (2008). Examining contemporary careers: A call for interdisciplinary inquiry. Human Relations, 61, 163-186. doi: 10.1177/0018726707087783
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; Maanen, 2015Maanen, J. Van. (2015). The present of things past: Ethnography and career studies. Human Relations, 68(1), 35-53. doi: 10.1177/0018726714552287
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; Parker et al., 2009Parker, P., Khapova, S. N., & Arthur, M. B. (2009). The intelligent career framework as a basis for interdisciplinary inquiry. Journal of Vocational Behavior, 75(3), 291-302. doi: 10.1016/j.jvb.2009.04.001
https://doi.org/10.1016/j.jvb.2009.04.00...
) e surgiram propostas de retomada de pesquisas clássicas, que consideravam as dimensões individuais, organizacionais e contextuais na formação das carreiras. Entre essas propostas, destacam-se, no campo internacional, o framework de cronologia social de Gunz e Mayrhofer (2018)Gunz, H., & Mayrhofer, W. (2018). Rethinking career studies. Facilitating conversation across boundaries with the social chronology framework. Cambridge, UK: University Press., o modelo de carreiras sustentáveis de Vos, Heijden e Akkermans (2020)Vos, A. De, Heijden, B. Van der, & Akkermans, J. (2020). Sustainable careers: Towards a conceptual model. Journal of Vocational Behavior, 117.1-13. doi: 10.1016/j.jvb.2018.06.011
https://doi.org/10.1016/j.jvb.2018.06.01...
; e, no cenário nacional, a proposta neointeracionista, apresentada por DeLuca et al. (2016)DeLuca, G., Rocha-de-Oliveira, S., & Chiesa, C. D. (2016). Project and metamorphosis: Gilberto Velho’s contributions to career studies. Revista de Administração Contemporânea, 20(4), 458-476. doi: 10.1590/1982-7849rac2016140080
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.

Emergido na Escola de Chicago, o interacionismo simbólico cunhou uma posição influente do ponto de vista metodológico e conceitual. Entre os anos 1920 e 1960, a orientação interacionista propôs estudar as trajetórias e a conduta de pessoas e coletividades de modo distinto da Sociologia funcionalista ora em voga (Barley, 1989Barley, S. R. (1989). Careers, identities, and institutions: The legacy of the Chicago School of Sociology. Handbook of Career Theory, 41, 65. doi: 10.1017/CBO9780511625459.005
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; Mendonça, 2002Mendonça, J. R. C. (2002). Interacionismo simbólico: Uma sugestão metodológica para a pesquisa em administração. Revista Eletrônica de Administração, 8(2), 1-23. Recuperado de https://seer.ufrgs.br/index.php/read/article/view/46249/28826
https://seer.ufrgs.br/index.php/read/art...
). Herbert Blumer (criador do conceito e das premissas interacionistas), Everett Hughes (primeiro autor a conceituar carreira) e Howard Becker (pioneiro nos estudos de carreiras desviantes) são seus representantes mais conhecidos. Eles contribuíram para o entendimento da sociedade como um processo de interação entre as pessoas, das interpretações que elas fazem dos acontecimentos que vivenciam e das ações derivadas dessas interpretações. De maneira contínua e dinâmica, no tempo e no espaço, os sentidos são significados e (re)significados, conforme pessoas e grupos reciprocamente veem e vivem a realidade. A abordagem interacionista trouxe o entendimento sobre profissão como uma forma de socialização que acompanha a carreira, com base em Hughes (1937)Hughes, E. C. (1937). Institutional office and the person. American Journal of Sociology, 43(3), 404-413. Recuperado de https://www.jstor.org/stable/2768627
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. Nessa perspectiva teórica, todas as pessoas têm carreiras, e não há rupturas entre empregos, ofícios e profissões, bem como não há possibilidade de analisar carreiras separando pessoas e organizações (Hughes, 2003Hughes, E. C. (2003). Careers. In D. Harper & H. M. Lawson (Eds.), The cultural study of work (pp. 130-138). Blue Ridge Summit, USA: Rowman & Littlefield Publishers, Inc.; Maanen, 2015Maanen, J. Van. (2015). The present of things past: Ethnography and career studies. Human Relations, 68(1), 35-53. doi: 10.1177/0018726714552287
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).

As potencialidades da abordagem para administração (Mendonça, 2002Mendonça, J. R. C. (2002). Interacionismo simbólico: Uma sugestão metodológica para a pesquisa em administração. Revista Eletrônica de Administração, 8(2), 1-23. Recuperado de https://seer.ufrgs.br/index.php/read/article/view/46249/28826
https://seer.ufrgs.br/index.php/read/art...
) vêm sendo exploradas recentemente em estudos sobre carreiras não tradicionais ou desviantes (Barros et al., 2018Barros, L. E. V., Cappelle, M. C. A., Souza, R. B., & Lobato, C. B. P. (2018). Carreiras outsiders: Uma análise a partir da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Revista Gestão & Planejamento, 19(1), 121-136. doi: 10.21714/2178-8030gep.v19.4670
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, 2021Barros, L. E. V., Cappelle, M. C. A., & Guerra, P. (2021). Carreira outsider: Um estudo sobre o processo de rotulação da carreira de músico. Revista Eletrônica de Ciência Administrativa, 20(1), 194-225. doi: 10.21529/RECADM.2021007
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; DeLuca & Rocha-de-Oliveira, 2016DeLuca, G., & Rocha-de-Oliveira, S. (2016). Inked careers: Tattooing professional paths. BAR-Brazilian Administration Review, 13(4), art.3, 1-18. doi: 10.1590/1807-7692bar2016160081
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). A proposta de DeLuca et al. (2016)DeLuca, G., Rocha-de-Oliveira, S., & Chiesa, C. D. (2016). Project and metamorphosis: Gilberto Velho’s contributions to career studies. Revista de Administração Contemporânea, 20(4), 458-476. doi: 10.1590/1982-7849rac2016140080
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alinhou a abordagem interacionista com os conceitos do antropólogo Gilberto Velho para a análise de sociedades complexas, permitindo um distanciamento das formas dicotômicas indivíduo/organização, objetivo/subjetivo, homem/mulher - que intensificam, legitimam e naturalizam diferenças vivenciadas nas trajetórias. Carreira, por conseguinte, é simultaneamente “uma trajetória retrospectiva e projetada, dinâmica e mutável, de um indivíduo ou coletividade, revelando negociações entre objetividades e subjetividades” (DeLuca et al., 2016DeLuca, G., Rocha-de-Oliveira, S., & Chiesa, C. D. (2016). Project and metamorphosis: Gilberto Velho’s contributions to career studies. Revista de Administração Contemporânea, 20(4), 458-476. doi: 10.1590/1982-7849rac2016140080
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, p. 472). Salienta-se que o conceito adota uma concepção relacional e reflexiva entre pessoas e contextos (Gunz et al., 2011Gunz, H., Mayrhofer, W., & Tolbert, P. (2011). Career as a social and political phenomenon in the globalized economy. Organization Studies, 32(12), 1613-1620. doi: 10.1177/0170840611421239
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; Mayrhofer et al., 2007Mayrhofer, W., Meyer, M., & Steyrer, J. (2007). Contextual issues in the study of careers. In H. P. Gunz & M. Peiperl (eds), Handbook of career studies (pp. 215-240). London, UK: Sage Publications.), ao entender as carreiras individuais e coletivas como representativas das relações circunscritas em um tempo socio-histórico, tal como também é defendido no framework de cronologia social (Gunz & Mayrhofer, 2018Gunz, H., & Mayrhofer, W. (2018). Rethinking career studies. Facilitating conversation across boundaries with the social chronology framework. Cambridge, UK: University Press.).

O conceito considera a trajetória simultaneamente situada no passado, presente e futuro, que se dá por meio da negociação de projetos e metamorfoses individuais e coletivas. Seguindo Hughes (1937Hughes, E. C. (1937). Institutional office and the person. American Journal of Sociology, 43(3), 404-413. Recuperado de https://www.jstor.org/stable/2768627
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, 1958Hughes, E. C. (1958). Men and their work. London, UK: The Free Press of Glencoe.), integra os aspectos objetivos da carreira (status e cargos) e os subjetivos (interpretações por meio de interações individuais e coletivas), que podem ser vivenciados de modo plural em razão de gênero. Dilemas e conflitos (Hughes, 1937Hughes, E. C. (1937). Institutional office and the person. American Journal of Sociology, 43(3), 404-413. Recuperado de https://www.jstor.org/stable/2768627
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) sucedidos das interações objetivas e subjetivas durante a trajetória de vida são influenciados pelos papéis sociais e pelas características esperadas para determinadas posições profissionais, construídas de maneira histórica.

Ainda, a definição explora as noções de projeto, metamorfose, campo de possibilidades e negociação da realidade (Velho, 2003Velho, G. (2003). Projeto e metamorfose: Antropologia das sociedades complexas (3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed.). Os projetos representam condutas objetivas, direcionadas para alcançar propósitos também objetivos. Em nível individual, relaciona-se com “a performance, as explorações, o desempenho e as opções, ancoradas a avaliações e definições de realidade” (Velho, 2003Velho, G. (2003). Projeto e metamorfose: Antropologia das sociedades complexas (3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed., p. 27) Projetos influenciam uns aos outros durante a construção de uma carreira, podendo ser individuais ou coletivos (DeLuca et al., 2016DeLuca, G., Rocha-de-Oliveira, S., & Chiesa, C. D. (2016). Project and metamorphosis: Gilberto Velho’s contributions to career studies. Revista de Administração Contemporânea, 20(4), 458-476. doi: 10.1590/1982-7849rac2016140080
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). Importa dizer que projetos coletivos não são homogêneos, pois há espaço para interpretações conforme status, trajetória, geração e gênero, para citar alguns. A metamorfose é o processo de interação e mudança vivenciado por pessoas ao transitar pelas diferentes esferas da vida (Velho, 2003Velho, G. (2003). Projeto e metamorfose: Antropologia das sociedades complexas (3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed.). O campo de possibilidades representa o conjunto de alternativas que se manifesta no âmbito individual a partir do contexto sócio-histórico vivido. Ao deparar-se com a organização social, vivenciada pelas interações, trocas e conflitos, pessoas e grupos negociam diferenças e semelhanças, por meio de diversos significados simbólicos, por vezes de modo inconsciente. A esse processo dinâmico, dá-se o nome de negociação da realidade (Velho, 2003Velho, G. (2003). Projeto e metamorfose: Antropologia das sociedades complexas (3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed.).

Tomando como base os conceitos de projeto, campo de possibilidades, negociação da realidade e metamorfose, é possível uma construção integrativa (indivíduo-organizações- contexto social) e dinâmica. Cada pessoa pode alterar e ajustar seus projetos em virtude de outros particulares e em conjunto, utilizando do potencial de metamorfose. Infere-se, portanto, que, em qualquer meio de socialização, as especificidades de gênero, bem como outros marcadores sociais, influenciam tanto o projeto individual como o coletivo, assim como o campo de possibilidades disponível, sendo produzido e produtor de interações simbólicas negociadas.

PRODUÇÃO E REPRODUÇÃO DE GÊNERO: MASCULINIDADES E FEMINILIDADES PROJETADAS E RETROSPECTIVAS NAS CARREIRAS

Assim como os estudos de carreira, o conceito de gênero também tem uma trajetória, ou, pode-se dizer, gênero tem gênero. O termo é frequentemente utilizado sem discussão teórica, como uma variável fixa, relacionada ao sexo, ou como sinônimo para pesquisas sobre mulheres e acerca do feminino, sobretudo no campo da Administração (Fraga et al., 2019Fraga, A. M., Gemelli, C. E., & Rocha-de-Oliveira, S. (2019). Cenário das publicações científicas em carreira e gênero. Revista Pensamento Contemporâneo em Administração, 13(3), 158-178. doi: 10.12712/rpca.v13i3.2
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). A emergência histórica e contextual dos estudos de gênero, as origens e definições do conceito e as principais abordagens teóricas feministas tomaram forma a partir da década de 1960. Para além da questão das mulheres, gênero traz consigo um questionamento de padrões de masculinidade definidos na sociedade, já que padronização, em geral, reflete oposição a algum modelo (Connell & Messerschmidt, 2013Connell, R., & Messerschmidt, J. W. (2013). Hegemonic masculinity: Rethinking the concept. Revista Estudos Feministas, 21(1), 241-282. doi: 10.1590/S0104-026X2013000100014
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).

Pode-se entender gênero como uma estrutura central da vida social que produz e reproduz papéis, identidades, formações discursivas e classificações dos corpos (Connell, 2016Connell, R. (2016). Gênero em termos reais. São Paulo, SP: nVersos.). Tais considerações estão alinhadas com o entendimento de gênero para além de uma variável unitária, mas como perspectiva teórica, metodológica e política. A abordagem de gênero desafia os estudos de carreira a olharem para as estruturas sociais e institucionais que (re)produzem padrões normativos (Mayrhofer et al., 2007Mayrhofer, W., Meyer, M., & Steyrer, J. (2007). Contextual issues in the study of careers. In H. P. Gunz & M. Peiperl (eds), Handbook of career studies (pp. 215-240). London, UK: Sage Publications.). Tais padrões são, em grande parte, caracterizados pela desigualdade entre homens e mulheres, mas também envolvem outros elementos da construção de gênero.

O conceito de masculinidade hegemônica compreendido “como um padrão de práticas (i.e., coisas feitas, não apenas uma série de expectativas de papéis ou uma identidade) que possibilitou que a dominação dos homens sobre as mulheres continuasse” (Connell & Messerschmidt, 2013Connell, R., & Messerschmidt, J. W. (2013). Hegemonic masculinity: Rethinking the concept. Revista Estudos Feministas, 21(1), 241-282. doi: 10.1590/S0104-026X2013000100014
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, p. 245), apresenta novas dinâmicas nas relações de gênero, alertando para as relações de poder, dominação e hierarquização social, que não se restringem ao binarismo homem-mulher. A masculinidade hegemônica ocorre alinhada a um tipo específico de feminilidade - a feminilidade enfatizada - que é “definida em torno da complacência e orientada para acomodar os interesses e desejos dos homens” (Connell, 1987Connell, R. (1987). Gender and power: Society, the person, and sexual politics. Stanford, USA: Stanford University Press., p. 184). A abordagem proposta por Connell (1987)Connell, R. (1987). Gender and power: Society, the person, and sexual politics. Stanford, USA: Stanford University Press. para compreender a hegemonia de gênero também abarca as assimetrias das relações entre os homens. Além da feminilidade enfatizada, masculinidades subordinadas (como a de homens gays) compõem a ordem de gênero no cenário social.

Revisitando o conceito, Connell e Messerschmidt (2013)Connell, R., & Messerschmidt, J. W. (2013). Hegemonic masculinity: Rethinking the concept. Revista Estudos Feministas, 21(1), 241-282. doi: 10.1590/S0104-026X2013000100014
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refletiram sobre outros pontos críticos para a pesquisa, como a agência das masculinidades subordinadas. Discutem sobre as masculinidades de protesto (de grupos étnicos marginalizados), as masculinidades gays e a apropriação de características da masculinidade hegemônica por mulheres das elites ao construírem carreiras executivas (Connell & Messerschmidt, 2013Connell, R., & Messerschmidt, J. W. (2013). Hegemonic masculinity: Rethinking the concept. Revista Estudos Feministas, 21(1), 241-282. doi: 10.1590/S0104-026X2013000100014
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). Outrossim, alertaram para as ações das mulheres como “centrais em muitos dos processos de construção das masculinidades - como mães, colegas de classe, namoradas parceiras sexuais e esposas; como trabalhadoras na divisão sexual do trabalho” (Connell & Messerschmidt, 2013Connell, R., & Messerschmidt, J. W. (2013). Hegemonic masculinity: Rethinking the concept. Revista Estudos Feministas, 21(1), 241-282. doi: 10.1590/S0104-026X2013000100014
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, p. 266).

Esforços para avançar na teoria de Connell vêm sendo realizados por outras pesquisadoras e pesquisadores (Duncanson, 2015Duncanson, C. (2015). Hegemonic masculinity and the possibility of change in gender relations. Men and Masculinities, 18(2), 231-248. doi: 10.1177/1097184X15584912
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; Ferree, 2018Ferree, M. M. (2018). Theories don’t grow on trees: Contextualizing gender knowledge. In J. W. Messerschmidt, P. Y. Martin, M. A. Messner, & R. Connell (eds), Gender reckonings: New social theory and research. (pp. 13-34) New York, USA: New York University Press.; Messerschimidt, Martin & Messner, 2018; Schippers, 2007Schippers, M. (2007). Recovering the feminine other: Masculinity, femininity, and gender hegemony. Theory and Society, 36(1), 85-102. doi: 10.1007/S11186-007-9022-4
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). Schippers (2007)Schippers, M. (2007). Recovering the feminine other: Masculinity, femininity, and gender hegemony. Theory and Society, 36(1), 85-102. doi: 10.1007/S11186-007-9022-4
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propôs o aprofundamento do estudo sobre feminilidades, bem como a análise conjunta de masculinidades e feminilidades como projetos de gênero (Connell, 2018Connell, R. (2018). Masculinities. Cambridge, UK: Policy Press.; Schippers, 2007Schippers, M. (2007). Recovering the feminine other: Masculinity, femininity, and gender hegemony. Theory and Society, 36(1), 85-102. doi: 10.1007/S11186-007-9022-4
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):

Masculinidades e feminilidades podem tornar-se "projetos de gênero" na vida dos indivíduos, mas eles não se referem a características de [indivíduos] ou a tipos específicos de pessoas. Em vez de possuir ou ter a masculinidade, as pessoas se movem através de [masculinidades] e produzem masculinidades ao se envolverem em práticas masculinas. Desta forma, a masculinidade é um conjunto identificável de práticas que ocorrem no espaço e no tempo e são levadas adiante e promulgadas coletivamente por grupos, comunidades e sociedades. (Schippers, 2007Schippers, M. (2007). Recovering the feminine other: Masculinity, femininity, and gender hegemony. Theory and Society, 36(1), 85-102. doi: 10.1007/S11186-007-9022-4
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, p. 86)

Tais projetos de gênero podem assumir formatos distintos em cada campo profissional, mas sempre operam de modo relacional a estruturas - à ordem de gênero da sociedade e aos regimes de gênero institucionais (Messerschimidt et al, 2018) -, na medida em que homens e mulheres produzem e hierarquizam relações sociais com base em gênero. Duncanson (2015)Duncanson, C. (2015). Hegemonic masculinity and the possibility of change in gender relations. Men and Masculinities, 18(2), 231-248. doi: 10.1177/1097184X15584912
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considera que o desafio do equilíbrio das relações de gênero é o fato de que a masculinidade hegemônica mantém sua posição superior pela feminização de outros grupos de homens, reforçando, ao mesmo tempo, a compreensão das feminilidades como hierarquicamente inferiores.

Considera-se que campos profissionais generificados, ou seja, que foram constituídos por uma maioria de homens ou de mulheres, apresentam barreiras para pessoas que não contemplam o projeto de gênero esperado. Simpson (2005)Simpson, R. (2005). Men in non-traditional occupations: Career entry, career orientation and experience of role strain. Gender, Work & Organization, 12(4), 363-380. doi: 10.1111/j.1468-0432.2005.00278.x
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realizou pesquisa com enfermeiros, comissários de bordo, bibliotecários e professores do primário para compreender como ocorrem a inserção e a orientação profissional, bem como a possível existência de consequências atribuídas ao estereótipo de trabalhar em uma ocupação não tradicional para homens. Os resultados apontaram que pressupostos da feminilidade, como sensibilidade, beleza e cuidado, são exigidos desses profissionais.

Nos campos de trabalho tradicionalmente masculinos, as carreiras militares têm destaque. Häyrén (2016)Häyrén, A. (2016). Construction of masculinity: Constructions of context - relational process in everyday work. In A. Häyrén & H. W. Henriksson (Eds.), Critical perspectives on masculinities and relationalities: In relation to what? (pp. 56-66). Cham, Switzerland: Springer, em estudo etnográfico no corpo de bombeiros, destacou as interações entre contextos e pessoas na construção de masculinidades e na generificação de todos os processos da organização. Em pesquisa realizada com militares homens e mulheres, Hale (2008)Hale, H. C. (2008). The development of British military masculinities through symbolic resources. Culture & Psychology, 14(3), 305-332. doi: 10.1177/1354067X08092636
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encontrou a versão protegida do padrão de masculinidade instituída na organização militar britânica. Entrevistados e entrevistadas enfatizaram que “faziam o que faziam e eram quem eram simplesmente em razão de seu trabalho” (Hale, 2008Hale, H. C. (2008). The development of British military masculinities through symbolic resources. Culture & Psychology, 14(3), 305-332. doi: 10.1177/1354067X08092636
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, p. 327). Nota-se, portanto, que as masculinidades e as feminilidades se veem exacerbadas e exigem práticas objetivas e subjetivas de gênero no exercício da profissão.

Emergida no ambiente militar, a aviação civil é um espaço de trabalho com particularidades para o estudo de carreiras generificadas. O imaginário social histórico remete a uma combinação de segurança e serviço de voo impecáveis, diretamente relacionada ao exercício profissional de comandantes (pilotos) e aeromoças. Embora o trabalho de tripulante de cabine já existisse desde os anos 1920, o reconhecimento da profissão deu-se a partir da década de 1930, quando as companhias aéreas americanas passaram a contratar enfermeiras como comissárias e investiram fortemente em um padrão de feminilidade que atraísse passageiros (Barry, 2007Barry, K. (2007). Femininity in flight: A history of flight attendants. Durham, USA: Duke University Press.; Whitelegg, 2007Whitelegg, D. (2007). Working the skies: The fast-paced, disorienting world of the flight attendant. New York, USA: New York University Press.). O estudo mais conhecido sobre a carreira de comissárias e comissários de bordo é o livro de Hochschild (2003)Hochschild, A. R. (2003). The commercialization of intimate life: Notes from home and work. Oakland, USA: Univ. of California Press., originalmente publicado em 1983, que aborda a sociologia das emoções inerente à carreira (Santin & Kelly, 2017Santin, M., & Kelly, B. (2017). The managed heart revisited: Exploring the effect of institutional norms on the emotional labor of flight attendants post 9/11. Journal of Contemporary Ethnography, 46(5), 519-543. doi: 10.1177/0891241615619991
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).

Nota-se que, na construção de carreiras em diferentes campos profissionais, as masculinidades e feminilidades se veem exacerbadas e exigem práticas objetivas e subjetivas de gênero. Projetos de gênero incluem as especificidades da ordem social de gênero, aliadas a masculinidades e feminilidades, que influenciam projetos individuais e coletivos de carreira, assim como o campo de possibilidades disponível.

PERCURSO METODOLÓGICO

A realização da pesquisa segue a orientação de Connell e Messerschmidt (2013)Connell, R., & Messerschmidt, J. W. (2013). Hegemonic masculinity: Rethinking the concept. Revista Estudos Feministas, 21(1), 241-282. doi: 10.1590/S0104-026X2013000100014
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de analisar a construção interativa de masculinidades e feminilidades que ocorrem em nível local, seguindo o interacionismo simbólico como caminho metodológico (Mendonça, 2002Mendonça, J. R. C. (2002). Interacionismo simbólico: Uma sugestão metodológica para a pesquisa em administração. Revista Eletrônica de Administração, 8(2), 1-23. Recuperado de https://seer.ufrgs.br/index.php/read/article/view/46249/28826
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). O processo de coleta contemplou observação participante no curso exigido pela Agência Nacional da Aviação Civil (ANAC, 2005Agência Nacional da Aviação Civil. (2005). Manual do curso comissário de vôo. Recuperado de https://www.anac.gov.br/acesso-a-informacao/biblioteca/manuais-de-cursos-da-anac-1/mca5811.pdf
https://www.anac.gov.br/acesso-a-informa...
) para atuar como tripulante de cabine e análise de biografias (Riessman, 2013Riessman, C. K. (2013). Analysis of personal narratives. In A. E. Fortune, W. J. Reid, R. L. Miller, Jr. (Eds.), Qualitative research in social work. (pp. 168-191) New York, USA: Columbia University Press.) com comissárias(os) em diferentes momentos de suas carreiras. Todas as vivências em 16 meses de inserção no campo, bem como os sete meses nos quais uma das pesquisadoras realizou o curso, foram registradas em diários de campo, como indicado em pesquisas de cunho etnográfico (DeLuca & Rocha-de-Oliveira, 2016DeLuca, G., & Rocha-de-Oliveira, S. (2016). Inked careers: Tattooing professional paths. BAR-Brazilian Administration Review, 13(4), art.3, 1-18. doi: 10.1590/1807-7692bar2016160081
https://doi.org/10.1590/1807-7692bar2016...
; Maanen, 2015Maanen, J. Van. (2015). The present of things past: Ethnography and career studies. Human Relations, 68(1), 35-53. doi: 10.1177/0018726714552287
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). Utilizou-se um caderno de 96 folhas para registro do diário durante as aulas e os eventos, já que o uso de qualquer aparelho eletrônico é proibido nas escolas de aviação. O método é pertinente às pesquisas interacionistas (DeLuca & Rocha-de-Oliveira, 2016DeLuca, G., & Rocha-de-Oliveira, S. (2016). Inked careers: Tattooing professional paths. BAR-Brazilian Administration Review, 13(4), art.3, 1-18. doi: 10.1590/1807-7692bar2016160081
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) e comumente utilizado naquelas relacionadas à discussão de gênero (Castelitti, 2020; Hirshfield, 2015Hirshfield, L. E. (2015). “I just did everything physically possible to get in there”: How men and women chemists enact masculinity differently. Social Currents, 2(4), 324-340. doi: 10.1177/2329496515603727
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). O Quadro 1 resume as cinco etapas metodológicas principais da pesquisa.

Quadro 1
Etapas metodológicas da pesquisa

Foram realizados contatos com um total de 50 pessoas para a coleta das biografias. Destas, foi possível entrevistar 23 comissárias e comissários que trabalham (ou trabalharam) em companhias nacionais e internacionais, com idades e tempos de carreira variados. As entrevistas tiveram como questionamento principal “conte-me a sua história” (Connell, 2018Connell, R. (2018). Masculinities. Cambridge, UK: Policy Press.), permitindo que narrassem livremente suas trajetórias com o mínimo de interrupções possíveis. Com seis participantes, foi realizada uma segunda entrevista; e, com uma pessoa, uma terceira, tendo em vista a representatividade de suas histórias para o conjunto de biografias. Ao todo, foram coletadas 30 entrevistas, todas gravadas com consentimento e assinatura do termo de autorização. As entrevistas duraram entre 60 e 240 minutos cada uma, com tempo médio de 120 minutos, e foram integralmente transcritas para análise. Além disso, o mesmo caderno dos diários de campo foi utilizado para anotações após as entrevistas.

Para identificar as pessoas participantes, foram escolhidos nomes neutros, ou seja, que costumam ser utilizados tanto para homens como mulheres. A escolha de nomes neutros não teve intenção neutra: o objetivo é evitar que quaisquer características involuntariamente ligadas ao masculino ou ao feminino sejam antecipadas a quem lê. Ao mesmo tempo, possibilita evidenciar que os projetos de gênero da carreira são construídos por homens e mulheres ao longo de sua trajetória. A saber, das 23 pessoas entrevistadas, 15 são comissárias e oito, comissários. O Quadro 2 identifica cada participante, formação, tempo aproximado de experiência como tripulante de cabine, idade no ingresso na primeira companhia aérea e no momento da entrevista.

Quadro 2
Identificação de participantes

Na coleta, transcrição e análise, seguiu-se a perspectiva interacionista, na qual a história da carreira inclui toda a trajetória de vida. A análise biográfica proposta assume uma perspectiva histórica e original, que mobiliza memória e projeto, nas relações entre passado, presente e futuro, conforme narradas pelas pessoas participantes (DeLuca et al., 2016DeLuca, G., Rocha-de-Oliveira, S., & Chiesa, C. D. (2016). Project and metamorphosis: Gilberto Velho’s contributions to career studies. Revista de Administração Contemporânea, 20(4), 458-476. doi: 10.1590/1982-7849rac2016140080
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). As biografias foram coletadas e analisadas como narrativas temáticas (Riessman, 2005Riessman, C. K. (2005) Narrative analysis. In N. Kelly, C. Horrocks, K. Milnes, B. Roberts, & D. Robinson (Eds.), Narrative, memory and everyday life. Huddersfield, UK: University of Huddersfield.). Seguindo a perspectiva metodológica de Connell (2016Connell, R. (2016). Gênero em termos reais. São Paulo, SP: nVersos., 2018Connell, R. (2018). Masculinities. Cambridge, UK: Policy Press.), as histórias são teorizadas com o aporte teórico de gênero, e há um esforço para entender cada uma anteriormente a uma síntese coletiva. Assim, elaborou-se uma narrativa coletiva, descrevendo e analisando como os projetos de gênero são construídos e constantemente reafirmados ao longo da carreira das comissárias e dos comissários.

CARREIRAS GENERIFICADAS: PROJETOS DE GÊNERO DE COMISSÁRIAS E COMISSÁRIOS DE VOO

Optou-se por apresentar uma narrativa coletiva como um fio condutor que conta a história das(os) participantes e se constrói em três momentos: inicia pelo curso de formação, seguido pela entrada na companhia aérea e, por fim, o cotidiano da carreira. A narrativa segue as noções de tempo, dinamismo e coletividade (DeLuca et al., 2016DeLuca, G., Rocha-de-Oliveira, S., & Chiesa, C. D. (2016). Project and metamorphosis: Gilberto Velho’s contributions to career studies. Revista de Administração Contemporânea, 20(4), 458-476. doi: 10.1590/1982-7849rac2016140080
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) e vai ao encontro dos relatos e da interação com campo, tendo em vista as dimensões temporais e as negociações marcantes nas trajetórias.

O curso de form(ação): como se produz uma comissária e um comissário?

Na primeira aula, é anunciado pela instrutora: “Ou você se enquadra, ou você está fora”. Quanto mais “dentro da moldura”, termo usado com frequência no curso, maior a chance de contratação por uma companhia aérea. Esse enquadramento fortemente exigido durante o curso inclui a forma de vestir, portar, comunicar e interagir. Alunas e alunos inclusive comentam que são confundidas(os) com comissárias e comissários em atuação quando estão no transporte público a caminho da escola. Logo no início das atividades, escolhe-se uma liderança para a turma, equivalente a quem é chefe de cabine na aviação civil. Essa pessoa será responsável por disponibilizar os materiais de estudo extraclasse, chamar para o retorno à sala após horários de intervalo, cobrar postura adequada nas aulas e nas instalações do curso, acompanhar a organização do espaço no final de cada dia e resolver assuntos particulares ou do grupo com a direção.

É obrigatório o uso do uniforme, e ele deve estar sempre impecável: terno, camisa, sapato social e gravata para os homens; e vestido, blazer, meia-calça e sapato padrão para as mulheres. Para elas, é exigido que as unhas estejam sempre pintadas de vermelho, “misturinha” (tons claros em branco) ou tons amarronzados. A maquiagem deve ser perfeita e marcante, com uso de batom vermelho. O cabelo deve ser preso na altura das orelhas; se for feito rabo de cavalo, o máximo de comprimento é até o meio das costas. Cortes curtos ou médios podem ser usados, desde que não ultrapassem a altura do ombro. Para eles, a regra é cabelos curtos, barba feita e mãos limpas, sem unhas roídas. Toda a organização da estrutura do curso é baseada no binarismo homem ou mulher, sexo masculino ou feminino. O controle em todas as etapas de cada processo institucional e a reprodução cotidiana individual e coletiva da ordem de gênero são uma marca da dimensão relacional entre agência e estrutura generificadas (Häyrén, 2016Häyrén, A. (2016). Construction of masculinity: Constructions of context - relational process in everyday work. In A. Häyrén & H. W. Henriksson (Eds.), Critical perspectives on masculinities and relationalities: In relation to what? (pp. 56-66). Cham, Switzerland: Springer; Messerschimidt et al., 2018).

Há um intenso processo de ajustamento (na moldura) para a futura ocupação, que é atravessado por gênero a todo instante. Não há qualquer referência no manual da ANAC (2005)Agência Nacional da Aviação Civil. (2005). Manual do curso comissário de vôo. Recuperado de https://www.anac.gov.br/acesso-a-informacao/biblioteca/manuais-de-cursos-da-anac-1/mca5811.pdf
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sobre distinção por sexo no cumprimento das horas do curso. Contudo, sem explicação por parte da escola ou contestação por parte de estudantes, muitos dos movimentos treinados para que sejam realizados nas seleções e no dia a dia da profissão são normatizados com ações distintas para homens e mulheres - e é considerado o normal. Ensina-se uma forma diferenciada para cada sexo tirar e colocar sapatos e casacos, para sentar-se e levantar-se e apanhar objetos no chão, bem como posições adequadas para os braços ou pernas para permanecer em pé ou se sentar. Aulas de marketing pessoal e boas maneiras, relações interpessoais e etiqueta profissional são parte do conteúdo aprendido para atuar na área.

Para mulheres, o conteúdo ainda abrange aulas de maquiagem: higienização, tônico, hidratação, corretivo, base, pó facial, definição de sobrancelha, sombras, traçado nos olhos, máscara para cílios, lápis, contorno dos lábios, batom, blush, pó iluminador e fixador de maquiagem. “Ir para o trabalho sem estar maquiada dá a impressão de que você não conseguiu terminar de se arrumar”, diz a única mulher instrutora do curso. “Maquiar-se é natural da mulher”, diz um instrutor. “Eu quero que vocês sejam perfeitos”, aponta outro.

Um mundo imaginário, ou como diz Sidney, “um conto de fadas”, é construído para as turmas. Desde o momento em que iniciam as aulas, os alunos e as alunas recebem crachá e vestem uniforme que imitam os das companhias aéreas. Nos crachás, está escrito “comissário”, independentemente se homem ou mulher. Faz parte dos “10 mandamentos” apresentar-se na escola como se fossem profissionais, e não como estudantes de um curso - ir para a aula é ir para o trabalho. “É como se você fosse para um emprego” - relata Sidney. Embora a formação seja para a aviação comercial, as origens são militares e transparecem constantemente - tudo é tradicional e normativo. Há um reforço da aparência generificada, com destaque para o uso obrigatório de maquiagem, brincos e unhas esmaltadas para as mulheres.

Na formação do curso, a sexualidade é um assunto pouco abordado no que se refere à homossexualidade e muito ressaltado no que se refere à sexualidade das mulheres - considerando a heterossexualidade como norma. “Tudo na mulher gira em torno da procriação [...] e o homem é uma máquina de reproduzir, um carneiro cobre de oito a dez ovelhas. Se a nossa sociedade fosse como os animais, manteria apenas os melhores reprodutores”. (Excerto do diário de campo, fala de instrutor militar da reserva, dezembro de 2017)

O instrutor começou a citar Freud em aula, falando sobre a teoria de que a mulher só se realiza quando tem um filho homem. Até então não escutei nenhum comentário homofóbico, mas a todo tempo são sexistas [...] mais tarde o mesmo instrutor fala sobre o ativismo gay na aviação, diz que as companhias sempre estiveram à frente do tempo graças aos voos internacionais. "A maioria dos comissários é gay". (Excerto do diário de campo, novembro de 2017)

Apesar de as mulheres serem maioria nas turmas, falas machistas e estereótipos sobre papéis de gênero fazem parte do repertório dos instrutores em aula - mesmo que nenhum dos assuntos tenha qualquer relação com sexo ou gênero. “Isso não vai mudar nunca: a mulher tem uma análise micro, para proteger o ninho. O homem tem capacidade de visão macro, ele provê e protege, é o homem quem caça e dá segurança” (Excerto do diário de campo, fala de instrutor comissário, novembro de 2017). Isso inclui também a ideia de hierarquias ocupacionais relacionadas à imagem profissional com estereótipos de gênero, sexualidade e status de classe que acompanham a profissão desde o início (Castellitti, 2019Castellitti, C. (2019). Varig, “a Real Brazilian Embassy Outside”: Anthropological reflections on aviation and national imaginaries. The Journal of Transport History, 40(1), 82-105. doi: 10.1177/0022526618822132
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, 2020Castellitti, C. (2020). Sobre mães, navios e cachaça: Carreira, crise e desilusão numa empresa brasileira representada como “patrimônio da nação”. Mana, 26(3), 1-34. doi: 10.1590/1678-49442020v26n3a201
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; Duffy et al., 2017Duffy, K., Hancock, P., & Tyler, M. (2017). Still Red Hot? Postfeminism and gender subjectivity in the airline industry. Gender, Work & Organization, 24(3), 260-273. doi: 10.1177/1097184X15584912
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; Sangster & Smith, 2016Sangster, J., & Smith, J. (2016). Beards and bloomers: Flight attendants, grievances and embodied labour in the Canadian airline industry, 1960s-1980s. Gender, Work & Organization, 23(2), 183-199. doi: 10.1111/gwao.12120
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; Tiemeyer, 2013Tiemeyer, P. (2013). Plane queer: Labor, sexuality, and AIDS in the history of male flight attendants. Oakland, USA: Univ. of California Press.):

  • [Estudante] Tu indicaria que teu filho fosse comissário?

  • [Instrutor em silêncio... Pensa alguns instantes] Não, seria piloto.

  • [Estudante] Mas por quê? - demonstrando surpresa.

  • [Instrutor] É como perguntar se quero que meu filho seja enfermeiro ou médico. Médico. Gastronomia ou Direito? Direito. Para mim valeu a pena porque eu era de origem muito pobre, ele é filho único, eu posso pagar o curso de piloto. (Excerto do diário de campo, fala de instrutor, ex-comissário, dezembro de 2017)

Conforme Good e Cooper (2016)Good, L., & Cooper, R. (2016). ‘But it's your job to be friendly’: Employees coping with and contesting sexual harassment from customers in the service sector. Gender, Work & Organization, 23(5), 447-469. doi: 10.1111/gwao.12117
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lidar com o assédio sexual é comum em profissões na área de serviços. Para Hochshild (2003) e Santin & Kelly (2017)Santin, M., & Kelly, B. (2017). The managed heart revisited: Exploring the effect of institutional norms on the emotional labor of flight attendants post 9/11. Journal of Contemporary Ethnography, 46(5), 519-543. doi: 10.1177/0891241615619991
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passar por essas situações faz parte do trabalho emocional particularmente exigido de comissárias de bordo. Hochshild (2003), em pesquisa pioneira, apontou que as emoções de comissárias(os) são um produto considerado conjunto ao serviço de bordo. A recomendação em situações de assédio é manter o “politicamente correto”, ter “jogo de cintura” e “endurecer” a expressão facial, já que “é parte do seu serviço ser amigável”, como discutiram Good e Cooper (2016)Good, L., & Cooper, R. (2016). ‘But it's your job to be friendly’: Employees coping with and contesting sexual harassment from customers in the service sector. Gender, Work & Organization, 23(5), 447-469. doi: 10.1111/gwao.12117
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.

A primeira manifestação de uma aluna contrária a essa postura naturalizada na relação com passageiros, narrada como natural por instrutores, aconteceu quando já passava da metade do curso: a aluna disse que nem ela nem qualquer mulher gostaria de ser assediada enquanto trabalha. Entre comentários sobre “elogios, cantadas e convites” recebidos por comissárias durante os voos, o instrutor comentava sobre uma comissária que “se deu bem” ao casar-se com um empresário e contava histórias de comissárias que tinham “uma segunda profissão” [prostituição]. Os diálogos a seguir sintetizam esses momentos:

  • [Instrutor] Mulher comissária o que recebe de cantada... vocês vão sair do voo cheias de bilhetes!

  • [Estudante] Tem cantada que é muito vulgar, eu não gostaria disso no meu trabalho.

  • [Instrutor] Sim, é verdade. Mas têm várias que são muito bem elaboradas. Só fica encalhada quem quiser sendo comissária! [...] E tem comissárias que têm uma segunda profissão, chegam a ganhar entre quinze e vinte mil reais por mês. Eu tenho uma ex-aluna que ganha três mil por programa.

  • Silêncio. Continua a explicação da matéria e ninguém comenta. (Excerto do diário de campo, fevereiro de 2018)

Observa-se que negociações objetivas e subjetivas (DeLuca et al., 2016DeLuca, G., Rocha-de-Oliveira, S., & Chiesa, C. D. (2016). Project and metamorphosis: Gilberto Velho’s contributions to career studies. Revista de Administração Contemporânea, 20(4), 458-476. doi: 10.1590/1982-7849rac2016140080
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; Hughes, 1937Hughes, E. C. (1937). Institutional office and the person. American Journal of Sociology, 43(3), 404-413. Recuperado de https://www.jstor.org/stable/2768627
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) refletem nos corpos e nas atitudes de quem aspira ser comissária(o. Pessoas, normalmente jovens, vindas de cidades do interior, que ajustam seus projetos individuais ao projeto coletivo estabelecido para a carreira. Essa moldura, que começa a ser construída nos cursos de formação e que é (re)construída continuamente nos treinamentos das companhias, é requerida pelo potencial de metamorfose individual (Velho, 2003Velho, G. (2003). Projeto e metamorfose: Antropologia das sociedades complexas (3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed.) e reforçada pelo campo de possibilidades vivenciado coletivamente.

Marcado por normas e regras rígidas, em função da herança militar, o campo da aviação civil reúne carreiras das mais regulamentadas no mundo (Instituto Brasileiro de Aviação, 2018Instituto Brasileiro de Aviação. (2018). Anuário brasileiro de recursos humanos para a aviação civil. Recuperado de http://ahr-brazilianreport.com/arquivos/Anuario-Brasileiro-de-Recursos-Humanos-para-Aviacao-Civil-compressed.pdf
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). Tudo - os padrões, as condutas, a postura - é justificado pela necessidade de segurança. O curso, ao mesmo tempo em que enquadra alunas(os) em um padrão considerado esperado pelas companhias, serve como uma espécie de garantia para aprovação nos futuros processos seletivos. A formação para ser comissária ou comissário é em uma forma, sobretudo, de construção inicial dos projetos de gênero da carreira.

A produção para a futura carreira, vivida como presente, é orientada na imagem de projetos emoldurados, com a reafirmação constante das condutas que são necessárias para ingressar e permanecer na carreira. A ideia de adequação para o trabalho antecipadamente inclui ou exclui, em conformidade com as regras, valores e condutas culturalmente acordados, similarmente ao que Häyrén (2016)Häyrén, A. (2016). Construction of masculinity: Constructions of context - relational process in everyday work. In A. Häyrén & H. W. Henriksson (Eds.), Critical perspectives on masculinities and relationalities: In relation to what? (pp. 56-66). Cham, Switzerland: Springer observou na pesquisa com o corpo de bombeiros. Diante da procura muito superior à demanda das companhias, receber a indicação da escola para uma vaga em processos seletivos é um facilitador.

A entrada (emoldurada) na companhia aérea

Quem não realiza a formação exigida no Brasil também é enquadrado. Kelly conta sobre o treinamento na empresa em que atua, metade dedicada aos conhecimentos técnicos e outra metade voltada para aparência e postura física, com muito rigor em termos de imagem profissional.

[...] esse treinamento inicial, é para moldar e deixar todo mundo com uma consistência, tipo, que eu gosto de dizer, de "McDonald's", sabe? Toda vez que tu vai no McDonald's tu sabe o que tu espera, tu sabe como é que funciona o serviço, quais são os tipos de comida e tal, o treinamento então é mais ou menos o mesmo princípio [...] (Kelly)

A contratação direta para companhias estrangeiras, como no caso de Alex, Taylor, Charlie e Kelly, ressaltou a diferença significativa entre quem fez o curso e quem não, ainda que não fosse exigido. “[...] As meninas estavam vestidas até de comissária, tinham meninas que trabalhavam nas companhias aéreas do Brasil, então elas estavam assim perfeitas, e eu estava vestida para ir no escritório, digamos assim. Porque eu não tinha noção de como era” (Charlie). A justificativa com relação à imagem que deve ser produzida dá-se pela indicação de maior mobilidade do corpo (magro) e da segurança que isso representa em situações de risco, ainda que, a todo tempo, a aparência esteja atrelada a aspectos de beleza.

Outra coisa que acho que conta bastante na hora da seleção, hoje já não é mais tão forte essa política assim, mas... é loirinha, é alta, é magra, fala bem, sabe? Esses aspectos físicos, querendo ou não, eles contam bastante para trabalhar dentro do avião. Tem muito da agilidade, altura para pegar as coisas dentro do avião, é meio que um joguinho de lego, é tudo encaixado. (Muriel)

Embora acabem, por costume ou obrigatoriedade, seguindo a norma, a exigência com a aparência é algo que desagrada em especial as mulheres - já que “nos homens não há muito o que mudar” (Mica) -, o que pode ser compreendido como potencial de metamorfose (DeLuca et al., 2016DeLuca, G., Rocha-de-Oliveira, S., & Chiesa, C. D. (2016). Project and metamorphosis: Gilberto Velho’s contributions to career studies. Revista de Administração Contemporânea, 20(4), 458-476. doi: 10.1590/1982-7849rac2016140080
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) estabelecido em caminhos diferentes e pautado na diferença de gênero.

As meninas, principalmente, os homens não, porque não tem muito o que mudar no homem, né? [...] para as mulheres, ainda sempre eu acho que um batom, uma maquiagem básica, é... eu acho que é um diferencial, as pessoas se sentem bem. Hoje, as pessoas não estão mais aí. Com relação ao peso também assim, a gente vê, você vê pessoas hoje bastante gordas nos voos, assim, não sei, então os critérios mudaram bastante [...] (Mica)

No que tange às metamorfoses e negociações objetivas e subjetivas exigidas pela atuação profissional, que mobilizam a vivência (de gênero) retrospectiva, em função do projeto (de gênero) futuro, Tainã conta sobre uma colega que conheceu antes de se tornar comissária, relatando a mudança que ocorreu quando esta passou a atuar na função.

[...] ela se recusava a usar saia para trabalhar, ela não trabalhava de saia, ela olhava e dizia: "eu detesto saia, eu só uso saia se for obrigada, se a minha calça rasgar" [...] ela não queria usar maquiagem e a empresa exigia, [...] Então, tu vê, os meninos que gostariam de usar maquiagem, às vezes, no voo, não podiam. E as meninas que não queriam, eram obrigadas. (Tainã)

Apesar do reforço dos estereótipos contidos no padrão de aeromoça, enfatizar as qualidades “femininas” protegeu a ocupação e possibilitou crescimento sem oposição dos homens (Barry, 2007Barry, K. (2007). Femininity in flight: A history of flight attendants. Durham, USA: Duke University Press.; Whitelegg, 2007Whitelegg, D. (2007). Working the skies: The fast-paced, disorienting world of the flight attendant. New York, USA: New York University Press.). A feminilidade enfatizada, pactuada com as noções de cuidado, empatia e outras virtudes consideradas femininas, é central para o entendimento das relações de poder que envolvem gênero (Connell & Messerschimidt, 2013; Messerschimidt et al., 2018). Além da compulsoriedade da maquiagem, a carreira, bem como sua imagem correspondente, foi construída por mulheres brancas, que deveriam ser e permanecer solteiras, de classe média, com idades entre 21 e 27 anos, aposentadoria programada para, no máximo, 35 anos e peso e altura preestabelecidos (Tiemeyer, 2013Tiemeyer, P. (2013). Plane queer: Labor, sexuality, and AIDS in the history of male flight attendants. Oakland, USA: Univ. of California Press.; Whitelegg, 2007Whitelegg, D. (2007). Working the skies: The fast-paced, disorienting world of the flight attendant. New York, USA: New York University Press.). Cabe ressaltar que, até poucos anos atrás, as companhias realizavam o procedimento de peso e altura nos processos seletivos, o que foi comentado no curso como possibilidade de acontecer e, pelas(os) entrevistadas(os), como algo comum para quem está na carreira há mais de cinco anos.

Embora represente a ideia de uma vida móvel, pelo caráter de mobilidade imediata, no tempo e no espaço da profissão, a intenção de seguir carreira internacional ou voar por companhias nacionais para o exterior não é um objetivo comum. Tendo em vista que os voos são mais longos e desgastantes, alunos e alunas acreditam que não compense o que ganhariam a mais. Além da possibilidade de viajar e conhecer lugares novos, o salário, que gira em torno de R$ 5.000,00 a R$ 7.000,00 (Instituto Brasileiro de Aviação, 2018Instituto Brasileiro de Aviação. (2018). Anuário brasileiro de recursos humanos para a aviação civil. Recuperado de http://ahr-brazilianreport.com/arquivos/Anuario-Brasileiro-de-Recursos-Humanos-para-Aviacao-Civil-compressed.pdf
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), é considerado um dos principais atrativos, mais ainda para alguém jovem, que dificilmente ganharia o mesmo como iniciante em outra carreira. A possível mobilidade social e o status associado ao viajar contribuem para o efeito normalizador da ocupação. Jovens de cidades do interior buscando ingresso numa ocupação com indicativos de rápido retorno aceitam naturalmente as imposições requeridas para a atividade. Outrossim, ao contrário da desigualdade salarial entre mulheres e homens, comum a quase todas as carreiras no Brasil (Fraga & Rocha-de-Oliveira, 2020Fraga, A. M., & Rocha-de-Oliveira, S. (2020). Mobilidades no labirinto: Tensionando as fronteiras nas carreiras de mulheres. Cadernos EBAPE.BR, 18, 757-769. doi: 10.1590/1679-395120190141
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), para comissárias isso não acontece, tendo em vista que o salário é padronizado.

O perfil das(os) participantes também corrobora o levantamento do Instituto Brasileiro de Aviação (2018)Instituto Brasileiro de Aviação. (2018). Anuário brasileiro de recursos humanos para a aviação civil. Recuperado de http://ahr-brazilianreport.com/arquivos/Anuario-Brasileiro-de-Recursos-Humanos-para-Aviacao-Civil-compressed.pdf
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, que indica uma maioria de profissionais com nível superior, faixa etária de 25 a 34 anos e que permanece na carreira por mais de cinco anos - apesar de a média de permanência ser de sete anos, o que se refletiu nas falas por duas razões principais: a instabilidade na aviação, o que motiva a construção de outras opções de carreira, e os efeitos nocivos da pressurização no corpo. Chama a atenção o número de cursos de graduação começados e não concluídos, justificados pela dificuldade de conciliar horários rotineiros com suas escalas móveis.

O cotidiano (generificado) da carreira

Quase todas as narrativas contêm aspectos direta ou indiretamente relacionados com gênero e imagem-imaginário e, por consequência, com masculinidades e feminilidades, elementos que estruturam a carreira de comissários(as), ainda que, por vezes, elas(es) não percebam ou encarem como algo da ordem do senso comum. De tal modo, surgem contradições nas narrativas, como a percepção sobre igual número de homens e mulheres na carreira, a preferência indireta por um dos sexos nas contratações ou casos de assédio e discriminação de gênero e a relação hierárquica entre comissárias(os) e pilotos.

A relação com os comandantes também tem costumes próprios: “normalmente eles dão a mão pra gente subir na van, uma cortesia, que, pra mim, sinceramente, não faz diferença nenhuma, mas, né, aquele folclore...” (Alison). Outras regras, no mesmo sentido, costumavam ser seguidas na carreira:

[...] quando eu entrei, tinha uma posição que o comissário ficava, o auxiliar três, que fica lá na frente junto com o chefe, sempre tinha que ser mulher, sempre, não podia ser homem, por mais que fosse a mulher mais antiga do voo, ela tinha que estar lá na frente do lado do chefe [...] (Ariel)

A hierarquia da profissão e entre profissões, construída com segregação por sexo e por ideais de masculinidade (Connell, 2016Connell, R. (2016). Gênero em termos reais. São Paulo, SP: nVersos., 2018Connell, R. (2018). Masculinities. Cambridge, UK: Policy Press.; Häyrén, 2016Häyrén, A. (2016). Construction of masculinity: Constructions of context - relational process in everyday work. In A. Häyrén & H. W. Henriksson (Eds.), Critical perspectives on masculinities and relationalities: In relation to what? (pp. 56-66). Cham, Switzerland: Springer), é relato comum. Dominique conta que comandantes representam a autoridade máxima e, resguardados pelo poder atrelado à função, intimidam homens gays, de modo homofóbico, e mulheres, de maneira assediadora, que se sentem coagidas(os) a não denunciar para a empresa, apesar de o código de ética ser bastante rígido. O conceito de masculinidade hegemônica, nesse sentido, é observado na perspectiva relacional, quando hierarquiza formas não hegemônicas de masculinidade (Messerschimidt & et al 2018), como no caso de homens homossexuais. Alison refletiu sobre a forma como essas dinâmicas de poder ultrapassam o espaço profissional ao relatar que “nessa relação, em que a gente trabalha muito com hierarquia, desde tu entrar na van para o aeroporto, é uma hierarquia bem pesada, e eles se prevalecem disso às vezes. Muitas vezes é abuso”.

A fala sobre o contexto atual condiz com o que Alex conta sobre os motivos de sua família não apoiar que trabalhasse na aviação, em meados da década de 1980, em razão da visão negativa e erotizada da relação entre comissárias(os) e pilotos (Duffy et al., 2017Duffy, K., Hancock, P., & Tyler, M. (2017). Still Red Hot? Postfeminism and gender subjectivity in the airline industry. Gender, Work & Organization, 24(3), 260-273. doi: 10.1177/1097184X15584912
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). Alex também conta sobre a semelhança da profissão com a hierarquia e a erotização da relação profissional entre médicos e enfermeiras: “não é só essa profissão, a mesma coisa é com os médicos, a enfermeira, naquela época, no Brasil, também se dizia que tinha perigo que elas andavam com médicos”. O relato corrobora Barry (2007)Barry, K. (2007). Femininity in flight: A history of flight attendants. Durham, USA: Duke University Press. e Whitelegg (2007)Whitelegg, D. (2007). Working the skies: The fast-paced, disorienting world of the flight attendant. New York, USA: New York University Press., que, ao narrarem a história da profissão, relacionam a proximidade da dinâmica hospitalar com a da aviação, já que inicialmente o cargo de aeromoça era ocupado unicamente por mulheres enfermeiras. A marcação de gênero, portanto, está presente na divisão do espaço interno da aeronave e nas atribuições - de modo que a cabine de comando e a autoridade decisória são reservadas para pilotos, já o atendimento aos passageiros e o cuidado ficam a cargo das comissárias.

As referências tradicionais da profissão para atrair, entreter e tranquilizar passageiros(as) - e os atributos naturalizados como das mulheres - fazem-se presentes. Destaca-se que a vivência da carreira configura um ponto de virada no projeto de gênero referente à aparência, indicando outra metamorfose individual, com base na referência coletiva de quem já é comissária(o). Mica critica a despreocupação com a imagem e ganho de peso, o que é considerado também um motivo para a perda do prestígio e do glamour da profissão, ligada a uma feminilidade enfatizada (Connell, 2018Connell, R. (2018). Masculinities. Cambridge, UK: Policy Press.; Connell & Messerschimidt, 2013; Messerschimidt et al, 2018). “As companhias aéreas só contratavam loiras altas, geralmente solteiras, tinham esses critérios, a maioria eram mulheres, homens eram poucos, né... porque a mulher sempre foi, é... seria uma moeda de troca, a beleza da mulher no voo chama passageiros” (Mica).

Ancorada, sobretudo, no sexismo e na homofobia, a construção social de masculinidades está diretamente ligada à relação dos homens com as mulheres e com os outros homens (Connell, 2018Connell, R. (2018). Masculinities. Cambridge, UK: Policy Press.; Connell & Messerschmidt, 2013Connell, R., & Messerschmidt, J. W. (2013). Hegemonic masculinity: Rethinking the concept. Revista Estudos Feministas, 21(1), 241-282. doi: 10.1590/S0104-026X2013000100014
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; Duncanson, 2015Duncanson, C. (2015). Hegemonic masculinity and the possibility of change in gender relations. Men and Masculinities, 18(2), 231-248. doi: 10.1177/1097184X15584912
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). Foi relatado que situações de machismo e preconceito acontecem, principalmente, na relação entre tripulantes de cabine e comandantes, apesar dos muitos homossexuais na profissão, a maioria homens.

Eles dizem até que tem uma base sobre isso [preferência por mulheres ou por feminilidade] é porque neste ambiente pressurizado e às vezes em que as pessoas têm medo, ou ficam muito nervosas, ou elas sofrem muita influência de álcool, é melhor tu estar sendo atendido por este toque feminino. Então, por isso que às vezes, a aviação tem preferência até pelos homens afeminados, independentemente de serem gays ou não, por homens mais delicados e por mulheres também, quanto mais delicadinha, mais menininha ela for, mais ela vai, mais a empresa aérea vai gostar de ter ela no seu perfil. (Tainã)

É possível notar que as práticas sociais que envolvem o treinamento e a atuação profissional da carreira de comissária e comissário refletem o gênero como corporificação social (Connell, 2016Connell, R. (2016). Gênero em termos reais. São Paulo, SP: nVersos.). Na medida em que se produzem de modo enquadrado e generificado para atuarem profissionalmente, homens e mulheres mobilizam a trajetória retrospectiva, compondo em dinâmica de metamorfose constante o projeto individual (DeLuca & Rocha-de-Oliveira, 2016DeLuca, G., & Rocha-de-Oliveira, S. (2016). Inked careers: Tattooing professional paths. BAR-Brazilian Administration Review, 13(4), art.3, 1-18. doi: 10.1590/1807-7692bar2016160081
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). Assim, é possível perceber nas carreiras o caráter relacional entre pessoas, organizações e contextos.

DISCUSSÃO: PROJETO(S) DE GÊNERO NA CARREIRA DE COMISSÁRIA E COMISSÁRIO DE VOO

A pesquisa permitiu compreender que a construção da carreira de comissária e comissário, desde o curso de formação, aponta para a formulação de um projeto de gênero (Connell & Pearse, 2015Connell, R., & Pearse, R. (2015). Gênero: Uma perspectiva global. São Paulo, SP: nVersos.; Schippers, 2007Schippers, M. (2007). Recovering the feminine other: Masculinity, femininity, and gender hegemony. Theory and Society, 36(1), 85-102. doi: 10.1007/S11186-007-9022-4
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) que revela uma hierarquização de masculinidades e feminilidades, reproduz com traços próprios o sexismo institucionalizado e reforça a masculinidade hegemônica e a feminilidade enfatizada (Connell, 1987Connell, R. (1987). Gender and power: Society, the person, and sexual politics. Stanford, USA: Stanford University Press., 2018Connell, R. (2018). Masculinities. Cambridge, UK: Policy Press.; Connell & Messerschimidt, 2013; Messerschimidt et al, 2018; Schippers, 2007Schippers, M. (2007). Recovering the feminine other: Masculinity, femininity, and gender hegemony. Theory and Society, 36(1), 85-102. doi: 10.1007/S11186-007-9022-4
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). Quem não se adequar (Häyrén, 2016Häyrén, A. (2016). Construction of masculinity: Constructions of context - relational process in everyday work. In A. Häyrén & H. W. Henriksson (Eds.), Critical perspectives on masculinities and relationalities: In relation to what? (pp. 56-66). Cham, Switzerland: Springer) na moldura - expressão repetida no curso - cultural e socialmente construída para esse projeto está fora da profissão. Há múltiplas mensagens de exclusão (Häyrén, 2016Häyrén, A. (2016). Construction of masculinity: Constructions of context - relational process in everyday work. In A. Häyrén & H. W. Henriksson (Eds.), Critical perspectives on masculinities and relationalities: In relation to what? (pp. 56-66). Cham, Switzerland: Springer), seja na reprovação em disciplinas do curso, em comentários a respeito de que a roupa ou postura está inadequada, em resultados de processos seletivos, análise de colegas sobre insucessos ou na avaliação das companhias aéreas.

O projeto predominante é codificado e balizado por sanções e normas que definem, para além da aparência, regramentos sobre desejos, emoções e sentimentos, classificando-os como próprios ou impróprios aos padrões normalizados e generificados. De tal modo, a produção de gênero (Connell, 1987Connell, R. (1987). Gender and power: Society, the person, and sexual politics. Stanford, USA: Stanford University Press., 2016Connell, R. (2016). Gênero em termos reais. São Paulo, SP: nVersos., 2018Connell, R. (2018). Masculinities. Cambridge, UK: Policy Press.), encontrada localmente e de modo relacional (Connell & Messerschmidt, 2013Connell, R., & Messerschmidt, J. W. (2013). Hegemonic masculinity: Rethinking the concept. Revista Estudos Feministas, 21(1), 241-282. doi: 10.1590/S0104-026X2013000100014
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; Messerschmidt et al., 2018Messerschmidt, J. W., Martin, P. Y., & Messner, M. A. (2018). Hegemonic, nonhegemonic, and “new” masculinities. In J. W. Messerschmidt, P. Y. Martin, M. A. Messner, & R. Connell (eds), Gender reckonings: New social theory and research (pp. 35-56). New York, USA: New York University Press.), é chancelada por práticas objetivas e subjetivas de gênero, com referência a masculinidades hegemônicas e não hegemônicas e a feminilidades enfatizadas, coletivamente pactuadas. Para tal, o potencial de metamorfose individual é mobilizado (DeLuca et al., 2016DeLuca, G., Rocha-de-Oliveira, S., & Chiesa, C. D. (2016). Project and metamorphosis: Gilberto Velho’s contributions to career studies. Revista de Administração Contemporânea, 20(4), 458-476. doi: 10.1590/1982-7849rac2016140080
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; Velho, 2003Velho, G. (2003). Projeto e metamorfose: Antropologia das sociedades complexas (3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed.) para que profissionais se movam, se construam e/ou se transformem, adequando-se ao campo de possibilidades da carreira.

No ambiente de origem militar e fortemente generificado da aviação (Barry, 2007Barry, K. (2007). Femininity in flight: A history of flight attendants. Durham, USA: Duke University Press.; Castelitti, 2020; Whitelegg, 2007Whitelegg, D. (2007). Working the skies: The fast-paced, disorienting world of the flight attendant. New York, USA: New York University Press.), a carreira surge ligada à mobilidade e à liberdade, características historicamente atreladas ao masculino. No entanto, sob amparo da ordem normativa de feminilidade (Connell, 1987Connell, R. (1987). Gender and power: Society, the person, and sexual politics. Stanford, USA: Stanford University Press., 2016Connell, R. (2016). Gênero em termos reais. São Paulo, SP: nVersos., 2018Connell, R. (2018). Masculinities. Cambridge, UK: Policy Press.), é construído um espaço de “trabalho feminino” - baseado na sedução, na delicadeza e na capacidade única de tornar as horas dentro do ambiente pressurizado do avião uma experiência prazerosa, potencializando o trabalho emocional (Barry, 2007Barry, K. (2007). Femininity in flight: A history of flight attendants. Durham, USA: Duke University Press.; Sangster & Smith, 2016Sangster, J., & Smith, J. (2016). Beards and bloomers: Flight attendants, grievances and embodied labour in the Canadian airline industry, 1960s-1980s. Gender, Work & Organization, 23(2), 183-199. doi: 10.1111/gwao.12120
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). Por se tratar de uma carreira marcada pela significativa presença feminina, a desconstrução do espaço de liberdade está presente nas relações com a ocupação masculina (os pilotos) também ligada à aviação. Nesse contexto, masculinidades e feminilidades são projetos de gênero percebidos em processos e ações cotidianos, dinâmicos e relacionais, não se tratando de uma configuração estática. A análise do(s) projeto(s) de gênero que emoldura(m) a carreira de comissárias e comissários de voo pode ser produzida em diferentes etapas, somadas e, por vezes, sobrepostas, em quatro pontos relacionais, um processo contínuo de negociação e metamorfose de projetos individuais (Velho, 2003Velho, G. (2003). Projeto e metamorfose: Antropologia das sociedades complexas (3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed.).

Primeiro, a carreira é almejada por jovens que veem inicialmente o glamour da atividade, permitindo uma mudança de vida pela remuneração e pelo estilo de vida possibilitado pelo movimento constante, proporcionando liberdade e acesso a lugares que talvez não acessariam ou teriam mais dificuldade para acessar em uma carreira tradicional. Além disso, para jovens homossexuais, o afastamento do contexto de origem é relatado como liberdade para maior expressão de sua sexualidade (Tiemeyer, 2013Tiemeyer, P. (2013). Plane queer: Labor, sexuality, and AIDS in the history of male flight attendants. Oakland, USA: Univ. of California Press.). A construção da carreira é estruturada no binarismo de gênero e é orientada por intersecções que envolvem elementos, por vezes, em contradição: a militarização e a ideia de segurança, características da masculinidade hegemônica (Connell, 1987Connell, R. (1987). Gender and power: Society, the person, and sexual politics. Stanford, USA: Stanford University Press., 2018Connell, R. (2018). Masculinities. Cambridge, UK: Policy Press.), estruturam-se em complementaridade a um tipo particular de feminilidade, que se harmoniza com a feminilidade/masculinidade esperada do homem homossexual. Em nome da liberdade, jovens dispõem-se a metamorfoses individuais que são, sobretudo, condutas regradas e direcionadas para alcançar propósitos objetivos (DeLuca et al., 2016DeLuca, G., Rocha-de-Oliveira, S., & Chiesa, C. D. (2016). Project and metamorphosis: Gilberto Velho’s contributions to career studies. Revista de Administração Contemporânea, 20(4), 458-476. doi: 10.1590/1982-7849rac2016140080
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). Ao depararem-se com conflitos e dilemas (Hughes, 1937Hughes, E. C. (1937). Institutional office and the person. American Journal of Sociology, 43(3), 404-413. Recuperado de https://www.jstor.org/stable/2768627
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), os projetos individuais de aspirantes à profissão dialogam e negociam a realidade vivida na medida em que metamorfoseiam projetos inspirados na moldura de projetos de gênero que são construídos coletivamente.

Segundo, o campo de possibilidades da carreira de comissárias(os) é marcado principalmente pela herança militar e pela hierarquia de ocupações. A formação ocorre pela formatação de comissárias(os) e pilotos dentro desse campo. A homofobia é velada, mas não é ausente, tendo em vista que todos os aspectos do feminino são mencionados como subalternos, exceto naquilo que serve como complementar à masculinidade hegemônica - o que, também, é o caso da aceitação de homens de masculinidade gay (Tiemeyer, 2013Tiemeyer, P. (2013). Plane queer: Labor, sexuality, and AIDS in the history of male flight attendants. Oakland, USA: Univ. of California Press.) na carreira, mas de modo subordinado, como apontado na teoria de Connell (2018)Connell, R. (2018). Masculinities. Cambridge, UK: Policy Press.. O discurso generificado pela hierarquia profissional exige ajustes nos projetos individuais, que passam por metamorfoses e negociação e são compensados pela liberdade e pelo status financeiro proporcionado. O campo de atuação, que surgiu como espaço de liberdade laboral para mulheres, foi condicionado segundo padrões de hierarquia de masculinidades e feminilidades (Barry, 2007Barry, K. (2007). Femininity in flight: A history of flight attendants. Durham, USA: Duke University Press.; Sangster, & Smith, 2016; Santin, & Kelly, 2017; Whitelegg, 2007Whitelegg, D. (2007). Working the skies: The fast-paced, disorienting world of the flight attendant. New York, USA: New York University Press.) ao longo do tempo, evidenciando que práticas de gênero envolvem relações dinâmicas (Ferree, 2018Ferree, M. M. (2018). Theories don’t grow on trees: Contextualizing gender knowledge. In J. W. Messerschmidt, P. Y. Martin, M. A. Messner, & R. Connell (eds), Gender reckonings: New social theory and research. (pp. 13-34) New York, USA: New York University Press.) entre pessoas, ocupações e contextos. A atividade que inicialmente era predominantemente feminina passa a ser ocupada por homens que se subordinam à masculinidade hegemônica, representada pelos pilotos. Ainda que não sejam homossexuais, estereótipo mais frequente, a masculinidade dos comissários é subordinada à dos pilotos.

Terceiro, destaca-se a produção das masculinidades e feminilidades que representam a carreira. O processo é uma padronização generificada ou generização padronizada que se inicia nos cursos de formação. Embora os conteúdos não tenham qualquer relação com sexo-gênero, todo aprendizado é generificado. Os movimentos são binários, indicando formas distintas de agir para homens e mulheres. A relação com os pilotos é normatizada numa hierarquia de masculinidades e feminilidades: pilotos (aparentemente, independentemente de sexualidade) representam a masculinidade hegemônica e assumem o topo da hierarquia da tripulação. Outras masculinidades e feminilidades estão subjugadas a esta em todos os momentos que estiverem em interação, algo constantemente enfatizado na formação. Nesse sentido, percebe-se que há um movimento contínuo entre carreiras e contextos que aproximam a perspectiva de Mayrhofer et al. (2007)Mayrhofer, W., Meyer, M., & Steyrer, J. (2007). Contextual issues in the study of careers. In H. P. Gunz & M. Peiperl (eds), Handbook of career studies (pp. 215-240). London, UK: Sage Publications. com o arcabouço teórico de Connell (1987Connell, R. (1987). Gender and power: Society, the person, and sexual politics. Stanford, USA: Stanford University Press., 2016Connell, R. (2016). Gênero em termos reais. São Paulo, SP: nVersos., 2018Connell, R. (2018). Masculinities. Cambridge, UK: Policy Press.), que considera a dinamicidade da estrutura social e a possibilidade de ampliação e restrição da agência coletiva (Messerschimidt et al., 2018), ultrapassando a noção de gênero como atributos ou características individuais e fixas. Observa-se, contudo, que construções coletivas exigem metamorfoses individuais ao longo da trajetória. O conjunto formado pelas masculinidades hegemônica e não hegemônica e pela feminilidade enfatizada e suas variações - no sentido de cooperação com o regime de gênero dominante (Connell, 1987Connell, R. (1987). Gender and power: Society, the person, and sexual politics. Stanford, USA: Stanford University Press., 2018Connell, R. (2018). Masculinities. Cambridge, UK: Policy Press.; Messerschimidt et al, 2018; Schippers, 2007Schippers, M. (2007). Recovering the feminine other: Masculinity, femininity, and gender hegemony. Theory and Society, 36(1), 85-102. doi: 10.1007/S11186-007-9022-4
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) - é referência na formação e nos estereótipos que marcaram a história da profissão e que permanecem em voga, em especial: a questão do corpo, do peso, da idade e da sexualidade.

Entretanto, as pessoas entrevistadas percebem que há um processo de transformação, sobretudo no que se refere à imagem e à aparência pessoal, já que, na vivência da carreira, a cobrança não ocorre com a mesma rigidez dos cursos de formação. Evidencia-se que nova metamorfose pode estar em curso (DeLuca et al., 2016DeLuca, G., Rocha-de-Oliveira, S., & Chiesa, C. D. (2016). Project and metamorphosis: Gilberto Velho’s contributions to career studies. Revista de Administração Contemporânea, 20(4), 458-476. doi: 10.1590/1982-7849rac2016140080
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), e reforça-se a ideia de que as relações de gênero são históricas e dinâmicas, podendo ser modificadas, sobretudo no nível local (Messerschimidt et al, 2018), como no caso dos espaços organizacionais. A aviação comercial está na vanguarda dos transportes com relação à inserção das mulheres no trabalho (Barry, 2007Barry, K. (2007). Femininity in flight: A history of flight attendants. Durham, USA: Duke University Press.; Whitelegg, 2007Whitelegg, D. (2007). Working the skies: The fast-paced, disorienting world of the flight attendant. New York, USA: New York University Press.), à construção de um espaço de segurança para homens gays (Tiemeyer, 2013Tiemeyer, P. (2013). Plane queer: Labor, sexuality, and AIDS in the history of male flight attendants. Oakland, USA: Univ. of California Press.), códigos de ética e, recentemente, valorização da diversidade e inclusão.

Quarto, coletivamente, para além dos grupos diretamente envolvidos - alunas e alunos, comissárias e comissários -, há uma diversidade de profissionais que fazem parte da formação da carreira e que dão o tom sobre o que é exigido tecnicamente e o que deve ser emoldurado esteticamente. Nesse grupo estão militares da reserva, instrutoras(es) que foram comissárias(os) e/ou que trabalharam em companhias aéreas de vanguarda, como a Varig, comandantes, mecânicos de voo, consultoras(es) em imagem pessoal, coaches e fotógrafas(os) especialistas na carreira de comissária(o). De tal modo, também são as pessoas que ensinam o que se deve pensar sobre a profissão, indo além da determinação da prática específica, ao apontar outros conceitos que são externos a ela. Produzir comissárias e comissários ultrapassa o treinamento para realizar as atividades em voo na medida em que dita como fazer tais atividades com base em gênero.

Nota-se que podem existir masculinidades e/ou feminilidades que dominam uma profissão, coletivamente, e tensionam a metamorfose para o ajuste de projetos individuais dentro de um projeto de gênero esperado, por meio de negociações objetivas e subjetivas individuais. Como ressaltam DeLuca et al. (2016)DeLuca, G., Rocha-de-Oliveira, S., & Chiesa, C. D. (2016). Project and metamorphosis: Gilberto Velho’s contributions to career studies. Revista de Administração Contemporânea, 20(4), 458-476. doi: 10.1590/1982-7849rac2016140080
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, qualquer projeto, ainda que individual, faz referência a outros ou ao meio social. Essa construção surge desde a formação, que, embora destaque a segurança como ponto central, também reforça o caráter servil esperado na ocupação. O entendimento das relações de gênero como dinâmicas e relacionais e do exercício do poder por consentimento (Connell, 1987Connell, R. (1987). Gender and power: Society, the person, and sexual politics. Stanford, USA: Stanford University Press., 2018Connell, R. (2018). Masculinities. Cambridge, UK: Policy Press.; Messerschimidt et al, 2018), ideias intrínsecas ao conceito de masculinidade hegemônica, tem como ponto fundamental o seu potencial de mudança no decorrer do tempo. No campo profissional, a expressão de masculinidades e feminilidades como produto das interações sociais inscreve-se e reproduz-se desde o processo de formação e marca inclusive as relações estabelecidas entre colegas fora do espaço de trabalho.

A partir da construção da carreira de comissárias e comissários, faz sentido a importância de compreender a relação entre produção individual e corpo como prática social que explica a estrutura social das relações (Connell, 2016Connell, R. (2016). Gênero em termos reais. São Paulo, SP: nVersos.). Ademais, percebe-se que, além dos aspectos objetivamente produzidos, pela exigência profissional de moldura generificada, é por meio da aparência, de atitudes, de gestos e de elementos simbólicos que masculinidades e feminilidades são arranjadas. Gênero “diz respeito a uma conexão de outros campos de prática social para as práticas nodais de concepção, do nascimento de uma criança e de exercer a maternidade/paternidade [...] gênero nessa conexão é um processo ao invés de uma coisa. [...] Se pudéssemos usar a palavra ‘gênero’ como um verbo [...] seria mais fácil de entender” (Connell, 1987Connell, R. (1987). Gender and power: Society, the person, and sexual politics. Stanford, USA: Stanford University Press., p. 140). Como alertado por Connell e Pearse (2015Connell, R., & Pearse, R. (2015). Gênero: Uma perspectiva global. São Paulo, SP: nVersos., p.156), “nossa prática de gênero é poderosamente formatada pela ordem de gênero que nos encontramos”, por isso considera-se que a estrutura de gênero atravessa todos os contextos em que se constroem as carreiras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo avança na discussão ao trazer como contribuição a noção de projetos de gênero entrelaçados nos campos profissionais, explorando empiricamente a carreira de comissárias e comissários. Há projetos de gênero associados às carreiras que direcionam e moldam mulheres e homens, independentemente de sexualidade, para a construção individual binária, em oposição normativa, considerada apropriada-natural ou inapropriada-antinatural. A moldura de gênero orienta relações sociais e organizacionais da carreira coletiva, favorecendo referências tradicionais sobre masculinidades e feminilidades esperadas e/ou permitidas, o que possibilita estender essa análise para outras profissões e espaços ocupacionais. Ressalta-se que, embora não tenha sido o foco deste estudo, a noção de projeto de gênero é vivenciada na imbricação de gênero e sexualidade.

Retoma-se que a aproximação teórica de Hughes (1937)Hughes, E. C. (1937). Institutional office and the person. American Journal of Sociology, 43(3), 404-413. Recuperado de https://www.jstor.org/stable/2768627
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e Velho (2003)Velho, G. (2003). Projeto e metamorfose: Antropologia das sociedades complexas (3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar Ed. dissertada por de DeLuca et al. (2016)DeLuca, G., Rocha-de-Oliveira, S., & Chiesa, C. D. (2016). Project and metamorphosis: Gilberto Velho’s contributions to career studies. Revista de Administração Contemporânea, 20(4), 458-476. doi: 10.1590/1982-7849rac2016140080
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ganha novas dimensões na discussão com os estudos de gênero e a noção de masculinidades e feminilidades como projetos de gênero (Connell, 2016Connell, R. (2016). Gênero em termos reais. São Paulo, SP: nVersos.; Schippers, 2007Schippers, M. (2007). Recovering the feminine other: Masculinity, femininity, and gender hegemony. Theory and Society, 36(1), 85-102. doi: 10.1007/S11186-007-9022-4
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). O alinhamento dá-se pela marcação de gênero no campo de possibilidades, relativo aos aspectos objetivos e subjetivos da carreira; no entendimento da negociação da realidade e metamorfose, interligando conflitos e dilemas enfrentados no percurso por diferentes mundos; na noção de projeto relacionada à recursividade entre pessoa, grupo e instituição, bem como na noção de projeto relativa à memória.

A circulação em diferentes mundos inicia desde o primeiro dia de entrada de futuras(os) comissárias(os) nos cursos. É compulsório que todas(os) mudem sua forma de vestir, andar, sentar-se, relacionar-se com o corpo, arrumar os cabelos, cuidar da pele e das unhas. O processo não trata de algo individual porque contempla o grupo, porque apresenta “exemplos de sucesso” de ex-alunas(os) que foram contratadas(os). “Ou você se enquadra, ou você está fora.” Vivendo por vezes dilemas e conflitos, a negociação da realidade ocorre, na medida em que a metamorfose pessoal é vivida no coletivo da turma e da instituição e que quem está de fora a percebe. Pela ligação com gênero, não se pode afirmar que tais metamorfoses não ocasionem danos, ao passo que, para fazer parte de certos “mundos”, em especial o “mundo profissional”, exige-se construção de um projeto aceito, conforme ideais de masculinidade e de feminilidade.

De tal modo, a parte objetiva da carreira, com relação ao status e aos cargos, e, mais ainda, a parte subjetiva, ou seja, as interpretações ocorridas nas interações individuais e coletivas, podem ser vivenciadas de modo particular conforme gênero. Os dilemas e os conflitos advindos das interações objetivas e subjetivas durante a trajetória de vida são influenciados pelas representações historicamente construídas para cada lugar profissional. Se os aspectos relacionados a gênero forem somados a outros como classe, raça, etnia e sexualidade, as possibilidades objetivas e subjetivas conferem outros dilemas e conflitos.

As especificidades de gênero estão presentes no projeto de carreira, individual ou coletivo, assim como marcam o campo de possibilidades disponível. A formação de comissárias e comissários extrapola os limites de padrões arcaicos de ordem social, grifando no corpo as exigências diferenciadas de homens e mulheres, traduzindo hierarquia maquiada como segurança e referência à tradição. O sexo e o determinismo biológico são expressos como condição e limite do lugar profissional a ser ocupado. Profissionalizar, nesse caso, significa emoldurar. O exercício da masculinidade e da feminilidade é base da construção de gênero como verbo - por ser processo e ação, que pode ser atribuído a qualquer atividade profissional - e indica práticas sociais que podem acarretar limitações na carreira para qualquer pessoa, embora, para vivências de gênero e sexualidade distintas do padrão heteronormativo, a força dos contextos e das interações entre marcadores sociais de diferenças implique desafios amplificados. Na medida em que a carreira individual é construída por meio de elementos objetivos e subjetivos e que esses elementos são generificados, seja pela construção histórica, seja pela própria interpretação individual, apresentar a carreira coletiva negociada e seu potencial de metamorfose é outro ponto de avanço teórico.

O estudo no campo da aviação, em uma carreira predominantemente feminina, evidencia como a construção social de gênero em diferentes campos profissionais prioriza a masculinidade hegemônica. Para o campo da administração, a reflexão trazida no estudo permite aprofundar a discussão sobre desigualdade de gênero para além da discussão sobre diferença salarial e o binarismo homem/mulher. Diferentes masculinidades e feminilidades permeiam o espaço organizacional e são hierarquizadas em espaços de trabalho e oportunidades. Assim, avança-se na complexidade sobre discussão de gênero nas organizações, destacando que não se pode adotar um olhar único e binário para compreender como emergem as barreiras da desigualdade.

Importa trazer como possibilidade para estudos futuros a retomada de pesquisas pioneiras, como a de West e Zimmerman (1987)West, C., & Zimmerman, D. H. (1987). Doing gender. Gender & Society, 1(2), 125-151. Recuperado de https://www.jstor.org/stable/189945
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, que utilizaram a abordagem etnometodológica para explorar a constituição de gênero na interação rotineira e a forma como as pessoas são cobradas por condutas generificadas nas mais diversas esferas da vida social. No alinhamento com a pesquisa interacionista, que utiliza as carreiras como lentes para vislumbrar processos sociais coletivos (Barley, 1989Barley, S. R. (1989). Careers, identities, and institutions: The legacy of the Chicago School of Sociology. Handbook of Career Theory, 41, 65. doi: 10.1017/CBO9780511625459.005
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), como as instituições e as sociedades, projetar e metamorfosear em processos não binários permanece um desafio individual perante um projeto coletivo reforçado institucional e socialmente. O olhar sociológico com as lentes de carreira acompanhada de gênero permite transpor a neutralidade da pesquisa na área e movimentar as molduras sociais levando em conta outros marcadores pertinentes à carreira e gênero, que se mostraram interseccionados com os resultados da pesquisa, como sexualidade e classe.

AGRADECIMENTOS

A autora e o autor agradecem o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Out 2020
  • Aceito
    20 Set 2021
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