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Socialização Profissional sob a Ótica de Cirurgiãs: Desafios e Realização na Carreira Profissional

RESUMO

Objetivo:

com o intuito de contribuir para o campo de investigação do conhecimento da relação entre o trabalho e o gênero, o estudo põe em foco a profissão de médico cirurgião, que conta com baixa participação feminina. Assim, o objetivo do estudo é compreender como ocorre a socialização profissional de médicas cirurgiãs, com ênfase no gênero e nas relações de trabalho.

Métodos:

é uma pesquisa de natureza qualitativa, de caráter descritivo, com entrevistas em profundidade realizadas com 10 médicas cirurgiãs, examinando suas percepções em torno das categorias de análise pertencentes ao modelo teórico da socialização profissional: passagem através do espelho, instalação da dualidade e ajuste da concepção de si.

Resultados:

o interesse maior das entrevistadas pela área cirúrgica partiu de características de personalidade que se julgavam importantes a um cirurgião, além do desejo de resolver o problema do paciente de forma mais prática e objetiva.

Conclusões:

verificou-se que existem conflitos entre a cultura leiga e a profissional e que a inserção profissional foi marcada por desafios, como preconceitos e dificuldades na conciliação da vida pessoal e profissional. A pesquisa ampliou a compreensão de como as cirurgiãs estão inseridas no mercado de trabalho, área predominantemente masculina e caracterizada por muitos estereótipos.

Palavras-chave:
carreira; diversidade; gênero; preconceito; socialização profissional

ABSTRACT

Objective:

aiming to contribute to the field of investigation on the association between work and gender, the study focuses on the medical surgeon profession, which has a low female participation rate. Thus, the aim of the study is to understand how professional socialization of female surgeons occurs, with an emphasis on gender and work relationships.

Methods:

this is a qualitative, descriptive study, comprising in-depth interviews carried out with 10 female surgeons, assessing their perceptions about the analysis categories belonging to the theoretical model of professional socialization: the looking-glass self, the establishment of duality, and the adjustment of the self-concept.

Results:

the interviewees’ greatest interest in the surgical area originated from personal characteristics they thought were important to a surgeon, in addition to the desire to solve the patient’s problem in a more practical and objective way.

Conclusions:

we observed that there are conflicts between the lay and professional culture and that the professional insertion was characterized by challenges, such as prejudice and difficulties in reconciling the personal and professional aspects of life. The study increased the understanding of how the job market incorporated the female surgeons, since it is a predominantly male area characterized by many stereotypes.

Keywords:
career; diversity; gender; prejudice; professional socialization

INTRODUÇÃO

A diversidade da força de trabalho tem se tornado uma estratégia para as organizações, impactando diretamente o alcance dos objetivos organizacionais (Alves & Galeão-Silva, 2004Alves, M. A., & Galeão-Silva, L. G. (2004). A crítica da gestão da diversidade nas organizações. RAE-Revista de Administração de Empresas, 44(3), 20-29. https://doi.org/10.1590/S0034-75902004000300003
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; Ashikali & Groeneveld, 2015Ashikali, T., & Groeneveld, S. (2015). Diversity management for all? An empirical analysis of diversity management outcomes across groups.Personnel Review, 44(5), 757-780. https://doi.org/10.5465/AMBPP.2014.15878abstract
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; Pereira & Hanashiro, 2010Pereira, J. B. C., & Hanashiro, D. M. M. (2010). Ser ou não ser favorável às práticas de diversidade? Eis a questão. RAC-Revista de Administração Contemporânea, 14(4), 670-683. https://doi.org/10.1590/S1415-65552010000400007
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; Saraiva & Irigaray, 2009)Saraiva, L. A. S., & Irigaray, H. A. R. (2009). Políticas de diversidade nas organizações: Uma questão de discurso? RAE-Revista de Administração de Empresas, 49(3), 337-348. https://doi.org/10.1590/S0034-75902009000300008
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. Organizações que exploram as diferenças individuais na composição de seu quadro funcional podem ganhar em competitividade, produtividade, diversidade de habilidades, crescimento e inovação organizacional (Bedi, Lakra, & Gupta, 2014Bedi, P., Lakra, P., & Gupta, E. (2014). Workforce diversity management: Biggest challenge or opportunity for 21st century organizations. Journal of Business and Management, 16(4), 102-107. https://doi.org/10.9790/487X-1643102107
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; Cho, Kim, & Mor Barak, 2017)Cho, S., Kim, A., & Mor Barak, M. E. (2017). Does diversity matter? Exploring workforce diversity, diversity management, and organizational performance in social enterprises. Asian Social Work and Policy Review, 11(3), 193-204. http://doi.org/10.1111/aswp.12125
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.

No contexto da diversidade de gênero, Fitzsimmons (2012)Fitzsimmons, S. R. (2012). Women on boards of directors: Why skirts in seats aren’t enough.Business Horizons, 55(6), 557-566. https://doi.org/10.1016/j.bushor.2012.07.003
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ressalta que organizações com políticas igualitárias para homens e mulheres podem ter melhor desempenho e capacidade para a resolução de problemas. Dessa forma, a atuação feminina no mercado de trabalho vem ganhando mais espaço, principalmente a partir do século XX e com mais ênfase no século XXI (Leslie, Manchester, & Dahm, 2017Leslie, L. M., Manchester, C. F., & Dahm, P. C. (2017). Why and when does the gender gap reverse? Diversity goals and the pay premium for high potential women. Academy of Management Journal, 60(2), 402-432. https://doi.org/10.5465/amj.2015.0195
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; Vale, Serafim, & Teodósio, 2011Vale, G. M. V., Serafim, A. C. F., & Teodósio, A. D. S. S. (2011). Gênero, imersão e empreendedorismo: Sexo frágil, laços fortes? RAC-Revista de Administração Contemporânea, 15(4), 631-649. https://doi.org/10.1590/S1415-65552011000400005
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; Zauli, 2015)Zauli, A. (2015). Reflexões sobre diversidade e gênero. Brasília: Edições Câmara.. No Brasil, por exemplo, o crescimento da população feminina está alinhado diretamente com a inclusão da mulher no mercado de trabalho, assim como com a ampliação da escolaridade e da participação da classe em diversos setores da economia, sobretudo em profissões que eram tradicionalmente marcadas por um maior quantitativo masculino, como medicina, engenharia, arquitetura e direito (Andreassi & Tonelli, 2018Andreassi, T., & Tonelli, M. J. (2018). Women Entrepreneurs in São Paulo, Brazil. In Entrepreneurial Learning City Regions (pp. 121-136). Chan: Springer.; Scheffer & Cassenote, 2013)Scheffer, M. C., & Cassenote, A. J. F. (2013). The feminization of Medicine in Brazil.Revista Bioética, 21(2), 268-277. https://doi.org/10.1590/S1983-80422013000200010
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Saraiva e Irigaray (2009)Saraiva, L. A. S., & Irigaray, H. A. R. (2009). Políticas de diversidade nas organizações: Uma questão de discurso? RAE-Revista de Administração de Empresas, 49(3), 337-348. https://doi.org/10.1590/S0034-75902009000300008
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, Zauli (2015)Zauli, A. (2015). Reflexões sobre diversidade e gênero. Brasília: Edições Câmara., Póvoa, Maffezzolli, Pech e Silva (2017)Póvoa, A. C. S., Maffezzolli, M. R., Pech, W., & Silva, W. V. (2017). A influência do gênero no processo decisório: O jogo do ultimato. RAC-Revista de Administração Contemporânea, 21(4), 481-499. http://dx.doi.org/10.1590/1982-7849rac2017160152
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e Fine, Sojo e Lawford‐Smith (2020)Fine, C., Sojo, V., & Lawford‐Smith, H. (2020). Why does workplace gender diversity matter? Justice, organizational benefits, and policy. Social Issues and Policy Review, 14(1), 36-72. https://doi.org/10.1111/sipr.12064
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consideram que as diferenças de gênero ainda são existentes no mercado de trabalho, de modo que as mulheres ganham salários inferiores, têm menos possibilidades de obter cargos de alto nível hierárquico nas organizações e têm capacidades subvalorizadas em profissões com mais representatividade masculina, consideradas estereotipadas - profissões e/ou ocupações denominadas como masculinas, que detêm referenciais masculinos - explicadas pela construção do papel social de gênero (Chies, 2010)Chies, P. V. (2010). Identidade de gênero e identidade profissional no campo de trabalho. Revista Estudos Feministas, 18(2), 507-528. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2010000200013
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Em relação a profissões estereotipadas, que são tradicionalmente marcadas pela presença de homens, cabe salientar a medicina que, mesmo com a crescente feminização no Brasil, não modificou o fato de ser uma profissão predominantemente marcada por um maior número de homens. No decorrer dos anos, contudo, as mulheres foram progredindo e rompendo barreiras e se inserindo mais na área médica; isso não alterou, contudo, o fato de que é uma ocupação ainda masculinizada (Scheffer, Biancarelli, & Cassenote, 2015)Scheffer, M., Biancarelli, A., & Cassenote, A. (2015). Demografia médica no Brasil 2015. São Paulo: Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, Conselho Federal de Medicina. .

Os estereótipos na medicina estão mais presentes quando se avaliam as especialidades da área. Dentre as 53 especialidades, 38 são dominadas por homens, ficando a maioria feminina em especialidades como pediatria e dermatologia, áreas com maior tradição de participação da mulher na medicina (Broadhead, 2017Broadhead, R. S. (2017). The private lives and professional identity of medical students. London: Routledge.; Scheffer et al., 2015)Scheffer, M., Biancarelli, A., & Cassenote, A. (2015). Demografia médica no Brasil 2015. São Paulo: Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, Conselho Federal de Medicina. . Nessa perspectiva, verifica-se pela Tabela 1 um comparativo do quantitativo de especialidades médicas por gênero com base em dados do perfil demográfico da primeira demografia médica realizada no Brasil, em 2011, e na mais recente demografia médica publicada, em 2018. As especialidades médicas cirúrgicas ainda prevalecem com uma maior presença de homens, mas têm sido observados aumentos nos percentuais de mulheres em quase todas as áreas citadas. Esses dados ampliam a relevância da discussão sobre a presença desse público nesses nichos e suas carreiras.

Tabela 1
Comparativo do quantitativo de homens e mulheres em especialidades médicas no Brasil nos anos de 2011 e 2018.

De modo geral, as maiores discrepâncias em representatividade feminina se encontram nas especialidades cirúrgicas, pois tradicionalmente são dominadas por homens, e ainda exigem, muitas vezes, mais força e resistência física (Lempp & Seale, 2006)Lempp, H., & Seale, C. (2006). Medical students’ perceptions in relation to ethnicity and gender: a qualitative study. BMC Medical Education, 6(17), 1-7. https://doi.org/10.1186/1472-6920-6-17
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. As especialidades em que há maior presença feminina, como dermatologia, endocrinologia e pediatria, ainda têm ampliado essa representatividade. Contudo, a decisão de uma mulher se tornar cirurgiã pode ter mais obstáculos, desafios e dificuldades do que a de um homem, pois existem mais discriminações para as médicas, por serem mulheres, sobretudo nas especialidades cirúrgicas (Cochran et al., 2013Cochran, A., Hauschild, T., Elder, W. B., Neumayer, L. A., Brasel, K. J., & Crandall, M. L. (2013). Perceived gender-based barriers to careers in academic surgery.The American Journal of Surgery, 206(2), 263-268. https://doi.org/10.1016/j.amjsurg.2012.07.044
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; Franco & Santos, 2010Franco, T., & Santos, E. G. D. (2010). Mulheres e cirurgiãs.Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, 37(1), 72-77. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-69912010000100015
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; Seemann et al., 2016)Seemann, N. M., Webster, F., Holden, H. A., Carol-Anne, E. M., Baxter, N., Desjardins, C., & Cil, T. (2016). Women in academic surgery: Why is the playing field still not level?The American Journal of Surgery, 211(2), 343-349. https://doi.org/10.1016/j.amjsurg.2015.08.036
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Diante do exposto e tomando como foco o gênero e as relações de trabalho, como é o caso das mulheres cirurgiãs, e considerando as fases da socialização profissional estabelecidas por Hughes (1958)Hughes, E. C. (1958).Men and their work. Florence, MA: Free Press. e Dubar (2005Dubar, C. (2005). A socialização: Construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes. , 2012) - passagem através do espelho, instalação da dualidade e o ajuste da concepção em si -, surge o seguinte questionamento: como se dá a socialização profissional de mulheres cirurgiãs? Esta pesquisa tem como objetivo compreender como ocorre o processo de socialização profissional de médicas cirurgiãs.

A socialização profissional vem sendo um tema significativamente discutido no meio acadêmico, nacional e internacionalmente. Assim, diante de buscas em portais de periódicos científicos, como Web of Science, Scopus, Spell e Scielo, verificou-se uma escassa incidência de estudos sobre a socialização profissional de médicas cirurgiãs, os motivos que levam as mulheres a se inserir nessa área de especialidade e como ocorre esse processo. Destarte, torna-se relevante compreender como as mulheres médicas estão inseridas no mercado de trabalho, área ainda caracterizada por muitos estereótipos - com o intuito de se ter um conhecimento acerca dos processos de socialização profissional e de suas carreiras, principalmente para romper os fortes e persistentes estereótipos masculinos da profissão ‘cirurgião’.

Nesse sentido, o estudo busca contribuir para o conhecimento científico entre as relações de trabalho, por meio da socialização profissional, e o gênero em profissões estereotipadas e marcadas pela presença considerável de homens quando comparada com a de mulheres, como é o caso de médicos que atuam como cirurgiões (Franco & Santos, 2010Franco, T., & Santos, E. G. D. (2010). Mulheres e cirurgiãs.Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, 37(1), 72-77. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-69912010000100015
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; Seemann et al., 2016)Seemann, N. M., Webster, F., Holden, H. A., Carol-Anne, E. M., Baxter, N., Desjardins, C., & Cil, T. (2016). Women in academic surgery: Why is the playing field still not level?The American Journal of Surgery, 211(2), 343-349. https://doi.org/10.1016/j.amjsurg.2015.08.036
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. Além do mais, pesquisas no campo do conhecimento científico da socialização profissional, de modo geral, são realizadas sem buscar nichos específicos e, então, esta investigação foca numa ocupação ainda pouco explorada na literatura acadêmica (Hughes, 1958Hughes, E. C. (1958).Men and their work. Florence, MA: Free Press. ; Shinyashiki, Mendes, Trevizan, & Day, 2006Shinyashiki, G. T., Mendes, I. A. C., Trevizan, M. A., & Day, R. A. (2006). Professional socialization: Students becoming nurses. Revista latino-americana de enfermagem, 14(4), 601-607. https://doi.org/10.1590/s0104-11692006000400019
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; Zarshenas et al., 2014)Zarshenas, L., Sharif, F., Molazem, Z., Khayyer, M., Zare, N., & Ebadi, A. (2014). Professional socialization in nursing: A qualitative content analysis. Iranian journal of nursing and midwifery research, 19(4), 432-438. Retrieved from https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/25183987/
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, e isto permite avançar nesse campo do conhecimento científico, conferindo um caráter inovador e original ao estudo.

Além desta introdução, o artigo está segmentado em mais cinco seções. Na segunda seção, realiza-se uma contextualização na área médica, considerando as mulheres cirurgiãs. Em seguida, explana-se sobre a socialização profissional com base nas suas três fases: passagem através do espelho, instalação da dualidade e o ajuste da concepção em si. Na quarta seção são abordados os procedimentos metodológicos adotados para a obtenção dos resultados. Logo após, têm-se a análise e a discussão dos resultados. Por fim, na sexta seção, são destacadas as considerações finais da pesquisa, com reflexões para futuros estudos sobre o tema.

MÉDICAS CIRURGIÃS: INSERÇÃO E PRÁTICA PROFISSIONAL

A profissão médica vem se expandindo no Brasil devido ao aumento da oferta de vagas na graduação de medicina, às necessidades crescentes da população e à expansão do sistema de saúde. Todavia, estudos apontam que as médicas, em determinadas especialidades, enfrentam discriminações só pelo fato de serem mulheres (Cochran et al., 2013Cochran, A., Hauschild, T., Elder, W. B., Neumayer, L. A., Brasel, K. J., & Crandall, M. L. (2013). Perceived gender-based barriers to careers in academic surgery.The American Journal of Surgery, 206(2), 263-268. https://doi.org/10.1016/j.amjsurg.2012.07.044
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; Edmunds et al., 2016Edmunds, L. D., Ovseiko, P. V., Shepperd, S., Greenhalgh, T., Frith, P., Roberts, N. W., Pololi, L. H., Buchan, A. M. (2016). Why do women choose or reject careers in academic medicine? A narrative review of empirical evidence.The Lancet, 388(10062), 2948-2958. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(15)01091-0
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; Seemann et al., 2016)Seemann, N. M., Webster, F., Holden, H. A., Carol-Anne, E. M., Baxter, N., Desjardins, C., & Cil, T. (2016). Women in academic surgery: Why is the playing field still not level?The American Journal of Surgery, 211(2), 343-349. https://doi.org/10.1016/j.amjsurg.2015.08.036
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, recebem salários inferiores aos dos homens (Scheffer et al., 2015Scheffer, M., Biancarelli, A., & Cassenote, A. (2015). Demografia médica no Brasil 2015. São Paulo: Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, Conselho Federal de Medicina. ; Seemann et al., 2016), têm dificuldades de ascensão profissional (Mckimm, Silva, Edwards, Greenhill, & Taylor, 2015McKimm, J., Silva, A. S., Edwards, S., Greenhill, J., & Taylor, C. (2015). Women and leadership in medicine and medical education: International perspectives. In M. Tsouroufli (Ed.),Gender, careers and inequalities in medicine and medical education: International perspectives(pp. 69-98). Melbourne: Emerald Group.; Schroen, Brownstein, & Sheldon, 2004Schroen, A. T., Brownstein, M. R., & Sheldon, G. F. (2004). Women in academic general surgery.Academic Medicine, 79(4), 310-318. https://doi.org/10.1097/00001888-200404000-00006
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; Seemann et al., 2016) e em conciliar a vida profissional com a pessoal (Cech, 2013Cech, E. A. (2013). The self-expressive edge of occupational sex segregation.American Journal of Sociology, 119(3), 747-789. https://doi.org/10.1086/673969
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; Edmunds et al., 2016; Franco & Santos, 2010Franco, T., & Santos, E. G. D. (2010). Mulheres e cirurgiãs.Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, 37(1), 72-77. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-69912010000100015
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; Miller & Clark, 2008)Miller, K., & Clark, D. (2008). “Knife before wife”: An exploratory study of gender and the UK medical profession.Journal of Health Organization and Management, 22(3), 238-253. https://doi.org/10.1108/14777260810883521
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, e são minorias em muitas especialidades médicas (Scheffer et al., 2015).

Edmunds et al. (2016)Edmunds, L. D., Ovseiko, P. V., Shepperd, S., Greenhalgh, T., Frith, P., Roberts, N. W., Pololi, L. H., Buchan, A. M. (2016). Why do women choose or reject careers in academic medicine? A narrative review of empirical evidence.The Lancet, 388(10062), 2948-2958. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(15)01091-0
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ressaltam que a representatividade feminina na medicina é baixa por causa da discriminação, do preconceito e da preocupação sobre o equilíbrio entre o trabalho e a vida particular. Scheffer, Biancarelli e Cassenote (2015)Scheffer, M., Biancarelli, A., & Cassenote, A. (2015). Demografia médica no Brasil 2015. São Paulo: Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, Conselho Federal de Medicina. retratam que, mesmo com a expansão da medicina no Brasil e da feminização, ainda é uma área com estereótipos que ditam características, valores e atitudes, assim como determinam quais especialidades são mais direcionadas para homens ou mulheres. Algumas especialidades altamente estereotipadas e sem considerável representação feminina no mercado de trabalho são as relacionadas às cirurgias (Franco & Santos, 2010Franco, T., & Santos, E. G. D. (2010). Mulheres e cirurgiãs.Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, 37(1), 72-77. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-69912010000100015
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; Seemann et al., 2016)Seemann, N. M., Webster, F., Holden, H. A., Carol-Anne, E. M., Baxter, N., Desjardins, C., & Cil, T. (2016). Women in academic surgery: Why is the playing field still not level?The American Journal of Surgery, 211(2), 343-349. https://doi.org/10.1016/j.amjsurg.2015.08.036
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.

Desde o processo de seleção para a residência médica, as mulheres já sofrem, em muitos casos, discriminação de gênero, pois nas escolas médicas o processo de seleção é considerado muito competitivo. Além disso, as mulheres que optam por se dedicar mais na conciliação do trabalho-família, assim como na maternidade, são vistas, muitas vezes, pelos professores e mentores como pessoas que tendem a não passar pelo criterioso crivo no processo seletivo para a residência ou pós-graduação na área médica (Mason & Ekman, 2007Mason, M. A., & Ekman, E. M. (2007). Mothers on the fast track: How a new generation can balance family and careers. Oxford: Oxford University Press.; Minella, 2017)Minella, L. S. (2017). Medicina e feminização em universidades brasileiras: O gênero nas interseções. Revista Estudos Feministas, 25(3), 1111-1128. https://doi.org/10.1590/1806-9584.2017v25n3p1111
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.

Seemann et al. (2016)Seemann, N. M., Webster, F., Holden, H. A., Carol-Anne, E. M., Baxter, N., Desjardins, C., & Cil, T. (2016). Women in academic surgery: Why is the playing field still not level?The American Journal of Surgery, 211(2), 343-349. https://doi.org/10.1016/j.amjsurg.2015.08.036
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apresentam que os maiores desafios enfrentados pelas médicas cirurgiãs ocorrem pelo fato de serem mulheres, e quanto mais avançam na carreira, isso se torna ainda mais perceptível. Ademais, chantagens, assédios, difamação e ridicularizações estiveram presentes na evolução das mulheres na medicina, de modo particular na cirurgia, e de forma mais grave e constante no início de suas carreiras como cirurgiãs (Cochran et al., 2013Cochran, A., Hauschild, T., Elder, W. B., Neumayer, L. A., Brasel, K. J., & Crandall, M. L. (2013). Perceived gender-based barriers to careers in academic surgery.The American Journal of Surgery, 206(2), 263-268. https://doi.org/10.1016/j.amjsurg.2012.07.044
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; Franco & Santos, 2010)Franco, T., & Santos, E. G. D. (2010). Mulheres e cirurgiãs.Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, 37(1), 72-77. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-69912010000100015
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.

De acordo com Seemann et al. (2016)Seemann, N. M., Webster, F., Holden, H. A., Carol-Anne, E. M., Baxter, N., Desjardins, C., & Cil, T. (2016). Women in academic surgery: Why is the playing field still not level?The American Journal of Surgery, 211(2), 343-349. https://doi.org/10.1016/j.amjsurg.2015.08.036
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, uma mentoria feminina pode ser muito benéfica para a carreira, não só profissionalmente, mas para auxiliar a encontrar o equilíbrio da carreira com a vida pessoal e familiar. Existe, portanto, uma tendência de as mulheres desistirem da especialidade cirúrgica nos primeiros anos de carreira, sobretudo pela combinação da discriminação sexual e da escassez de mentoras na cirurgia (Cochran et al., 2013)Cochran, A., Hauschild, T., Elder, W. B., Neumayer, L. A., Brasel, K. J., & Crandall, M. L. (2013). Perceived gender-based barriers to careers in academic surgery.The American Journal of Surgery, 206(2), 263-268. https://doi.org/10.1016/j.amjsurg.2012.07.044
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. Contudo, a satisfação profissional entre as cirurgiãs é considerada alta, e a maioria escolheria ser cirurgiã novamente, recomendando ainda seguir na carreira médica em especialidades que lidam diretamente com cirurgias (Schroen et al., 2004Schroen, A. T., Brownstein, M. R., & Sheldon, G. F. (2004). Women in academic general surgery.Academic Medicine, 79(4), 310-318. https://doi.org/10.1097/00001888-200404000-00006
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; Seemann et al., 2016).

SOCIALIZAÇÃO PROFISSIONAL

Dubar (2005)Dubar, C. (2005). A socialização: Construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes. destaca que, além da transmissão de valores, normas e regras, a socialização é um processo de construção da identidade do indivíduo, identificação e pertencimento na sociedade, que implica o pertencimento a um grupo e guia atitudes pessoais e profissionais de um indivíduo (Broadhead, 2017Broadhead, R. S. (2017). The private lives and professional identity of medical students. London: Routledge.; Santos, 2005Santos, C. (2005). A construção social do conceito de identidade profissional.Interações: Sociedade e as novas modernidades, 5(8), 123-144. Retrieved from https://www.interacoes-ismt.com/index.php/revista/article/view/145
https://www.interacoes-ismt.com/index.ph...
; Spudeit & Cunha, 2016)Spudeit, D., & Cunha, M. V. (2016). O processo de socialização na construção da identidade dos bibliotecários em Santa Catarina.Em Questão, 22(3), 56-83. https://doi.org/10.19132/1808-5245223.56-83
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. A socialização constitui-se da construção, desconstrução e reconstrução de identidades que são formadas ao longo da vida das pessoas (Dubar, 2005).

Segundo Boulart e Lanza (2007)Boulart, I. B., & Lanza, M. B. F (2007). Identidade das pessoas e das organizações. Management in Dialogue Review, 9(1), 1-18. https://doi.org/10.20946/rad.v9i1.1509
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, a construção da identidade é um processo flexível, contínuo e influenciado pelo meio social, ao mesmo tempo que este é influenciado e modificado pelos sujeitos. A construção e a desconstrução do ‘eu’ são determinadas pela aceitação ou rejeição das influências sociais e culturais com as quais os sujeitos se deparam ao longo da vida. As atividades laborais dão sentido à existência individual e organizam a vida em sociedade, nomeadas de ‘ofícios’, ‘vocações’ ou ‘profissões’; tais atividades possibilitam a realização pessoal e o reconhecimento social (Dubar, 2005Dubar, C. (2005). A socialização: Construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes. ; 2012).

O profissional não se constrói apenas por meio de saberes teóricos e abstratos adquiridos na formação acadêmica, mas também, e principalmente, com a iniciação no trabalho real, em que ocorre uma conversão do que os estudantes esperavam da profissão e os estereótipos que tinham dela para o mundo profissional real na prática, com todas as suas atividades, prestigiosas e sujas, assim como a sua cultura específica (Dubar, 2012Dubar, C. (2012). A construção de si pela atividade de trabalho: A socialização profissional. Cadernos de pesquisa, 42(146), 351-367. https://doi.org/10.1590/S0100-15742012000200003
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; Gazaway, Gibson, Schumacher, & Anderson, 2019Gazaway, S., Gibson, R. W., Schumacher, A., & Anderson, L. (2019). Impact of mentoring relationships on nursing professional socialization. Journal of Nursing Management, 27(6), 1182-1189. https://doi.org/10.1111/jonm.12790
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; Hughes, 1958)Hughes, E. C. (1958).Men and their work. Florence, MA: Free Press. .

A educação médica apresenta uma série de processos pelos quais a cultura médica é mantida viva por meio do tempo e das gerações, sendo propagada de várias formas entre médicos e leigos (Hughes, 1958)Hughes, E. C. (1958).Men and their work. Florence, MA: Free Press. . Os leigos, antes de serem inseridos na medicina, já têm conhecimento prévio dessa cultura, com concepções do papel do médico e crenças sobre a medicina. Assim, o período inicial da inserção em uma profissão é quando duas culturas interagem dentro do indivíduo: a leiga e a profissional. À medida que o indivíduo vai progredindo e se inserindo na cultura profissional por meio do treinamento e da prática, passa a obter habilidades requeridas, dos papéis a desempenhar, das tarefas a realizar e das posições que pode alcançar, e também ajusta a sua concepção de si mesmo, suas aptidões, seus gostos, sua capacidade, com descobertas sobre a carreira (Dubar, 2012Dubar, C. (2012). A construção de si pela atividade de trabalho: A socialização profissional. Cadernos de pesquisa, 42(146), 351-367. https://doi.org/10.1590/S0100-15742012000200003
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; Hughes, 1958).

Na profissão médica a linha de carreira é bem sequenciada: fase pré-médica, estudante de medicina, estagiário, residente, médico praticante e especialista (Cruess, Cruess, Boudreau, Snell, & Steinert, 2015Cruess, R. L., Cruess, S. R., Boudreau, J. D., Snell, L., & Steinert, Y. (2015). A schematic representation of the professional identity formation and socialization of medical students and residents: A guide for medical educators.Academic Medicine, 90(6), 718-725. https://doi.org/10.1097/ACM.0000000000000700
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; Hughes, 1958)Hughes, E. C. (1958).Men and their work. Florence, MA: Free Press. . Os caminhos percorridos envolvem muitos riscos, pois contêm um conjunto de projeções de si mesmo no futuro, e a mudança de uma atividade para outra implica a possibilidade da perda de habilidades, podendo provocar ansiedade nos indivíduos, e, consequentemente, possibilitando ponderações na escolha de suas linhas de carreira (Hughes, 1958). O modelo de socialização profissional de Hughes tem três fases; e Dubar (2005Dubar, C. (2005). A socialização: Construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes. , 2012), a partir dos resultados encontrados por Hughes (1958), nomeia-as de: passagem através do espelho, instalação da dualidade e o ajuste da concepção em si (Tabela 2).

Tabela 2
Fases da socialização profissional.

Apesar de essa divisão em fases transmitir uma ideia sequencial, Hughes (1958)Hughes, E. C. (1958).Men and their work. Florence, MA: Free Press. nota que não há um ponto final, pois os profissionais devem estar frequentemente evoluindo e suas identidades estão em constante construção e reconstrução.

MÉTODO DA PESQUISA

Participantes

Esta pesquisa caracteriza-se por sua natureza qualitativa, de caráter descritivo - diante da percepção de médicas cirurgiãs sobre a socialização profissional. Vale ressaltar que esta investigação, a partir das percepções dos sujeitos da pesquisa, constitui uma opção metodológica capaz de contribuir para o debate sobre a feminização da carreira médica, sobretudo àquelas que atuam como cirurgiãs. O universo da pesquisa foi composto por médicas cirurgiãs que atuam na cidade de Fortaleza, Ceará - cidade com ampla incidência e representatividade com relação ao número de médicas cirurgiãs no Brasil. O estado do Ceará, segundo dados da última demografia médica realizada em 2018, apresenta 12.652 médicos registrados, 57,2% homens e 42,8% mulheres. Em Fortaleza, capital do Ceará, o percentual de mulheres já aumenta para 45,8%, próximo da média nacional (45,6%). Em relação ao quantitativo de especialistas, em todas as 13 áreas cirúrgicas reconhecidas profissionalmente, ou que envolvem cirurgias, os homens são maioria; mesmo em cirurgia geral, que é uma das especialidades básicas, as mulheres ocupam apenas um quinto do total.

Segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos [DIEESE], 2017), a média dos rendimentos mensais dos homens e das mulheres, considerando as moedas real e dólar, referentes à cotação do ano de 2016, equivalem a R$ 1.473 (US$ 452,04) e R$ 1.115 (US$ 342,18), respectivamente, com as mulheres recebendo o equivalente a 75,7% do rendimento médio mensal dos homens. Em relação ao valor da hora trabalhada, o rendimento da hora de trabalho do homem decresceu de R$ 8,06 (US$ 2,06) a R$ 8,00 (US$ 2,45) de 2015 para 2016, mas ainda assim permanece maior que o rendimento da hora de trabalho feminina, que é de R$ 6,51 (US$ 2,00), o equivalente a 81,4% do valor da hora masculina. Diante dessa desigualdade, em termos gerais, justifica-se um olhar mais de perto da realidade das mulheres, sobretudo de médicas cirurgiãs na cidade investigada.

A seleção das entrevistadas foi realizada por meio da técnica snowball (bola de neve), técnica de amostragem que adota cadeias de referência (Atkinson & Flint, 2001Atkinson, R., & Flint, J. (2001). Accessing hidden and hard-to-reach populations: Snowball research strategies. Social Research Update, 33(1), 1-4. Retrieved from http://sru.soc.surrey.ac.uk/SRU33.html
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; Creswell, 2007)Creswell, J. W. (2007) Projetos de pesquisa: Métodos qualitativo, quantitativo e misto. Porto Alegre: Artmed. , com o intuito de que as primeiras médicas cirurgiãs entrevistadas indicassem novas respondentes - até que ocorresse a saturação de suas falas, o que foi percebido nas entrevistas realizadas.

Dez cirurgiãs foram entrevistadas, divididas nas seguintes especialidades: duas são cirurgiãs oftalmológicas, duas são cirurgiãs coloproctologistas, duas são cirurgiãs do aparelho digestório, uma é cirurgiã de transplante hepático, uma é cirurgiã vascular, uma é cirurgiã otorrinolaringologista e uma é cirurgiã traumato-ortopedista, todas identificadas sob o título de ‘cirurgiã’ seguido de uma numeração de 1 a 10, a fim de facilitar a nomenclatura das entrevistadas e preservar as suas respectivas identidades, o que garante a confidencialidade e o anonimato destas na investigação realizada (Tabela 3).

Tabela 3
Caracterização das entrevistadas.

Instrumento

O roteiro de entrevista foi estruturado em dois blocos: o primeiro compreendendo as perguntas relacionadas ao perfil sociodemográfico, como idade, especialidade, tempo de atuação, entre outras; e o segundo referente às fases da socialização profissional, estabelecidas por Hughes (1958)Hughes, E. C. (1958).Men and their work. Florence, MA: Free Press. e Dubar (2005Dubar, C. (2005). A socialização: Construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes. , 2012), quais sejam: passagem através do espelho, instalação da dualidade e o ajuste da concepção em si.

Procedimento de coleta

A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas em profundidade, com o auxílio de um roteiro semiestruturado. Essas entrevistas foram gravadas com autorização prévia das participantes e foram realizadas nos meses de novembro a dezembro de 2017, totalizando 5 horas, 5 minutos e 11 segundos de gravação.

Procedimento de análise

Com a utilização da técnica da análise de conteúdo, que possibilita analisar as comunicações que descrevem o conteúdo das mensagens por meio de procedimentos ordenados e objetivos (Bardin, 2011)Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo (4th ed). Lisboa: Edições 70., verificam-se as categorias de análise (as três fases da socialização profissional), baseadas na pesquisa de Hughes (1958)Hughes, E. C. (1958).Men and their work. Florence, MA: Free Press. , que foram definidas por Dubar (2005Dubar, C. (2005). A socialização: Construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes. , 2012) (Tabela 4).

Tabela 4
Categorias de análise, unidades de contexto e unidades de registro.

A análise lexical foi realizada pelos autores durante a análise de conteúdo, tendo em vista que o software utilizado Atlas.ti 7 - que possibilita codificar, classificar e gerenciar os dados oriundos de entrevistas semiestruturadas - teve como finalidade codificar, agrupar e realizar a contagem da frequência das dimensões da análise de conteúdo. Sendo assim, realizou-se uma análise pelo conteúdo e contexto das respostas fornecidas pelas médicas, o que prevalece a riqueza da fala real das entrevistadas.

Com a finalidade de tratar os dados qualitativamente de forma estruturada metodologicamente, trazendo maior confiança e validade aos resultados encontrados, os autores realizaram as codificações das citações das entrevistadas com base na literatura. A partir disso, os resultados foram interpretados por meio da análise de conteúdo, sendo validados de acordo com as categorias de análise abordadas na literatura empírica e conceitual, definidas por Dubar (2005Dubar, C. (2005). A socialização: Construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo: Martins Fontes. , 2012) e baseadas no estudo de Hughes (1958)Hughes, E. C. (1958).Men and their work. Florence, MA: Free Press. .

Por fim, com base nesse software, adotou-se a ferramenta Network View, visto que as unidades de contexto e as suas respectivas unidades de registro são conectadas por meio de setas, e assim cada código é refletido em um par ordenado {x - y}; ‘x’ representa a frequência da unidade de registro, o número de citações em que o código foi relacionado; e ‘y’ é a densidade do código, que diz respeito ao número de outros códigos aos quais ele está ligado.

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

Buscou-se verificar como ocorre a socialização profissional de mulheres cirurgiãs, de acordo com as categorias de análise: passagem através do espelho, instalação da dualidade e ajuste da concepção em si (Hughes, 1958)Hughes, E. C. (1958).Men and their work. Florence, MA: Free Press. .

A configuração geral das categorias de análise e unidades de contexto e de registro obtidas na análise das falas das 10 cirurgiãs entrevistadas é detalhada a partir de cada uma das fases da socialização profissional.

Figura 1
Relação entre categorias de análise e unidades de contexto e de registro.

Passagem através do espelho

Para se entender como ocorreu essa fase da socialização das cirurgiãs, foram estabelecidas três unidades de contexto: ‘interesses’, ‘aptidões’ e ‘inserção’. A primeira unidade de contexto a ser observada é a unidade ‘interesses’, referente ao interesse pela profissão.

As respostas foram diversificadas, visto que cada cirurgiã citou vários motivos de interesse, mas o fator ‘personalidade’ foi o que mais se repetiu em seus discursos, havendo oito citações. Para as cirurgiãs, o fato de terem determinadas características de personalidade foi determinante para o interesse e a escolha pela especialidade cirúrgica: “eu sou muito ativa, então eu não me imaginava fazendo só consultório” (C5); “... eu verifiquei que eu sempre fui assim, uma pessoa bem objetiva, que eu poderia enfrentar de fazer a cirurgia mesmo, que daria realmente certo” (C6). Tais características de personalidade corroboram o que foi afirmado por Bellodi (2004)Bellodi, P. L. (2004). The general practitioner and the surgeon: Stereotypes and medical specialties.Revista do Hospital das Clínicas, 59(1), 15-24. https://doi.org/10.1590/S0041-87812004000100004
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, que a profissão ‘cirurgião’ representa uma pessoa que é valente, ansiosa, objetiva e imediatista.

Outro fator muito citado pelas cirurgiãs é a ‘prática cirúrgica em si’. Seis cirurgiãs citaram que se interessaram pela cirurgia por gostarem do ambiente cirúrgico e do processo operatório, com os quais tiveram contato durante a faculdade ou a residência, conforme a cirurgiã 2: “... defini que eu ia fazer cirurgia pelo que eu estava vendo na cirurgia experimental, pela prática da cirurgia” (C2).

O ponto ‘resultados imediatos’ também foi citado em seis momentos pelas cirurgiãs. Segundo elas, o fato de poderem atuar diretamente na doença do paciente e obter resultados rápidos desperta seu interesse: “... quando você passa um remédio pro paciente você não vai esperar que tenha efeito naquele momento, você tem que esperar o outro dia, e isso me angustiava, porque eu queria resolver logo aquela situação, e a cirurgia você resolve logo, né?” (C4), e isto entra em consonância com o que foi reforçado por Bellodi (2004)Bellodi, P. L. (2004). The general practitioner and the surgeon: Stereotypes and medical specialties.Revista do Hospital das Clínicas, 59(1), 15-24. https://doi.org/10.1590/S0041-87812004000100004
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, acerca do desejo de se inserir nessa especialidade, que ocorre pela vontade de ajudar pessoas de forma prática e resolutiva.

Figura 2
Passagem através do espelho – interesses.

A unidade de registro ‘encantamento’ foi citada cinco vezes durante os discursos das cirurgiãs, demonstrando amor e admiração pela profissão: “... o cirurgião mudava o destino de alguns pacientes e isso me encantava muito” (C6). Quatro cirurgiãs também citaram que se interessaram pela cirurgia devido ao exemplo de seus pais que também eram cirurgiões, pelos quais elas tinham admiração: “eu creio que eu tive uma influência muito grande do meu pai, meu pai era médico e cirurgião e eu sempre o admirei muito pela profissão, da forma como ele falava, como ele tratava ...” (C6).

Além disso, quatro cirurgiãs mencionaram que escolheram fazer cirurgia por ‘desejo’, porque sempre quiseram e souberam que era isso que gostariam de fazer, e isto se pode observar no seguinte trecho: “eu, desde o começo, eu achei que queria cirurgia, comecei a faculdade querendo fazer cirurgia e definitivamente terminei querendo fazer cirurgia” (C6).

A segunda unidade de contexto diz respeito a aptidões, na qual constam as habilidades que as cirurgiãs tinham e identificavam como necessárias.

Verifica-se, então, que a habilidade mais citada foi resolutividade, conforme constatado no seguinte discurso: “vontade de tratar de forma mais rápida o paciente, de ter oportunidade de oferecer essa opção de tratamento” (C3). Outro ponto bastante citado pelas cirurgiãs foi ‘habilidades manuais’, conforme afirmam as cirurgiãs 1 e 3: “você tem que ter habilidade cirúrgica tanto na mão direita quanto na esquerda, porque serve de apoio” (C1); “eu gosto da habilidade manual de fazer cirurgia. Sempre gostei muito de atividades manuais” (C3).

O fator ‘outras características pessoais’ agrupou, por sua vez, outras habilidades que as médicas tinham e julgavam importantes para a cirurgia, como: conhecimento teórico e conhecimento prático (C2), disciplina (C3), separar o trabalho da parte emocional (C3) e ser ativa (C4). A objetividade foi citada cinco vezes como uma aptidão que as cirurgiãs consideravam ter, como apontado a seguir: “... os cirurgiões pensam de forma muito objetiva, né, então tem aquele, se resolve dessa forma e dessa, não fica ‘fosforilando’ muito pensando em a e b ... eu sempre fui muito objetiva” (C8).

A terceira unidade analisada foi a inserção, na qual constam relatos das experiências ao se inserirem na profissão.

Figura 3
Passagem através do espelho – aptidões.

Figura 4
Passagem através do espelho – inserção.

A unidade de registro ‘adversidades’ foi a mais frequente, citada 10 vezes. Por adversidade se entende os transtornos que as entrevistadas relataram enfrentar durante o período de inserção. Entre essas adversidades, cita-se: pouca clientela, machismo, maternidade, mercado saturado, entre outras: “olha, no começo é bem difícil. No primeiro ano é mais difícil, que a gente acha que não vai funcionar ...” (C1).

O fator ‘sexismo’ foi o segundo mais citado, considerando a experiência de inserção na profissão de cirurgiã, com oito menções. Por sexismo se entende os problemas de inserção enfrentados pelas mulheres devido ao seu sexo ou gênero: “... é mais esse preconceito mesmo de não acreditar que a mulher bonitinha, novinha, fosse capaz, né, porque cirurgia é coisa pra homem” (C4). Isso corrobora o enfatizado por Hill e Vaughan (2013)Hill, E., & Vaughan, S. (2013). The only girl in the room: How paradigmatic trajectories deter female students from surgical careers.Medical Education, 47(6), 547-556. https://doi.org/10.1111/medu.12134
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e Seemann et al. (2016)Seemann, N. M., Webster, F., Holden, H. A., Carol-Anne, E. M., Baxter, N., Desjardins, C., & Cil, T. (2016). Women in academic surgery: Why is the playing field still not level?The American Journal of Surgery, 211(2), 343-349. https://doi.org/10.1016/j.amjsurg.2015.08.036
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, que apontam os preconceitos e as dificuldades enfrentadas pelas mulheres na inserção de um campo dominado pelo ‘saber fazer’ profissional ligado a habilidades ditas masculinas.

A última unidade de registro da inserção é ‘facilidade’, a qual obteve cinco citações de cirurgiãs que relatam terem sido felizes em suas inserções na profissão, ou por terem sido bem recebidas nas equipes cirúrgicas ou por terem se inserido em um nicho de mercado mais vago: “eu tive muita sorte, assim, sinceramente, nunca tive dificuldade de me inserir, ao contrário do que todo mundo pensava” (C3).

Verificou-se, portanto, que as cirurgiãs tinham interesses e aptidões prévias acerca da profissão. O fator que mais as influenciou para se interessarem pela área foi relacionado com as características de suas personalidades; e a aptidão que mais julgavam ter era a resolutividade. Contudo, a inserção foi marcada, na maioria dos discursos, por adversidades encontradas ao se depararem com a cultura profissional de cirurgiã.

Instalação da dualidade

Para se entender como ocorreu essa fase da socialização, compreendeu-se como a cirurgiã percebe sua profissão, a partir de quatro unidades de contexto: idealização, realidade, dificuldades e incômodos.

Na unidade ‘idealização’, o fator mais citado pelas entrevistadas como modelo idealizado de profissão foi o sucesso, que foi escolhido para englobar fatores positivos na carreira de um cirurgião, relacionando-se com: muitos pacientes, prazer, reconhecimento, boa remuneração e glamour, conforme discurso a seguir: “... você tem aquela falsa ideia de que a cirurgia é só o glamour de operar, de tá ali operando e a satisfação de operar” (C10). Os resultados vão no mesmo sentido dos estudos de Bellodi (2004)Bellodi, P. L. (2004). The general practitioner and the surgeon: Stereotypes and medical specialties.Revista do Hospital das Clínicas, 59(1), 15-24. https://doi.org/10.1590/S0041-87812004000100004
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, de que a profissão de cirurgião é vista como bem remunerada e com prestígio social.

Figura 5
Instalação da dualidade – idealização.

Outra unidade citada foi a vida mais tranquila, termo usado para englobar o tempo livre: “queria ter um pouquinho mais de tempo livre, mas não tem, né? (risos)” (C1); “... você sabe que você vai ter seu tempo tomado pela profissão, mas você não imagina o tanto” (C2).

A outra unidade de registro foi ‘profissão conhecida’, que retrata a experiência de duas cirurgiãs que comentaram já conhecer a profissão devido a familiares serem cirurgiões, e sabiam exatamente o que esperar, portanto não construíram idealizações, pois já conheciam a realidade: “eu acho que eu já imaginava, porque eu já convivia com ambiente cirúrgico desde o começo da faculdade, e eu tenho médicos na família, alguns são cirurgiões, e eu já sabia como era a profissão” (C3).

A unidade de contexto ‘realidade’ tem como foco descobrir a opinião das entrevistadas sobre a realidade encontrada nas atividades concernentes à profissão. Como resultados, foram encontradas as unidades de registro: excesso de trabalho não cirúrgico, com cinco menções, deslocamentos, com quatro menções, e condições, com três menções.

Figura 6
Instalação da dualidade – realidade.

Por excesso de trabalho não cirúrgico entendem-se as atividades complementares à cirurgia, como pré-operatórios e pós-operatórios, acompanhamento constante do paciente, atividades burocráticas e enfermaria: “eu não tinha ideia do tanto de tempo que você tem que dedicar à atividade de enfermaria, cirurgia, consultório ...” (C2).

Outro fator citado foi ‘deslocamentos’, em que, segundo as cirurgiãs, deslocar-se entre vários hospitais e suas outras atividades do dia é uma tarefa que prejudica a qualidade de vida: “... cirurgião fica correndo de um hospital pra outro, tem dias que a gente vai em três, quatro hospitais, então, assim, são bem mais puxados nesse sentido” (C8). E por condições entende-se a falta de materiais, profissionais e um ambiente adequado de trabalho em alguns hospitais: “... a emergência me incomoda ... ‘tem que operar esse paciente agora’ - Ah, não pode operar porque não tem anestesista … porque não tem sala e nem material” (C4).

Ainda para compreender a percepção das cirurgiãs sobre sua profissão, elas foram questionadas sobre as dificuldades que enfrentaram e enfrentam na profissão. Para analisar a unidade de contexto ‘dificuldades’, foram identificadas cinco unidades de registro.

Figura 7
Instalação da dualidade – dificuldades.

A unidade mais expressiva, com vinte e quatro menções, foi ‘preconceito’. Tal resultado corrobora o enfatizado por Hill e Vaughan (2013)Hill, E., & Vaughan, S. (2013). The only girl in the room: How paradigmatic trajectories deter female students from surgical careers.Medical Education, 47(6), 547-556. https://doi.org/10.1111/medu.12134
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, que apresentam os preconceitos e desafios enfrentados por mulheres na área da cirurgia, inclusive já antes de escolherem a especialidade, durante o treinamento de suas formações médicas. Uma das maiores dificuldades enfrentadas durante a profissão de cirurgiã é o preconceito, relacionado tanto ao gênero quanto à idade, e até mesmo de naturalidade, que ocorre por parte dos colegas, dos superiores e dos pacientes: “eu tinha staff que não aceitava mulher, e não apoiava como residente” (C6). As cirurgiãs relataram que a profissão ainda é vista pela sociedade como uma profissão masculina: “por ser mulher, com certeza, porque tem o preconceito, acham que os homens são melhores que a gente” (C1); “paciente é que tem maior preconceito, né, porque é mulher. Muitas vezes, eu estou no plantão, eu chego, e o paciente ‘Cadê o médico?’ né? (risos)” (C5).

As entrevistadas também evidenciaram que elas têm de provar que são boas cirurgiãs para os colegas e pacientes: “... não é comum, entendeu? Ver operando. Então, quando opera ... é meio como se você tivesse que provar que você sabe fazer” (C9). Zauli (2015)Zauli, A. (2015). Reflexões sobre diversidade e gênero. Brasília: Edições Câmara. indica que tal fato ocorre devido à ideia estereotipada na sociedade de que o masculino é melhor e mais competente, bem como a existência de normas sociais patriarcais que existem e muitas vezes estão impostas na sociedade.

Além dos relatos de preconceito de gênero, também tiveram relatos de preconceito por idade; algumas comentaram que sentiam desconforto por parte dos pacientes por serem mulheres e jovens. Outras cirurgiãs relataram que sentiram mais incômodo pela questão da idade: “... ninguém acha que eu opero: vixi, tu opera? Tu opera retina? - As pessoas agem: tu, novinha, mulher, não é destrambelhada? (risos)” (C9). A cirurgiã 7 relatou que sentiu preconceito não só por ser mulher, mas por ser nordestina, quando foi realizar residência em São Paulo: “... talvez um preconceito velado assim por ser mulher e nordestina, eu percebia isso ... mas, eu sempre tentava compensar com mais estudo e mais trabalho, né? Aí … acho que tive uma boa resposta” (C7).

Outras entrevistadas relataram, ainda, que vivenciaram situações de brincadeiras e piadas de gênero, mas que não consideraram preconceito e não se sentiram ofendidas com isso. Segundo Franco e Santos (2010)Franco, T., & Santos, E. G. D. (2010). Mulheres e cirurgiãs.Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, 37(1), 72-77. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-69912010000100015
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, o preconceito contra as mulheres cirurgiãs era mais grave no início, envolvendo difamações, chantagens e ridicularizações, mas ainda está presente atualmente de forma velada e dissimulada em algumas brincadeiras: “... mas isso nunca foi uma coisa direta, entendeu, nunca num tom de ameaça, foi muito mais num tom de brincadeira, que você acaba escutando ... então existe esse peso, existe essa pressão” (C9).

Tiveram duas cirurgiãs que ressaltaram que, por mais que soubessem que existe o preconceito, não chegaram a sofrer com isso, então para elas não se tratou de uma dificuldade, conforme relato: “não, nunca senti diferenciação, sério mesmo. Alguns colegas conversando com elas falam ‘que pelo fato de eu ser mulher tem discriminação’, eu, sinceramente, não notei isso” (C9).

Durante a análise das dificuldades enfrentadas pelas cirurgiãs, outra unidade de registro obteve dezessete citações: conciliação, referente aos relatos dos transtornos enfrentados pelas mulheres em harmonizar sua carreira com a vida pessoal, sobretudo quanto ao cuidado com os filhos. As cirurgiãs relataram que sofrem com o prejuízo profissional quando precisam parar na licença maternidade e por não terem conseguido, ou não conseguirem, dedicar tanto tempo de qualidade com a família: “é mais difícil conciliar a vida de cirurgiã com a vida de mãe, dona de casa ... O médico não pode tá doente, o médico não pode ter filho doente ...” (C4). Isso corrobora o que foi afirmado por Seemann et al. (2016)Seemann, N. M., Webster, F., Holden, H. A., Carol-Anne, E. M., Baxter, N., Desjardins, C., & Cil, T. (2016). Women in academic surgery: Why is the playing field still not level?The American Journal of Surgery, 211(2), 343-349. https://doi.org/10.1016/j.amjsurg.2015.08.036
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, que as mulheres cirurgiãs apresentam dificuldades em conciliar suas atividades profissionais e acadêmicas com a vida familiar; bem como o enfatizado por Oliveira, Cavazotte e Paciello (2013)Oliveira, L. B., Cavazotte, F. S. C. N. de, & Paciello, R. R. (2013). Antecedentes e consequências dos conflitos entre trabalho e família. RAC-Revista de Administração Contemporânea, 17(4), 418-437. https://doi.org/10.1590/1806-9584.2017v25n3p1111
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, que existem dificuldades em conciliar a família e o trabalho quando as responsabilidades do trabalho passam a interferir no cumprimento das obrigações familiares.

A carga de trabalho é uma dificuldade apontada, em que as cirurgiãs relataram que trabalham demasiadamente e têm pouco tempo livre para outras atividades, principalmente durante a residência: “a dificuldade é só porque, querendo ou não, a gente trabalha demais, né?” (C4). Outra dificuldade é a hierarquia, em que três cirurgiãs disseram que a profissão é hierarquizada: “a cirurgia, ela é muito hierárquica … e ainda tem o modelo antigo daquele cirurgião bravo com ferro e fogo e conduz o grupo sob um punho de ferro …” (C2).

Finalizando o contexto ‘dificuldades’, a última unidade de registro identificada foi ‘subempregos’, citada por duas cirurgiãs como uma dificuldade que enfrentaram em sua profissão: “... passei onze anos trabalhando aqui no hospital em um subemprego com um salário muito baixo pela [nome da empresa] só pra eu poder ter meu espaço aqui ...” (C3).

A unidade de contexto ‘incômodos’ apresentou as seguintes unidades de registro (Figura 8).

Figura 8
Instalação da dualidade – incômodos.

A unidade ‘procedimentos específicos’ diz respeito a procedimentos específicos, citados pelas cirurgiãs, como incômodos, tais como cirurgias e atividades de que não gostam ou não se sentem aptas a fazer: “quando eu trabalhei no [hospital] também o que me incomodava na emergência era fazer amputação, sempre odiei fazer amputação ... não gostava mesmo, porque eu achava uma mutilação muito grande” (C4). Além disso, outra ressaltou: “eu não gostava de fazer ... era retalhos, microcirurgia, não gostava, fiz muito pouco na pele” (C5).

Outro fator foi ‘múltiplos papéis’, que se relaciona com a unidade de conciliação, em que as entrevistadas relatam que se incomodam em ter que se dividir entre os múltiplos papéis: “eu queria era mais [da profissão], mas já está aceito que eu não posso ter mais do que eu já tenho, por causa que tem meu outro lado que é ser mãe e esposa” (C4).

A terceira unidade de registro mais citada para ‘incômodos’ foi ‘imprevisibilidade de horários’, com cinco citações. As cirurgiãs reforçaram que precisam passar o dia todo fora, não realizam refeições e que trabalham até durante a folga: “é tempo, falta de tempo, é sair de casa seis e pouco da manhã e voltar nove horas da noite e às vezes ter que sair de novo ...” (C8). A imprevisibilidade de horários no trabalho cirúrgico e a falta de tempo citada pelas cirurgiãs retomam os resultados das pesquisas de Schroen, Brownstein e Sheldon (2004)Schroen, A. T., Brownstein, M. R., & Sheldon, G. F. (2004). Women in academic general surgery.Academic Medicine, 79(4), 310-318. https://doi.org/10.1097/00001888-200404000-00006
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, em que mulheres cirurgiãs afirmam que seus horários de trabalho não lhes deixaram tempo suficiente para sua vida pessoal e familiar. Esses resultados corroboram o que foi abordado por Edmunds et al. (2016)Edmunds, L. D., Ovseiko, P. V., Shepperd, S., Greenhalgh, T., Frith, P., Roberts, N. W., Pololi, L. H., Buchan, A. M. (2016). Why do women choose or reject careers in academic medicine? A narrative review of empirical evidence.The Lancet, 388(10062), 2948-2958. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(15)01091-0
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, os quais destacam que uma das condições que mais afastam as mulheres da medicina é a falta de equilíbrio entre o tempo de suas atividades profissionais e pessoais.

Ademais, o cansaço foi apontado pelas cirurgiãs como um incômodo em suas rotinas, pois são cansativas pelo fato de precisarem ficar várias horas em pé durante os procedimentos cirúrgicos e por precisarem se locomover por vários hospitais durante o dia: “... a gente tem que está saindo em quatro, cinco hospitais durante o dia, no trânsito que a gente tem aqui é uma coisa que cansa você na rotina” (C10).

Ainda foram identificados como incômodos às cirurgiãs: consolidação no mercado de trabalho, com três citações, complicações cirúrgicas, com duas citações, e estrutura, também com duas citações. Segundo a cirurgiã 8, a consolidação no mercado de trabalho não é tão rápida: “a dificuldade que todo mundo encontra no começo do consultório é divulgação, ser reconhecida, e um paciente indicar outro, essa questão aí demora um pouquinho, né.” Para a cirurgiã 7, as complicações cirúrgicas que ocorreram no início de sua carreira foram incômodos que tiveram peso em sua decisão por deixar de operar.

Pode-se verificar que as cirurgiãs tinham idealizações da profissão, sendo os fatores de sucesso os mais citados. A realidade mais encontrada na profissão é de excesso de trabalho não cirúrgico e de constantes deslocamentos. As maiores dificuldades encontradas pelas cirurgiãs são o preconceito e a conciliação com os outros papéis que assumem. Os maiores incômodos na rotina das cirurgiãs são realizar procedimentos específicos citados por elas e não conseguir desempenhar da forma que gostariam todos os papéis que assumem. Apesar de algumas cirurgiãs afirmarem que já conheciam a profissão previamente e que não tiveram surpresas em sua inserção, ainda assim encontram conflitos entre as idealizações e a realidade encontrada.

Ajuste da concepção de si

Para essa categoria de análise foram estabelecidas três unidades de contexto: abandono de estereótipos, identidade profissional e carreira.

Em relação ao abandono de estereótipos, as unidades de registro mais citadas foram ‘diferenças de gênero e remuneração’, ambas com três menções. As entrevistadas tinham a concepção de que não existiam tantas diferenças de gênero na profissão, mas verificaram que ocorrem: “a minha percepção inicial era que eu poderia ser como mulher igual a qualquer homem ... eu achava que mulheres e homens eram iguais, hoje eu não acho que sejam iguais, tenho certeza que não são” (C4).

Quanto à remuneração, os discursos apontam que os rendimentos dos cirurgiões têm decaído: “ao longo dos anos, nós cirurgiões viemos ganhando menos, então não é assim, ah, um paraíso, você não ganha bem, você não é rico, você trabalha muito pra ganhar de forma digna, razoável, pra ter uma vida boa, assim” (C3). O termo “reconhecimento tardio” foi apontado em dois momentos, levantando a questão de que pensavam que o reconhecimento viria mais fácil do que veio: “então você tem que ser muito boa no que você faz para você poder se destacar. Eu achava que o reconhecimento viria mais fácil” (C1). A última unidade de registro para ‘abandono de estereótipos’ foi ‘união entre colegas’, que foi mencionada pela cirurgiã 1, que levantou a questão da rivalidade: “... eu achava que talvez fosse ser um grupo mais unido, dos cirurgiões e dos médicos fosse mais unido, mas se você for dançar, se você for, entre aspas, inocente, você termina tendo problemas, entendeu?”

Na unidade de contexto ‘identidade profissional’, ressaltam-se três unidades de registro: ‘características intrínsecas’, com oito menções; ‘feminilidade’, com sete menções; e ‘multitarefas’, com uma menção.

Entendem-se por características intrínsecas todos os adjetivos citados em busca de caracterizar o que é um cirurgião: “... geralmente, o perfil do cirurgião e principalmente das mulheres que fazem cirurgia, tem que ter esse perfil de ser determinada, de ser forte, de não achar que a figura do sexo masculino poderia intimidá-la” (C6); “eu te confesso uma coisa: quando eu vejo uma mulher cirurgiã eu já olho diferente. Eu vejo garra, eu vejo força ... porque realmente ela venceu barreiras interiores dela” (C5).

Por feminilidade entende-se assumir-se feminina, arrumar-se, abandonar a capa protetora de masculinização que outrora foi necessária para ser aceita na profissão: “... eu sempre gostei de me arrumar, desde o internato que eu vou com saltão e maquiada” (C8); “... eu sempre fui muito séria, hoje em dia eu sou bem mais relax do que eu era antes ... (C3). Embora a personalidade das cirurgiãs tenha se alinhado com a perspectiva de Bellodi (2004)Bellodi, P. L. (2004). The general practitioner and the surgeon: Stereotypes and medical specialties.Revista do Hospital das Clínicas, 59(1), 15-24. https://doi.org/10.1590/S0041-87812004000100004
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, de que elas são valentes, objetivas e imediatistas, nessa abordagem, o fato de sobressair a feminilidade não quis dizer que elas não tivessem uma personalidade com estereótipos masculinos.

Finalizando essa unidade de contexto, uma cirurgiã citou que sua identidade profissional é ser multitarefas, uma mulher que é uma boa profissional e ao mesmo tempo uma boa mãe e uma boa esposa, conforme discurso da cirurgiã 4: “... eu conheço poucas cirurgiãs agora na minha faixa etária como eu, que faz a cirurgia, que trabalha muito, mas também dê um apoio maior à família, né?”

Na unidade de contexto ‘carreira’, buscou-se identificar a percepção das cirurgiãs sobre suas carreiras enquanto mulheres.

A unidade de registro mais representativa, ao longo do discurso das cirurgiãs no contexto ‘carreira’, foi ‘deveres domésticos’, em que foram reunidos os discursos das cirurgiãs relatando que os deveres domésticos são a principal razão da baixa representatividade feminina na cirurgia, assim como um entrave no crescimento da mulher cirurgiã em sua carreira. Conforme se observa no discurso, muitas mulheres precisam optar por se dedicar à família ou ao sucesso na carreira: “... eu estagnei em questão de carreira, né? Tô deixando estagnada por opção para os meus filhos crescerem um pouquinho” (C4). Tais resultados confirmam as pesquisas de Franco e Santos (2010)Franco, T., & Santos, E. G. D. (2010). Mulheres e cirurgiãs.Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, 37(1), 72-77. http://dx.doi.org/10.1590/S0100-69912010000100015
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, que destacam que a formação de uma família afeta muito mais a carreira das mulheres do que a dos homens, visto que o conceito de que criar filhos e cuidar da casa são atividades femininas ainda são persistentes (Oliveira, Cavazotte, & Paciello, 2013Oliveira, L. B., Cavazotte, F. S. C. N. de, & Paciello, R. R. (2013). Antecedentes e consequências dos conflitos entre trabalho e família. RAC-Revista de Administração Contemporânea, 17(4), 418-437. https://doi.org/10.1590/1806-9584.2017v25n3p1111
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; Vale et al., 2011Vale, G. M. V., Serafim, A. C. F., & Teodósio, A. D. S. S. (2011). Gênero, imersão e empreendedorismo: Sexo frágil, laços fortes? RAC-Revista de Administração Contemporânea, 15(4), 631-649. https://doi.org/10.1590/S1415-65552011000400005
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; Zauli, 2015)Zauli, A. (2015). Reflexões sobre diversidade e gênero. Brasília: Edições Câmara..

Outra unidade de registro identificada na carreira foi ‘teto de vidro’, referente às dificuldades que as mulheres enfrentam para ascender em suas carreiras devido ao gênero. Algumas cirurgiãs citaram que têm cargos de chefia, outras relataram não terem por não quererem, mas a maioria reconhece a existência do teto de vidro ou já o vivenciou, mencionando que ainda existem funções que são ocupadas predominantemente por homens, e que são preteridas em suas carreiras devido ao fato de poderem engravidar e ter família: “... talvez se fosse um homem no meu lugar teria crescido mais” (C1); “... a questão do teto de vidro não é porque ‘Ah, ela é mulher, ela não serve pra isso’, esse paradigma ele já mudou, certo, é a questão do ‘Ai, ela é mulher, ela vai ter família, tem filho, como é que vai fazer?’” (C2). Os resultados ratificam os estudos de Schroen et al. (2004)Schroen, A. T., Brownstein, M. R., & Sheldon, G. F. (2004). Women in academic general surgery.Academic Medicine, 79(4), 310-318. https://doi.org/10.1097/00001888-200404000-00006
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e de Seemann et al. (2016)Seemann, N. M., Webster, F., Holden, H. A., Carol-Anne, E. M., Baxter, N., Desjardins, C., & Cil, T. (2016). Women in academic surgery: Why is the playing field still not level?The American Journal of Surgery, 211(2), 343-349. https://doi.org/10.1016/j.amjsurg.2015.08.036
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, nos quais mulheres cirurgiãs relatam que não sentem que têm as mesmas oportunidades de carreira que os homens, de tal forma que o número de cirurgiãs em cargos de alto nível não acompanha o crescimento do total de mulheres na profissão.

O fator ‘ambições na carreira’ foi bastante mencionado pelas cirurgiãs, com nove citações, como fazer doutorado, carreira docente, reconhecimento, assumir cargos representativos, entre outros: “o que eu ambiciono é ser valorizada, ser realmente reconhecida pelos meus pacientes e no meu ambiente de trabalho” (C9); “... eu quero continuar crescendo, principalmente na minha subespecialidade ... melhorar consultório, ter o nome conhecido na cirurgia vascular ...” (C8), demonstrando relevância para as ambições referentes à socialização (Carvalho, Borges, Vikan, & Hjemdal, 2011)Carvalho, V. D., Borges, L. O., Vikan, A., & Hjemdal, O. (2011). Resiliência e socialização organizacional entre servidores públicos brasileiros e noruegueses. RAC-Revista de Administração Contemporânea, 15(5), 815-833. https://doi.org/10.1590/S1415-65552011000500003
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.

A unidade de registro ‘satisfação’ obteve oito citações, percebendo-se que são profissionais satisfeitas com sua escolha, que amam e se sentem realizadas com a profissão. Assim, destaca-se o relato a seguir: “ai, eu hoje em dia tenho 18 anos de formada, e assim, eu particularmente, eu sou muito feliz assim, nas minhas pequenas conquistas do que eu me propus a fazer” (C7). Seemann et al. (2016)Seemann, N. M., Webster, F., Holden, H. A., Carol-Anne, E. M., Baxter, N., Desjardins, C., & Cil, T. (2016). Women in academic surgery: Why is the playing field still not level?The American Journal of Surgery, 211(2), 343-349. https://doi.org/10.1016/j.amjsurg.2015.08.036
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afirmam que a satisfação profissional entre as cirurgiãs é alta e que a maioria escolheria ser cirurgiã novamente.

Finalmente, verifica-se que a inserção profissional das médicas cirurgiãs ainda passa por desafios, sobretudo no que diz respeito à conciliação entre a vida pessoal e a profissional, bem como pelos preconceitos ainda existentes para mulheres médicas cirurgiãs. A Tabela 5 apresenta uma síntese dos principais achados da pesquisa.

Tabela 5
Síntese dos principais resultados da pesquisa.

CONCLUSÕES

Este estudo buscou compreender como ocorre o processo de socialização profissional de médicas cirurgiãs. Foi possível, portanto, perceber tal processo como sendo marcado por desafios e barreiras, de modo particular para cirurgiãs que são mães e têm mais anos de experiência no mercado de trabalho. As mulheres que são mães sofreram ou sofrem mais com a questão da imprevisibilidade de horários, problemas de conciliação da vida privada com a vida profissional e responsabilidades domésticas, assim como sofrem constantemente em precisar relegar alguma de suas atividades em prol de outra. Encaram, ainda, a questão do teto de vidro de forma mais problemática devido ao limbo profissional que vivenciam durante a gravidez, além da escolha de estagnar a carreira para se dedicar à primeira infância dos filhos.

Verificou-se que as cirurgiãs com mais anos de experiência sofreram mais com o fator do preconceito pelo fato de a inserção ter ocorrido em uma época na qual o estereótipo masculino da profissão era ainda mais forte, sofreram o preconceito de idade enquanto recém-ingressas na profissão, como também sofreram o preconceito de gênero mais ostensivo de uma sociedade mais patriarcal e mais tradicional do que a atual.

Para as cirurgiãs mais jovens o processo de socialização se mostrou mais fácil no quesito preconceito de gênero, pois a sociedade vem evoluindo e a imagem da mulher relegada aos deveres domésticos, apesar de ainda presente, tem cada vez menos espaço. A respeito da conciliação entre trabalho e família, constatou-se que o papel de mãe foi um fator preponderante nas citações das entrevistadas a respeito das razões que tornam essa profissão menos procurada pelas mulheres. Ademais, percebeu-se que as cirurgiãs vivenciaram as três fases da socialização do modelo teórico adotado (passagem através do espelho, instalação da dualidade e ajuste da concepção de si) e que a profissão de cirurgiã é desafiadora para as mulheres, mas satisfatória.

Esta pesquisa teve como principal contribuição ampliar a compreensão da socialização profissional de médicas cirurgiãs, grupo ainda pouco investigado por pesquisadores das ciências sociais aplicadas, principalmente no âmbito nacional. Contribui, ainda, para uma percepção mais ampla e precisa das mulheres no mercado de trabalho, bem como das particularidades dessa inserção, uma vez que o estudo se realizou com uma classe de profissionais preponderantemente com maior representação do público masculino.

Dentre algumas limitações que surgem naturalmente no desenvolvimento de pesquisas científicas, sobretudo no caso desta que contempla mulheres em profissões marcadas por estereótipos masculinos, cabe mencionar a dificuldade de encontrar cirurgiãs de certas subespecialidades, como a cirurgia cardíaca, a neurocirurgia e a cirurgia torácica, que seriam relevantes para o trabalho devido ao exíguo contingente feminino nessas especialidades. Além disso, a pesquisa contemplou mulheres cirurgiãs de um único estado brasileiro, não tendo assim um panorama mais representativo de nível nacional. Apesar de constituir um corte metodológico, que dá voz aos atores principais desse fenômeno da feminização da carreira de médicos cirurgiões, a pesquisa apresenta essa restrição de ter somente o ponto de vista das mulheres cirurgiãs enquanto público-alvo analisado.

Diante disso, algumas sugestões para futuros estudos são: compreender as motivações de jovens universitários ao escolherem a cirurgia como profissão e como percebem essa carreira; investigar os prejuízos da profissão para a saúde laboral dessas mulheres; aprofundar a questão do conflito trabalho versus família que tantas mencionaram; e também ampliar o escopo desta investigação para atingir cirurgiãs de outras cidades e estados, realizando, ainda, pesquisas de natureza quantitativa.

Ainda na perspectiva de uma agenda de pesquisa, sugere-se a realização de estudos que possam investigar percepções de cirurgiões do sexo masculino e de pacientes sobre o tema, de modo que os resultados apresentados possam ser comparados com os achados desta pesquisa. Por fim, com a presença de poucas pesquisas publicadas avaliando essa temática, este estudo pode servir como base para avaliar outros aspectos da relação entre mulher e trabalho, bem como para analisar outras profissões com a presença predominante de homens ou de mulheres, seja na área médica, seja em outras ocupações de prestígio semelhantes, como a engenharia e o direito, também conhecidas como profissões imperiais no contexto brasileiro.

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    Todos os dados e materiais foram disponibilizados publicamente por meio da plataforma Harvard Dataverse e podem ser acessados em: Isabelle Christine Oliveira dos Santos; Tereza Cristina Batista de Lima; Luis Eduardo Brandão Paiva; Davi Sampaio Marques; Elidihara Trigueiro Guimarães, 2020, "Replication Data for: Professional Socialization from the Perspective of Female Surgeons: Challenges and Career Achievements", Harvard Dataverse, V1. https://doi.org/10.7910/DVN/CTKEJZ, A RAC incentiva o compartilhamento de dados mas, por observância a ditames éticos, não demanda a divulgação de qualquer meio de identificação de sujeitos de pesquisa, preservando a privacidade dos sujeitos de pesquisa. A prática de open data é viabilizar a reproducibilidade de resultados, e assegurar a irrestrita transparência dos resultados da pesquisa publicada, sem que seja demandada a identidade de sujeitos de pesquisa.
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Editado por

Editor-chefe: Wesley Mendes-Da-Silva (Fundação Getulio Vargas, EAESP, Brasil)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    16 Nov 2018
  • Revisado
    07 Ago 2020
  • Aceito
    10 Ago 2020
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