Acessibilidade / Reportar erro

Os Desafios de uma Liderança Digital

Somos um grupo franco-suíço que atua no país há 32 anos na cadeia de valor de serviços integrados de Recursos Humanos para as maiores e principais empresas do país. Atuamos no Brasil com quatro marcas independentes: Adecco, LHH, Spring e Pontoon. Cada marca oferece uma variada gama de serviços que vão desde o tradicional recrutamento e seleção, passando por outsourcing de mão de obra especializada, assessments variados, até coaching executivo para líderes do C-level, com aproximadamente 500 colaboradores e escritórios na maioria das capitais. Estimamos o tamanho desse mercado em vinte bilhões de reais (Grand View Research, 2020Grand View Research. (2020). Market analysis report: Human resource management market size, share & trends analysis report by software, by service, by deployment, by enterprise size, by end use, by region, and segment forecasts, 2020 - 2027. Report ID: GVR-2-68038-295-2, 184 pp. Retrieved from https://www.grandviewresearch.com/industry-analysis/human-resource-management-hrmmarket/request/rs1
https://www.grandviewresearch.com/indust...
). Trata-se de um setor bastante competitivo que conta com grandes players globais com soluções integradas até pequenas boutiques extremamente especializadas.

Fomos impactados pela pandemia, assim como os nossos principais clientes. Junto a alguns, experimentamos um crescimento vertiginoso, uma vez que esses clientes tiveram, subitamente, que ampliar o escopo de suas atividades, aumentando produção e distribuição - por exemplo, produtores de alimentos, empresas do agronegócio, logística e e-commerce. Em outros setores vivenciamos o outro lado da moeda, ou seja, uma paralisação total - por exemplo, como visto nas redes hoteleiras, companhias aéreas e transportes rodoviários intermunicipais. Apesar de acompanharmos os acontecimentos no início da pandemia em nossas operações em outros países, como China e Itália, subestimamos a velocidade e dimensão de tudo que viria a ocorrer no Brasil. A decisão e ação de fechar nossas unidades em meados de março foi um processo rapidamente implementado, mas naquele momento ainda sem termos noção de o que estava acontecendo e o que viria a acontecer. Nós acompanhamos diferentes clientes agindo em diferentes direções. Alguns adotando protocolos rígidos, levando a força de trabalho para home office, e outros nada fazendo, acreditando que era mais uma gripe de inverno que acometia alguns países europeus. Como uma empresa que presta serviços e consultoria para muitas empresas, temos uma posição privilegiada em constatar a movimentação e direção que cada cliente toma frente a diferentes contextos. É relevante observar que identificamos umas poucas empresas fazendo treinamento de emergência, adotando protocolos de segurança, adaptando processos fabris, adotando distanciamento entre colaboradores e equipando as residências para atuação remota.

Isso hoje nos soa familiar e óbvio, todavia constatamos isso em dezembro de 2019. Parece-nos que algumas cadeias de valor tinham a exata dimensão da gravidade do problema e de que rapidamente a epidemia se transformaria em pandemia. Essa situação nos provoca a uma reflexão sobre as relações de interdependências entre empresas, governos e instituições internacionais na busca por uma comunicação mais eficiente e decisiva. Será que se existissem protocolos e/ou níveis de alerta a serem acionados em conjunto por uma rede de instituições, um maior número de players, em bloco, reagiria de forma mais rápida, formando opinião nos mercados globais e criando efeito de manada? Será que a natural desarticulação e complexidade do mercado se traduzem em diferencial competitivo para aquelas organizações com informação privilegiada? Mesmo quando o resultado é a potencial perda de vidas humanas? Ousamos acreditar que seria prudente investigar formas de alerta e protocolos rígidos de ações globais não questionáveis quando acionados, seja por nações, seja por líderes ou partes interessadas - por exemplo, quando se tratar de uma pandemia. Imagino um “botão reluzente” que ao ser apertado todos entenderiam imediatamente. As chances de novos vírus surgirem são reais e se por ilustração as nações e instituições acordassem um protocolo de adesão imediata, talvez o mundo pudesse reagir e combater o problema de forma sistêmica e implacável.

Voltando para nossa realidade local, ao adaptarmos todos os nossos serviços para serem entregues digitalmente, nos deparamos com alguns desafios na gestão operacional. Como avaliar a performance e empenho de toda a equipe que atua desde suas residências? Como saber se o colaborador está sendo produtivo? Como assegurar o engajamento dos clientes que participam de nossos programas? Também procuramos compreender a realidade de nossos clientes e escutamos de alguns líderes a curiosa expressão: “Como saber se meu funcionário não está assistindo um filme na Netflix ao longo do dia? Como saber se eles estão produtivos?” Percebemos em nossos negócios que a capacidade de liderança e gestão precisava lidar com um diferente grau de autonomia e confiança. Os colaboradores trabalhando de forma remota passaram a ter muita autonomia para realizar suas atividades diárias e a interação entre times e chefe-subordinados mudou na forma e intensidade. Sabedores de “o que” fazer, os colaboradores passaram a ter total ingerência no “como” fazer. Como ilustração, em nosso grupo temos a disciplina mensal de realizar reuniões que acompanham resultados e indicadores mensalmente. Com toda a equipe trabalhando de forma isolada, poderíamos correr o risco de nos desviarmos dos objetivos por perda de produtividade e só descobrir no final do mês. Não conseguíamos ver ou tangibilizar a produtividade que outrora percebíamos nas interações presenciais em todos os níveis da organização. Com considerável ansiedade, começamos a realizar reuniões semanais, e em alguns casos duas vezes por semana. Acabamos percebendo que criamos um overload de trabalho para todas as equipes, desbalanceando as entregas e atividades com excessivas reuniões de acompanhamento de performance. Observamos o mesmo fenômeno acontecendo em outras empresas, impactando a capacidade e qualidade dos líderes.

Diametralmente oposto, percebemos que a velocidade e abrangência de comunicação foi extremamente amplificada com uso de tecnologias de reuniões virtuais. Como CEO, eu investia bastante tempo nas interações com meu time de diretos antes da pandemia, procurando garantir a compreensão da estratégia e táticas do dia a dia de forma que eles pudessem desdobrar as ações com seus respectivos times. Esse seria um tradicional processo de comunicação nas organizações que respeita as hierarquias. Com a realidade do trabalho remoto, descobrimos que poderíamos nos comunicar com toda a organização em diferentes formatos. Passar as mensagens e diretrizes para operação sem passar por diferentes níveis. Eu sentia que a qualidade da comunicação dependia de meu ânimo, inspiração e intensidade e que meus diretos passavam a ser iguais a todo o restante da organização. Nitidamente, o poder da comunicação do líder virtual estava sendo ampliado pelos canais digitais e tecnologias de videoconferência. Recebi muitos feedbacks sobre reuniões que foram boas e outras que nem tanto. Em determinado dia, um prezado colaborador chegou a sugerir um treinamento com um youtuber famoso. Naquele momento, além de me sentir exposto, refleti sobre as competências de comunicação que um líder deveria apresentar e o quanto benéfico seria um estilo um pouco mais super ou popstar, o que seria bem diferente de minha essência. Podemos identificar pontos fortes e fracos na questão, todavia é inegável que a qualidade da comunicação passou a ser fundamental no mundo virtual e as habilidades requeridas são diferentes das tradicionais que usualmente os líderes utilizam em seu dia a dia. Alguns grandes líderes utilizam um estilo de liderança mais humilde e em alguns casos são introvertidos. Será que esse estilo estará comprometido num contexto de comunicação digital empoderada? Quais seriam as adaptações necessárias nos programas de desenvolvimento de liderança em contexto digital? Que impacto tem a comunicação dos CEOs na base da pirâmide organizacional nesse cenário? Será que ela se traduz em engajamento? Também podemos indagar se no trabalho remoto a qualidade do engajamento dos colabores terá um impacto diferenciado na performance. Qual estilo de liderança é mais adequado nas interações massivas em canais digitais?

Utilizando nossos instrumentos internos de pesquisa de clima e engajamento, constatamos que grande parte dos colaboradores percebeu uma atuação mais próxima da minha liderança. Qualitativamente, identificamos que as pessoas percebiam maior proximidade, maior atenção, e estavam muito mais bem informadas sobre tudo o que acontecia e conhecedoras das principais decisões. Recordo-me de comentários do tipo: “Apesar do distanciamento, nunca me senti tão participante da gestão da empresa”. Podemos levantar algumas proposições sobre a observação desses fatos. Será que a tecnologia dos canais de comunicação tornará a hierarquia organizacional irrelevante? Será que a comunicação direta do topo com a base permitirá a redução dos níveis hierárquicos? Estamos diante de uma tendência real no achatamento da pirâmide organizacional?

Muitos acreditam que se digitalizaram durante o isolamento da pandemia. Um olhar mais atento nos diria paradoxalmente que, na verdade, ressignificamos a essência humana. Mudamos nossa forma de interagir, consumir e usufruir a vida, e tudo isso trouxe transformações profundas no exercício da liderança.

  • Nota:
    Cartas Executivas são documentos publicados, desde janeiro de 2021, pela Revista de Administração Contemporânea - RAC, e prestam-se ao papel de viabilizar e estabelecer interlocução entre a comunidade de praticantes e a comunidade acadêmica do campo de negócios e gestão. A intenção central da publicação das Cartas Executivas é consolidar e orientar o impacto social das pesquisas de rigor científico nesse campo. Esses documentos devem conter prioritariamente a opinião, em nível individual, de pessoas que exerçam liderança em setores da indústria ou da gestão pública acerca de problemas relevantes para sua atuação. Para tanto, esses documentos devem abordar contextos e problemas enfrentados por líderes, os quais possam se refletir em alvo de pesquisa na área de negócios e gestão. A autoria das Cartas Executivas será de individuos convidados por Editores(as) da RAC.
  • Direitos Autorais
    A RAC detém os direitos autorais deste conteúdo.
  • Verificação de Plágio
    A RAC mantém a prática de submeter todos os documentos aprovados para publicação à verificação de plágio, mediante o emprego de ferramentas específicas, e.g.: iThenticate.
  • O QUE É A RAC?
    A Revista de Administração Contemporânea (RAC) foi estabelecida em 1997 e é publicada bimestralmente na modalidade de publicação contínua pela ANPAD (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Administração), com acesso aberto ao texto completo de seu conteúdo, revisado por pares, e disponibilizado online gratuitamente. É registrada sob o ISSN 1982-7849 (online) e ISSN 1415-6555 (versão impressa de 1997 a 2010). A RAC publica artigos de desenvolvimento teórico e trabalhos teórico-empíricos na área da Administração e das Ciências Contábeis, alinhado com práticas de Ciência Aberta: dados, materiais e códigos abertos, além da disseminação de informações adicionais relativas ao processo editorial. Esta revista é membro e subscreve os princípios do COPE - Comitê de Ética em Publicações. A RAC é o principal periódico acadêmico em seu campo, com contribuições de alta qualidade, revisadas por pares. Portanto, dedicamos especial atenção ao papel da RAC: ser uma fonte confiável de dados, de informação, e conhecimento. Além disso, a RAC, mediante seu escopo editorial, prioriza trabalhos que explorem temas relevantes para a sociedade. E, para tanto, utiliza os temas destacados nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU. A RAC é uma revista pluralista e heterodoxa na área de pesquisa em gestão de negócios, preocupada principalmente com questões relativas a vínculos entre estratégia e gestão competitiva, além de fornecer resultados de pesquisas em sistemas e padrões, ferramentas de gerenciamento corporativo, organizações e gerenciamento, setores específicos da indústria, e respostas a questões contemporâneas, como desenvolvimento, resiliência das comunidades, desigualdade, consumo, tecnologia, e mudanças climáticas.

REFERENCE

Editor-chefe: Wesley Mendes-Da-Silva (Fundação Getulio Vargas, EAESP, Brasil) https://orcid.org/0000-0002-5500-4872
Carta Executiva recebida mediante convite formulado pela Editora Associada: Paula C. P. de S. Chimenti (Universidade Federal do Rio de Janeiro, COPPEAD, Brasil) https://orcid.org/0000-0002-6492-4072

AUTORIA

José Augusto Lopes Figueiredo, Lee Hecht Harrison Brasil, Rua Lauro Müller, nº 116, 14º andar, Botafogo, 22290-160, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: jaugusto@lhh.com https://orcid.org/0000-0003-1454-778X
Graduado em Engenharia Mecânica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em Psicologia pela Universidade Santa Úrsula no Brasil. Possui MBA em Administração de Empresas pelo COPPEAD - Instituto de Pesquisa e Pós-Graduação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em Marketing pela Fundação Machado Sobrinho - MG. Também graduado no Instituto Brasileiro de Governança Corporativa - IBGC. Está doutorando em Administração de Empresas pelo COPPEAD-UFRJ e é Professor convidado do MBA Executivo em Liderança do COPPEAD.Membro do Conselho de Administração de organizações sem fins lucrativos: Rede Cidadã, ABRH-SP, ABRH-Rio e COPPEAD-UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mentor Voluntário na Endeavor. Também atua como membro do Conselho de Administração no Grupo Technos e Presidente do Conselho no Grupo Malwee. Atualmente ocupa o cargo de CEO da LHH Brasil e Country Head do Grupo Adecco no Brasil. Também atua como Coach Executivo e Consultor em projetos na LHH Brasil. Certificado em Coaching pela Columbia University, Nova York - EUA, credenciado pela International Coach Federation como Coach Associado Certificado (ACC) e PMP pelo Project Management Institute. Como executivo, trabalhou na White Martins, American Cyanamid, American Home Products, BASF e atualmente na LHH (desde 2001).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2021
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração Av. Pedro Taques, 294,, 87030-008, Maringá/PR, Brasil, Tel. (55 44) 98826-2467 - Curitiba - PR - Brazil
E-mail: rac@anpad.org.br