Acessibilidade / Reportar erro

Numa terra estranha: sonho, diferença e alteração entre os Tikmũ’ũn (Maxakali) 1 1 Uma primeira versão deste artigo foi apresentada na Universidade de Barcelona, em 2015, no evento El sueño em las culturas indígenas de la Tierras bajas de América del Sur e, em 2017, no encontro do Núcleo de Antropologia Simétrica (NAnSi) no Museu Nacional. Agradeço a Gemma Orobitg, Pedro Pitarch, Eduardo Viveiros de Castro, Tânia Stolze Lima, Luisa Elvira Belaunde e Karen Shiratori pelas preciosas contribuições.

In a strange land: dream, difference and alteration among the Tikmũ’ũn (Maxakali)

RESUMO

A ideia de que o sonho seja qualquer coisa como uma “viagem da alma” é de uma recorrência etnográfica impressionante. O que se entende por “viagem” e “alma” nos mais variados contextos está longe, contudo, de ser algo evidente. Os Tikmũ’ũn, mais conhecidos como Maxakali (MG), costumam igualmente descrever sua experiência onírica como um deslocamento da “alma” (koxuk) por caminhos tortuosos e perigosos que costumam desembocar nas terras estranhas onde vivem seus parentes mortos e de onde o retorno nem sempre é fácil, se é mesmo possível. Porém, mais do que isso, é curioso notar como a experiência da viagem e do deslocamento, entre eles, possui paralelos com a sua experiência onírica. Desse modo, não somente o sonho é algo como uma “viagem” como suas viagens parecem remeter - bem como a estimular - a experiência onírica. Neste artigo, pretendo explorar estes paralelos entre “sonho” e “viagem”, bem como aqueles entre “sonho”, “corpo”, “doença” e “morte”.

PALAVRAS-CHAVE:
Sonhos; perspectivismo; xamanismo; parentesco; Maxakali

ABSTRACT

The dream theory of the wandering soul is of an impressive ethnographic recurrence. What one understands by “wandering” or “soul” in each of these contexts, however, is far from being obvious. The Tikmũ’ũn people, also known as Maxakali (Minas Gerais, Brazil) also describe their oneiric experiences as wanderings of their “souls” (koxuk) through tortuous and dangerous paths that usually leads to the far away villages where the dead live and from where returning is not always easy, if even possible. But, besides that, it is also curious the way in which their travels’ reports trace some parallels with their dream ones. In a way, not only their dreams are like “wanderings of the soul” but also their wanderings are somehow like “dreams”. In this article, I explore theses parallels between “dreams” and “wanderings”, but also those between “dreams”, “body”, “illness” and “death”.

KEYWORDS:
Dreams; perspectivism; shamanism; kinship; Maxakali

Quando dorme, morre? Quando morre, morre?

Carlos Drummond de Andrade. (Especulações em torno da palavra homem)

INTRODUÇÃO

Quem percorre a literatura antropológica acerca dos sonhos inevitavelmente esbarra numa definição da experiência onírica cuja recorrência etnográfica soa, de fato, impressionante: do norte ao sul das Américas e entre vários povos nativos da África, Austrália, Melanésia ou Polinésia, encontra-se a ideia de que o sonho seja qualquer coisa como uma “viagem da alma”. A observação não escapou ao recorte universalista de um Edward Tylor, por exemplo. No famoso capítulo dedicado à noção de “animismo” do seu Primitive Culture (1920) o autor compilava algumas destas recorrências etnográficas entre diferentes povos:

Alguns groenlandeses (…) consideram que a alma sai do corpo durante a noite e vai caçar, dançar e visitar os seus sonhos, que são frequentes e vívidos, tendo-os levado a esta opinião. Entre os índios da América do Norte, ouvimos falar da alma do sonhador deixando seu corpo e vagando em busca de coisas atraentes para ele. (…) Os neozelandeses consideravam que a alma sonhadora deixava o corpo e voltava, chegando mesmo a viajar à região dos mortos para conversar com seus amigos. Os Tagals, de Luzon, receiam acordar alguém adormecido, devido à ausência de sua alma. Os Karens, cuja teoria da alma errante acaba de ser notada, explica que os sonhos são o que este ali vê e experimenta em suas viagens quando deixa o corpo adormecido. (Tylor, 1920TYLOR, Edward B. 1920. Primitive Culture: researches in the development of mythology, philosophy, religion, language, art and custom. Vol. 1. Londres, John Murray, Alberdale Street W.: 441-2; tradução minha)

Na mesma trilha, Lucien Lévy-Bruhl, em La Mentalité Primitif (1920), sintetizava a “representação ordinária do sonho entre os primitivos” do seguinte modo:

A alma deixa momentaneamente seu corpo. Às vezes ela vai muito longe, conversando com espíritos ou com os mortos. Ao acordar, vem retomar seu lugar no corpo. Se então alguma maldição ou algum acidente a impedir de entrar, a doença e logo a morte devem ser temidas. (Lévy-Bruhl, 1920: 96; tradução minha).

Uma década e meia depois, Jackson Steward Lincoln definia a experiência onírica “primitiva” no livro Dream in Native American and Other Primitive Cultures (1935) de modo muito semelhante: “The (...) general theory of dreams among primitives is that the soul wanders while the body sleeps and undergoes experiences in a supposedly real world.” (Lincoln, 1935: 47). O problema, contudo, para autores como estes não era tanto entender o que estas perambulações da alma seriam ou fariam com as pessoas, mas antes indagar se “os primitivos” confundiam ou não sonho e realidade, suas “representações mentais” e “o mundo como ele é”. Além disso, aquilo o que então se esboçava como uma “teoria primitiva dos sonhos” contribuía para desequilibrar alguns dos pressupostos fundamentais do impactante livro A Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud (1889), lançando sobre a teoria psicanalítica questionamentos e ponderações importantes. Em meio a preocupações desta ordem, a ideia mesma do sonho como “viagem” ou “perambulação da alma” não era exatamente “o” problema e tendia a ser apresentada de modo quase autoevidente nestas primeiras grandes sínteses etnológicas. E, no entanto, sua abrangência e recorrência não cessam de aparecer nas etnografias mais recentes.

Nas Terras Baixas da América do Sul, a definição dificilmente escapará a uma etnóloga ou etnólogo que conviver por algum tempo com um povo nativo do continente. Para os Mehinaku, do Alto Xingu, a experiência onírica é entendida como o momento, durante o sono, em que a ãkuã da pessoa se levanta (tikaidyu) e caminha por aí até que algo - normalmente um encontro com os espíritos itseke - aconteça (Basso, 1992BASSO, Ellen B. 1992. “The implications of a progressive theory of dreaming”. In: TEDLOCK, Barbara (org.) Dreaming. Anthropological and Psychological Interpretations. Santa Fe, School of American Research Press, pp. 86-104. [1987]). Para os Kalapalo, seus vizinhos, a ideia de que o sonho seja uma excursão de um componente da pessoa, o seu iyeweku ou “alma do olho”, é também central (Gregor, 1981GREGOR, Thomas. 1981. Far, Far Away My Shadow Wandered...The Dream Symbolism and Dream Theories of the Mehinaku Indians of Brazil. American Ethnologist, vol. 8, n.4: 709-720. DOI 10.1525/ae.1981.8.4.02a00030
https://doi.org/10.1525/ae.1981.8.4.02a0...
), ainda que eles distingam claramente a experiência do sujeito daquelas vividas por sua alma errante, narrando os sonhos como eventos testemunhados por uma terceira pessoa: “Não fui eu, mas minha alma, em meu sonho que fez essas coisas” (Gregor, 1981GREGOR, Thomas. 1981. Far, Far Away My Shadow Wandered...The Dream Symbolism and Dream Theories of the Mehinaku Indians of Brazil. American Ethnologist, vol. 8, n.4: 709-720. DOI 10.1525/ae.1981.8.4.02a00030
https://doi.org/10.1525/ae.1981.8.4.02a0...
: 711; tradução minha). Também no Alto Xingu, os Yudjá dizem que, durante o sono, sua alma deixa momentaneamente o corpo e trilha o caminho dos mortos, ‘ï’anay (Lima, 2005LIMA, Tânia Stolze. 2005. O peixe olhou para mim: o povo yudjá e a perspectiva. São Paulo, Unesp.: 258). Entre os Yanomami, a atividade onírica é descrita como a separação momentânea do utupë do seu corpo e sua viagem (mari huu) solitária (no caso dos sonhadores comuns) ou guiadas pelos espíritos xapiripë (caso dos xamãs) por caminhos variados. Nas palavras de Davi Kopenawa: “O corpo fica deitado na rede, mas os xapiri levantam voo com a imagem e fazem ver coisas desconhecidas. Levam a memória da pessoa consigo, em todas as direções da floresta, do céu e debaixo da terra.” (Kopenawa & Albert, 2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. 2015. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo, Companhia da Letras.: 137). Entre os Hupdä, do Alto Rio Negro, que concebem a pessoa composta por basicamente três elementos - corpo (sap), sopro vital (hawag) e sombra (b’atib’) - os sonhos são deslocamentos da porção-sopro do sonhador através do cosmos (Ramos, 2017). Por fim, entre os Pumé da Venezuela, sonhar - experiência semelhante a dormir, adoecer, cantar ou às visões alucinógenas - é entendido como um deslocamento da “essência vital” da pessoa, seu pumethó, até o mundo dos espíritos oté (Orobitg, 2002OROBITG, Gemma. 2002. “Soñar para vivir. Memoria, olvido y experiencia entre los Pumé (Venezuela)”. In: PIQUÉ, Raquel; VENTURA, Montserrat (orgs.) América Latina. Historia y Sociedad. Barcelona, Institut Català de Cooperació Iberoamericana, pp. 397-410.).

Quem conversa com os homens e mulheres Tikmũ’ũn - cerca de 2.400 pessoas falantes da língua Maxakali (tronco Macro-Jê) vivendo atualmente em quatro territórios indígenas no Vale do Mucuri, em Minas Gerais - ouvirá uma descrição muito parecida acerca de sua experiência onírica. Durante o sono, dizem, o koxuk da pessoa sai (xupep) momentaneamente do seu corpo-carne (ũyĩn) e perambula por aí, seguindo caminhos (potahat) muitas vezes perigosos, de onde nem sempre é possível retornar. Koxuk é o termo que empregam para glosar as sombras, os rastros deixados por algo ou alguém no solo, uma fotografia ou imagem de vídeo, aquilo o que todos os viventes têm e que as pessoas, ao morrerem, devêm e que os Tikmũ’ũn também traduzem como “imagem”, “espírito” ou “alma”. O bem-estar dos viventes depende da manutenção desta relação estreita, ainda que um tanto frágil, entre corpo e koxuk. Qualquer evento que ameace desestabilizá-la coloca em risco a vida da pessoa: ela adoece. Será o maior ou menor sucesso dos esforços coletivos dos pajés que poderá ou restituir o koxuk perdido ao seu corpo (isto é, “curar” o doente) ou perdê-lo de vez para o lado dos mortos. A morte, portanto, consuma uma separação que o processo da doença, através do sonho, instaurou. O sonho é uma experiência de “quase-morte”. Neste artigo, pretendo apresentar alguns aspectos do onirismo tikmũ’ũn aproximando noções como doença, corpo, morte, proximidade e distância. A semelhança entre as descrições da atividade onírica oferecidas por povos tão distintos quanto distantes não deveria chamar mais atenção do que suas diferenças. Sob uma definição genérica como “viagem da alma” desdobra-se toda uma variedade de conceitos indígenas relacionados à constituição da pessoa (ou desconstituição dela) e que podem facilmente ser obliterados em favor de alguma “teoria geral”. Ao mesmo tempo, noções como estas que se traduzem como “alma”, “sombra”, “duplo”, “imagem”, “princípio vital” e etc. parecem ter merecido maior escrutínio do que a tradução (linguística, mas não só) daquilo o que se entende ou se experimenta, nestes contextos, como viagem. Aqui, estou especialmente interessado nas implicações inversas desta definição genérica: se os sonhos são como viagens, no que as viagens se assemelham aos sonhos?

VIAGEM AO PRADINHO

Eu estava no início do meu segundo mês em campo, quando acompanhei dois jovens pajés de Aldeia Verde - onde vivi cerca de 22 meses entre 2014 e 2019 - em uma viagem até as terras do Pradinho, situadas na fronteira entre os estados de Minas Gerais e Bahia, onde seria realizado o primeiro Encontro de Pajés tikmũ’ũn. Logo que entramos os três no carro da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e partimos, impressionou-me a mudança repentina de comportamento dos meus companheiros de viagem. Normalmente desinibidos e conversadores em sua aldeia, os dois como que subitamente emudeceram logo no início do trajeto - o semblante alegre habitual substituído por expressões graves e desconfiadas. Mesmo entre eles, não trocavam mais do que algumas palavras e limitavam-se a comentar o estranho rock’n roll que animava o nosso condutor. Quando chegamos no Pradinho, a atitude dos dois pouco iria se alterar: ao mesmo tempo tímidos e agitados, eles não escondiam o desconforto que nos próximos dias só faria aumentar entre eles. Pela manhã, me diziam terem “sonhado muito” durante a noite e que já estavam preocupados com as esposas e os filhos que haviam deixado para trás. “Ele está pensando”, “está com saudades” - diziam um do outro. Na primeira oportunidade, fomos à cidade vizinha para tentarmos entrar em contato com os parentes. As notícias, de fato, não eram nada boas: a esposa de um, durante uma excursão de pesca, havia desmaiado e dois filhos do outro andavam muito febris desde a partida do pai. Não passaram, assim, nem cinco dias até que os dois aproveitassem a primeira carona que encontraram e voltassem para sua aldeia de origem.

Mas foi ali, igualmente, durante aqueles mesmos dias, que presenciei um evento que iria conduzir boa parte da minha pesquisa de campo: um dos meus amigos, após uma série de espirros, murmurou algo na língua e fez um gesto soprando e agitando as mãos para o alto que logo me intrigou. Após repetir algumas vezes para mim, consegui, finalmente, transcrever o que ele me dizia: ũg yõnkup yãyhãxokxop ha mõg! Com exceção de xokxop, que é como os Tikmũ’ũn glosam os “bichos” em geral, eu não fazia ideia do que a frase queria dizer. No entanto, bastou que eu a repetisse algumas vezes, imitando o espirro e os gestos do meu amigo, para que eu causasse uma verdadeira sensação na aldeia. De repente, todos passaram a me abordar e, espirrando, pediam, xehet! xehet!, “repete! repete!” - e caíam na gargalhada sempre que eu repetia. Foi somente no dia seguinte, pela manhã, que um dos pajés me chamou e explicou, em português: “é assim, quando a gente sonha à noite com coisas ruins e acorda, de manhã, tem que espirrar antes de tomar café e dizer: ũg yõnkup yãyhã xokxop ha mõg! hu mõg ãnõm nãmõg, pamãg ha!, “Vai, meu sonho, vira bicho! Vai e cai na armadilha!”.

Os Tikmũ’ũn traduzem yõnkup como “sonhar” ou “sonho”. A raiz yõn significa “lançar, jogar” e aparece também no verbo mõ’yõn, “dormir”, aparentemente uma junção de , “ir” e yõn. Durante as animadas partidas de futebol nas aldeias, escuta-se o tempo todo: Nũy ã yõn! “Joga pra mim!”. Neste sentido, o verbo yõn parece associado a um traço de projeção para o exterior. Sou mesmo tentado a imaginar que dormir (mõ’yõn) seja qualquer coisa como “se lançar”. Durante o sono, o koxuk da pessoa deixa o corpo através da boca e envereda por caminhos perigosos que frequentemente desembocam nas terras outras (hãmnõy) onde vivem os mortos (Tikmũ’ũn xakix xop). A via é de mão dupla: tanto o koxuk errante da pessoa adormecida pode alcançar as aldeias dos mortos, como os mortos (também chamados hãmkoxuk xop) podem aproveitar o sono de um parente para visitá-lo e atrair o seu koxuk consigo. Os mortos, como costumam dizer, “não dão sossego”. Na primeira oportunidade que têm, tentam levar seus parentes para suas aldeias distantes. Assim, quando acontece do koxuk, em suas perambulações noturnas, atingir essas aldeias, este será recebido como convém receber um visitante: com fartas ofertas de comida. E é aí que mora o perigo, pois se a pessoa aceita comer com os mortos, as chances do seu koxuk voltar diminuem. Se ela decide ficar, ela morre. Se ela decide voltar, muito provavelmente despertará doente (pakut).

Sonhar é, portanto, perigoso. É verdade que nem todos os sonhos são igualmente temidos ou comentados pelos Tikmũ’ũn no seu dia-a-dia. Eventualmente, um sonho poderá inclusive ser interpretado como um bom sinal para partirem numa expedição de caça, por exemplo. Mas, apesar de distinguirem entre sonhos “bons” ou “belos” (yõnkup mai) e “ruins” ou “feios” (yõnkup kumuk), é o próprio fato do sono e do sonho desencadearem esta dissociação momentânea entre o corpo-carne (ũyin) e o koxuk que, por si só, é perigoso. Tanto é assim que um modo de responder à pergunta matinal ok ã mõ’yõn mai?, “você dormiu bem?”, é dizendo hũ’ũ, ap ũg yõn kup ah!, “sim, eu não sonhei”. Por esse motivo, igualmente, o sono ideal entre os Tikmũ’ũn é o sono leve e entrecortado.2 2 A observação não passou despercebida entre alguns dos cronistas que conviveram com os povos da região: “o sono dessa gente não é como, em geral, nos civilizados, seguido e demorado: (...) ele dorme mal e suas precauções são acertadas e constantes, quer de dia, quer de noite, por toda a área ocupada. Uma folha seca que tomba, um galho que se desprende das árvores, logo que seja ouvido por ele o cuido é com atenção observado, examinado; parando o que está fazendo, fica a escutar, enquanto dura o incidente”. (Aguirre apudPalazzollo, 1952: 118) Afinal, é preciso estar atento aos mínimos ruídos durante a noite: os latidos dos cachorros, um suspeito caminhar noturno (um feiticeiro? o koxuk de um morto? o temível monstro canibal ĩnmõxa?) ou mesmo o discreto silvo do macuco (paxot) que anuncia a chegada dos espíritos yãmĩyxop3 3 Os yãmĩyxop são uma miríade de povos-espíritos com os quais os Tikmũ’ũn travaram alianças ao longo da história e que, de tempos em tempos, vêm passar temporadas com eles em suas aldeias, onde saem para cantar, comer e dançar com seus pais e mães, os homens e as mulheres. nas aldeias durante as madrugadas são motivos para interromper o sono. O sono ininterrupto, profundo ou pesado (mõ’yõn ka’ok), como é o sono dos brancos, não é bom. Que o diga o antropólogo que, aproveitando alguma brecha entre um ritual e outro para dormir algumas horas a mais era frequentemente interrompido pelos seus amigos, com preocupação: Homet, ã pakut? “Roberto, você está doente?”. E, mesmo diante da negativa, com frequência ouvia: ã yok, ã yok! ã pakut ax! “Levanta, levanta! Você vai adoecer!”. Dormir demais é expor-se demasiado aos sonhos e ao risco de perder o seu koxuk por aí...

Por envolver esta ameaça permanente, é tão importante vigiar o sono quanto recordar os sonhos, especialmente os “sonhos ruins”. E tanto ou mais importante quanto lembrar o que (ou quem) se viu durante o sonho é lembrar o que se ouviu. São os cantos dos yãmĩyxop que a pessoa escuta em suas viagens oníricas que indicam para os pajés mais experientes qual yãmĩy pode estar provocando aquela doença e quais cantos eles deverão cantar para recuperá-la. Sonhar com parentes mortos ou com os espíritos yãmĩyxop e seus cantos deixa as pessoas em estado de alerta. Ao despertar, é preciso não somente lembrar o sonho em detalhes como compartilhá-lo o mais breve possível com algum parente próximo. Além de ser um outro modo de lembrar, o ato de compartilhar essas memórias oníricas é frequentemente acompanhado de orientações sobre como agir. O sonho muito comum com os yãmĩyxop e seus cantos, por exemplo, é provavelmente uma lembrança destes espíritos de que a pessoa está em dívida com eles, de que eles sentem saudades e querem vir visitá-la em suas aldeias e que a mesma deverá preparar-se para patrocinar um ritual4 4 Este idioma da dívida e do pagamento é utilizado pelos próprios Tikmũ’ũn para descreverem sua relação com os espíritos, bem como suas responsabilidades na realização dos rituais. Assim, alguém que é curado pelos pajés automaticamente “está devendo” (tanemẽn) para os yãmĩyxop e deverá “pagar” realizando um novo ritual. Os pajés atuam como “cobradores”, negociando com estas pessoas as datas e as condições do “pagamento”. . Em outros casos, o sonho poderá ser inclusive interpretado como o sinal de que algo ruim aconteceu, o que não demora se confirma. Seja como for, esquecer (xaxok) um sonho é tornar-se extremamente vulnerável às agressões externas a que todos estão sujeitos, uns através dos outros, inclusive. Pois o sonho de um adulto poderá, eventualmente, provocar a doença numa criança (em geral filhos e netos de quem sonhou).

Muitas vezes, entretanto, os efeitos patogênicos da atividade onírica se fazem sentir logo ao despertar. Se o koxuk, em suas perambulações noturnas, tiver cometido o erro de aceitar a comida oferecida pelos parentes mortos, as consequências não tardam a chegar. A pessoa acorda fraca, cansada, preguiçosa: tuk nõg. Neste estado, terá dificuldades para sair da cama e realizar suas atividades. Terá vontade de dormir, o que é pior, pois voltar a sonhar só agravará o seu estado. Mas não é o caso ainda de apelar para a intervenção dos pajés. Nessas horas, justamente, deve-se proceder como fez meu amigo durante a nossa estadia no Pradinho. Em jejum, a pessoa procura alguma folha ou linha de embaúba e, enfiando-a no nariz, provoca espirros em si. Enquanto espirra, agitando as mãos e soprando, deverá repetir algumas vezes: ũg yõn kup yãy hã xokxop ha mõg! hu mõg a nõm ha mõg pãmãg ha!, “Vai, meu sonho, vira bicho! Vai e cai na armadilha!”. O procedimento é conhecido como mõkopnup, palavra que evoca o verbo mõ’kouk (soprar) e que os Tikmũ’ũn também traduzem como “rezar”. Com isso, espera-se, o sonho ruim tornar-se-á inofensivo, a pessoa recobrará a sua força e os pensamentos ruins, a tristeza e as saudades dos parentes mortos se dissiparão. Ao persistirem os sintomas, os pajés deverão ser procurados. Um deles, geralmente um reconhecido curador, deverá fazer uma primeira visita à pessoa doente e a primeira pergunta que fará a ela será: ã yõn kup te xĩy? “Com o que você sonhou?”

ALGUNS SONHOS

Existem tantos sonhos quanto os Tikmũ’ũn são capazes de sonhar e estou longe de querer dividí-los em tipologias ou reduzir toda sua experiência onírica a apenas alguns de seus aspectos. Entretanto, a partir dos relatos de sonhos que alguns amigos compartilharam comigo, gostaria de conduzir a leitora por alguns traços que a meu ver sobressaem em algumas dessas narrativas e que com muita frequência se repetem nos relatos. Comecemos por um sonho que Isael Maxakali gosta sempre de lembrar em suas falas públicas:

Eu sonhei e fui para outra terra, onde moram os parentes que já morreram. No caminho eu passei por um tronco de árvore, em cima do rio, e ele começou a girar. Depois passei debaixo de um pé de mamão, e ele estava bravo, os mamões começaram a voar em cima de mim. Até que eu cheguei na aldeia. A aldeia era nova, toda limpinha, e tinha um riacho muito bonito... Eu vi. Vi todos os velhos que já morreram e os yãmĩy cantando ao entardecer haai yok o miai haai yok o miai... Aí eles trouxeram mandioca cozida enrolada na folha de bananeira e peixe e deram para mim. Mas eu não quis comer né... Eu falei: “Não, eu não vou comer não...”. Tinha duas mulheres que me olhavam com vergonha pelo buraco da casa, mas elas não chegavam perto, só ficavam assim, me olhando e se escondiam. Aí eu fiquei com muita saudade da aldeia daqui. Cheguei lá e logo fiquei querendo voltar. Mas o yãyã (tio) não quis deixar eu voltar. Aí a vó de Sueli [esposa de Isael] falou assim pra mim: “Oh Isael...Você veio por aqui que é mais longe, mas se você quiser ir embora eu vou levar você até no alto, você corta por aqui que é pertinho! Aí você chega rápido na sua aldeia!”. Daí eu falei: “Então vamos!”. Nós fomos pro mato, subimos um morro alto e quando chegamos lá em cima eu olhei e já vi a aldeia daqui e fiquei muito alegre! “Olha, é pertinho, né? Depois eu volto aí de novo!”. Eu fui andando, mas escorreguei e caí. Daí o meu tio falou “Oh! Levanta aí!”, e eu levantei e segui. Mais pra frente eu vi um rio. Quando pisei na água para atravessar o rio eu acordei e já não via mais a aldeia, só o escuro da noite. (Isael Maxakali, março de 2014)

O sonho de Isael começa por uma viagem por caminhos que conduzem às aldeias dos mortos. No caminho, o koxuk errante enfrenta alguns obstáculos, como o tronco giratório e o mamoeiro raivoso. Tudo se passa como se ele não devesse chegar ao destino com facilidade. Chegando lá, porém, ele se depara com uma aldeia tão bela quanto as de antigamente. Comentando este sonho comigo, Isael reforçava que a aldeia dos mortos parece com as aldeias dos antigos, isto é, não possuem qualquer índice da presença dos brancos (ãyũhuk xop) como as construções de alvenaria, carros, antenas, escolas ou posto de saúde. Pelo relato, percebemos também que é intensa a atividade ritual na aldeia dos mortos. Como nas aldeias dos vivos, lá também os pajés se reúnem na kuxex (casa dos cantos) para receberem os yãmĩyxop e com eles dançarem e cantarem no pátio. A breve interação com as meninas que o observam pelas frestas da casa “com vergonha” - uma atitude típicia da relação entre afins - sugere até mesmo que os mortos mantenham relações sexuais entre si. Por fim, o momento mais delicado: a oferta de comida. De maneira prudente, Isael se lembrou de recusar, o que nem sempre acontece. Mas não demora ele sente saudades dos parentes que deixou para trás e decide voltar. O tio, que é seu parente mais próximo, deseja que ele permaneça ali. Mas a falecida avó da esposa intervém e o ajuda a voltar, indicando um atalho até a aldeia dos vivos. Guardemos, por enquanto, estas imagens e passemos ao relato de outro sonho, narrado por Pinheiro Maxakali:

Agora vou contar sobre quando dormi pesado e sonhei. Eu estava doente, dormi e sonhei. Sonhei e falei com minha esposa Marli: “Nós vamos para outra aldeia para ver o movimento lá.”. Arrumamos nossas coisas e fomos. Mas a gente foi por dentro da mata, morro acima. Seguimos mata adentro até que a gente saiu no topo do morro e a mata estava toda queimada. A terra estava muito escorregadia. Chovia. A gente foi descendo devagar, escorregando, um segurando o outro. Se a gente escorregasse ia cair lá embaixo do morro e se quebrar todo. A gente foi descendo devagarzinho, tinha muito buraco. Por fim, chegamos na terra plana. Nós seguimos e dobramos num caminho onde vimos uma casa feita de palha. Quando entramos na casa, encontramos minha mãe, que ainda é viva. Ela perguntou: “Meu filho, vocês comeram em algum lugar?”. Eu respondi: “Mãe, não tinha nenhum lugar para a gente comer não!”. Lá fora estava o velho Otávio varrendo o pátio. Ele veio, entrou e falou: “Vocês vieram?”. Eu disse: “Sim, a gente veio meu pai!”. “Comam banana madura”, ele disse, “vocês não comeram ainda”. Tinha muita banana pendurada na casa. Ele pegou e deixou em cima do jirau e falou: “Come! Pode comer! Eu vou ali limpar o pátio da kuxex (casa dos cantos)”. E aí eu comi. Comi as bananas e fui atrás dele. Mas eu não conhecia os tihik (parentes). Eu via, mas não sabia o nome deles. Eu fui e meu pai falou: “Limpa aqui o pátio, vamos fincar o mĩmãnãm (mastro) aqui. Hoje o yãmĩy vai cantar até amanhecer”. Limpei o pátio e queimei a sujeira. Ele tinha roça perto da casa, com muita mandioca e fiz o pátio perto da roça. Mandioca, bananeira, pé de mamão... Aí queimei a sujeira e descansei dentro da kuxex. Tinha muito tihik dentro da kuxex. Mais tarde, vieram os espíritos-jabuti assobiando. Eles chegaram, eu vi, e aí acordei. Não terminou o sonho. Acordei, mas não estava bem, estava doente. Não vi o movimento que teve por lá, eu já tinha acordado. Eu não melhorei rápido não, eu fui conversando com os meus parentes e os pajés daqui da aldeia e fiz ritual, fiz reza junto com os yãmĩy, mas não fiquei bem mesmo assim e fiz de novo uma outra reza com yãmĩy, mais forte do que a outra. Aqueles espíritos listrados (tatakox) vieram para me olhar tirando coisa ruim e agora melhorei. Mas vou fazer de novo ritual para yãmĩy durante o dia. (Pinheiro Maxakali, abril de 2016)

Mais uma vez, o sonho inicia com um deslocamento, uma viagem por caminhos que conduzem até a aldeia dos mortos. Embora muito frequentemente os Tikmũ’ũn apontem estas aldeias no céu, nos relatos dos sonhos é muito comum que elas estejam separadas das aldeias dos vivos apenas por montanhas ou trilhas na mata, mais do que situadas em algum patamar superior do cosmos. A palavra hãmnõy, “terra outra”, utilizada para fazer referência a estes lugares também pode ser empregada em relação a alguma outra aldeia onde vivem os Tikmũ’ũn ou ainda às cidades onde vivem os brancos. Mais uma vez, a figura dos obstáculos no caminho até a aldeia dos mortos aparece neste sonho de Pinheiro. Novamente, os caminhos que conduzem às aldeias dos mortos parecem feitos para impedir, ou pelo menos dificultar o acesso dos vivos. Contudo, apesar dos empecilhos, ele e a esposa alcançam a terra firme e seguem até avistarem a casa onde encontram sua mãe e o seu pai, já falecido. Aqui também se repete a sugestão de uma intensa vida ritual no mundo dos mortos, por meio dos preparativos para a realização de uma festa no pátio. À diferença do sonho de Isael, porém, Pinheiro acaba aceitando as ofertas de comida do pai. As consequências se fazem notar logo ao despertar: ele, que já estava adoentado, acorda pior depois do sonho e precisa realizar vários rituais até se recuperar. Mas vejamos agora como estes temas se atualizam neste outro sonho, narrado por Voninho Maxakali:

Eu sonhei. Fui até a outra terra, lá em cima. Havia muitos Tikmũ’ũn, mas não eram Tikmũ’ũn. Eu tentava encostar neles, mas não conseguia tocar. Mas eles ficavam assim, de pé. “Eu vim num lugar muito errado”, pensei. Segui o meu caminho e fui embora. Daí eu fui e vi muitos porcos no caminho, mas eles falavam como gente. Porcos, cavalos, bois... Aí eu me perguntei: “Por que que esses porcos e cavalos estão falando como gente?”. Então um porco me chamou: “Vem cá!” e o cavalo falou “Vem cá” e o boi “Vem cá”. Eu fiquei com medo e me perguntava “Como assim o porco tá falando, e o cavalo e o boi também?”. Pensei que eram os bois que têm por aqui, mas não eram daqui, são de uma terra outra. Eu fiquei com muito medo e corri e estava querendo pular e cair do outro lado, mas aí eu estava deitado quase caindo da cama. Eu pulei, caí da cama e o pessoal riu de mim. Acordei e falei “Por que vocês não me acordaram?”. Eu acordei, entrei no meu corpo e levantei. Acabou. (Voninho Maxakali, agosto de 2018)

O sonho de Voninho é bastante curioso, pois, ao contrário dos demais, aqui ele não se depara com uma aldeia propriamente tikmũ’ũn. Ou melhor, era, mas não era! Aparentemente, ele vê corpos humanos, mas não consegue tocá-los, pois são como espectros. Tudo se passa como se ele oscilasse, no sonho, entre uma perspectiva e outra, num verdadeiro curto-circuito entre os pontos de vista dos vivos e dos mortos, de modo que vê animais, mas animais que falam como gente. Toda esta cena evoca um ponto crucial em jogo nestas “viagens da alma”: aquilo o que, em sonho, se vê como gente, na verdade são espíritos ou bichos. Mas “a verdade”, aqui, não é uma verdade última das coisas e sim um certo ponto de vista que está sempre inscrito num corpo e que corresponde, por sua vez, a um certo mundo.

O que acontece é que, ao dissociar-se provisoriamente do corpo, o koxuk torna-se imediatamente suscetível a assumir outros corpos, outras perspectivas, e, portanto, torna-se capaz de experimentar outras verdades, a “verdade dos outros” (Maniglier, 2009MANIGLIER, Patrice. 2009. The other’s truth: logic of comparative knowledge. Departmental Seminar of the Department of Philosophy of the University of Essex. Manuscrito inédito.). A experiência onírica é, desse modo, um potente veículo de comunicação entre mundos ou entre perspectivas que, de resto, devem se manter distintas na experiência da vigília. Como observou Tânia Stolze Lima, a partir dos Yudjá:

O sonho é o plano privilegiado da comunicação entre os humanos propriamente ditos e as mais diferentes espécies animais (...). Aí, o animal não apenas se toma por, mas, sob certas condições, se transforma em humano para alguém; é identificado como pessoa por outra pessoa, e os dois travam (ou não) uma aliança mais ou menos durável (...). (Lima, 1996LIMA, Tânia Stolze. 1996. O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi. Mana - Estudos de Antropologia Social , vol. 2, n. 2: 21-47. DOI 10.1590/S0104-93131996000200002
https://doi.org/10.1590/S0104-9313199600...
: 28)

E é justamente por permitir esta comutação de perspectivas e essa comunicação, ainda que provisória, entre diferentes espécies, que o sonho está associado por toda a Amazônia ao xamanismo. Afinal, xamã é precisamente esta capacidade ou qualidade que alguém possui de assumir outros pontos de vista, de transitar entre mundos distintos, de falar com e como os outros (bichos, plantas, minerais, espíritos...). Xamã é aquele que foi e voltou, que adoeceu, “quase morreu”, mas sobreviveu, adquirindo, deste modo, uma capacidade de controlar suas viagens cósmicas, evitando que sua alma se perca ou seja capturada com facilidade. O xamã é, portanto, aquele que morreu apenas o estritamente necessário para continuar morrendo, isto é, vivendo. Isso porque:

Vendo os seres não-humanos como estes se vêem (como humanos), os xamãs são capazes de assumir o papel de interlocutores ativos no diálogo transespecífico; sobretudo, eles são capazes de voltar para contar a história, algo que os leigos dificilmente podem fazer. O encontro ou o intercâmbio de perspectivas é um processo perigoso, e uma arte política - uma diplomacia. Se o ‘multiculturalismo’ ocidental é o relativismo como política pública, o perspectivismo xamânico ameríndio é o multinaturalismo como política cósmica” (Viveiros de Castro, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac & Naify.: 358).

Estou longe de sugerir que os relatos de sonho apresentados até aqui esgotem a experiência onírica tikmũ’ũn. As imagens acionadas por cada um deles, entretanto, possuem semelhanças notáveis, sobretudo no modo como encadeiam as ações do koxuk errante: os caminhos perigosos, o encontro com os parentes mortos, as ofertas de comida... Pelo que os relatos também dão a ver, os mortos vivem juntos, em aldeias muito semelhantes às que vivem os Tikmũ’ũn e, assim como eles, recebem na kuxex (casa dos cantos) os yãmĩyxop para cantar e dançar. E se eles vivem juntos, comem juntos, fazem festas juntos e até mesmo mantêm relações sexuais entre si, então é porque aparentemente o processo do parentesco não se rompe totalmente com a morte. Afinal, como é amplamente conhecido entre os povos indígenas sul-americanos (Gow, 1991GOW, Peter. 1991. Of mixed blood. Kinship and History in Peruvian Amazonia. Oxford, Clarendon Press.; Viveiros de Castro, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac & Naify.; Vilaça, 2000; Coelho de Sousa, 2001SOUSA, Marcela Coelho de. 2001. Nós, os vivos: “construção da pessoa” e “construção do parentesco” entre alguns grupos jê. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 16, n. 46: 69-96. DOI 10.1590/S0102-69092001000200004.
https://doi.org/10.1590/S0102-6909200100...
), o parentesco é menos um dado biológico e mais uma construção corporal. Parente, em suma, é quem vive, come, canta, dança e casa junto. Como resumiu Aparecida Vilaça:

essa consubstancialidade produzida pelas relações físicas e pela comensalidade (...) é tão efetiva quanto aquela dada pelo nascimento, de modo que aqueles que vivem juntos, comem juntos ou partilham a mesma dieta alimentar vão se tornando consubstanciais, especialmente se passarem a se casar entre si. (Vilaça, 2000: 60).

Podemos, então, compreender todo o perigo envolvido no convite dos mortos para que o koxuk do parente vivo compartilhe, com eles, de suas comidas e rituais. Ao aceitar um tal convite, aceita-se, justamente, engajar-se com os mortos numa perigosa relação de consubstancialidade. Aceita-se, em suma, tornar-se um deles! Assim, o koxuk que, durante o sonho, come com os mortos, acabará tentado a viver de vez entre eles. Durante algum tempo, é possível que ele fique meio lá, meio cá. É isso, precisamente, o que a noção de “doença” implica: um processo de transição, uma metamorfose indesejada, um devir-morto e/ou animal. Neste período, os vivos tentarão de todas as formas recuperar o koxuk do doente. Nas noites de cantoria promovidas pelos pajés ao redor do seu leito, insistirão para que os parentes mortos o deixassem em paz. Em alguns casos, porém, o koxuk já poderá ter se “acostumado” ao novo convívio e decidir por não mais voltar. Ou então, terá se dado conta da decisão tarde demais. Uma vez morto, só lhe restará seduzir os parentes vivos e atrair o koxuk deles para junto dos seus. A relação (ou oposição) entre vivos e mortos exprime, portanto, uma tensão constante. Tudo se passa como se ambos vivessem em guerra mesmo, pois como já notaram Helène Clastres (1968CLASTRES, Helène. 1968. “Rites funéraires Guayaki”. Jounal de la Societé des Americanistes, LVII: 63-72. DOI 10.3406/jsa.1968.2035
https://doi.org/10.3406/jsa.1968.2035...
) e Manuela Carneiro da Cunha (1978CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 1978. Os mortos e os Outros. São Paulo, Hucitec.), a ruptura entre o estatuto ontológico dos vivos e dos mortos é tal nas sociedades ameríndias que estes últimos adquirem quase imediatamente após a morte o estatuto de “inimigos” ou “afins”: “A morte interrompe de tal forma as trocas que o grupo não pode senão compreender sob a forma da mais radical hostilidade aquele que assim lhe escapa.” (Clastres, 1968CLASTRES, Helène. 1968. “Rites funéraires Guayaki”. Jounal de la Societé des Americanistes, LVII: 63-72. DOI 10.3406/jsa.1968.2035
https://doi.org/10.3406/jsa.1968.2035...
: 143). Em outras palavras, “os mortos são Outros” (Carneiro da Cunha, 1978CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 1978. Os mortos e os Outros. São Paulo, Hucitec.: 142).

NUMA TERRA ESTRANHA

Mas os caminhos dos sonhos mencionados acima evocam igualmente outros caminhos percorridos por personagens muito antigos. Contam os Tikmũ’ũn que, antigamente, um homem saiu para o mato para fazer armadilha e, no caminho, encontrou uma larva de taquara (kutekut) que guardou para mastigar e “tirar cantos” (kutex xut) como era costume fazer. Porém, ao mastigá-la, o homem também engoliu um pedaço da cabeça da larva e começou a passar mal e a desmaiar:

O homem, que estava deitado, se virou de barriga pra baixo e agitava os braços e cabeça, como larva, até que o seu queixo ficou ferido. Ele estava deitado, mas seu koxuk saiu de verdade e partiu. Entrou na taquara e foi andando e furando os seus nós. Foi furando que chegou na casa dos seus cunhados urubus-reis. Tinham muitos deles! Ficou lá entre eles conversando e comendo, quando uma mosca chegou e sentou no nariz de cada um. “Olhem a fumaça!”, eles falaram. Uma coluna de fumaça subia direto em direção ao céu. Havia uma fileira de penas assim perto deles. “Vamos, cunhadinho, vamos pro banquete!”, um deles chamou. “Vamos!”, ele respondeu. Os cunhados pegaram as penas e colocaram nele. “Tente voar!”, chamou o cunhado e ele voou. “Muito bem!”, falou, “agora você pode comer primeiro”. Eles pousaram ao redor da anta e comeram até ficarem cheios e voltaram pro alto da árvore. “Fica aqui vigiando pra nenhum parente seu vir e nos matar. Se alguém vier, você fala assim pou!”, pediu o cunhado. Ele pousou. Eles comeram da comida grande, os urubus-reis. Os parentes do ancestral então viram e falaram: “eu vou lá matar urubu-rei pra fazer flecha com as penas deles”. Eles foram e tinha um urubu sentado no galho e, quando os homens se aproximaram, ele gritou pou! Os urubus-reis voaram todos e aquele que avisou foi o primeiro a chegar lá em cima. Eles estavam todos voando, no alto, girando até chegarem de novo em suas casas. Cada um levou um pedaço de anta: um levou a pata, outro a coxa, outro a costela, outro a cabeça... Eles olharam e viram que ele não tinha trazido nada. Ele ficou com os cunhados mais um tempo, mas ficou triste, com saudades da sua esposa e dos seus filhos. O seu cunhado, que o conhecia muito bem, perguntou: “cunhadinho, o que você tem que não quer comer e conversar?”. “Estou com saudades dos meus filhos e da mãe deles”, ele falou. “Você passa por aqui que é mais rápido”, indicou o urubu-rei “por aqui é muito longe até você chegar”. Ele então voltou. Os pajés rezavam para ele, ao redor do seu corpo. Ele chegou no meio do caminho, e seguiu na trilha que já conhecia. Ele veio, entrou no seu corpo, levantou e fez: baaaaa. (Mamed Maxakali, agosto de 2016)

Não é necessário muito esforço para perceber que o sonho narrado por Isael é qualquer coisa como uma “transformação estrutural” desta história. A ingestão da larva de morotó provocou aqui o que o sonho provocara lá: a dissociação temporária entre o corpo e o koxuk, condição necessária para o seu deslocamento. Ao chegar do outro lado, o koxuk encontra seus cunhados urubus-rei, num caso, e os seus parentes mortos, no outro. Em ambos, são recebidos com convites para comer (a carne podre da anta, no mito, e o peixe assado com mandioca, no sonho). Porém, ao contrário de Isael, o antigo mõnayxop aceita o convite, à princípio, e começa a se transformar em urubu-rei: ganha penas, aprende a voar e come com (e como) eles. Nos dois casos, porém, a lembrança dos parentes que deixaram para trás e as saudades que sentem despertam a tristeza e o desejo de voltar. As recomendações que recebem são surpreendentemente idênticas: há um caminho mais próximo, um atalho para retornar. De volta ao corpo, de volta aos parentes, eles retornam à própria vida.

Os caminhos perigosos descritos nos sonhos de Isael, Pinheiro e Voninho também remetem à história de uma antiga mulher, Mãtãnãg, que, inconformada com a morte do marido, decide seguir o seu duplo (koxuk) até as terras outras onde vivem os mortos. Como não podia vê-lo, ela espalha cinzas pelo chão e segue os rastros do marido. Ao longo do caminho, os rastros vão se transformando: inicialmente pegadas de rato se transformam em patas de gato do mato, que se transformam em rastros de raposa até que, finalmente, se transformam nos pés de um homem adulto. Quando o marido percebe que a esposa o acompanha, ele aparece e diz para ela voltar, mas ela insiste em acompanhá-lo pelos caminhos cheios de perigos:

Havia um rio, e tinha um pauzinho para atravessar. O marido tinha só espírito, mas ela tinha corpo. Aí ele virou passarinho, saracura, pisou em cima daquele pau e atravessou. Ela cortou mais madeira, calçou o fundo do rio e também atravessou. Chegou lá do outro lado e tinha xupxak, mamão. Muito mamão. Caía tudo em cima dela. Aí ela falou: “o que é isso?” Cortou a árvore e passou. Mais adiante, muitos morcegos queriam mordê-la, mas ela os espantou. Lá na frente tinha uma fogueira. A fogueira começou a pipocar nela, se lançar contra ela, e ela ficava nervosa com tudo. Quis apagar a fogueira, mas o marido ensinou-lhe que não a apagasse, pois os yãmĩyxop usavam este fogo. Passou. Aí chegou perto de uma aldeia bonita, havia pau de religião, mĩmãnãm. A aldeia pertencia àqueles povos que já morreram... Quando atravessou o rio, já estava em outro lugar... aonde o pessoal vai quando morre. (Tugny et al., 2009TUGNY, Rosângela de; MAXAKALI, Toninho; MAXAKALI, Manuel Damásio; MAXAKALI, Zé Antoninho; MAXAKALI, Marquinhos; MAXAKALI, Rafael; MAXAKALI, Zelito; MAXAKALI, Gilberto. 2009. Mõgmõka yõg kutex / Cantos do gavião-espírito. Rio de Janeiro, Azougue.: 420).”

Os perigos atravessados por Mãtãnãg são, com efeito, muito semelhantes àqueles que Isael e Pinheiro descreveram em seus sonhos nos caminhos de ida ou de volta das aldeias dos mortos. Se estas terras não são, portanto, inatingíveis, os caminhos que levam até elas são cheios de ameaças, como verdadeiras armadilhas. Note-se também que o koxuk dos mortos possui uma admirável capacidade de metamorfose.

Rato, gato do mato, raposa, saracura são apenas algumas das transformações do koxuk do marido morto ao longo do caminho. Mas não menos curioso é o desfecho da história: ao chegar de “corpo e alma” na aldeia dos mortos, Mãtãnãg é instruída pelo marido sobre como se comportar para que eles não a matassem: “Chega lá e senta. Vai vir muita coisa: leão, gato, ĩnmõxa, onça... Você fica quietinha para eles não descobrirem que você veio viva.” (Tugny et al, 2009TUGNY, Rosângela de; MAXAKALI, Toninho; MAXAKALI, Manuel Damásio; MAXAKALI, Zé Antoninho; MAXAKALI, Marquinhos; MAXAKALI, Rafael; MAXAKALI, Zelito; MAXAKALI, Gilberto. 2009. Mõgmõka yõg kutex / Cantos do gavião-espírito. Rio de Janeiro, Azougue.: 420). A aldeia dos mortos, do ponto de vista de uma pessoa viva, é habitada por bichos! Não é muito diferente na história narrada por Mamed, afinal, onde os cunhados mortos são grandes aves celestes, os urubus-reis, ou do sonho de Voninho, no qual ele vê bichos falando como gente. Ao que tudo indica, portanto, os mortos são bichos (xokxop). Ou, como afirmam os Tikmũ’ũn: “viram bichos”, yãy hã xokxop. A própria palavra que traduzimos como “bichos”, xokxop, carrega a raiz xok, “morrer”, seguida do coletivizador xop.

Tal associação entre mortos e bichos é, como se sabe, extremamente difundida na Amazônia e está intimamente associada à teoria do “perspectivismo ameríndio”, tal como formulada por Tânia Stolze Lima (1996LIMA, Tânia Stolze. 1996. O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi. Mana - Estudos de Antropologia Social , vol. 2, n. 2: 21-47. DOI 10.1590/S0104-93131996000200002
https://doi.org/10.1590/S0104-9313199600...
) e Viveiros de Castro (1996, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac & Naify.). Isto porque, se os humanos mortos se transformam em animais é porque os animais são, também eles, potencialmente humanos. Nas palavras de Viveiros de Castro (2006VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2006. “A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos”. Cadernos de Campo, n. 14/15: 319-338. DOI 10.11606/ issn.2316-9133.v15i14-15p319-338
https://doi.org/10.11606/ issn.2316-9133...
):

(...) ambos são humanos passados, e, portanto, ambos são imagens atuais de humanos. Não é de surpreender assim que, enquanto imagens definidas por sua disjunção relativamente a um corpo humano, os mortos sejam atraídos pelos corpos animais; é por isso que morrer é transformar-se em animal, como acontece tão frequentemente na Amazônia. Com efeito, se as almas dos animais são concebidas como tendo uma forma corporal humana, é bastante lógico que as almas dos humanos sejam concebidas como tendo um corpo animal póstumo, ou como entrando em um corpo animal, de modo a poder ser eventualmente morta e comida pelos viventes. (Viveiros de Castro, 2006VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2006. “A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos”. Cadernos de Campo, n. 14/15: 319-338. DOI 10.11606/ issn.2316-9133.v15i14-15p319-338
https://doi.org/10.11606/ issn.2316-9133...
)

Como as histórias do homem que comeu kutekut e de Mãtãnãg também evidenciam, os animais veem a si mesmos como humanos e aos viventes como presas (caso de Mãtãgnãg) ou predadores (os urubus que fogem do ataque dos seus inimigos caçadores),num esquema tipicamente perspectivista.A oposição entre vivos e mortos engloba, desse modo, aquela entre humanos e animais. Comentávamos acima que a relação entre vivos e mortos é marcada por uma tensão propriamente guerreira: os mortos tentam constantemente capturar os seus parentes vivos. Pois, a situação inversa e simétrica a essa é justamente aquela experimentada na caça. É na caça que os vivos atualizam e devolvem, por assim dizer, a perseguição que sofrem por parte dos mortos-animais. É neste sentido, igualmente, que a caça, nestes mundos, pode ser compreendida como um modo ou uma continuação da guerra.

Uirá Garcia (2012GARCIA, Uirá. 2012. O funeral do caçador: caça e perigo na Amazônia. Anuário Antropológico, vol. 37, n. 2: 33-55. DOI 10.4000/aa.127
https://doi.org/10.4000/aa.127...
) desenvolveu o tema de maneira particularmente exemplar a partir dos Awá-Guajá, com quem conviveu. A caça, entre eles, é uma atividade perigosa sobretudo porque pode suscitar a vingança das presas. Como Uirahó, seu interlocutor, lhe explicou: “Quando vamos matar os guaribas, eles ficam muito aflitos, pois pensam que nós somos ‘madeireiros’ (ou inimigos). Após comermos sua carne, um deles vem durante a noite enquanto estou dormindo, e me diz: você me matou, né, seu madeireiro? Agora vou jogar minha raiva (ha’aera) em você.” (Garcia, 2012GARCIA, Uirá. 2012. O funeral do caçador: caça e perigo na Amazônia. Anuário Antropológico, vol. 37, n. 2: 33-55. DOI 10.4000/aa.127
https://doi.org/10.4000/aa.127...
: 38). Ao lançarem sua raiva contra os caçadores, estes podem adoecer ou amargar uma onda de azar em suas próximas caçadas, a conhecida “panema” (panemuhum, na língua awá). O caçador poderá mesmo morrer em decorrência deste ataque, o que será celebrado pelos animais como uma verdadeira vitória contra o inimigo. Tânia Stolze Lima descreve algo parecido entre os Yudjá: “Se o caçador emite um grito, sua alma pode ir viver com os porcos. O mesmo destino pode ter aquele que se atemorizar diante dos porcos medonhos: assustada, sua alma foge e é capturada pelos porcos.” (Lima, 1996LIMA, Tânia Stolze. 1996. O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi. Mana - Estudos de Antropologia Social , vol. 2, n. 2: 21-47. DOI 10.1590/S0104-93131996000200002
https://doi.org/10.1590/S0104-9313199600...
: 22).

Como se vê, não estamos assim tão distantes do que as experiências oníricas costumam envolver entre os Tikmũ’ũn. É verdade que, em sonho, os mortos não se apresentam aos vivos sob a forma animal. Entretanto, o que os vivos veem, durante a vigília, enquanto “animais” pode muito bem se tratar de gente morta. Como uma mulher Wapixana explicou à antropóloga Nadia Farage: “sonhando, vemos gente, mas é bicho”. Ou ainda, como afirma Aristóteles Barcelos Neto (2008) a partir dos Wauja: “(...) na condição de cativo/sonhador, o doente vê os seres que os raptaram como “gente” (iyau), ou seja, despidos das “roupas” animais ou monstruosas que normalmente os ocultam.” (Barcelos Neto, 2008: 105). Impossível, pois, diante deste evidente trânsito entre as posições de “morto” e “animal” não retornar àquela frase a princípio tão enigmática: “Vai, meu sonho, vira bicho! Vai e cai na armadilha!”. A partir do aspecto perigoso, ardiloso e potencialmente fatal que ronda a experiência onírica tikmũ’ũn, sou mesmo levado a imaginar que os sonhos sejam qualquer coisa como armadilhas dos mortos (dos bichos!) para os vivos. Saudosos dos seus parentes, estes se aproximam justamente para atrair-seduzir, através do caminho aberto pelos sonhos, o koxuk dos viventes para junto de si. Oferecem-lhes comida como quem oferece uma “isca”. O recado da pessoa que desperta de um “sonho ruim” como esses parece, assim, muito claro. Como que para afirmar sua perspectiva humana e numa espécie de contra-armadilha, os vivos parecem dizer aos mortos: “Vai, vira bicho, e caia você na minha armadilha!”.

OS BRANCOS E OS OUTROS

Comecei este artigo sublinhando a onipresença do tema da “viagem da alma” associado à experiência onírica entre povos indígenas os mais diversos. Para concluir, portanto, retomo a questão (ou melhor, a inversão) que sugeria na introdução deste texto: se os sonhos são algo como uma “viagem da alma”, em que as viagens “de corpo e alma”, isto é, os deslocamentos mais variados nos quais se engajam os Tikmũ’ũn - entre uma aldeia e outra, entre as aldeias e as cidades, entre estas terras e as terras dos mortos, por exemplo - se parecem com os “sonhos”? Recapitulemos a cena que eu descrevia acima, da viagem que realizei com dois amigos às terras do Pradinho e seus desdobramentos. Desde a chegada à aldeia daqueles seus “parentes distantes” (xape hãmtox hã), os dois jovens pajés não escondiam o seu incômodo. Com o passar dos dias e das noites, a lembrança e as saudades dos seus “parentes verdadeiros” (xape xe’e) tornavam-se mesmo insuportáveis. Não tardou até que a vontade de voltar prevalecesse.

Quando estão prestes a viajar longas distâncias, os Tikmũ’ũn recomendam chamar o seu koxuk para que este não fique para trás: mã koxuk, ug mõg!, “venha, koxuk, estou indo!”. As viagens e o consequente distanciamento dos parentes, sejam no sonho ou na vigília, colocam igualmente em risco a conexão vital entre o corpo-carne (ũyĩn) e o koxuk. Nestas condições, as pessoas tornam-se especialmente suscetíveis: longe de suas aldeias, a atividade onírica tende a se intensificar. A tristeza e as saudades que os invadem contribuem para agravar essa condição. Isso porque, tanto quanto o sono ou os deslocamentos, estes afetos são potencialmente disruptivos. Alguém que está triste ou “pensando” (hãm pe ã pa xex) está longe, como costumamos dizer. “Você está pensando? Está com saudades?”, meus amigos perguntavam sempre que me flagravam em algum momento de distração. Como no sonho de Isael ou nas histórias de Mãtãnãg e do antigo que viajou até o céu, o mesmo sentimento de saudade-tristeza (xup yãĩy) que pode atrair a pessoa até o mundo dos mortos pode, igualmente, conduzi-las de volta ao convívio dos vivos. A este respeito, a antropóloga Marina Guimarães Vieira (2009VIEIRA, Marina Guimarães. 2009. Virando inmõxa: uma análise integrada da cosmologia e do parentesco maxakali a partir dos processos de transformação corporal. Amazônica - Revista de Antropologia, vol. 2, n. 1: 308-329. DOI 10.18542/amazonica.v1i2.300.
https://doi.org/10.18542/amazonica.v1i2....
) relata um episódio bastante curioso. Quando certa vez ela convidou sua anfitriã Daldina Maxakali para passar alguns dias com ela na cidade, ela registrou a seguinte situação:

(…) os parentes de Daldina ficaram preocupados com o fato de ela viajar sozinha comigo, quando a levei para conhecer meus parentes em Belo Horizonte e minha casa no Rio de Janeiro. Queriam que ela levasse um de seus netos, mas eu disse que só poderia pagar a passagem para uma pessoa. Daldina não queria demonstrar receio, então dizia que a criança sentiria muita saudade dela. Da mesma forma, quando quis voltar para casa, Daldina não quis me desagradar e disse: “eu já estou acostumando aqui, eu não estou com saudade, minha mãe é que está com saudade de mim”. Assim como a saudade de um parente morto, também a saudade de um parente que se encontra distante pode atrair uma pessoa. Foi a saudade da mãe de Daldina que a atraiu de volta para casa. (Vieira, 2009VIEIRA, Marina Guimarães. 2009. Virando inmõxa: uma análise integrada da cosmologia e do parentesco maxakali a partir dos processos de transformação corporal. Amazônica - Revista de Antropologia, vol. 2, n. 1: 308-329. DOI 10.18542/amazonica.v1i2.300.
https://doi.org/10.18542/amazonica.v1i2....
: 320)

Não sabemos se a experiência de Daldina na cidade foi igualmente acompanhada por uma intensificação de sua atividade onírica. A sua preocupação com os parentes na aldeia, entretanto, deixa claro que, se ela já estava “se acostumando”, como disse, quem ficou para trás, não. De todo modo, o que me chama atenção no episódio é a semelhança que ele reforça entre o relato de uma viagem ao Rio, de uma visita a outra aldeia ou de um percurso até as aldeias dos mortos. O que tal semelhança sugere, a meu ver, é que “sonhar” e “viajar” sejam experiências análogas entre os Tikmũ’ũn, assim como são análogos os perigos envolvidos. O risco de sonhar e “acostumar-se” de vez com a vida dos mortos não parece menor do que o risco de viajar até uma grande cidade e “acostumar-se”, igualmente, com o modo de vida dos brancos. Num caso, arrisca-se “virar morto” - ou, como vimos, “bicho”. No outro, arrisca-se “virar branco” (Kelly, 2005KELLY, Jose Antonio. 2005. Notas para uma teoria do virar branco. Mana - Estudos de Antropologia Social, v. 11, n.1: 201-234. DOI 10.1590/S0104-93132005000100007
https://doi.org/10.1590/S0104-9313200500...
). Entre os dois extremos, o risco de uma viagem aos parentes distantes é aquele de acabar ficando por lá, distanciando-se dos “parentes verdadeiros”, próximos a quem é sempre preferível viver ou casar. Mas fiquemos com os extremos.

Enquanto realizava seu trabalho de campo entre os Piro, na Amazônia peruana, Peter Gow ouviu a história de “um homem que viajou para dentro da terra”. Na história, um homem cansado de viver entre os seus decide partir para a floresta até que encontra um buraco de onde saíam os porcos do mato. O homem entra no buraco e vai parar “do outro lado”, onde quase é morto num ataque dos porcos. Mas a dona dos porcos lhe devolve a vida e pergunta se ele gostaria de viver por lá, ao que ele diz sim. Ela então veste o homem com couro e pêlos típicos dos habitantes daquele mundo. Após um tempo, porém, o homem sente saudades dos seus parentes “do lado de lá” e pede para voltar e chamá-los para junto de si. No retorno, porém, ele já não reconhece aquele mundo como antes. Tudo é vermelho e por pouco ele não encontra o caminho da antiga casa. Chegando lá, tampouco sua esposa o aceita e apenas um dos seus filhos decide acompanhá-lo. Ao voltar ao mundo subterrâneo, o homem se casa novamente “com uma pequena porca do mato, talvez” - especula o narrador - e, quando é a vez do filho sentir saudades e querer voltar já é tarde demais: o buraco havia se fechado (Gow, 2001GOW, Peter. 2001. An amazonian myth and its history. Oxford, Oxford University Press.). Analisando este mito e o seu contexto, o antropólogo observa que, em muitos aspectos, a história daquele homem confundia-se com a sua: um escocês que decide abandonar seus parentes para viver entre os Piro do outro lado do Atlântico. Porém, como o etnólogo demonstra, o mito dizia também sobre como os Piro concebem a própria ideia de morte, as relações entre “vivos” e “mortos” e os modos particulares de relação com a alteridade e, em especial, com os gringos na história da região. Como concluía Artemio Gordón, seu cumpadre, pouco depois de contar a história ao antropólogo: “Eu jamais poderia ir viver longe daqui. Seria como a morte. O que é a morte senão que você nunca mais volta a ver os seus parentes, o seu pai e a sua mãe?” (Gow, 2001GOW, Peter. 2001. An amazonian myth and its history. Oxford, Oxford University Press.: 44, tradução minha).

Se levarmos a sério a afirmação de Artemio ou aquilo o que os relatos de sonhos e viagens parecem afirmar, a morte não é (ou, pelo menos, não apenas) uma questão de “vida ou morte”, mas um problema de gradiente de transformação ou de ponto de vista. Se, como definiu Tânia Stolze Lima, “o ponto de vista implica uma certa concepção, segundo a qual só existe mundo para alguém” (Lima, 1996LIMA, Tânia Stolze. 1996. O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi. Mana - Estudos de Antropologia Social , vol. 2, n. 2: 21-47. DOI 10.1590/S0104-93131996000200002
https://doi.org/10.1590/S0104-9313199600...
: 31), então talvez não seja exagerado afirmar que, nestes mundos, também só exista morte para alguém; para os vivos, notadamente. Pois, como escreveu o poeta Carlos Drummond de Andrade: “a morte não existe para os mortos”. A consequência disso é que estar vivo (e não morto) parece muito mais uma questão de com quem e como quem alguém decide viver ou se aparentar - nos sentidos tanto de “parecer-se com” quanto de “tornar-se parente de”. Afinal, como tão bem notou Marcela Coelho de Sousa: “Estar vivo (e não morto), ter um corpo humano (e não de onça, anta, veado), e ser aparentado - relacionado de uma maneira determinada - a outros humanos são três coisas equivalentes.” (Coelho de Sousa, 2001SOUSA, Marcela Coelho de. 2001. Nós, os vivos: “construção da pessoa” e “construção do parentesco” entre alguns grupos jê. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 16, n. 46: 69-96. DOI 10.1590/S0102-69092001000200004.
https://doi.org/10.1590/S0102-6909200100...
: 89). Disso decorre que o inverso deve também ser verdadeiro, isto é, “mortos”, “bichos” e “não-parentes” devem também ser coisas mais ou menos equivalentes.

Com efeito, nos regimes “dinâmicos e concêntricos” (Viveiros de Castro, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac & Naify.: 136) que caracterizam os sistemas de parentesco amazônicos, a posição de “não-parente” ou “inimigo” é hoje muito frequentemente englobada por essa gente que boa parte dos indígenas chamam de “brancos” em português. Os brancos costumam ser mesmo a antítese do parentesco para muitos destes povos, especialmente aqueles, como os Tikmũ’ũn, que reprovam veementemente o casamento com esse tipo de gente. E porque ocupam uma posição extrema (quando não externa) aos coeficientes que distinguem os que são “mais” ou “menos” parentes, os brancos tendem justamente a ser aproximados de criaturas como os mortos e os bichos. Isso talvez ajude a entender porque, em muitos sonhos ameríndios - estes momentos em que as fronteiras entre humanos e outros-que-humanos se borram, as perspectivas se cruzam e as alteridades se comunicam - as almas errantes se deparam com tanta frequência com paisagens em quase tudo semelhantes às grandes cidades onde vivem os brancos. Pedro Pitarch (2012PITARCH, Pedro. 2012. “La ciudad de los espíritus europeos. Notas sobre la modernidad de los mundos virtuales indígenas”. In: PITARCH, Pedro & OROBITG, Gemma (orgs.) Modernidades Indígenas. Madrid/Frankfurt. Iberoamericana Vertvuert, pp. 61-88.) reuniu alguns exemplos fascinantes desta “modernidade dos mundos virtuais indígenas” em algumas etnografias mesoamericanas:

Os nahuas de Tlacotepec de Díaz descrevem o interior de algumas colinas como cidades, e os mortos nelas se comunicam por telefone celular (Romero 2006: 75). Os espíritos da água e das nascentes -os ahuaques- da Sierra de Texcoco habitam um universo aquático com vilas e cidades, casas e automóveis, torres elétricas e dinheiro (Lorente 2010: 47). Os nahuas de Santa María Tepetzintla imaginam os espíritos da serra vivendo em mansões que descrevem exatamente iguais às das novelas mexicanas: os mesmos portões, a grande escada, o serviço doméstico de uniforme. (Pitarch, 2012PITARCH, Pedro. 2012. “La ciudad de los espíritus europeos. Notas sobre la modernidad de los mundos virtuales indígenas”. In: PITARCH, Pedro & OROBITG, Gemma (orgs.) Modernidades Indígenas. Madrid/Frankfurt. Iberoamericana Vertvuert, pp. 61-88.: 67-8; tradução minha).

Os Pumé, na Venezuela, também descrevem o mundo dos espíritos oté, que acessam por meio dos sonhos, das doenças, da alucinação ou das noites de cantos (Orobitg-Canal, 2002OROBITG, Gemma. 2002. “Soñar para vivir. Memoria, olvido y experiencia entre los Pumé (Venezuela)”. In: PIQUÉ, Raquel; VENTURA, Montserrat (orgs.) América Latina. Historia y Sociedad. Barcelona, Institut Català de Cooperació Iberoamericana, pp. 397-410.) em termos muitos semelhantes. Num depoimento ao documentário La Noche Pumé (1992), um deles relata o que viu durante a viagem do seu princípio vital pumethó: “Hay ciudades, casas grandes como donde viven los criollos, y muchos automóviles que aparecen solos. Se mueven sin conductor, funcionan muy bien. (…) Todo está lleno de grandes letreros luminosos. Esto es lo que vi con mi espíritu cuando cantaba.” (apudPitarch, 2012PITARCH, Pedro. 2012. “La ciudad de los espíritus europeos. Notas sobre la modernidad de los mundos virtuales indígenas”. In: PITARCH, Pedro & OROBITG, Gemma (orgs.) Modernidades Indígenas. Madrid/Frankfurt. Iberoamericana Vertvuert, pp. 61-88.: 76). Acompanhando alguns Hupdä, no Alto Rio Negro, em uma viagem à Serra Grande, um lugar sagrado para eles, o antropólogo Danilo Ramos (2018RAMOS, Danilo Paiva. 2018. A caminho da Cidade das Onças: diálogos sobre sonhos no percurso para a Serra GrandeMetrópole dos Hupd’äh. Revista de Antropologia. Vol. 61, n. 1: 329-359. DOI 10.11606/2179-0892.ra.2018.145528.
https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.20...
) também ouviu a seguinte descrição: “a Serra Grande é uma Cidade Grande, há muita gente, brancos, seus parentes, por lá”. (Ramos, 2018RAMOS, Danilo Paiva. 2018. A caminho da Cidade das Onças: diálogos sobre sonhos no percurso para a Serra GrandeMetrópole dos Hupd’äh. Revista de Antropologia. Vol. 61, n. 1: 329-359. DOI 10.11606/2179-0892.ra.2018.145528.
https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.20...
: 331).

E a recíproca parece ser verdadeira, pois não é raro que em suas viagens despertas, alguns indígenas comparem as cidades dos brancos, por sua vez, com as terras onde vivem os espíritos e os mortos. Eduardo Viveiros de Castro (com. pessoal) conta que, numa visita do chefe kisêdje Kuiusi ao Rio de Janeiro, ele e Anthony Seeger margeavam o Rio Maracanã, a caminho de uma partida de futebol no estádio homônimo. Ao ver as águas do rio, um verdadeiro esgoto à céu aberto, Kuiusi teria comentado: “Esse rio está cheio de cadáveres. Vocês vivem no meio de mortos”. Segundo Tânia Stolze Lima (com. pessoal), ao retornar ao Xingu, Kuyusi disse ainda ter vistos vários parentes mortos entre os torcedores no Maracanã. Outra anedota, narrada por Peter Gow, relembra a vez que um grupo Tukano viajou a Portugal. Na volta, disseram terem viajado à terra dos mortos: tudo era muito frio, escuro, cheio de gente pálida como cadáveres... Antes que o leitor recaia, contudo, na tentação de se perguntar se os indígenas “realmente” confundem os brancos e os mortos, saliento que o mais importante aqui é indagar-se o que uma tal aproximação sugere acerca do que seja “brancos” ou “mortos”. A conclusão, imagino, não será muito diferente daquela tantas vezes já apontada pela etnologia amazônica: brancos, mortos, bichos e espíritos são Outros. E como imagens prototípicas da alteridade, são inimigos.

Nas terras exíguas onde vivem confinados os Tikmũ’ũn atualmente não há mata e quase nenhum bicho, ainda que mesmo os mais novos dentre eles cultivem um conhecimento excepcional da vegetação e da fauna da Mata Atlântica que originalmente cobria o seu território. Apesar da imensa disposição que possuem para caçar e pescar, aquilo o que conseguem coletar ou capturar nos seu dia-a-dia não é nem de perto suficiente para o sustento das famílias e dos espíritos, duas tarefas vitais para eles. Sua sobrevivência, portanto, depende hoje dos diversos programas de assistência governamentais, como Bolsa Família, aposentadorias rurais, além das doações de alimentos e projetos diversos realizados pelos brancos em suas aldeias. Qual não foi, portanto, a minha surpresa, ao ouvir numa noite de cura em Aldeia Verde uma transformação daquela fórmula usual proferida por aqueles que despertam de um sonho ruim. Ao invés do habitual “meu sonho vira bicho e cai na armadilha”, eu ouvi: ũg yõnkup ãyuhuk pa kohĩy nãm pu xexta bax pat ne, xi ponoyet mĩy Tikmũ’ũn pu!, “Que o meu sonho entorpeça os brancos para que eles tragam cestas básicas e projetos para nós”. Como se vê, as armadilhas continuam em ação. Mudaram-se, entretanto, as presas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. 2015. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo, Companhia da Letras.
  • BASSO, Ellen B. 1992. “The implications of a progressive theory of dreaming”. In: TEDLOCK, Barbara (org.) Dreaming. Anthropological and Psychological Interpretations. Santa Fe, School of American Research Press, pp. 86-104.
  • CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 1978. Os mortos e os Outros. São Paulo, Hucitec.
  • CLASTRES, Helène. 1968. “Rites funéraires Guayaki”. Jounal de la Societé des Americanistes, LVII: 63-72. DOI 10.3406/jsa.1968.2035
    » https://doi.org/10.3406/jsa.1968.2035
  • DRUMMOND, Carlos. 2002. Poesia completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar.
  • FARAGE, Nádia. 1997. As flores da fala: práticas retóricas entre os Wapishana. São Paulo, Tese de doutorado, Universidade de São Paulo.
  • FREUD, Sigmund. 2006. A Interpretação dos Sonhos. Rio de Janeiro, Imago Editora.
  • GARCIA, Uirá. 2012. O funeral do caçador: caça e perigo na Amazônia. Anuário Antropológico, vol. 37, n. 2: 33-55. DOI 10.4000/aa.127
    » https://doi.org/10.4000/aa.127
  • GREGOR, Thomas. 1981. Far, Far Away My Shadow Wandered...The Dream Symbolism and Dream Theories of the Mehinaku Indians of Brazil. American Ethnologist, vol. 8, n.4: 709-720. DOI 10.1525/ae.1981.8.4.02a00030
    » https://doi.org/10.1525/ae.1981.8.4.02a00030
  • GOW, Peter. 1991. Of mixed blood. Kinship and History in Peruvian Amazonia. Oxford, Clarendon Press.
  • GOW, Peter. 2001. An amazonian myth and its history. Oxford, Oxford University Press.
  • KELLY, Jose Antonio. 2005. Notas para uma teoria do virar branco. Mana - Estudos de Antropologia Social, v. 11, n.1: 201-234. DOI 10.1590/S0104-93132005000100007
    » https://doi.org/10.1590/S0104-93132005000100007
  • LIMA, Tânia Stolze. 1996. O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi. Mana - Estudos de Antropologia Social , vol. 2, n. 2: 21-47. DOI 10.1590/S0104-93131996000200002
    » https://doi.org/10.1590/S0104-93131996000200002
  • LIMA, Tânia Stolze. 2005. O peixe olhou para mim: o povo yudjá e a perspectiva. São Paulo, Unesp.
  • LÉVI-STRAUSS, Claude. 1983. Le Regard Eloigné. Paris, Plon.
  • LÉVY-BRUHL, Lucien.1960. La Mentalité Primitif. Paris, Puf.
  • LINCOLN, Jackson. 1970. The Dream in Primitive Cultures. New York, London, Johnson Reprint Corporation.
  • MANIGLIER, Patrice. 2009. The other’s truth: logic of comparative knowledge. Departmental Seminar of the Department of Philosophy of the University of Essex. Manuscrito inédito.
  • OROBITG, Gemma. 2002. “Soñar para vivir. Memoria, olvido y experiencia entre los Pumé (Venezuela)”. In: PIQUÉ, Raquel; VENTURA, Montserrat (orgs.) América Latina. Historia y Sociedad. Barcelona, Institut Català de Cooperació Iberoamericana, pp. 397-410.
  • PALAZZOLO, Jacinto. 1973. Nas Selvas do Mucuri e do Rio Doce: como surgiu a cidade de Itambacuri, fundada por Serafim de Gorízia, missionário capuchinho. São Paulo, Companhia Editora Nacional.
  • PITARCH, Pedro. 2012. “La ciudad de los espíritus europeos. Notas sobre la modernidad de los mundos virtuales indígenas”. In: PITARCH, Pedro & OROBITG, Gemma (orgs.) Modernidades Indígenas. Madrid/Frankfurt. Iberoamericana Vertvuert, pp. 61-88.
  • RAMOS, Danilo Paiva. 2018. A caminho da Cidade das Onças: diálogos sobre sonhos no percurso para a Serra GrandeMetrópole dos Hupd’äh. Revista de Antropologia. Vol. 61, n. 1: 329-359. DOI 10.11606/2179-0892.ra.2018.145528.
    » https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2018.145528
  • SHIRATORI, Karen. 2013. O acontecimento onírico ameríndio: o tempo desarticulado e as veredas do possível. Rio de Janeiro, Dissertação de mestrado, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
  • SOUSA, Marcela Coelho de. 2001. Nós, os vivos: “construção da pessoa” e “construção do parentesco” entre alguns grupos jê. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 16, n. 46: 69-96. DOI 10.1590/S0102-69092001000200004.
    » https://doi.org/10.1590/S0102-69092001000200004
  • TUGNY, Rosângela de; MAXAKALI, Toninho; MAXAKALI, Manuel Damásio; MAXAKALI, Zé Antoninho; MAXAKALI, Marquinhos; MAXAKALI, Rafael; MAXAKALI, Zelito; MAXAKALI, Gilberto. 2009. Mõgmõka yõg kutex / Cantos do gavião-espírito. Rio de Janeiro, Azougue.
  • TYLOR, Edward B. 1920. Primitive Culture: researches in the development of mythology, philosophy, religion, language, art and custom. Vol. 1. Londres, John Murray, Alberdale Street W.
  • VIEIRA, Marina Guimarães. 2009. Virando inmõxa: uma análise integrada da cosmologia e do parentesco maxakali a partir dos processos de transformação corporal. Amazônica - Revista de Antropologia, vol. 2, n. 1: 308-329. DOI 10.18542/amazonica.v1i2.300.
    » https://doi.org/10.18542/amazonica.v1i2.300
  • VILAÇA, Aparecida. 2004. O que significa tornar-se outro? Xamanismo e contato interétnico na Amazônia. Revista Brasileira de Ciência Sociais, vol. 15, n. 44: 56-72. DOI 10.1590/S0102-69092000000300003.
    » https://doi.org/10.1590/S0102-69092000000300003
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio. Mana - Estudos de Antropologia Social , vol. 2, n. 2: 115-144. DOI 10.1590/ S0104-93131996000200005
    » https://doi.org/10.1590/ S0104-93131996000200005
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac & Naify.
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2004. “Perspectival anthropology and the method of controlled equivocation”. Tipití, v.2, n.2: 3-22. Disponível em Disponível em https://digitalcommons.trinity.edu/tipiti/vol2/iss1/1 acesso em 23 de agosto de 2021.
    » https://digitalcommons.trinity.edu/tipiti/vol2/iss1/1
  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2006. “A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos”. Cadernos de Campo, n. 14/15: 319-338. DOI 10.11606/ issn.2316-9133.v15i14-15p319-338
    » https://doi.org/10.11606/ issn.2316-9133.v15i14-15p319-338
  • 1
    Uma primeira versão deste artigo foi apresentada na Universidade de Barcelona, em 2015, no evento El sueño em las culturas indígenas de la Tierras bajas de América del Sur e, em 2017, no encontro do Núcleo de Antropologia Simétrica (NAnSi) no Museu Nacional. Agradeço a Gemma Orobitg, Pedro Pitarch, Eduardo Viveiros de Castro, Tânia Stolze Lima, Luisa Elvira Belaunde e Karen Shiratori pelas preciosas contribuições.
  • 2
    A observação não passou despercebida entre alguns dos cronistas que conviveram com os povos da região: “o sono dessa gente não é como, em geral, nos civilizados, seguido e demorado: (...) ele dorme mal e suas precauções são acertadas e constantes, quer de dia, quer de noite, por toda a área ocupada. Uma folha seca que tomba, um galho que se desprende das árvores, logo que seja ouvido por ele o cuido é com atenção observado, examinado; parando o que está fazendo, fica a escutar, enquanto dura o incidente”. (Aguirre apudPalazzollo, 1952PALAZZOLO, Jacinto. 1973. Nas Selvas do Mucuri e do Rio Doce: como surgiu a cidade de Itambacuri, fundada por Serafim de Gorízia, missionário capuchinho. São Paulo, Companhia Editora Nacional.: 118)
  • 3
    Os yãmĩyxop são uma miríade de povos-espíritos com os quais os Tikmũ’ũn travaram alianças ao longo da história e que, de tempos em tempos, vêm passar temporadas com eles em suas aldeias, onde saem para cantar, comer e dançar com seus pais e mães, os homens e as mulheres.
  • 4
    Este idioma da dívida e do pagamento é utilizado pelos próprios Tikmũ’ũn para descreverem sua relação com os espíritos, bem como suas responsabilidades na realização dos rituais. Assim, alguém que é curado pelos pajés automaticamente “está devendo” (tanemẽn) para os yãmĩyxop e deverá “pagar” realizando um novo ritual. Os pajés atuam como “cobradores”, negociando com estas pessoas as datas e as condições do “pagamento”.
  • CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA:

    Não se aplica
  • FINANCIAMENTO:

    CNPq, FAPERJ

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2021
  • Aceito
    16 Jun 2021
Universidade de São Paulo - USP Departamento de Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. Prédio de Filosofia e Ciências Sociais - Sala 1062. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária. , Cep: 05508-900, São Paulo - SP / Brasil, Tel:+ 55 (11) 3091-3718 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista.antropologia.usp@gmail.com