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Kandandu: Identidade da Mulher Negra, Racismo e o Carnaval de Rua

RESUMO

Objetivo:

buscamos compreender como o racismo se manifesta de forma tangível na vida de mulheres negras, limitando sua capacidade de ação, enquanto elas buscam negociar por espaços sociais por meio de expressões culturais, na cidade de Belo Horizonte.

Marco teórico:

apoiamo-nos nos conceitos de racismo estrutural e pacto narcísico, apontando convergências e divergências no entendimento das organizações como espaços racializados.

Método:

utilizamos uma abordagem qualitativa, em um contexto de uma pesquisa etnográfica, optando por realizar uma entrevista semiestruturada com Zuri, presidente de um bloco afro. Como ferramenta analítica, empregamos o conceito de interseccionalidade.

Resultados:

evidenciamos que tanto o racismo estrutural quanto o pacto narcísico se manifestam no cotidiano das organizações. Ambos os fenômenos são ainda mais perversos para as mulheres negras, em especial quando elas tensionam uma estrutura racista e sexista.

Conclusões:

a dimensão coletiva do racismo traz desafios às organizações e seus agentes. Tal efeito pode levar os indivíduos, especialmente as lideranças das organizações que deveriam estar mais compromissadas com a mudança estrutural, a se esconderem atrás do racismo de suas instituições e pactos entre os membros de suas equipes.

Palavras-chave:
racismo estrutural; interseccionalidade; mulher negra; bloco afro; carnaval

ABSTRACT

Objective:

we aim to understand how racism tangibly manifests in the lives of Black women, limiting their agency as they navigate social spaces through cultural expressions in the city of Belo Horizonte.

Theoretical approach:

we draw upon the concepts of structural racism and narcissistic pact, identifying convergences and divergences in the understanding of organizations as racialized spaces.

Methods:

we employ a qualitative approach within the context of ethnographic research, opting to conduct a semi-structured interview with Zuri, the president of an Afro block. As an analytical tool, we apply the concept of intersectionality.

Results:

we highlight that both structural racism and the narcissistic pact manifest in the daily life of organizations. Both phenomena are even more pernicious for Black women, particularly when they challenge a racist and sexist structure.

Conclusions:

the collective dimension of racism presents challenges to organizations and their stakeholders. This effect may lead individuals, especially organizational leaders who should be more committed to structural change, to hide behind the racism within their institutions and pacts among their team members.

Keywords:
structural racism; intersectionality; black woman; Afro block; carnival

INTRODUÇÃO

A palavra kandandu é uma expressão criada na língua africana kimbundu, em Angola, que significa abraço para além do corpo físico, ou seja, representa um encontro espiritual e fraterno, que simboliza a humildade e o respeito pelo ser humano, pelo mundo, pela herança e sabedoria ancestral africana (Prefeitura de Belo Horizonte, 2019). É um abraço que vai além dos corpos, capaz de unir filosofias, ideias, conhecimentos e vivências por meio da ancestralidade. Em Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, kandandu foi escolhida para nomear a festa que marca a abertura oficial do feriado de carnaval da cidade e que tem como protagonista os blocos afro.

No dia 24 de fevereiro de 2017, os blocos afro Afoxé Bandarerê, Angola Janga, Magia Negra, Fala Tambor, Samba da Meia-Noite e Tambolelê subiram, pela primeira vez, no palco principal do carnaval da cidade de Belo Horizonte para abrir oficialmente os festejos. Um dia repleto de simbolismo e marcado por momentos de efervescência contra o apagamento de manifestações culturais de caráter carnavalesco na cidade (Rezende, 2022Rezende, A. (2022). “Aqui cada um faz o seu rolê”: Práticas organizativas dos blocos de rua afro do carnaval de Belo Horizonte. [Tese de Doutorado, Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais]. Repositório institucional da UFMG. https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/40647
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). Organizações negras, como os blocos afro, colocaram a dança afro, os batuques, os ritmos e a cultura negra em um lugar de destaque em uma festa que é intrinsecamente vinculada a essa cultura, por seus ritmos, instrumentos, mestres, história e memória (Kandandu, 2017).

Neste artigo, para além de descrever o processo de estruturação e criação da organização afro Kandandu, objetivamos compreender como o racismo se manifesta de forma tangível na vida de mulheres negras, limitando sua capacidade de ação, enquanto elas buscam negociar por espaços sociais por meio de expressões culturais, na cidade de Belo Horizonte. Além disso, pretendemos explorar o papel do ‘pacto narcísico da branquitude’ nesse contexto específico, buscando uma análise mais abrangente e aprofundada das dinâmicas raciais e culturais presentes na cidade. Afinal, a história da criação do Kandandu se relaciona de maneira direta à vida de uma mulher negra que com sua insistência, à medida que tensiona uma estrutura racista, encontrou condições para que esse festejo florescesse.

Nós nos propomos a refletir e analisar a insistência categórica desta mulher negra observando elementos do racismo estrutural e o pacto da branquitude, bem como elementos históricos sobre cultura negra e o papel das mulheres na manutenção e propagação dessa cultura. Ao fazer isso, buscamos contribuir para o conceito de racismo estrutural no sentido de apontar que se o racismo é estrutural, ele permeia a constituição dos sujeitos, seu agir e modos de se organizar. Portanto, o racismo é um elemento constitutivo fundante das nossas organizações. Além disso, afirmamos a importância dos negros como sujeitos políticos sociais e individuais, a partir da experiência da mulher negra (Gonzalez, 2018Gonzalez, L. (2018). Lélia Gonzalez: Primavera para as rosas negras. União dos Coletivos Pan-Africanistas (UCPA).; Oyěwùmí, 2021Oyěwùmí, O. (2021). A invenção das mulheres: Construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Bazar do Tempo.).

Em diversas áreas do conhecimento, seja na administração, seja na psicologia ou na sociologia, as organizações têm sido entendidas como estruturas neutras em termos raciais. Todavia, existe também o argumento de que as organizações são racializadas; dessa forma, organizações racializadas legitimam a distribuição desigual dos recursos, onde a brancura é uma credencial e os sujeitos com maior poder de agência tornam-se os brancos (Ray, 2019Ray, V. (2019). A theory of racialized organizations. American Sociological Review, 84(1), 26-53. https://doi.org/10.1177/0003122418822335
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). Nesse contexto, indagamos: onde está o nosso racismo? Como o racismo se expressa nas organizações e nos agentes responsáveis pelo carnaval de Belo Horizonte? O que é preciso fazer para romper essa estrutura? E, por fim, qual o custo físico e emocional para uma mulher negra que tensiona essa estrutura?

Organizações não neutras racialmente, como blocos afro de carnaval, encontram-se desassistidas. Falta interesse pelo surgimento e permanência dessas organizações e, como consequência, seus idealizadores e/ou suas idealizadoras precisam convencer atores e agentes políticos públicos, geralmente homens brancos, heterossexuais e cristãos, de que a existência dessas organizações é necessária para o desenvolvimento da sociedade. Contudo, há nesse processo de convencimento e insistência sentimentos de exaustão pela necessidade de um esforço maior para provar a viabilidade desses projetos e sucesso dessas organizações.

DO COLETIVO AO INDIVIDUAL: A EXAUSTÃO CAUSADA PELO RACISMO

A compreensão atual do racismo estrutural leva a uma despersonificação do racismo: não somos racistas; nossas instituições, nosso sistema social e as regras que usamos é que o são. Tal visão reflete um reducionismo sobre o racismo estrutural, mas que tem sido estudada e amplamente divulgada na mídia televisiva e de informação (Sodre, 2023Sodre, M. (2023, Março 18). Muniz Sodré: Racismo no Brasil não é estrutural. Folha de São Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2023/03/aceito-a-expressao-mas-racismo-nao-e-estrutural-no-brasil-diz-muniz-sodre.shtml
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), dificultando o entendimento do papel dos indivíduos na perpetuação do racismo.

O conceito de racismo estrutural como conhecemos hoje tem sido desenvolvido pelo menos desde a obra Discriminação e desigualdades raciais no Brasil (Hasenbalg, 1979Hasenbalg, C. A. (1979). Discriminação e desigualdades raciais no Brasil (vol. 86). Graal.). Hasenbalg descrevia que o racismo é uma forma de estratificação social que estruturou as sociedades de classes no pós-abolição (Figueiredo, 2015Figueiredo, A. (2015). A obra de Carlos Hasenbalg e sua importância para os estudos das relações das desigualdades raciais no Brasil. Sociedade e Estado, 30(1), 11-16. https://doi.org/10.1590/S0102-69922015000100002
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). No conceito de racismo estrutural, o que está implícito é que o poder econômico, o poder político, o poder jurídico, as instituições e nossas subjetividades estão todos atravessados pelo racismo em nossa sociedade (Vainer, 2023Vainer, L. S. (2023, Março 22). O que é racismo estrutural. Comentário sobre matéria da Folha de São Paulo em Março. Instagram. https://www.instagram.com/p/CqBrg4-veQt/
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). Na atualidade, o conceito de racismo estrutural tem sido debatido principalmente por Almeida (2018Almeida, S. (2018). O que é racismo estrutural? Editora Letramento.) e Oliveira (2021Oliveira, D. (2021). Racismo estrutural: Uma perspectiva histórico-crítica. Dandara Editora.).

Oliveira (2021Oliveira, D. (2021). Racismo estrutural: Uma perspectiva histórico-crítica. Dandara Editora.) discute que o racismo está para além dos comportamentos preconceituosos, entendidos como deformações comportamentais. Assim, o conceito de racismo estrutural demonstra que preconceitos, discriminações ou atos de racismo estão vinculados a uma estrutura social. Ao articular o conceito de racismo estrutural à totalidade histórico-social posta pelas dinâmicas das relações sociais no capitalismo de acumulação flexível, Oliveira (2021) faz uma reflexão sobre como o sistema capitalista no Brasil funciona e como as estruturas de poder estão distribuídas entendendo o mecanismo que normaliza e naturaliza comportamentos preconceituosos.

Almeida (2018Almeida, S. (2018). O que é racismo estrutural? Editora Letramento.) percebeu que a concepção individualista do racismo é frágil e limitada, legitimando análises do racismo absolutamente carentes de história e reflexão sobre seus efeitos concretos, e, consequentemente, as experiências subjetivas de pessoas negras com o racismo são negligenciadas (Kilomba, 2020Kilomba, G. (2020). Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano. Cobogó.). Destarte, entender o racismo a partir de sua dimensão individual resultaria nas fraseologias moralistas de ‘racismo é errado’, ‘somos todos humanos’, ‘tenho amigos negros’, além de uma obsessão com legalidade. Afinal, quando o olhar sobre o racismo é limitado em termos comportamentais e individuais, os infortúnios produzidos pelo racismo se efetivam ao abrigo da legalidade e com o apoio moral de líderes políticos, religiosos entre os(as) considerados(as) ‘homens bons’ e ‘mulheres justas’. A esse fenômeno, Almeida (2018) chamou de racismo estrutural.

Ainda na perspectiva coletiva do racismo, Gouvêa e Oliveira (2020Gouvêa, J. B., & Oliveira, J. S. (2020). Por que branquitudes, por que (somente) agora?. Caderno de Administração, 28(2), 5-14. https://doi.org/10.4025/cadm.v28i2.57245
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) versam sobre uma ‘nova eugenia’ na qual grupos dominantes mantêm o status quo, um fenômeno que Bento (2022Bento, C. (2022). O pacto da branquitude. Companhia das letras.) chama de ‘pacto narcísico da branquitude’, no qual privilégios são reservados aos brancos, incluindo ambientes de trabalho. Bento (2022) ressalta o silêncio em torno do privilégio branco e do racismo no Brasil, resultado do ‘pacto da branquitude’, que faz com que muitos brancos se vejam como aliados contra o racismo, e não como parte dele, devido ao seu investimento no narcisismo (Fanon, 2018Fanon, F. (2018). Racismo e cultura. Revista Convergência Crítica, (13), 78-90. https://doi.org/10.22409/rcc.v1i13.38512
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).

Bento (2022Bento, C. (2022). O pacto da branquitude. Companhia das letras.) explica como manifestações da supremacia branca em ambientes de trabalho e/ou ensino contribuem para que as pessoas racializadas como brancas permaneçam em cargos e posições de privilégio dentro das organizações. Enquanto isso, o ‘pacto da branquitude’ faz com que ambientes de socialização como escola e trabalho sejam mais acolhedores aos brancos e menos acolhedores aos negros.

Bento (2022Bento, C. (2022). O pacto da branquitude. Companhia das letras.) afirma ainda que é necessário reconhecer como as heranças escravocratas atuam nas dimensões mais coletivas da sociedade. As organizações constroem narrativas sobre elas mesmas sem considerar a pluralidade da população com a qual se relacionam. Diante disso, organizações definem e regulamentam um modo de funcionamento homogêneo e uniforme não só nos processos, ferramentas, sistemas de valores, mas também no perfil de empregados e lideranças. Obviamente, não há regulamentos explícitos sobre como os racializados como brancos vão manter seus privilégios e excluir a população negra. As formas de exclusão e de manutenção de privilégios prevalecem sutilmente nas regras que são similares nas instituições e que estabelecem critérios de elegibilidade que vão contra aqueles que são sistematicamente negados de oportunidades, sem acessos ou silenciados.

A partir das discussões propostas por Bento (2022Bento, C. (2022). O pacto da branquitude. Companhia das letras.), percebe-se que o pacto da branquitude descreve um conjunto de mecanismos e comportamentos que estão enraizados nas estruturas sociais e culturais que privilegiam a branquitude em detrimento de outras identidades raciais, ou seja, refere-se à tendência das pessoas brancas de se beneficiarem de privilégios sistêmicos, muitas vezes inconscientes disso, enquanto reforçam e sustentam a supremacia branca.

Ao focar os sujeitos racializados como negros e o racismo estrutural da forma como é discutido atualmente, perpetua-se um sistema que define os negros como inferiores. As organizações continuam com um problema constante para resolver: um sistema de proteção invisível e autorreforçado que dificulta o entendimento de contextos de trabalho que combinam mérito com imagens idealizadas da masculinidade branca, ao mesmo tempo que não permitem que nomeemos quais processos e subjetividades dentro das organizações estão organizados sobre uma lógica racista (Almeida, 2018Almeida, S. (2018). O que é racismo estrutural? Editora Letramento.; Bento, 2022Bento, C. (2022). O pacto da branquitude. Companhia das letras.; Fanon, 2018Fanon, F. (2018). Racismo e cultura. Revista Convergência Crítica, (13), 78-90. https://doi.org/10.22409/rcc.v1i13.38512
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; Gouvêa & Oliveira, 2020Gouvêa, J. B., & Oliveira, J. S. (2020). Por que branquitudes, por que (somente) agora?. Caderno de Administração, 28(2), 5-14. https://doi.org/10.4025/cadm.v28i2.57245
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; Hasenbalg, 1979Hasenbalg, C. A. (1979). Discriminação e desigualdades raciais no Brasil (vol. 86). Graal.; Mobasseri et al, 2023Mobasseri, S., Kahn, W. A., & Ely, R. J. (2023). Racial inequality in organizations: A systems psychodynamic perspective. Academy of Management Review. In press. https://doi.org/10.5465/amr.2021.0446
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; Oliveira, 2021).

Especificamente na área de administração, Gouvêa e Oliveira (2020Gouvêa, J. B., & Oliveira, J. S. (2020). Por que branquitudes, por que (somente) agora?. Caderno de Administração, 28(2), 5-14. https://doi.org/10.4025/cadm.v28i2.57245
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) argumentam que estudar a branquitude possibilita uma reflexão crítica sobre as estruturas de poder e privilégios raciais presentes nas organizações, visando a promover uma maior igualdade e inclusão racial. Para as autoras, embora as organizações sejam apresentadas como espaços neutros, onde as diferenças não importam, a realidade objetiva revela uma disparidade significativa. No Brasil, as organizações reproduzem as estruturas sociais marcadas por critérios raciais, refletindo-se, por exemplo, na distribuição desigual de recursos.

Além disso, a análise da branquitude na administração possibilita a compreensão das especificidades brasileiras. O país possui uma história marcada pela escravização e pela construção social da raça, influenciando profundamente as relações de trabalho e a distribuição de poder nas organizações. Ao considerar essas peculiaridades, é possível traçar estratégias e políticas que visem à inclusão e à equidade racial no ambiente corporativo. Outro ponto relevante é a ampliação do debate sobre raça e privilégio branco. A discussão sobre branquitude traz à tona o silenciamento em torno do privilégio branco e do racismo enfrentado pelas pessoas negras. É necessário reconhecer como as posições ocupadas pelos brancos nas organizações são resultado das relações raciais e como contribuem para a perpetuação das desigualdades (Gouvêa & Oliveira, 2020Gouvêa, J. B., & Oliveira, J. S. (2020). Por que branquitudes, por que (somente) agora?. Caderno de Administração, 28(2), 5-14. https://doi.org/10.4025/cadm.v28i2.57245
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).

Segundo Ray (2019Ray, V. (2019). A theory of racialized organizations. American Sociological Review, 84(1), 26-53. https://doi.org/10.1177/0003122418822335
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), os estudiosos da teoria organizacional normalmente veem as organizações como estruturas burocráticas neutras em termos de raça, do mesmo modo que os estudiosos de raça e etnia negligenciaram o papel das organizações na construção social da raça. Assim, organizações são estruturas raciais, baseadas em esquemas cognitivos que permitem, limitam ou impedem o acesso dos grupos sociais a determinados recursos. Essas organizações: (a) aumentam ou diminuem as agências dos grupos raciais, uns têm mais poder de ação que outros; (b) legitimam a distribuição desigual de recursos; brancos, pretos e pardos têm acessos diferentes; (c) a branquitude é uma credencial, os racializados como brancos estão majoritariamente nos cargos de destaque das organizações; (d) a dissociação das regras formais na prática organizacional é, muitas vezes, racializada, e frequentemente as regras serão mais rígidas aos racializados como negros.

Argumentamos, neste artigo, que justificar a racialidade das instituições a partir de suas estruturas pode limitar atitudes de mudanças individuais, uma vez que somos interpolados pelo racismo nas e das instituições. Ainda que as instituições sejam compostas por pessoas, normalmente socializadas ao aparato da supremacia branca, conceber o racismo unicamente por sua dimensão coletiva legitima que as pessoas não são tão racistas quanto suas instituições, o que é problemático. Assim, apesar de reconhecermos que a dimensão coletiva do racismo traga o branco para o diálogo sem nominá-lo diretamente e, portanto, ofender sua ‘honra, integridade’, e convida-o à reflexão, o que é memorável, o problema é que essas pessoas não se sentem tão racistas assim quanto as suas instituições. Tal feito torna aceitável dizer que a organização é racista, mas é extremamente frágil e ofensivo dizer o mesmo de ou tentar nomear qualquer uma de suas lideranças. Essas pessoas não reconhecem que são ou adotam atitudes racistas, tampouco rompem com essas estruturas em suas organizações. A Figura 1 demonstra essas dimensões se interconectando.

Figura 1
Estrutura dos códigos derivados na análise.

Ambas as dimensões (coletiva e individual) do racismo carregarão níveis de análises macro, meso e micro sobre o fenômeno. As instituições e organizações estão nessa intersecção, pois são compostas por ambas as dimensões e, muitas vezes, se tornam um limbo perigoso no qual jogamos todas as categorizações do racismo sem identificar, verdadeiramente, seus agentes para uma ação pedagógica e/ou sensibilizadora. No nível macro, podemos incluir o contexto ambiental como nação, estado, cidade. No nível meso, podemos incluir o contexto legal como leis, regras, regulamentos. E no nível micro, podemos incluir os aspectos pessoais, como vieses, estereótipos e preconceitos.

A ‘despersonalização do racismo’ pode ser compreendida como a ideia de que o racismo não está enraizado apenas em estruturas e instituições sociais mais amplas em níveis macro e meso (poder econômico, político e jurídico) e comportamento individual em nível micro. O racismo também está ligado ao ideal de subjetividades coletivas que historicamente ocuparam espaços e status de poder, como pode ser observado na Figura 1. Esse fenômeno resulta em instituições e práticas de socialização que direta ou indiretamente conferem desvantagens e privilégios com base na raça (Almeida, 2018Almeida, S. (2018). O que é racismo estrutural? Editora Letramento.; Bento, 2022Bento, C. (2022). O pacto da branquitude. Companhia das letras.; Fanon, 2018Fanon, F. (2018). Racismo e cultura. Revista Convergência Crítica, (13), 78-90. https://doi.org/10.22409/rcc.v1i13.38512
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; Gouvêa & Oliveira, 2020Gouvêa, J. B., & Oliveira, J. S. (2020). Por que branquitudes, por que (somente) agora?. Caderno de Administração, 28(2), 5-14. https://doi.org/10.4025/cadm.v28i2.57245
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; Hasenbalg, 1979Hasenbalg, C. A. (1979). Discriminação e desigualdades raciais no Brasil (vol. 86). Graal.; Mobasseri et al, 2023Mobasseri, S., Kahn, W. A., & Ely, R. J. (2023). Racial inequality in organizations: A systems psychodynamic perspective. Academy of Management Review. In press. https://doi.org/10.5465/amr.2021.0446
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; Oliveira, 2021).

(Re)Existindo nas lacunas: Raça e gênero

Falar sobre nós, mulheres negras, é considerar categorias sociais que se interseccionam. Crenshaw (1990Crenshaw, K. (1990). Mapping the margins: Intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stanford Law Review, 43(6), 1241-1299. https://doi.org/10.2307/1229039
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)explica que a interseccionalidade é um conceito usado para se referir às várias maneiras pelas quais raça, gênero, classe social, orientação sexual, entre outras categorias, interagem para moldar as múltiplas dimensões das experiências de vida das pessoas. Collins (2022Collins, P. H. (2022). Bem mais que ideias: A interseccionalidade como teoria social crítica. Boitempo Editorial.) argumenta que a análise interseccional vai além das noções tradicionais de opressão, que tendem a tratar as opressões de forma isolada, negligenciando as complexas interações entre elas.

Ao recorrermos à interseccionalidade, pensamos a identidade e sua relação com o poder (Crenshaw, 2002Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, 10(1), 171-188. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2002000100011
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), uma vez que raça, gênero e classe, para Crenshaw (2015), evidenciam que ser negra, mulher e pobre garante os mais altos níveis de opressão (Gonzalez, 2020Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. Zahar.). Nesse mesmo sentido, Lorde (2019Lorde, A. (2019). Irmã outsider: Ensaios e conferências. Autêntica.) explora as intersecções entre sua experiência como mulher negra, lésbica e feminista, e oferece uma crítica às estruturas de poder dominantes. Ela argumenta que as opressões baseadas em raça, gênero, classe, sexualidade e outras identidades estão interligadas e devem ser abordadas em conjunto. A autora também enfatiza a importância da voz individual e da expressão pessoal na luta contra a opressão, incentivando as mulheres a reivindicarem sua identidade e a se unirem em solidariedade. Para Lorde (2019), a interseccionalidade não é apenas uma questão teórica, mas uma realidade vivida por muitas mulheres. Ela destaca a importância de dar voz às experiências e perspectivas das mulheres marginalizadas e de ouvir suas histórias, pois isso enriquece e amplia o movimento feminista como um todo. Nesse sentido, Collins (2022Collins, P. H. (2022). Bem mais que ideias: A interseccionalidade como teoria social crítica. Boitempo Editorial.) explora como a interseccionalidade permite uma compreensão mais profunda das experiências das pessoas que ocupam posições marginalizadas e subalternas na sociedade. Ela examina como a interseccionalidade pode ser aplicada em diversas áreas, como política, educação, saúde e justiça social, para desafiar as estruturas de poder e promover a igualdade e a justiça.

No caso de uma sociedade como a brasileira, na qual o racismo e o sexismo são fortes sustentáculos da ideologia de dominação, os negros, em especial as mulheres negras, são cidadãos de segunda classe, como afirma Gonzalez (2020Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. Zahar.). Ora, para que a minoria colonizadora mantivesse e consolidasse sua dominação sobre as pessoas não brancas, teria de promover no meio brasileiro a inculcação dogmática do outro (Walsh, 2007Walsh, C. (2007). Interculturalidad y colonialidad del poder. Un pensamiento y posicionamiento otro desde la diferencia colonial. In S. Castro-Gómez, & R. Grosfoguel (Eds.), El giro decolonial: Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global (pp. 47-62). Siglo del Hombre Editores.) na comunidade linguística, religiosa, de valores estéticos e de costumes (Guerreiro Ramos, 1995Guerreiro Ramos, A. (1995). Patologia social do branco brasileiro. In A. Guerreiro Ramos (Ed.), Introdução crítica à sociologia brasileira (pp. 171-193). Editora UFRJ.).

No caso específico das mulheres negras, Arnaldo Xavier, poeta negro e nordestino, ao cunhar a expressão ‘matriarcado da miséria’, refere-se a como nós, mulheres negras brasileiras, tivemos nossa experiência histórica marcada pela exclusão, discriminação e rejeição social. Assim, a despeito dessas condições, revelar o nosso papel de resistência e liderança nas comunidades em todo país é também nos libertar de situações sociais de opressão (Carneiro, 2011Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. Selo Negro Edições.). Similarmente, Conceição Evaristo ressalta em seu poema É tempo de nos aquilombar a importância do aquilombar-se, visto que o aquilombamento nos desafia a ir mais adiante. Nesse intento, é importante garantir a participação das mulheres, sobretudo as mulheres negras, nos espaços de poder, adotando uma perspectiva da Política de Aquilombamento (Alves, 2020Alves, S. (2020, novembro 13). Por uma nova construção democrática: É Tempo de aquilombar. Projeto Força Feminina. https://ffeminina.oblatassr.org/2020/11/13/por-uma-nova-construcao-democratica-e-tempo-de-aquilombar/
https://ffeminina.oblatassr.org/2020/11/...
).

Ademais, no âmbito do trabalho acadêmico, Collins (2022Collins, P. H. (2022). Bem mais que ideias: A interseccionalidade como teoria social crítica. Boitempo Editorial.) ressalta a importância de uma perspectiva interseccional na produção de conhecimento acadêmico e na prática de pesquisa, destacando a necessidade de incluir as vozes e experiências das pessoas marginalizadas no processo de construção do conhecimento.

(Re)Existindo nas lacunas: Cultura e ancestralidade

Apesar desse ‘destino histórico’ dado às mulheres negras, existem espaços que diferem daqueles pautados na exploração, em que essas mesmas mulheres, recorrendo à cultura e à ancestralidade, ganham protagonismo. Por ser a cultura aquilo que se vive, o inferiorizado acaba por reencontrar um estilo de vida antes desvalorizado e se maravilha e se extasia a cada redescoberta. Combinam-se estado de graça e agressividade no inferiorizado, o que evidencia algo importante no caráter passional da retomada cultural: “o mergulho no abismo do passado é condição e fonte de liberdade” (Fanon, 2018Fanon, F. (2018). Racismo e cultura. Revista Convergência Crítica, (13), 78-90. https://doi.org/10.22409/rcc.v1i13.38512
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, p. 89). Morales (1991Morales, A. (1991). Blocos negros em Salvador: Reelaboração cultural e símbolos de baianidade. Caderno CRH, 4, 72-92. https://doi.org/10.9771/ccrh.v4i0.18844
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)ressalta que as pessoas negras, desde o período da escravização, usam suas manifestações culturais e étnicas na negociação por espaços sociais junto aos setores dominantes, uma vez que, sendo desprovidos de território físico, os negros passam a se reterritorializar na diáspora por meio de um patrimônio simbólico consubstanciado no saber vinculado ao culto dos muitos deuses, à institucionalização das festas, das dramatizações, danças e formas musicais (Simas & Rufino, 2018Simas, L. A., & Rufino, L. (2018). Fogo no mato: A ciência encantada das macumbas. Mórula.).

As festividades constituem alguns dos principais instrumentos de resistência ao apagamento das diferenças, como, por exemplo, as manifestações culturais afro-diaspóricas, entre as quais se destacam os blocos afro de carnaval. Essas organizações podem ser caracterizadas como grupos que se autodefinem como entidades carnavalescas de preservação da cultura negra, cultura esta que se apresenta como um modo de vida, ou seja, a negritude é vivenciada no dia a dia do bloco que existe o ano todo (Silva, 2007Silva, A. C. C. (2007). Novas subjetividades e ‘onguização’ nos movimentos negros de Ilhéus, Bahia. Ilha Revista de Antropologia, 9(1), 47-67. https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/6287
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). Gonzalez (2020Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. Zahar.) reforça que é exatamente no fato de as atividades dos blocos afro e/ou afoxés se desenvolverem durante o ano inteiro e não apenas no carnaval que está a força dessas organizações, uma vez que os seus membros, sempre juntos, acabam discutindo, refletindo e criando coisas novas.

Se para A. Nascimento (2019Nascimento, A. (2019). O quilombismo: Documentos de uma militância pan-africana. Ipeafro.) é preciso “assegurar a condição humana do povo afro-brasileiro, há tantos séculos tratado e definido de forma humilhante e opressiva, é o fundamento ético do quilombismo” (Nascimento, 2019, p. 291), o bloco afro consegue atuar nessa vertente ao manter a consciência negra e a vitalidade de nosso povo ao colocar como tarefa prioritária a “responsabilidade de garantir o resgate da consciência negra, a qual tem sido violada, distorcida e agredida de muitas formas e maneiras” (A. Nascimento, 2019, p. 104). Um bloco afro pode ser lido como um movimento diaspórico africano que abrange conotações de resistência étnica e política (B. Nascimento, 2021).

Ao se falar sobre resistência cultural, é preciso reconhecer a centralidade e o protagonismo das mulheres negras. Gonzalez (2020Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. Zahar.) explica que “a mulher negra é responsável pela formação de um inconsciente cultural negro brasileiro” (Gonzalez, 2020, p. 307). Desde o período colonial, a mulher negra possui papel ativo em movimentos de resistência. Segundo Bush (1984Bush, B. (1984). Towards emancipation: Slave women and resistance to coercive labour regimes in the British West Indian colonies, 1790-1838. Slavery and Abolition, 5(3), 222-243. https://doi.org/10.1080/01440398408574875
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), além de contribuir para a resistência geral dos sujeitos em condição de escravização, as mulheres negras eram cruciais para transmitir o espírito e a tradição de resistência a seus filhos por meio da música e da tradição oral. Os processos históricos acabaram por acentuar essa propensão de as mulheres negras precisarem contar consigo mesmas para inventar formas de sobrevivência para si, suas famílias e, muitas vezes, também para seus homens (Carneiro, 2011Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. Selo Negro Edições.). Mesmo após a emancipação, essas mulheres continuaram contribuindo para a vida cultural da comunidade negra. A mulher negra dentro de uma comunidade comumente é responsável pelo bem-estar material e espiritual Groot (1986Groot, S. W. (1986). Maroon women as ancestors, priests and mediums in Surinam. Slavery & Abolition, 7(2), 160-174. https://doi.org/10.1080/01440398608574910
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).

No que diz respeito a esse ‘bem-estar espiritual’, destaca-se a importância das mulheres negras no apoio religioso; na escravização, eram elas as responsáveis por fortalecer o espírito de luta dos homens com amuletos, ervas e banhos (Groot, 1986Groot, S. W. (1986). Maroon women as ancestors, priests and mediums in Surinam. Slavery & Abolition, 7(2), 160-174. https://doi.org/10.1080/01440398608574910
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). Já no período imediatamente depois da abolição, coube a essa mesma mulher arcar com a posição de viga-mestra de sua comunidade. Elas foram o sustento moral e a subsistência dos demais membros da família, além de, até hoje, continuarem a ser referências no que diz respeito à manutenção e perpetuação das religiões de matriz afro, como, por exemplo, o candomblé, que é liderado principalmente por elas (as ialorixás ou mães de santo). O surgimento da figura do babalorixá (pai de santo) na estrutura do candomblé só ocorreu a partir da década de 1930 (Gonzalez, 2020Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. Zahar.).

São muitas as mulheres negras e pobres que desempenham um papel religioso/cultural. O bloco afro pioneiro Ilê Aiyê, por exemplo, foi criado por Antônio Carlos dos Santos Vovô, o Vovô do Ilê, na cidade de Salvador, no bairro do Curuzu, na casa de número 233, de Mãe Hilda, ou seja, na casa de uma mulher negra (Gonzalez, 2020Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. Zahar.). Segundo a autora, é inegável que ser negra e mulher no Brasil nos garante os mais altos níveis de opressão, restando a nós inúmeras injustiças. Entretanto, é essa mesma mulher que luta por seus direitos e está à frente de movimentos que buscam a melhoria de suas comunidades.

PERCURSO METODOLÓGICO

A presente pesquisa pode ser caracterizada como qualitativa-descritiva. Para a coleta de dados, foi realizada entrevista semiestruturada. Na entrevista semiestruturada, são estabelecidos pontos de interesse a serem explorados, o que permite que o participante tenha maior liberdade de expressão, com intervenções sutis quando ele se afasta dos tópicos propostos. Esse tipo de abordagem favorece a obtenção de dados, pois valoriza as experiências e informações que o participante tem a oferecer sobre o tema em questão. Além disso, cria um ambiente cordial que facilita a comunicação (Fontana & Frey, 2005Fontana, A., & Frey, J. H. (2005). The Interview: From neutral stance to political involvement. In N. K., Denzin, & Y. S. Lincoln (Eds.), The Sage Handbook of Qualitative Research (pp. 695-727). Sage.).

Apesar de a entrevista semiestruturada ter sido a técnica principal de acesso aos dados, destacamos que essa entrevista foi realizada em um contexto de pesquisa etnográfica. Durante os anos de 2018 e 2021, uma das autoras realizou uma etnografia com um bloco afro, localizado na cidade de Belo Horizonte, em Minas Gerais, que tem como cofundadora e presidente uma mulher negra, que aqui nomeamos de Zuri. Optamos por não identificar o bloco afro criado por Zuri no intuito de garantir o anonimato do sujeito de pesquisa. A entrevista realizada com Zuri teve duração de 6h02min59 e foi realizada em dois dias, em agosto de 2021. Já o método etnográfico nos permitiu acessar o fenômeno analisado em pleno funcionamento. Os dados foram analisados na perspectiva interseccional, uma vez que “a formulação da interseccionalidade enquanto práxis e paradigma teórico foi fundamental para se constituir uma ferramenta analítica que visa compreender as dinâmicas das identidades” (Bueno & Anjos, 2021Bueno, W. C., & Anjos, J. C. (2021). Da interseccionalidade à encruzilhada: Operações epistêmicas de mulheres negras nas universidades brasileiras. Civitas-Revista de Ciências Sociais, 21(3), 359-369. https://doi.org/10.15448/1984-7289.2021.3.40200
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, p. 362). Nesse contexto, ressaltamos que o pensamento feminista negro, para além de questões epistemológicas, também possibilita amplificar um debate metodológico à medida que se articulam categorias sociais oportunizando acesso às complexidades sociais vivenciadas por mulheres negras.

APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS

Zuri: A insistente

Zuri, mulher, negra e jovem é também a cofundadora e presidente de um bloco afro. Foi uma das criadoras e a primeira presidente da Associação dos Blocos Afro de Minas Gerais, a Abafro, e foi uma das proponentes do Kandandu, além de ter sido a responsável por escrever e apresentar o projeto dessa festividade ao poder público. Zuri também é produtora cultural, graduada em letras e pós-graduada em revisão de textos. Zuri sabe da importância de ocupar espaços e acredita que ocupa um lugar especial seja em seu bloco afro, seja no carnaval de Belo Horizonte: “Você não me vê subindo no trio [de carnaval] e mandando tchauzinho. É o lugar que eu ocupo [e] não é [um] lugar menor, é um lugar que eu ocupo” (Zuri). Oyěwùmí (2021Oyěwùmí, O. (2021). A invenção das mulheres: Construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Bazar do Tempo.) dispõe que as categorias gênero e raça são a base para a construção das hierarquias sociais; ao afirmar que “é o lugar que ocupo”, que não é um lugar menor, Zuri desafia essas hierarquias sociais.

Aqui, a identidade de Zuri é fundamental para entendermos como a identidade da mulher negra brasileira perpassa pela noção da insistência e ocupação de lugares historicamente negados. Em muitos momentos de sua fala, Zuri reforça “o lugar que Eu [de Zuri] ocupo” na organização e por analogia e extensão, na nossa sociedade. Tanto Gonzalez (1988Gonzalez, L. (1988). A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro. (92-93), 69-82.) quanto Guerreiro Ramos (1995Guerreiro Ramos, A. (1995). Patologia social do branco brasileiro. In A. Guerreiro Ramos (Ed.), Introdução crítica à sociologia brasileira (pp. 171-193). Editora UFRJ.) afirmam e reafirmam o quanto o compromisso da sociedade brasileira esteve ligado ao racismo. Gonzalez (1988) reconhece que a “neurose cultural brasileira tem no racismo seu sintoma por excelência” (p. 69), já Guerreiro Ramos (1995) reforça que “nas condições da sociedade brasileira, existe uma patologia social do branco brasileiro” (Guerreiro Ramos, 1995, p. 177). O desequilíbrio na autoestimação do sujeito negro e, de forma coletiva, no Brasil é o que Guerreiro Ramos (1995)considerou patológico.

Além das questões identitárias de seu Eu e de sua atuação como presidente de um bloco afro, Zuri também atua como coordenadora geral da maioria dos projetos do bloco. Ela trabalha ativamente na parte da gestão de pessoal e no planejamento das relações interinstitucionais do bloco. Na socialização de seu trabalho, Zuri reafirma não só seu papel na organização, como também a sua própria identidade e a valorização do lugar que ocupa: “A produção é essencial, sem produção não tem nada, sem produção não tem trio, sem produção não tem cortejo, sem produção não tem ninguém, não tem como fazer o que a gente faz, então assim não é um lugar menor, é o lugar que eu ocupo” (Zuri). Na fala de Zuri, percebemos o quanto, para ela, é importante situar que seu lugar e seu trabalho não são menores, uma vez que, estruturalmente (Almeida, 2018Almeida, S. (2018). O que é racismo estrutural? Editora Letramento.), o racismo irá colocar nós mulheres negras em lugares e posições subalternizadas: “a trabalhadora do eito e a mucama” (Gonzalez, 2018Gonzalez, L. (2018). Lélia Gonzalez: Primavera para as rosas negras. União dos Coletivos Pan-Africanistas (UCPA)., p. 38).

Apesar de o bloco afro ter sido fundado por Zuri e seu marido Jafari, ela explica que Jafari é o carnavalesco responsável por toda a parte criativa e técnica do bloco, como, por exemplo, tratativas a respeito do trio elétrico, sonorização, criação de fantasias e afins. Já ela fica responsável pela produção: “Você vai me ver dando água para as pessoas, facilmente. Inclusive, eu já fui criticada por pessoas dizendo que [por] eu ser uma liderança, eu não posso mais carregar o saco de água. As pessoas têm que me ver só sendo plena. Eu falei: ‘Não, eu acho que as pessoas têm que me ver carregando um engradado de água sim’, porque é isso, a realidade é essa, eu saio do cortejo e pego o busão [sic] vermelho [em Belo Horizonte os ônibus que possuem cor vermelha são conhecidos por atender à população que reside em bairros periféricos]” (Zuri).

Mesmo com todas as decisões referentes ao bloco sendo tomadas entre ela e seu marido, Zuri destaca que a escolha por colocar uma mulher negra na liderança de um bloco afro foi feita por ambos, de forma consciente, pois Jafari entende que um homem negro falando de bloco afro e de carnaval é o que a estrutura espera. Afinal, mesmo que a mulher negra seja a responsável pela formação de um inconsciente cultural negro brasileiro, como afirmou Gonzalez (2020Gonzalez, L. (2020). Por um feminismo afro-latino-americano. Zahar.), em uma sociedade racista e sexista, essa mesma mulher ainda é um cidadão de segunda classe, como a própria autora também afirma. Nesse contexto, ter uma mulher negra à frente de um bloco afro é muito representativo: “Você é essa figura que carrega esses preconceitos, negra, mulher, nova, sem mestre, numa posição de acesso, então você tá lutando para ser respeitada pelos seus pares” (Zuri).

Ao mesmo tempo que estava à frente de um bloco afro, num lugar de liderança, Zuri também fomentou a criação da Abafro. Ela foi a pessoa que escrevia as atas das reuniões, os projetos, marcava reuniões e ia até a prefeitura fazer negociações em nome da associação. Zuri acredita que justamente por ser essa pessoa, ela foi eleita a primeira presidente da associação e ficou no cargo por quase três anos. Foi entre os anos de 2017 e 2018 que ela, em nome da Abafro, mais ativamente construiu com a prefeitura em prol dos blocos afro da cidade. Naquela época, a preocupação de Zuri era fazer com que a prefeitura reconhecesse a associação e considerasse que existia um grupo de pessoas negras representadas que precisavam ser ouvidas. Para isso, Zuri sempre esteve muito presente nos espaços dedicados às tratativas sobre o carnaval e, mais especificamente, sobre blocos de rua, mesmo estando longe de ocupar um lugar de poder nesses lugares. Apesar das muitas conquistas que a Abafro, enquanto presidida por Zuri, conseguiu, ela recorda que foi um período muito exaustivo, pois além de ela precisar ser muito ativa, havia apenas um ano que ela e Jafari haviam criado um bloco afro. Zuri relembra: “O [nome do bloco afro] nasceu em 2016, e em 2017 a gente fez a Abafro, com a minha dedicação intensa para essas duas instituições” (Zuri).

No começo, Zuri e Jafari eram chamados por outros integrantes de blocos afro da cidade de ‘moleques sem mestre’. Ela explica que essa nomeação pejorativa era usada pelo fato de eles terem criado um bloco afro sem ter vindo de uma linhagem do candomblé e não possuir domínio da percussão. Eles também não fizeram parte de um movimento que ocorreu em Belo Horizonte, entre as décadas de 1980 e 1990, de valorização dos tambores. Ela e o marido, sem esses acessos, pensaram na criação de um bloco afro para ser um bloco de pessoas não iniciadas, ou seja, não iniciadas no candomblé (mesmo a religiosidade não sendo um dos critérios para poder integrar o bloco) ou não iniciadas na cultura negra. Zuri acredita que se as pessoas, em especial as pessoas negras, não têm acesso à cultura negra, é porque o sistema não permitiu: “Ah, você não sabe tocar, você não sabe jogar capoeira?” “Não, eu não sei, porque o sistema me tirou essa oportunidade” (Zuri). Então, os ‘moleques sem mestre’ iniciaram um movimento que trouxesse para as pessoas que também não sabiam sobre a cultura negra um processo de aprendizagem coletivo.

Mesmo com uma atuação em prol dos blocos afro da cidade extremamente relevante, Zuri reforça que o meio percussivo é muito machista e dominado por homens e que, por isso, muitas das propostas apresentadas por ela foram recebidas com certo desdém: “Você está lutando pra ser respeitada pelos outros blocos, você está lutando para ser respeitada pelo poder público, você está lutando para ser respeitada pelas suas ideias, você está lutando para ser respeitada pelo seu bloco, você tá lutando pela liderança no seu próprio conjunto, na sua própria comunidade, assim, vamos dizer, no seu próprio território, é muito difícil, foi muito difícil, muito desgastante, e me custou muito, assim, custou muito pessoalmente, e até fisicamente” (Zuri).

Quando uma pessoa negra se coloca em luta (no sentido simbólico e não físico), ela não possui a escolha de não colocar o seu corpo para lutar, uma vez que, como Zuri bem diz: “O nosso território é o nosso corpo, a nossa arma é o nosso corpo, a nossa causa é o nosso corpo, nosso argumento é o nosso corpo, então você se coloca pessoalmente na luta, não tem como ser impessoal”. Em uma sociedade colonizada que pretere mulheres, em especial mulheres pretas, acaba que pessoas como Zuri são expostas a grandes tensionamentos, afinal, “a conjunção do racismo com o sexismo produz sobre as mulheres negras uma espécie de asfixia social com desdobramentos negativos sobre todas as dimensões da vida” (Carneiro, 2011Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. Selo Negro Edições., p. 127).

Ao mesmo tempo que Zuri vivenciava a discriminação interseccional (Crenshaw, 2015Crenshaw, K. (2015, setembro 24). “Why intersectionality can’t wait”. The Washington Post. https://www.washingtonpost.com/news/in-theory/wp/2015/09/24/why-intersectionality-cant-wait/?postshare=5351443143466154&utm_
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) até mesmo de seus próprios pares, no caso, outras lideranças de blocos afro, ela se abraçava à manifestação cultural e étnica para negociar espaços sociais (Morales, 1991Morales, A. (1991). Blocos negros em Salvador: Reelaboração cultural e símbolos de baianidade. Caderno CRH, 4, 72-92. https://doi.org/10.9771/ccrh.v4i0.18844
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). Assim, re(existindo) nas lacunas, Zuri, junto a seu marido Jafari, não só deu vida a um bloco afro, como também fez com que ele fosse o único bloco afro do carnaval de Belo Horizonte que tem o seu cortejo acontecendo no hipercentro da cidade, subvertendo o que é esperado de pessoas periféricas. Zuri e Jafari decidiram ocupar o hipercentro da cidade com o discurso de que o território negro é também o próprio corpo negro.

Apesar de as experiências de Zuri confirmarem o que Carneiro (2011Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. Selo Negro Edições.) argumenta quando diz que a história mostra como as mulheres negras contam consigo mesmas para sobreviver, e até mesmo garantir a sobrevivência para seus homens, Zuri reforça a potência do coletivo ou, em nossos termos, a potência do aquilombamento: “A gente só conseguiu tá aqui porque a gente juntou, essa é a conversa, a gente não teve medo e a gente foi pra cima, e a gente foi pra cima junto” (Zuri). Afinal, se o aquilombamento nos desafia a ir mais adiante (Alves, 2020Alves, S. (2020, novembro 13). Por uma nova construção democrática: É Tempo de aquilombar. Projeto Força Feminina. https://ffeminina.oblatassr.org/2020/11/13/por-uma-nova-construcao-democratica-e-tempo-de-aquilombar/
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), Zuri queria agora juntar todos os blocos afro de Belo Horizonte em um único lugar, em um mesmo dia. Aquilo que ora fora um sonho de Zuri hoje é o Kandandu. Entendemos que as ações de Zuri são, ao mesmo tempo, luta e sobrevivência (Muzanenhamo & Chowdhury, 2023Muzanenhamo, P., & Chowdhury, R. (2023). Epistemic injustice and hegemonic ordeal in management and organization studies: Advancing black scholarship. Human Relations, 76(1), 3-26. https://doi.org/10.1177/00187267211014802
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).

KANDANDU, IDENTIDADE DA MULHER NEGRA, RACISMO E O CARNAVAL DE RUA DE BELO HORIZONTE

De acordo com a Prefeitura de Belo Horizonte (2020), o Kandandu passou a integrar o calendário de festividades de carnaval da cidade a partir da Abafro em articulação com a própria prefeitura, por meio da Belotur1 1 . A Prefeitura de Belo Horizonte se relaciona com os produtores culturais que atuam no carnaval da cidade por meio da Belotur. Esta, por sua vez, é a Empresa Municipal de Turismo de Belo Horizonte, responsável por gerir as festividades de caráter carnavalesco da capital mineira. , e com a sociedade civil. Isso não deixa de ser uma verdade, uma vez que esse projeto só pode sair do papel com o apoio da Belotur. Mas para esse apoio ser efetivado, foi preciso tensionar uma estrutura racista e sexista e a protagonista desse tensionamento foi Zuri que, para além de uma das idealizadoras do projeto, foi quem o escreveu e brigou para que este fosse considerado como uma proposta de direito do povo negro.

Se por um lado o racismo estrutural e o racismo institucional têm sido entendidos na literatura como fenômenos intercambiáveis, Almeida (2018Almeida, S. (2018). O que é racismo estrutural? Editora Letramento.) argumenta que, para a sociologia, instituições e estruturas remetem a fenômenos sociológicos diferentes. Na concepção individual, o racismo é tratado como uma patologia ou anormalidade. Um fenômeno ético de caráter individual e/ou de grupos que deve ser combatido a partir das sanções penais do meio jurídico e aplicação de sanções civis ou indenizações. Nessa concepção, não haveria sociedades ou instituições racistas, mas indivíduos racistas, que agem isoladamente ou em grupo (Almeida, 2018), manifestando-se, principalmente pela discriminação direta, isto é, o repúdio ostensivo a indivíduos ou grupos, motivado pela condição racial. Já na concepção institucional, o racismo não se resume a comportamentos individuais, mas é resultado do funcionamento das instituições que passam e conferem, ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios com base na categoria raça. Nesse contexto, as discriminações indiretas são mais frequentes, ou seja, aquelas em que a situação específica de grupos minorizados é ignorada, com a falácia da ‘neutralidade racial’, sem que se leve em conta a existência de diferenças sociais significativas. A discriminação indireta é marcada pela ausência de intencionalidade explícita de discriminar pessoas. A postura de Zuri coloca em questão a estabilidade do sistema social demonstrando conflitos e antagonismos inerentes à vida social, mas sobretudo resistência.

Zuri conta que, junto a seu marido, pensou na possibilidade de colocar todos os blocos afro de Belo Horizonte tocando juntos. O que os motivou, inicialmente, foi o interesse pessoal de ambos em participar dos cortejos dos outros blocos afro da cidade, o que era dificultado pelo fato de alguns saírem nos mesmos dias e horários. Além disso, Zuri e Jafari acreditavam que, em conjunto, os blocos afro de Belo Horizonte teriam mais força para dialogar com os órgãos públicos. A partir dessa ideia inicial, Zuri e Jafari decidiram convidar algumas lideranças de blocos afro da cidade para uma reunião.

Na época, no ano de 2016, reuniram-se as lideranças de cerca de seis blocos. Zuri lembra que enfrentou algumas resistências, até mesmo para as pessoas aceitarem participar da primeira reunião. “Eu ligava e falava ‘Oi, fulano, tudo bom? Aqui é Zuri, do bloco afro que acabou de nascer, a benção, inclusive, o seu bloco, ele existe há não sei quantos anos e tal, a gente estava pensando e se tivesse…’ A gente foi nessa, a gente teve algumas negativas, o [nome de um bloco afro] inclusive negou, não quis a princípio, falou que precisava de mais conversa sobre isso, mas era exatamente isso que eu estava fazendo, chamando para conversar” (Zuri). Mesmo com as resistências de seus pares, Zuri conseguiu reunir as lideranças dos blocos afro Magia Negra, Samba da Meia Noite, Afoxé Bandarerê, Fala Tambor, Tambolelê e Angola Janga. Desse encontro, nasceu o desejo e a proposta inevitável de se organizarem enquanto coletivo. Inclusive, é nesse contexto que surge a ideia da criação da Abafro.

Com a criação da associação, eles passaram a se encontrar com mais frequência, o que acabou limitando a conversa a um grupo menor, composto pelo Samba da Meia Noite, bloco afro Magia Negra, bloco afro Afoxé Bandarerê e bloco afro Angola Janga. Nesse momento, a ideia de juntar todos os blocos afro da cidade em um mesmo dia de apresentação já havia ganhado forças e eles decidiram escrever o projeto que viria a se chamar Kandandu. Cada um dos integrantes da associação começou a indicar os acessos que eles tinham junto aos órgãos públicos para que o projeto pudesse ser apresentado e, assim, viabilizado. Como o bloco afro de Zuri era o mais novo e ela e Jafari ainda não possuíam nenhum tipo de contato ou acesso, Zuri se ofereceu para escrever o projeto. “É um projeto que eu tive a honra de escrever que é uma das coisas que eu mais me orgulho de ter feito. Eu escrevi o projeto para a Abafro e não para o [nome do bloco afro]” (Zuri). Com o projeto escrito, iniciou-se a busca por apoio institucional do município.

A associação, a essa altura já presidida por Zuri, começou a busca por apoio pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a Seppir, que os ajudou a conseguir um espaço para as reuniões da Abafro, mas logo informou que não teria recursos financeiros para investir no projeto. Apesar de sinalizar a falta de verba, essa secretaria deu à Abafro acesso à Fundação de Cultura. Em relação a esse período, Zuri relembra que eles marcavam diversas reuniões com a fundação nas quais não aparecia ninguém ou iam apenas estagiários que não tinham nenhum poder de decisão. Ela recorda que quando havia alguma pergunta ou dúvida a resposta que obtinha dos estagiários era: “Não sabemos, mas a gente anotou para levar a pergunta para os responsáveis e trazemos a resposta na próxima reunião” (Zuri).

Segundo a concepção do racismo estrutural, é dever da instituição que se preocupa com a questão racial investir na adoção de políticas internas que visem a: (a) promover a igualdade e a diversidade em suas relações; (b) remover obstáculos para a ascensão de minorias em posições de liderança; (c) manter espaços permanentes para debates e revisão de práticas institucionais; e (d) promover o acolhimento e possível composição de conflitos raciais e de gênero. Assim também o racismo não se limita à representatividade. Sob essa perspectiva, o racismo se desdobra em processo político e processo histórico. No entanto, o que vemos aqui é que a postura de Zuri chama os atores e agentes públicos, individualmente, questionando os responsáveis.

O tempo foi passando e nenhum representante da Fundação de Cultura, a não ser estagiários, aparecia, e os homens negros que integravam a Abafro disseram, segundo Zuri: “Quer saber, não quero também. Isso que estão nos oferecendo a gente faz sem precisar da prefeitura. Eu não preciso da chancela da prefeitura para fazer o que eu já faço”. Assim, com a desistência dos homens do grupo, Zuri passou a se dedicar à busca por apoio sozinha. Certa vez, ela recebeu da líder, outra mulher negra, do grupo Fala Tambor uma quantia de R$ 50,00 para que custeasse as despesas com transporte ao longo desse tempo em que buscava apoio para viabilizar o Kandandu.

Quando Zuri contava para os outros integrantes da Abafro o que estava acontecendo, os homens sempre diziam: “Você é besta de continuar indo, não tem que ir nesse negócio não, palhaçada isso”. Nessa época, a Abafro, que a essa altura já tinha página em rede social e e-mail, criados por Zuri, recebeu um e-mail da Secretaria Municipal de Cultura dizendo que havia chegado uma verba para ser aplicada no Festival de Arte Negra, o FAN, e que talvez pudessem contemplar o Kandandu de alguma forma, e que eles queriam conversar sobre isso. Mais uma vez Zuri foi até a secretaria para obter mais informações sobre essa proposta, e foi quando os estagiários que a atenderam disseram que a Secretaria de Cultura não poderia ajudar com recursos financeiros, mas que estavam dispostos a ceder a estrutura do Fanzinho, ação derivada do FAN dedicada ao público infantil, para o projeto Kandandu.

Diante da oferta da Secretaria Municipal de Cultura, Zuri apresentou o que os blocos afro precisavam, como, por exemplo, camarim e palco, mas nada disso seria contemplado, uma vez que a estrutura do Fanzinho consistia, basicamente, em uma tenda montada em um parque público da cidade, mais a estrutura de som. Insistindo na importância de, ao menos, um camarim para que os integrantes dos blocos afro pudessem se trocar, Zuri obteve a seguinte resposta: “A gente pode dar para vocês o contato para vocês conversarem e pedirem ao Parque Municipal para usarem o banheiro deles como camarim”. A associação não aceitou essa oferta, mas Zuri acreditava que poderia tirar algo dali: “Algo me dizia que eu ia tirar alguma coisa dali. Toda reunião que eu ia eles [os estagiários] conversavam muito. Eles cometeram o erro de mandar os estagiários, mandaram estagiários, talvez, para desvalorizar o que a gente estava fazendo, mandaram estagiários porque os estagiários não podiam tomar decisões por si próprios e eu saquei isso. Mas como eles não tinham uma visão estratégica do todo, os estagiários começaram a falar coisas que muito me interessavam. Então, eles soltavam informações que não seriam ditas por pessoas de cargos hierárquicos superiores, e eu fui catando, cada reunião dessas eu catava uma coisa, como, por exemplo, ‘não, esse dinheiro não pode, tal coisa não pode porque essa verba já foi utilizada para fazer cartaz para o espaço tal’, e eu pesava: ‘mas espaço tal é um espaço privado’. Coisas assim, eu fui catando, todo dia eu catava um negocinho, um comentário” (Zuri).

Zuri, ao perceber, por meio de uma conversa entre os estagiários, que recursos públicos foram direcionados para instituições, indivíduos ou espaços específicos, ou seja, espaços predominantemente brancos, evidencia como o pacto da branquitude se manifesta. Esse fenômeno complexo e multifacetado está enraizado em estruturas sistêmicas de poder e privilégio, como Zuri demonstra ao perceber a garantia de privilégios e oportunidades diferenciadas para aqueles que fazem parte do espaço social da branquitude, enquanto a Associação de Blocos Afro de Minas Gerais, representada por Zuri, enfrentava dificuldades em estabelecer um simples diálogo com os agentes públicos responsáveis por promover a cultura na cidade de Belo Horizonte. Nesse sentido, é possível perceber como as organizações não são estruturas burocráticas neutras em termos de raça, como já nos alertou Ray (2019Ray, V. (2019). A theory of racialized organizations. American Sociological Review, 84(1), 26-53. https://doi.org/10.1177/0003122418822335
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).

Dessa forma, ainda que reconheçamos, neste artigo, como as políticas da Secretaria de Cultura de Belo Horizonte utilizaram-se, implicitamente, do poder político e econômico para questionar a validade e importância cultural das atividades festivas dos blocos afro, há de se considerar que pessoas específicas dentro da Secretaria de Cultura estão atravessadas por subjetividades que reforçam o pacto narcísico da branquitude. Não à toa, homens brancos e normativos ocupam a maior parte das posições privilegiadas na política brasileira. Dessa forma, pessoas com maior agência de decisão poderiam ser aliadas para romper com essas subjetividades que cultuam o pacto narcísico da branquitude, desde que reconheçamos que suas subjetividades são atravessadas pelo racismo.

É importante estudar todas as subjetividades que estão atravessadas pelo racismo. Gouvêa e Oliveira (2020Gouvêa, J. B., & Oliveira, J. S. (2020). Por que branquitudes, por que (somente) agora?. Caderno de Administração, 28(2), 5-14. https://doi.org/10.4025/cadm.v28i2.57245
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), por exemplo, evidenciam a dificuldade em se falar sobre branquitude na área de administração. Falar sobre os efeitos do privilégio da branquitude em seu caráter estrutural de opressão é, também, se reconhecer como parte de um sistema de opressão na posição de quem oprime. Evidentemente, para algumas pessoas, esse não é um lugar ‘confortável’. Implica um processo de reposicionamento e compreensão de toda uma história de vida e de lutas coletivas também.

Ao invés de considerar apenas as instituições como os agentes do racismo, é crucial reconhecermos a agência das subjetividades que performam comportamentos preconceituosos, discriminam e cometem atos de racismo. Tal feito ajudaria a administração a pensar, inclusive, em profissões e contextos de trabalho que combinam mérito com imagens idealizadas de masculinidade branca (Mobasseri et al, 2023Mobasseri, S., Kahn, W. A., & Ely, R. J. (2023). Racial inequality in organizations: A systems psychodynamic perspective. Academy of Management Review. In press. https://doi.org/10.5465/amr.2021.0446
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) para premiar e/ou reconhecer seus indivíduos.

Diante da negativa da Abafro em aceitar a estrutura do Fanzinho, a Secretaria Municipal de Cultura enviou um e-mail à associação dizendo que eles estavam muito irredutíveis nas negociações. Uma das coisas que chamaram a atenção de Zuri nesse e-mail foi o fato de este ter sido enviado à Abafro com cópia para cada bloco afro que assinava o projeto e para dezenas de outras pessoas que nada tinham a ver com a associação ou com os blocos afro. Na mensagem, a Secretaria Municipal de Cultura criticava até mesmo o fato de Zuri usar a expressão ‘reaproveitar material’. Para eles, era um absurdo falar de reaproveitamento, como se fosse algo negativo, pois quem entende de produção cultural sabe que é uma prática comum a reutilização de materiais. E que o fato de os blocos afro não aceitarem o reaproveitamento mostrava uma ignorância e imaturidade por parte deles. Zuri resume que o e-mail dava muito destaque a uma imaturidade, inocência e, até mesmo, infantilidade em relação à proposta apresentada e defendida por ela.

Zuri explica que as negativas que a Abafro deu à oferta recebida não foram por causa do reaproveitamento de estruturas e insumos, mas sim pelo fato de ser sempre oferecido menos a eles. Enquanto era ofertada a pequena estrutura do Fanzinho aos blocos afro, existia palco montado na Praça da Estação2 2 . A Praça da Estação fica localizada no hipercentro de Belo Horizonte, ao lado da estação de metrô e próxima a muitas linhas de ônibus, o que faz essa praça ser um dos pontos da cidade que possuem o acesso mais facilitado, principalmente para aqueles que vêm das periferias. A praça também é tradicionalmente conhecida por abrigar shows de grande porte que acontecem na capital mineira e é onde o palco principal do carnaval da cidade é montado. para abrigar shows de artistas, majoritariamente brancos, de outros estados, que estavam ali em troca de cachês para se apresentarem na cidade. Enquanto isso, até a oferta de banheiros químicos era dificultada para os blocos afro. Sentindo-se pessoalmente ofendida com o e-mail enviado pela secretaria, Zuri pediu autorização aos outros integrantes da Abafro para enviar uma resposta:

“Eu escrevi minha opinião, eu escrevi minha resposta sobre a imaturidade da situação, sobre falar que a gente é imatura, falar que a gente não sabe como funciona a verba pública. Porque eu estava começando como produtora, mas eu estudei, eu não vou chegar aqui pedindo uma coisa que eu não sei se é possível. Então, eu coloquei as coisas que eu estudei, sabe, eu coloquei que eu lamentava se tinha parecido imaturidade, mas é porque eu entendia que se tal instituição privada tinha acesso a uma verba deles de impressão de cartazes para os eventos particulares, eu não pensei que uma manifestação cultural não poderia ter o mesmo acesso. Se tal organização podia fazer um evento no Viaduto Santa Tereza, com a estrutura que a gente queria, a gente não entendia por que nós não podíamos ter o mesmo acesso. Se tal organização ou pessoa física podia fazer certo evento em tal lugar, com o dinheiro dessa verba pública, por que nós não podíamos também? Aí eu fui colocando todas as coisas que eu catei [sic]. Todo mundo pode fazer tudo isso com essa verba pública, por que que eu não posso? Por que que os blocos afro não podem? Eu só quero entender isso, foi só o que eu mandei. Aí eu falei ‘diante disso, os blocos afro dispensam a contribuição da Secretaria de Cultura entendendo que ela não tem interesse em ajudar essa manifestação cultural popular, porque ela já está comprometida com essas pessoas físicas e pessoas jurídicas de sua preferência’” (Zuri).

Todas as afirmações que Zuri fez em sua mensagem eram pautadas nas informações que ela observou a cada vez que ia para uma reunião e havia apenas estagiários esperando por ela. Em resposta ao e-mail de Zuri, a Abafro foi convidada para uma nova reunião na Secretaria Municipal de Cultura, mas agora não mais com os estagiários. Chegando lá, Zuri se surpreendeu com a enorme mesa reservada para a reunião que contava, em suas próprias palavras, “com a presença de várias pessoas importantes”, ou em outros termos, naquela mesa estavam os tomadores de decisão da engrenagem pública, quando o assunto é cultura na cidade de Belo Horizonte. Zuri não conhecia ninguém que estava presente naquela reunião, exceto alguns integrantes homens da Abafro que para esse encontro se sentiram motivados a voltar a participar da busca por apoio ao Kandandu. Apesar de Zuri não conhecer quase ninguém ali presente, ela não era uma figura estranha. Chegando à mesa ela foi indagada: “Você é a famosa Zuri?”

Após as apresentações, foi dito a Zuri que eles ficaram provocados com o e-mail que ela enviara e, por isso, decidiram marcar aquela reunião para que em conjunto pudessem contribuir com o projeto Kandandu. Mas, antes disso, foi perguntado a ela quem havia escrito o e-mail que ela enviou. Zuri respondeu que havia sido ela e, então, eles insistiram: “‘Não, eu sei que você mandou, mas quem escreveu?’ Eu falei ‘fui eu’, ele falou ‘tá, você mandou, mas assim, algum advogado escreveu, né? Escreveu o e-mail para a gente, quem foi que escreveu este e-mail?’ e eu falei ‘fui eu’, aí o cara falou ‘nossa, é porque o e-mail é muito bom’, eu falei ‘obrigada’ e ele falou ‘você deveria trabalhar com isso’, aí eu respondi ‘mas eu trabalho com isso, eu não estou aqui trabalhando?’, e aí ele falou ‘é verdade, vamos começar a reunião?’ ‘Vamos começar a reunião’, eu finalizei’” (Zuri).

Assim, Zuri apresentou o projeto Kandandu, mais uma vez reforçando que aquele projeto não era para ela ou para uma pessoa específica, mas sim para os blocos afro de Belo Horizonte. Ela acrescentou que estava ali pedindo um evento que valorizasse a cultura afro e foi nesse contexto que, finalmente, surgiu a ponte entre a Abafro e a Belotur, intermediada pelo então presidente da Fundação Municipal de Cultura que estava presente na reunião.

Em contato agora com o então diretor de eventos da Belotur, Zuri apresentou o projeto Kandandu, isso já no final do ano de 2017, com tudo já fechado pela Belotur para o carnaval do ano seguinte. Daí, a Belotur ofereceu à Abafro um trio elétrico para que os blocos afro desfilassem em um viaduto chamado Angola. Tal desfile deveria acontecer bem antes da época do carnaval. Depois de muita conversa e de Zuri recorrer, até mesmo, às legislações que falam sobre promoção da igualdade racial, ela conseguiu o palco principal do carnaval de Belo Horizonte, com toda a estrutura disponível para grandes eventos, para que o Kandandu fosse realizado no primeiro dia oficial do carnaval da cidade. Um ano após a sua estreia, em 2018, o Kandandu foi reconhecido pelo Ministério dos Direitos Humanos como uma das maiores e principais ações de promoção da igualdade racial do Brasil. De acordo com as discussões propostas por Jaccoud e Beghim (2002Jaccoud, L. B., & Beghim, N. (2002). Desigualdades raciais no brasil um balanço da intervenção governamental. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/9164/1/Desigualdadesraciais.pdf
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), podemos considerar o Kandandu como uma política pública do tipo ‘ação valorizativa’, ou seja, ações que combatem estereótipos negativos e preconceitos raciais, reconhecendo a diversidade étnica brasileira e valorizando a comunidade afro-brasileira. Essas ações têm como objetivo destacar o papel histórico e a contribuição contemporânea dessa comunidade para a construção do país. Elas são permanentes e abrangem não apenas a população racialmente discriminada, mas toda a sociedade, promovendo o reconhecimento da diversidade étnica e cultural.

A partir da agência de Zuri, percebemos a importância de entendermos o racismo a partir de suas concepções individuais, institucionais e estruturais. Zuri questiona os agentes individuais, questiona os processos institucionais e, consequentemente, tensiona as estruturas raciais. Embora os cientistas sociais se esforcem para compreender o racismo em sua dimensão coletiva, em vez de vê-lo como atos isolados de indivíduos ou grupos, isso aumenta nossa responsabilidade no combate ao racismo e contra os racistas. Nossos achados de pesquisa demonstram que o entendimento de um racismo institucional, estrutural e coletivo impede nomeações e/ou constrangimentos dentro da estrutura social. Em suma, facilita a agência do branco e dificulta a agência do negro. Diante disso, as lideranças brancas vão se escondendo, cada vez mais, atrás dos códigos de conduta de suas instituições, justificando suas ações e escolhas com base no seguimento às regras da instituição. Fraseologias como ‘minha instituição é racista’ versus ‘eu não sou racista’ tornam-se comuns quando, na verdade, as instituições são compostas de pessoas, e indivíduos que aceitaram conviver com tais normas.

O que chamamos de ‘despersonalização do racismo’, nesta pesquisa, se torna evidente na luta de Zuri por apoio institucional ao projeto Kandandu. É possível identificar comportamentos e decisões individuais que perpetuam essas estruturas. Apesar de nossas análises não mencionarem indivíduos por nome, existem ações individuais passíveis de serem analisadas. Por exemplo, a decisão de enviar apenas estagiários, sem poder decisório, para reuniões, foi uma ação que marginalizou e desvalorizou o projeto Kandandu e os blocos afro. Além disso, a sugestão de usar um banheiro como camarim pode ser vista como uma manifestação individual de desrespeito e discriminação, já que ignora as necessidades e a dignidade dos membros do bloco afro.

Assim, a resistência inicial encontrada por Zuri, a falta de compromisso e de respeito por parte das autoridades, a insuficiência de recursos e apoio - todas essas barreiras podem ser entendidas como manifestações de um racismo estrutural, porém despersonalizado, que dificulta o acesso a oportunidades e recursos para grupos racializados.

É importante lembrar que, embora indivíduos específicos realizem ações que perpetuam o racismo, eles estão agindo dentro de uma estrutura maior que permite e, muitas vezes, incentiva tais comportamentos. O desafio é equilibrar a crítica às ações individuais com a análise do racismo institucional e estrutural que as possibilita. Assim, podemos enfatizar tanto o racismo pessoal e coletivo quanto o sistêmico em nossas análises.

Embora, no abrigo da legalidade, seja delicado atribuir ações racistas a indivíduos específicos, especialmente se não houver evidências suficientes de suas intenções, é possível se concentrar em como as ações e decisões individuais contribuem para a perpetuação do racismo institucional, mesmo sem a intenção consciente ou explícita de discriminação racial. Por exemplo, Zuri relata vários episódios de comportamentos racistas atribuídos genericamente à Secretaria de Cultura ou a ‘eles’. Contudo, ao desafiar as estruturas, como Zuri fez, algumas perguntas surgem: (a) Quando Zuri relata o e-mail recebido da Secretaria de Cultura, quem o enviou? Quem foi responsável pela sua redação e envio? Quais eram as motivações e objetivos ao enviá-lo? (b) Quando Zuri foi convidada para uma reunião com ‘várias pessoas importantes’ na Secretaria de Cultura, quem estava presente? Essas pessoas em algum momento tomaram decisões que prejudicaram Zuri ou os blocos afro de Belo Horizonte? (c) Quando o e-mail resposta de Zuri é elogiado e insinuam que um advogado devia tê-lo escrito, qual o papel desse indivíduo, suas percepções e comportamentos? (d) Ainda que exista um compromisso ético das pesquisas em preservar a privacidade e a confidencialidade dos participantes, as pesquisas podem se referir a posições ou títulos de sujeitos que tomam decisões nas organizações. Associar ações racistas a posições e subjetividades específicas pode fornecer uma visão mais detalhada e matizada do racismo dentro das organizações analisadas, evitando generalização indevida. Isso também pode ajudar a elucidar como o racismo opera dentro de instituições e como ele é perpetuado por indivíduos nessas instituições.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao lutar pelo direito à cultura, uma mulher negra precisou se posicionar ativamente frente aos agentes responsáveis pelas festas de caráter carnavalesco da cidade de Belo Horizonte até conseguir garantir espaço para os blocos afro dessa cidade, o que ocasionou o nascimento do Kandandu. A atuação extenuante trouxe um salto qualitativo para os blocos afro de Belo Horizonte, mas cobrou um alto preço de Zuri: sua saúde física e mental.

Neste artigo, percebe-se como a identidade da mulher negra é permeada, muitas vezes, por necessidade de reafirmação e insistência, o que pode levá-la a um estado de exaustão. É a partir do pensamento feminista negro, em Lorde (2019Lorde, A. (2019). Irmã outsider: Ensaios e conferências. Autêntica.), que se percebe que para sobreviver, aquelas dentre nós nas quais a opressão sempre está presente tiveram de permanecer vigilantes. Tal vigilância gera uma consciência dual nas mulheres negras, que se familiarizam com a linguagem e as atitudes do opressor, chegando a adotá-las, certas vezes, para ter alguma ilusão de proteção. Nesse sentido, Collins (2022Collins, P. H. (2022). Bem mais que ideias: A interseccionalidade como teoria social crítica. Boitempo Editorial.) afirma que, apesar de outras mulheres negras poderem ajudar uma mulher negra nessa jornada rumo ao empoderamento pessoal, a responsabilidade última sobre as autodefinições e autoavaliações está dentro da própria mulher como indivíduo. Realidade vivida por Zuri, enquanto tensionava os agentes responsáveis pelas festas de caráter carnavalesco da cidade de Belo Horizonte com o objetivo de garantir espaço para os blocos afro.

Portanto, o racismo é um elemento constitutivo fundante das nossas organizações. Além disso, afirmamos a importância dos negros como sujeitos políticos sociais e individuais, por isso, não é possível negligenciar a realidade experienciada, especialmente pelas mulheres negras. Afinal, para nos aproximar da realidade vivenciada do racismo, o foco não deveria estar na construção de sujeitos como indivíduos, mas sim nas maneiras pelas quais é possível que indivíduos ajam como sujeitos em suas realidades sociais (Kilomba, 2020Kilomba, G. (2020). Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano. Cobogó.), ou seja, neste trabalho, vemos Zuri alcançando o status completo de sujeito à medida que passa a ser reconhecida, se identifica e se reconhece, em seu contexto social, no nível político, social e individual.

Dentre as contribuições teóricas deste artigo tem-se, em primeiro lugar, o regaste da dimensão do empoderamento negro como uma potência de mudança social. E, em segundo lugar, a potência da subjetividade da mulher negra mediante suas vivências e a de seu povo, a partir da análise do Encontro dos Blocos Afro do Carnaval de BH: o Kandandu. Em relação às contribuições sociais, espera-se que este artigo fortaleça o debate sobre a necessidade de uma visão histórica, geopolítica, subjetiva e institucional sobre o racismo, bem como políticas afirmativas para que os cidadãos tenham acesso aos símbolos e festividades da cultura afro.

No que diz respeito às contribuições para a área de estudos organizacionais, destacamos que a discussão sobre racismo e branquitude contribui para uma análise abrangente das dinâmicas sociais e organizacionais, compreendendo como essas formas de discriminação se manifestam dentro das organizações, seja por restrição de acesso a recursos, seja pela diminuição da agência dos grupos raciais. Já a discussão sobre branquitude envolve uma reflexão crítica sobre a posição e o privilégio dos indivíduos brancos na sociedade e nas organizações. Reconhecer a branquitude como uma construção social é fundamental para desconstruir a ideia de neutralidade e objetividade, frequentemente associada à cultura branca. Isso possibilita uma análise mais justa e equilibrada das relações de poder dentro das organizações, abrindo possibilidades para uma compreensão abrangente e crítica das organizações.

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  • 1
    . A Prefeitura de Belo Horizonte se relaciona com os produtores culturais que atuam no carnaval da cidade por meio da Belotur. Esta, por sua vez, é a Empresa Municipal de Turismo de Belo Horizonte, responsável por gerir as festividades de caráter carnavalesco da capital mineira.
  • 2
    . A Praça da Estação fica localizada no hipercentro de Belo Horizonte, ao lado da estação de metrô e próxima a muitas linhas de ônibus, o que faz essa praça ser um dos pontos da cidade que possuem o acesso mais facilitado, principalmente para aqueles que vêm das periferias. A praça também é tradicionalmente conhecida por abrigar shows de grande porte que acontecem na capital mineira e é onde o palco principal do carnaval da cidade é montado.
  • Classificação JEL:

    M.
  • Pareceristas:

    Os revisores não autorizaram a divulgação de suas identidades.
  • Relatório de Revisão por Pares:

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  • Financiamento

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    A RAC mantém a prática de submeter todos os documentos aprovados para publicação à verificação de plágio, mediante o emprego de ferramentas específicas, e.g.: iThenticate.
  • Disponibilidade dos Dados

    Os autores afirmam que todos os dados utilizados na pesquisa foram disponibilizados publicamente, e podem ser acessados por meio da plataforma Harvard Dataverse:
    Rezende, Ana Flávia; Pereira, Jussara Jéssica, 2023, "Replication Data for: "Kandandu: Black Woman's Identity, Racism, and Street Carnival" published by RAC- Revista de Administração Contemporânea", Harvard Dataverse, V1.
    A RAC incentiva o compartilhamento de dados mas, por observância a ditames éticos, não demanda a divulgação de qualquer meio de identificação de sujeitos de pesquisa, preservando a privacidade dos sujeitos de pesquisa. A prática de open data é viabilizar a reproducibilidade de resultados, e assegurar a irrestrita transparência dos resultados da pesquisa publicada, sem que seja demandada a identidade de sujeitos de pesquisa.

Editado por

Editor-chefe:

Marcelo de Souza Bispo (Universidade Federal da Paraíba, PPGA, Brasil)

Editora Associada:

Elisa Yoshie Ichikawa (Universidade Estadual de Maringá, Brasil)

Disponibilidade de dados

Os autores afirmam que todos os dados utilizados na pesquisa foram disponibilizados publicamente, e podem ser acessados por meio da plataforma Harvard Dataverse:

Rezende, Ana Flávia; Pereira, Jussara Jéssica, 2023, "Replication Data for: "Kandandu: Black Woman's Identity, Racism, and Street Carnival" published by RAC- Revista de Administração Contemporânea", Harvard Dataverse, V1.

https://doi.org/10.7910/DVN/MV9HYK

A RAC incentiva o compartilhamento de dados mas, por observância a ditames éticos, não demanda a divulgação de qualquer meio de identificação de sujeitos de pesquisa, preservando a privacidade dos sujeitos de pesquisa. A prática de open data é viabilizar a reproducibilidade de resultados, e assegurar a irrestrita transparência dos resultados da pesquisa publicada, sem que seja demandada a identidade de sujeitos de pesquisa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2022
  • Revisado
    26 Jul 2023
  • Aceito
    28 Jul 2023
  • Publicado
    20 Set 2023
  • Publicado
    24 Nov 2023
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