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INCORPORANDO AH/SD À DIVERSIDADE ORGANIZACIONAL

A diversidade invisível: As pessoas AH/SD e a vida profissional. Livro 1: Primeiros olhares Christine da Silva Schröeder. São Paulo, SP: Amazon Publishing, 2020. 120 p.

Pesquisar diferenças, que se referem ao infinito da existência humana, como bem disse Deleuze (2018)Deleuze, M. (2018). Diferença e repetição. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra., não exime os pesquisadores da temática de se surpreenderem com os próprios limites do seu olhar. Isso, sem dúvida, acontece com a leitura de “A diversidade invisível: As pessoas AH/SD e a vida profissional. Livro 1: Primeiros olhares”. Esta obra chama a atenção para o tema das altas habilidades e da superdotação (AH/SD), consideravelmente marginal na Administração, que se insere no amplo espectro abrangido pela neurodiversidade, portanto estendendo o alcance da diversidade organizacional, razão mais do que suficiente para que este livro seja muito bem-vindo.

A autora preenche uma lacuna considerável de conhecimento ao empreender um trabalho sistemático de mapeamento da literatura e de apresentação de conceitos, abordagens e informações sobre a população AH/SD. Ao longo de cinco capítulos, o livro volta-se para conceitos e contextualização do tema no Brasil, para a apresentação de estudos sobre AH/SD adulta no País nos últimos 20 anos, para os focos dos estudos de diversidade no País, para a necessidade de inclusão dessa perspectiva nesse espectro e para a gestão e valorização da diversidade AH/SD na vida profissional. A obra é encerrada com o depoimento de uma pessoa com essas características e algumas considerações finais.

O livro apresenta méritos evidentes, como o de focalizar uma temática que não pode ser desprezada pelos clichês erroneamente associados às altas habilidades e superdotação, entre os quais o de que tais pessoas seriam portadoras de “dons” inatos, raríssimos e infalíveis, e o de que é sempre “positivamente especial” ser identificado como AH/SD. O amplo desconhecimento do tema, bem como os lugares-comuns ligados a ele, faz com que as necessidades dessas pessoas sejam ignoradas pela sociedade, em geral, e pelas organizações, em particular, porque se acredita que elas não enfrentem dificuldades. Mas elas existem, e apresentam uma natureza e uma extensão que só os diretamente afetados podem perceber, descrever e sentir, a exemplo de haver sistematicamente expectativas elevadas em relação ao que quer que façam por conta de serem “especiais”, o que leva a frustrações e a tensões generalizadas em diversos aspectos profissionais. Por isso, esta obra, de Christine da Silva Schröeder, professora da Escola de Administração da UFRGS, é muito relevante. Os mitos ligados a privilégios dos “superdotados” são demolidos um a um pela autora, que se ocupa de ser didática sobre o tema, oferecendo uma obra de grande potencial para o avanço na temática.

Apresentar e discutir a questão, associado ao compromisso pessoal da autora, contudo, termina por revelar tensões na obra. De um lado, o texto adota um tom sóbrio, pretensamente neutro e objetivo, tal como preconiza uma visão estreita do que seria um conhecimento cientificamente aceitável. Todavia, essa perspectiva não abriga as nuances do sofrimento, da exclusão e da solidão das pessoas AH/SD, e elas felizmente “escapam” em vários trechos passionais que aparecem pontualmente no livro. Apesar de compreendermos a intenção didática da autora, é muito positivo que haja um olhar mais humanizado e que o próprio conteúdo do livro gradativamente abrace esse sentido da metade para o fim. Quando vemos os conceitos corporificados em existências humanas, deparamo-nos com nossas próprias dificuldades de perceber as diferenças que nos cercam, e essa é uma sensibilização necessária para transcender a mera exposição conceitual e, além de entender, poder mudar nossas posições a respeito.

Outra tensão do livro refere-se ao foco predominantemente gerencial da abordagem. Embora a autora situe a discussão à luz da Gestão de Pessoas e, portanto, de referenciais compatíveis com a gestão da diversidade - o que explica os momentos em que são feitas recomendações para as organizações - pensamos que o livro é mais potente em outro sentido: o de registrar as altas habilidades e a superdotação no campo das diferenças, portanto além do pragmaticamente conversível em algo administrável (Souza, 2014Souza, E. M. (2014). Poder, diferença e subjetividade: A problematização do normal. Farol - Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 1(1), 113-160. doi: 10.25113/farol.v1i1.2556
https://doi.org/10.25113/farol.v1i1.2556...
). É justamente no infinito das existências humanas que as diferenças se inserem como características que não são melhores ou piores que outras. E é assim que se evita cair na “competição de diferenças”, na qual cada grupo social oprimido defende o quanto a sua condição é preterida em relação às dos demais. Ao fim e ao cabo, além de pouco produtivo, isso parece eximir a normalidade de ser frontalmente questionada como projeto político-ideológico a ser abandonado em prol de uma sociedade mais equânime e que trate todos igualmente na medida de suas diferenças (Azevedo, 2013Azevedo, M. L. N. (2013). Igualdade e equidade: Qual é a medida da justiça social? Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior, 18(1), 129-150. doi: 10.1590/S1414-40772013000100008.
https://doi.org/10.1590/S1414-4077201300...
).

Essas tensões, contudo, estão longe de diminuir a obra, muito pelo contrário: revelam os desafios de produzir um conhecimento de maneira inovadora e sensível a perspectivas pouco comuns. A autora merece ser felicitada pela iniciativa dos pontos de vista intelectual e político. Ao escolher dedicar-se à temática para pôr em pratos limpos inclusive a própria história, ela presta um enorme serviço ao campo das diferenças, por mostrar que mesmo os estereótipos positivos continuam sendo estereótipos, o que contribui para que as pessoas sejam percebidas e respeitadas não pelo que são, mas pelo que deveriam ser, de acordo com um tolo ideal de normalidade que nos oprime a todos.

REFERÊNCIAS

  • Azevedo, M. L. N. (2013). Igualdade e equidade: Qual é a medida da justiça social? Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior, 18(1), 129-150. doi: 10.1590/S1414-40772013000100008.
    » https://doi.org/10.1590/S1414-40772013000100008.
  • Deleuze, M. (2018). Diferença e repetição Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.
  • Souza, E. M. (2014). Poder, diferença e subjetividade: A problematização do normal. Farol - Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade, 1(1), 113-160. doi: 10.25113/farol.v1i1.2556
    » https://doi.org/10.25113/farol.v1i1.2556

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    2021
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