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Estado capitalista e burocracia no Brasil pós-64

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RESENHA BIBLIOGRÁFICA

José Carlos Garcia Durand

Sociólogo, professor titular no Departamento de Fundamentos Sociais e Jurídicos da Administração da FGV

Martins, Luciano. Estado capitalista e burocracia no Brasil pós-64. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985. 265 p.

Quem atravessou a década de 70 querendo entenderas razões e conseqüências do avanço do Estado na economia brasileira precisou de muita paciência. Um prolixo e confuso debate acadêmico montou-se a respeito de quem seria e a que viriam os tecnocratas de governo. A grita de algumas lideranças empresariais contra a "estatização" da economia nacional empurrou a questão para a ordem do dia. Seus ecos no mundo universitário realimentaram debates e escritos.

A maior mazela de boa parte dessa bibliografia foi a escassez de pesquisa bem conduzida. Como todo assunto de emergência súbita no meio intelectual, passível de polarizações "à esquerda" e "à direita", e de ser discutida a partir da releitura dos clássicos, a tecnocracia estatal virou, sem exagero, um assunto de moda. Em situações semelhantes, a pressa que costuma assaltar os intelectuais acadêmicos na ânsia de estar presente nos debates mais rumorosos não é lá muito compatível com observações demoradas e cuidadosas.

O livro de Luciano Martins é um bom exemplo de luz ao fim do túnel: texto bem construído e documentado, por sua vez precedido da experiência de análise de importantes iniciativas estatais, como Petrobrás e Volta Redonda. Sem dúvida que, com essas credenciais, ficou mais fácil ao autor localizar o que e como observar.

O autor dedica todo o capítulo inicial a mostrar que a aplicação sumária e formal de modelos analíticos importados acerca da natureza do Estado e de suas funções econômicas apenas serviu para perturbar o entendimento do caso brasileiro. E isso porque tais modelos não se aplicariam a situações em que as classes dirigentes têm composição instável e nas quais os governos de países hegemônicos e as multinacionais são fatores exógenos de importância decisiva, tal como se dá com os países do Terceiro Mundo.

Uma vez varrido o entulho teórico autoritário (de origem sistêmica ou marxista), Luciano Martins mobiliza com maestria um conjunto de evidências que exprimem o ritmo e o modo de expansão do Estado no período pós-64 e fornece os principais números de crescimento do braço empresarial do governo. Examina a base de sustentação material dessa atividade, constituída pela expansão das receitas orçamentárias e extra-orçamentárias, aí compreendidos os grandes fundos sociais (FGTS, PIS/PASEP e outros) e a via do endividamento interno do governo, através da venda de títulos da dívida pública (ORTN e outros). A finalidade é mostrar como, orquestrando fórmulas novas e eficazes de mobilização da poupança forçada, a tecnocracia submeteu a seu controle somas imensas de recursos e, portanto, gerou meios materiais para sua sustentação e ampliação, buscando legitimâr-se em nome da eficiência empresarial da "promoção" da empresa brasileira.

Com base em um exame clínico de três órgãos de fronteira entre Estado e setor privado - o BNDE, o CDl e a Cacex - o autor sustenta a hipótese da emergência do executivo estatal como "um tipo sociologicamente novo, situado entre o administrador público e o executivo de empresa" (p. 57). Associa sugestivamente seu aparecimento no período pós-64 à circunstância de a classe dominante brasileira não ter conseguido absorver, por excesso de rigidez, segmentos resultantes de sua própria diversificação (p. 59). Sustenta que processos semelhantes ocorreram no passado, mas não desenvolve suficientemente a comparação. De todo o modo, a hipótese é frutífera e certamente pode ser lida como se a expansão da tecnocracia estatal representasse a possibilidade de carreira de levas de diplomados por universidade, nos ramos de engenharia, economia e administração, que o setor privado não conseguiu absorver.

A obra encerra-se com a análise de um survey junto a 107 dirigentes do setor governo (administração direta e estatais), no qual são examinados traços de origem social, de percurso de carreira e de identidade.

Especialmente interessante da perspectiva sociológica, esse capítulo mostra que os novos dirigentes "públicos" em boa proporção provêm de famílias proprietárias que, já na geração de seus pais, haviam aberto espaço na alta administração governamental. Com essa duplicidade de trunfos (a bagagem empresarial mais antiga e a inserção no estado mais recente), a jovem e bem diplomada tecnocracia dos anos 70 tinha mais facilidade em operar na interseção de dois espaços que operam segundo lógicas diferentes (a de governo e a de mercado).

A pesquisa amostrai revelou que os executivos de Estado ganham bem mais do que os dirigentes da administração direta. Contou também que aqueles se identificam muito mais com o ethos e o discurso do executivo de empresa do que com a figura tradicional do funcionário público (ainda que "alto"). Provou ainda que eles se comunicam muito mais com o empresariado privado do que com os políticos e com os chefes e diretores da administração direta. Finalmente, mostrou o falso clichê contido na idéia (amplamente veiculada no meio intelectual) de que esse novo segmento teve sua maneira de pensar moldada pela corporação militar na Escola Superior de Guerra e por contatos intensos nos quartéis.

A conclusão é de que, ao contrário de uma "estatização" da economia - tão temida pelos conservadores - o que houve na verdade foi uma espécie de privatização do Estado. Os sinais mais evidentes estariam no gigantesco braço empresarial e financeiro controlado pela tecnocracia e sua gestão, a partir de uma lógica empresarial, cujas decisões fugiam ao controle do parlamento e, portanto, da sociedade civil. Daí que só mediante o fortalecimento desta ser possível uma correção de rota e a subordinação das grandes decisões econômicas e desígnios coletivos.

A reconstrução biográfica da carreira de alguns executivos estatais de sucesso teria sido um excelente final para o último capítulo e portanto para o conjunto da obra. Mas isso não é cobrança ao autor, senão sugestão aos mestrandos e doutorandos de administração, sempre carentes de idéias fecundas e realizáveis.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Jun 2013
  • Data do Fascículo
    Jun 1986
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