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Réplica 1 - o que é um ensaio?

What is a essay?

DOCUMENTOS E DEBATES

Réplica 1 - o que é um ensaio?

What is a essay?

Kazue Saito Monteiro de Barros* * Endereço: Kazue Saito Monteiro de Barros Av. Prof. Moraes Rego, 1235, Cidade Universitária, Recife/PE, 50670-901.

E-mail: kazuesaito@uol.com.br Universidade Federal de Pernambuco -UFPE Recife, PE, Brasil

Preliminares

Este texto reúne algumas observações sobre o trabalho O que é um ensaio-teórico?, como contribuição à seção Documentos e Debates, da Revista de Administração Contemporânea (RAC).

Já na leitura do resumo, o insight: este trabalho é um ensaio sobre o ensaio! Aos poucos, a primeira impressão vai sendo confirmada. O autor adverte o interlocutor para uma característica comum em ensaios, a de constituir-se como espaço aberto para a veiculação de pontos de vista ainda não comprovados: "para os leitores mais tradicionais, que esperam conclusões por meio de afirmações definitivas, a orientação é que cessem a leitura neste momento" (p. 321). As palavras finais são instigantes e resumem a essência do que se espera desse gênero discursivo: "e você, leitor, este ensaio sobre o ensaio causou-lhe desconforto suficiente para fazê-lo lançar-se a realização de um ensaio?" (p. 331). As citações do autor ratificam de forma plena meu próprio conceito de ensaio como proposta geralmente preliminar, interpretações que o autor oferece ao leitor, buscando com isso um ponto de partida para a interlocução e o debate. Tem, portanto, natureza fortemente dialogal, é processo de construção de sentido em que os envolvidos são coautores de um conteúdo negociado e efetivado no ato de formulação e recepção textuais.

É a partir desse conceito básico de ensaio como proposta de diálogo aberto, plenamente compartilhada com o autor, que me atrevo a formular alguns breves comentários sobre o ensaio "O que é um ensaio-teórico?". As palavras que seguem caracterizam-se, assim, como observações preliminares sobre um ensaio sobre o ensaio.

Como não poderia deixar de ser, falo a partir do meu espaço, que é o dos estudos contemporâneos do discurso, mais especificamente o dos estudos discursivos socio-interacionistas. Como pressuposto, considero que a língua tem como função básica a comunicação entre os seres humanos. Não é apenas instrumento para veicular informações, mas é, primordialmente, uma atividade sócio-histórica que permite que nossos conhecimentos sejam estruturados em contextos sociodiscursivos. A língua é atualizada por meio de textos. O texto é visto como interação, uma prática social (Hanks, 1996) e, como tal, equivale a uma atividade cognitiva, social e historicamente situada. Com Eggins e Slade (1997, p. 6), assumo que "interagir é uma atividade semântica, um processo de produção de sentido". Daí decorre que uma análise interacionista do texto não pode considerá-lo apenas em sua materialidade, mas também atenta para os processos aí envolvidos.

Metodologicamente, assumo que os estudos do texto devem privilegiar diferentes níveis de observação para uma compreensão mais holística dos processos aí envolvidos. Numa tentativa de simplificação, podemos considerar, com vários autores, a existência de três aspectos na observação que são, na realidade, três formas de observação - do discurso: (a) a partir da funcionalidade, com foco nos objetivos e nas intenções dos falantes/ autores; (b) a partir da observação das características internas, de natureza linguística, com ênfase na descrição das propriedades formais dos textos; (c) a partir da observação das características externas, referentes à situação, às normas sociais do evento comunicativo e aos tipos de ações realizados. Obviamente, a divisão da análise nestes níveis não significa que eles não estejam imbricados, até porque a análise em um nível determina a interpretação em outro. Os comentários do texto O que é um ensaio-teórico? que seguem inserem-se no âmbito desses pressupostos teóricos e metodológicos.

O ensaio do ponto de vista da funcionalidade

Como o título revela, a principal tarefa do autor é definir o que é um ensaio teórico. De forma eloquente, reúne observações diversas: relembra sua origem, destaca alguns de seus objetivos, discute tanto a forma quanto o conteúdo do gênero, tece comentários sobre o ensaio na área da administração. Logo no início, ao abordar o conceito de ensaio em sua essência, o autor adianta algumas das principais funções do gênero.

Essays é, como se sabe, o título dado por Montaigne - considerado o criador da forma literária do gênero ensaio - a uma coleção de 107 peças, publicada em 1580. Etimologicamente, relacionado aos termos latinos exagium (pesar) e exigere (testar) e, em francês, a essayer (colocar à prova) e essai (tentativa) o termo ensaio carrega a ideia de tentativa de ação especulativa e interpretativa. É assim, uma composição na qual seu autor se submete ao crivo de outrem. O autor do ensaio em questão bem enfatiza essa concepção ao afirmar, citando Boorstin (1995), que o ensaio tinha sua razão de ser na noção de que os pensamentos, sentimentos, incertezas, certezas e contradições de uma pessoa merecem divulgação e em seguida atenção de outras. Se todo texto tem como característica básica ser interativo, no sentido de que quem escreve tem um perfil de leitor em mente, o ensaio é crucialmente dialogal. É como primeira parte de um par adjacente, uma categoria criada pela etnometodologia para designar estruturas pares encontradas em sequências comuns na conversação, tais como elogioagradecimento, convite-aceitação, cumprimento-cumprimento (Sacks, Schegloff, & Jefferson, 1974). A regra central na ocorrência desses pares é a de que, dada uma primeira parte do par (por exemplo, um elogio), a segunda parte é relevante e esperada (no caso, um agradecimento). O ensaio é, como enfatizado no texto original, um pedido de interlocução e espera uma reação do interlocutor. Caso isso não ocorra, o ensaio perde parte de sua função interativa, a de provocar o diálogo com seus pares sobre um dado ponto de vista.

O autor cita Montaigne (2002), quando este afirma que o espírito do ensaio-teórico é uma "relação permanente entre o sujeito e objeto, um vir-a-ser constituído pela interação da subjetividade com a objetividade dos envolvidos" (p. 321). Em vários momentos, enfatiza o caráter transitório do conteúdo do texto e da posição daquele que oferece suas ideias a críticas. Afirma, por exemplo, que "o ensaio estuda o objeto na sua condição dialética. Desta forma, pensamento e objeto estão em movimento" (p. 327). Concordando com Larrosa (2004) podemos dizer que o ensaio se torna ensaio a partir do momento em que se coloca à prova a subjetividade nele veiculada. Enquanto proposta de diálogo aberto, o conteúdo não se fecha em si mesmo, mas é antes negociado. Como disse, a construção de sentido se estabelece em regime de co-autoria e ambos, autor e leitor, dividem a responsabilidade da construção de um conhecimento novo, embrionário.

Nossas práticas comunicativas fazem com que o gênero ensaio seja visto não como artefato unitário cristalizado, mas como quadro de orientação acerca de um ponto de vista, contextualizado numa dada situação e historicamente situado. Dessa forma, o ensaísta arrisca menos a sua face ao expor ideias ainda não consagradas; assim, o ensaísta, lançando mão das regras de polidez conversacionais, deixa margem para que seu interlocutor possa rejeitar suas impressões pessoais mais facilmente, sem ferir sua face positiva, isto é, seu desejo de aprovação da imagem própria (Brown & Levinson, 1987). E dessa forma fica preservado um dos objetivos centrais do ensaio, qual seja o de divulgar um ponto de vista novo, mas que, por definição do gênero, pode ser reformulado.

O ensaio do ponto de vista de suas características formais

A observação das características formais privilegia os traços internos, a descrição das propriedades estruturais dos textos. Relevante enfatizar que este foco não só busca identificar sequências estereotípicas, mas pressupõe que aspectos formais recorrentes devem ser vistos como estratégias interativas mobilizadas pelos interactantes como pistas de contextualização de sentido (Gumperz, 1982). Do ponto de vista da formulação, as pistas buscam guiar o interlocutor sobre o sentido pretendido pelo autor e, do ponto de vista da recepção, contribuem para a correta compreensão. Pensar as estruturas como pistas interacionais significa dizer que não cabe ao analista apenas identificar estruturas prototípicas de um dado gênero, mas sobretudo descobrir por que elas são recorrentes.

O autor do trabalho em questão bem enfatiza que ensaios devem ser lidos por pessoas com espírito livre do formalismo da ciência. Diz ele sobre o seu próprio ensaio:

Aqui o leitor não encontrará a disposição formal de um estudo que segue a divisão e a lógica estabelecida pelas metodologias científicas tradicionais. No lugar do objetivo geral, dos objetivos específicos, da justificativa, da fundamentação teórica, da metodologia que define os critérios de coleta e análise de dados e da conclusão, no ensaio a orientação é dada não pela busca das respostas e afirmações verdadeiras, mas pelas perguntas que orientam os sujeitos para as reflexões mais profundas (p. 321).

Dada a proposta de conteúdo ainda em construção, um ensaio pode dispensar a descrição das etapas metodológicas mais tradicionais, como salienta o autor. Pelo mesmo motivo, é comum que apresente recorrência de sequências tipológicas argumentativas, frequentes em situações em que se busca convencer os interlocutores acerca de um saber ainda não institucionalizado. A sequência argumentativa gira em torno de uma tese que se fundamenta em relações entre argumentos, dados ou razões que levam a uma conclusão, com a pretensão de agir sobre o interlocutor, fazendo com que este acolha as ideias do enunciador (Adam, 1992).

Há diferentes formas de argumentação que geralmente variam de cultura para cultura. Uma delas, estereotípica da cultura brasileira é a retomada do argumento central, por meio de repetições e paráfrases. Uma rápida olhada no texto base, por exemplo, permite identificar várias reformulações de um mesmo ponto sobre o que é um ensaio. Em textos argumentativos, é comum que a palavra-chave, que no mais das vezes aparece no título, seja repetida logo na primeira frase do texto, como ocorre no ensaio aqui comentado. Estruturas descritivas que iniciam com o sintagma o ensaio (ou termos equivalentes) são bastante produtivas, pois salientam o conteúdo focal e destacam o propósito do autor, qual seja o de conceituar o termo - confira-se, no texto, a quantidade de expressões do tipo "o ensaio é..."; "o ensaio se realiza..."; "ele [o ensaio] não se consolida..."; "o ensaio precisa..."; "o ensaio ... atende..."; "o ensaio é um meio..." etc). Embora não tenham uma ordenação estrutural completamente fixa, tais estruturas apontam para retomadas do processo descritivo-argumentativo, evidenciam recomeços de uma ideia básica e desmembramentos do conceito central defendido, ou seja, prestam-se a uma "enumeração de atributos de uma coisa", como afirma Adam (1992, p. 81). Adam ressalta, com razão, que a enumeração representa a base dos procedimentos descritivo- argumentativos.

Assim, embora reconheça que ensaios possam apresentar características formais variadas (até porque há várias modalidades e estilos de ensaios, além de idiossincrasias dos sujeitos autores), defendo que o gênero tende a apresentar aberturas estereotípicas, que remetem direto ao point da questão, além de sequências tipológicas descritivas e argumentativas. Mediante a descrição detalhada pela enumeração dos vários atributos do objeto e pela ênfase dada às ideias centrais, o ensaísta busca tanto facilitar a compreensão quanto persuadir o interlocutor.

O ensaio do ponto de vista dos contextos de circulação

No texto, há poucas referências que remetem mais diretamente aos contextos de circulação do ensaio. Mas, ao definir que seu texto trata do ensaio-teórico, o autor parece indicar que tem em mente os contextos mais acadêmico-científicos, com foco - explicita ele - na forma como esse gênero é visto na área da administração. Nesse sentido, considero um tanto peculiar a afirmação de que o ensaio "se aproxima mais da arte do que da ciência" (p. 328). Os argumentos de que

Na interação com o contexto imediatamente dado, nas suas condições sensíveis, nos sistemas de interpretação formulada e na racionalidade do ensaísta, há a presença do social como condição mediata ou imediata que está presente, concreta ou abstratamente presente... No ensaio, o ensaísta não se divorcia da sua subjetividade em favor da objetividade da ciência... (p. 328)

podem ser entendidos no âmbito de certas perspectivas teóricas, mas parecem revelar um conceito bastante restrito do que significa ser científico.

Até mesmo estruturas formais, como as anteriormente comentadas, podem revelar a preocupação do ensaísta com algumas das características de um discurso científico: objetividade (indo direto ao assunto a que se propõe discutir, como quando, abordando o tema logo no início do texto), clareza (usando estratégias como enumeração para conceituar o objeto de estudo), precisão (recorrendo a retomadas do referente, através de estruturas do tipo "o ensaio é..."). O uso de tais estruturas também revela quem o autor tem em mente, isto é, aqueles que se configuram como possíveis interlocutores -colegas, pares, estudiosos com quem, por inferência, ele acredita compartilhar conhecimentos.

O autor esclarece que existe um equívoco que se tornou "quase regra, chegando a ser institucionalizado nos programas de pós-graduação e pesquisa em administração, assim como nas associações especializadas da área de administração": o de atribuir "o nome de ensaio-teórico para estudos que se caracterizam como estudos teóricos" (p. 330). Por não ser da área da administração, não posso opinar sobre as afirmações, mas convido a uma última reflexão que, como disse no início, advém das convicções inerentes a minha atividade como linguista e, mais especificamente, como analista do discurso de linha sociointeracionista.

De acordo com o arcabouço teórico em que as presentes considerações se baseiam, toda enunciação, até mesmo um ensaio, governam-se por estreita relação entre o sujeito e a posição que ele ocupa em seu campo social de atuação (Bourdieu, 1985). Falar/escrever não são entendidos como ações singulares de indivíduos isolados, mas como formas de os sujeitos engajarem-se no mundo por meio de recursos das línguas. Na abordagem das práticas comunicativas, é a relação socialmente definida entre os enunciadores, as formas lingüísticas e seus contextos de circulação que produzem certos sentidos, mesmo a partir de formas discursivas diversas. Considerando que a língua é heterogênea (grupos diferentes dão sentidos diferentes a itens linguísticos) e variável (sofre alterações ao longo do tempo), o importante para uma teoria da práxis comunicativa é o senso comum que os usuários da língua, enquanto sujeitos situados no tempo e espaço, têm sobre sua própria língua e sobre o mundo social do qual ela é parte. Assim, se a maioria dos usuários da administração utiliza o termo ensaio teórico para caracterizar um estudo teórico, talvez seja em decorrência de suas experiências comunicativas diárias, construídas a partir das relações entre a língua, as ações linguísticas atualizadas pelos sujeitos e os julgamentos que eles fazem da língua. A questão que resta, então, é se o mais produtivo é argumentar em favor de uma forma clássica de ensaio ou simplesmente aceitar que o gênero vem sofrendo mutações ao longo de sua existência.

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  • Adam, J. M. (1992). Les texts: types et prototypes Paris: Nathan.
  • Boorstin, D. J. (1995). Os criadores Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • Bourdieu, P. (1995). As regras da arte São Paulo: Companhia das Letras.
  • Brown, P., & Levinson, S. (1987). Politeness: some universals in language usage Cambridge: CUP.
  • Eggins, S., & Slade, D. (1997). Analysing casual conversation Londres: Cassel.
  • Gumperz, J. J. (1982). Discourse strategies Cambridge: CUP.
  • Hanks, W. (1996). Language and communicative practices. Boulder: Westview Press.
  • Larrosa, J. (2004). A operação ensaio: sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamento, na escrita e na vida. Educação e Realidade, 29(1), 27-44.
  • Montaigne, M. (2002). Os ensaios -Livro I São Paulo: Martins Fontes.
  • Sacks, H., Schegloff, E. A., & Jefferson, G. (1974). A simplest systematics for the organization of turn taking for conversation. Language, 50(4), 696-735. doi: 10.2307/412243
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    Endereço: Kazue Saito Monteiro de Barros Av. Prof. Moraes Rego, 1235, Cidade Universitária, Recife/PE, 50670-901.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011
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