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A Nova Era do Futebol Brasileiro e Clubes Geridos como Negócio

Futebol é uma paixão nacional. Todos, no Brasil, já ouviram essa frase alguma vez. E ela expressa uma verdade irretocável. Realmente, se há um esporte genuinamente popular no maior país da América Latina e que, ao mesmo tempo, atrai o interesse de pessoas de todas as classes sociais, é o futebol. Sobretudo os homens gostam de futebol e se dizem, muitas vezes, apaixonados ou aficionados pelo seu clube de coração, mas é nítido o crescimento significativo de mulheres que passaram a se interessar pelo esporte e a frequentar os estádios.

O futebol do Brasil é reconhecido mundialmente pela técnica refinada de seus atletas. Muitos jogadores brasileiros se destacaram no contexto global, podendo-se citar Pelé, principalmente, mas também Garrincha, Rivelino, Ronaldo Fenômeno, Ronaldinho Gaúcho, Kaká, Romário, Neymar, dentre uma infinidade de grandes atletas que deixaram, ou deixam ainda, a sua marca como atletas legendários e de um valor extraordinário.

Mas, sobretudo no século XXI, vivenciamos uma grande transformação na indústria de futebol global, em que, nos grandes centros futebolísticos, muitos clubes passaram a ser administrados com muito mais competência, adotando algumas das melhores práticas observadas no mundo corporativo. Isso aconteceu sobretudo em países como Inglaterra, Alemanha, Espanha, França, Itália e Portugal, somente para citar alguns casos europeus.

Muitos desses clubes já eram constituídos há muitas décadas sob a forma de empresa, sobretudo na Inglaterra, mas, além disso, modernizaram-se bastante nos últimos tempos, enquanto outros fizeram a mudança de clube num modelo associativo para clube num modelo empresarial em períodos mais recentes. O Bayern de Munich, por exemplo, era um clube baseado no modelo associativo (sem fins lucrativos) e passou a ser uma empresa em 1992, sendo essa passagem bem descrita e discutida em diversas publicações especializadas. Na Inglaterra, os clubes em geral, que participam da Premier League, são empresas e alguns deles passaram a captar torcedores e simpatizantes em âmbito global. Ou seja, internacionalizaram-se. Porém, temos o caso também de Real Madrid e FC Barcelona, que são clubes no modelo associativo, mas, a bem da verdade, são administrados como se fossem empresas, além de possuírem um alto padrão de governança.

Convém considerar que, no contexto da América do Sul, em alguns países há clubes, dentre os principais, estruturados como empresas, como é o caso do Chile, do Peru e da Colômbia, enquanto na Argentina prevalece um modelo parecido com o do Brasil, sobretudo quando nos referimos a River Plate e Boca Juniors, os clubes de maior destaque desse país.

No Brasil, embora tenha havido uma grande evolução das práticas gerenciais, sobretudo nos últimos cinco a dez anos, inequivocamente ainda há um longo caminho a percorrer, até que se consiga atingir um status econômico mais equiparado aos maiores centros do futebol mundial. Além disso, nenhum, dentre os clubes mais importantes, está estruturado, do ponto de vista societário, como empresa. Todos eles são clubes no modelo associativo, sem fins lucrativos.

Esse estágio de evolução, pelo qual passa o futebol em nível global, e o brasileiro, em particular, abre uma janela de oportunidade para que muitas novas pesquisas acadêmicas sejam realizadas no contexto dessa indústria, que está se consolidando e ganhando cada vez mais relevância no contexto econômico, com pesquisas na área de marketing esportivo e também em outras áreas, como: finanças no esporte, gestão de estádios e grandes eventos, estratégias no campo esportivo, internacionalização, liderança e gestão de pessoas em entidades esportivas, etc.

Segundo o relatório Impacto do Futebol Brasileiro, publicado pela EY do Brasil com dados de 2018, a cadeia produtiva do futebol brasileiro tem uma participação de 0,72% no PIB brasileiro (Confederação Brasileira de Futebol [CBF], 2019Confederação Brasileira de Futebol. (2019). Relatório impacto do futebol Brasileiro. Retrieved from https://doi.org/10.5281/zenodo.4587228
https://doi.org/10.5281/zenodo.4587228...
). Ainda segundo esse relatório, o futebol brasileiro movimentou em 2018 o valor de R$ 52,9 bilhões e gerou, aproximadamente, 156 mil empregos (CBF, 2019Confederação Brasileira de Futebol. (2019). Relatório impacto do futebol Brasileiro. Retrieved from https://doi.org/10.5281/zenodo.4587228
https://doi.org/10.5281/zenodo.4587228...
). Temos, no Brasil, mais de 7.000 clubes (dos quais somente 874 são clubes profissionais ativos) e mais de 360 mil atletas registrados. São números significativos, mas que têm grande potencial de serem melhorados, sobretudo do ponto de vista da participação da indústria do futebol no PIB do país, que poderia triplicar, segundo manifestação de Rogério Caboclo, atual presidente da CBF - Confederação Brasileira de Futebol.

Um fato significativo que merece destaque é a transformação digital pela qual têm passado várias indústrias do mercado e que está chegando também ao mundo do futebol. As ferramentas digitais, bem como as possibilidades de comunicação e relacionamento que podem ser exploradas nas redes sociais, são um mundo sem fim de oportunidades, que certamente já estão competentemente sendo aproveitadas por alguns dos principais clubes da Europa, tais como FC Barcelona, Liverpool e Manchester United, somente para citar alguns. Sobretudo, está-se descortinando um cenário mais claro de uso de streaming nas transmissões de eventos esportivos, o que dará à internet um papel muito mais relevante do ponto de vista de permitir que mais pessoas em diferentes lugares possam ter acesso, com flexibilidade e autonomia, a inumeráveis partidas de futebol que são realizadas pelo mundo.

É interessante entender por qual lógica os clubes de futebol funcionam no Brasil. Possuem normalmente uma sede social, que permite a prática de atividades esportivas, recreativas e sociais por parte dos seus associados. Justamente no âmbito dos associados é que emergem os conselheiros, que são eleitos periodicamente (a cada quatro anos, por exemplo), embora muitos deles possam ter atingido o status de vitalícios, o que lhes dá o direito de permanecerem como conselheiros por tempo indeterminado, sem necessidade de reeleição. Os conselheiros dos clubes fazem parte do chamado conselho deliberativo, órgão máximo do clube do ponto de vista decisório, embora algumas questões tenham que ser levadas para votação no âmbito de uma assembleia de associados, que funcionaria como um mecanismo de votação direta para alguns assuntos considerados mais relevantes.

As atividades de futebol profissional e de formação de novos atletas, por sua vez, são administradas numa estrutura independente das outras atividades do clube. São cem por cento profissionalizadas, envolvendo profissionais das áreas de ciência do esporte, preparação física, médica, de fisioterapia, de fisiologia, logística, assessoria de imprensa e comunicação, etc. Normalmente, todas essas atividades são lideradas por um diretor responsável por todas as atividades de futebol profissional, muitas vezes envolvendo também as atividades de formação de novos atletas. Esse diretor pode ser alguém que exerce o cargo voluntariamente, sem remuneração, ou alguém remunerado e contratado no mercado.

Os clubes geram receita por meio de diferentes fontes, mas principalmente relacionadas às atividades de futebol profissional. As principais fontes são: direitos de transmissão dos jogos em diferentes campeonatos, bilheteria dos jogos em que o clube tem o ‘mando de campo’, programa de sócio-torcedor, patrocínios e venda de atletas. A importância relativa de cada fonte varia de clube para clube, mas, em geral, os direitos de transmissão ainda são a principal fonte de receita. Aqui no Brasil, os principais clubes participam do Campeonato Brasileiro, da Copa do Brasil e dos campeonatos estaduais ou regionais. Os dois primeiros são organizados pela CBF - Confederação Brasileira de Futebol. Além disso, alguns clubes se qualificam para participar de dois torneios internacionais: Copa Libertadores da América e Copa Sul-Americana, ambos organizados pela CONMEBOL - Confederação Sul-Americana de Futebol.

Nos jogos como mandante, os clubes geram receita de bilheteria, embora tenham que arcar com um custo elevado pela operação do evento. Portanto, em geral, há um número de público mínimo abaixo do qual os clubes geram prejuízo. Os programas de sócio-torcedor da maioria dos clubes estão principalmente orientados para a venda antecipada de ingressos e prioridade na compra por parte dos associados em partidas com grande procura. Portanto, é costumeiro consolidar as receitas de bilheteria com as receitas do programa de sócio-torcedor como se fossem uma fonte única.

Outra fonte de receita que ganhou importância ao longo do tempo são os patrocínios, sobretudo estampando nos uniformes as marcas dos patrocinadores. Além disso, muitos clubes brasileiros geram receita sistematicamente mediante a venda de atletas profissionais, sendo que os valores mais vultosos são obtidos com as transferências para o exterior, sobretudo para a Europa.

Um dos grandes desafios dos clubes brasileiros reside no seu equacionamento financeiro, pois muitos deles são altamente endividados e pagam custos elevados sobre essas dívidas. Esse nível de endividamento cresceu ao longo do tempo, porém cresceu menos que proporcionalmente em relação às receitas, o que denota algo de favorável. Porém, os clubes ainda têm uma dificuldade muito grande para gerar superávits, embora alguns tenham conseguido, sobretudo mais recentemente. Portanto, elevar os níveis de receita, procurando, ao mesmo tempo, trabalhar com menores gastos, é um caminho inegável que os clubes terão que seguir para resolverem sua situação financeira atual, aumentarem sua capacidade de investimento e, dessa forma, tornarem-se mais equiparados aos principais clubes do mundo. Basicamente, cabe aos clubes gerar níveis de receita mais elevados e procurar garantir um nível de margem suficientemente alto que permita amortizar as dívidas gradativamente e, ao mesmo tempo, investir na sua infraestrutura (inclusive tecnológica), nas suas atividades de formação de novos atletas e na contratação de atletas do mercado para construção de elencos competitivos.

Para potencializar os seus negócios, os clubes brasileiros precisam se valer de muitas das práticas já consagradas no mundo corporativo, envolvendo marketing digital, criação de produtos e serviços inovadores, melhoria e digitalização de processos, parcerias estratégicas, adoção de orçamento base zero, uso de ferramentas de business intelligence, dentre outras iniciativas. Para que se observe uma evolução consistente dos negócios, é fundamental também que haja a adoção de boas práticas de governança e planejamento estratégico.

No que toca à governança, essa evolução ocorrerá de maneira mais significativa quando os clubes se transformarem em empresas, lembrando que há dois projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional com esse propósito. A melhoria da governança implica a necessidade de criar um conselho de administração aos moldes das companhias abertas, profissionalizar a gestão com a contratação de executivos altamente qualificados e remunerados de acordo com critérios modernos baseados em incentivos, e, não menos importante, evoluir nas práticas de transparência, com melhor e mais detalhada apresentação das informações financeiras.

Aos pesquisadores na área de Administração, seguem algumas ideias que podem ser desenvolvidas, gerando bons projetos de pesquisa, seja no contexto brasileiro, seja no contexto internacional:

  1. O que explica o desempenho esportivo dos clubes nos campeonatos nacionais?

  2. Como o modelo de plataformas digitais pode potencializar os negócios de clubes?

  3. Propostas de estruturação da indústria do futebol brasileiro com um plano diretor comum a todos os clubes.

  4. Que fatores determinam o engajamento de torcedores?

  5. Fatores indutores à criação de startups no mundo esportivo (sportstechs).

  6. Estratégias de internacionalização de clubes em um mundo cada vez mais globalizado.

  7. Fundamentos financeiros dos clubes e seus reflexos no desempenho esportivo.

  8. Perfil social e demográfico de torcedores de clubes de futebol e suas implicações nas estratégias de marketing.

  9. Quais são as vantagens e desvantagens em relação à transformação de clubes em empresas no contexto brasileiro?

  10. Diversidade no contexto do futebol e estratégias dos clubes.

  11. O impacto social de clubes de futebol ao redor do mundo.

  12. Modelos comparados de estratégias e gestão de arenas e estádios.

Estamos seguros de que a área acadêmica tem muito a contribuir para o mundo do futebol, que, conforme procuramos expressar nesta carta, já é relevante economicamente e tem potencial de ser cada vez mais, sem contar os benefícios sociais que o esporte em geral proporciona para todos, mas sobretudo para as faixas mais desfavorecidas da população.

  • Nota:
    Cartas Executivas são documentos publicados, desde janeiro de 2021, pela Revista de Administração Contemporânea - RAC, e prestam-se ao papel de viabilizar e estabelecer interlocução entre a comunidade de praticantes e a comunidade acadêmica do campo de negócios e gestão. A intenção central da publicação das Cartas Executivas é consolidar e orientar o impacto social das pesquisas de rigor científico nesse campo. Esses documentos devem conter prioritariamente a opinião, em nível individual, de pessoas que exerçam liderança em setores da indústria ou da gestão pública acerca de problemas relevantes para sua atuação. Para tanto, esses documentos devem abordar contextos e problemas enfrentados por líderes, os quais possam se refletir em alvo de pesquisa na área de negócios e gestão. A autoria das Cartas Executivas será de individuos convidados por Editores(as) da RAC.
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REFERENCE

Carta Executiva recebida mediante convite formulado pelo Editor-chefe: Wesley Mendes-Da-Silva (Fundação Getulio Vargas, EAESP, Brasil) https://orcid.org/0000-0002-5500-4872

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2021
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