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Trajetória de aprendizado em um terreiro amazônico

VERAS, Hermes de Sousa. . 2021. O Sacerdote e o aprendiz: antropologia de um terreiro amazônico . Belo Horizonte, Letramento. pp.170.

Em O Sacerdote e o aprendiz, Hermes de Sousa Veras apresenta seu trabalho junto ao Terreiro de Mina Deus Esteja Contigo, localizado em Ananindeua, na região metropolitana de Belém, e ao sacedorte, Álvaro Pizarro. Resultado de sua pesquisa de mestrado, a etnografia é construída a partir de uma singular escuta antropológica, por meio de “muitas relações e transformações”, como aponta Thayanne Tavares no Prefácio. É, para além disso, uma contribuição acadêmica considerável ao campo de estudo das religiões de matriz africana em uma região em que sua geografia (Bastide, 1989BASTIDE, Roger. 1989. As religiões africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das interpenetrações de civilizações. São Paulo, Livraria Pioneira.) ainda está por ser amplificada em sua riqueza.

No prólogo, o autor apresenta o primeiro encontro com o pai de santo, ou zelador de orixá, como prefere ser chamado. A centralidade da figura de Álvaro e a relação de conversas e trocas estabelecida entre etnógrafo, como aprendiz, e o Sacerdote é a linha mestra que guia o trabalho. Transitando entre o relato biográfico e a descrição ritual, os aprendizados nele implicados estão diretamente associados ao estabelecimento e cultivo dessa relação.

No capítulo 1, “O Sacerdote e suas entidades”, somos apresentados à trajetória singular de vida de Álvaro Pizarro. O relato biográfico tem aqui menos um caráter subjetivista e individualizante do que a tentativa de apresentar o zelador como um personagem etnográfico. Pela descrição dos agenciamentos que o levaram até o cargo de chefe do terreiro em Belém, o capítulo busca um tensionamento que supere ou ignore esses grandes divisores (entre indivíduo e sociedade, entre a subjetividade e a objetividade). Álvaro surge como “indivíduo indivisível”, constituído pelas infinitas relações entre sua pessoa, personagem etnográfica e Sacerdote.

Por meio desse esforço, conhecemos os diversos vínculos criados pelo Sacerdote em sua diversificada trajetória religiosa - que passam pela umbanda e a igreja evangélica, pelo budismo, e de volta à umbanda e seu encontro com Mãe Marajó, Pai Valdemar e a Mina Nagô. Da fundação de seu terreiro em 1988 à sua entrada para a Federação Espírita Umbandista e dos Cultos Afrobrasileiros do Estado do Pará, em 1992.

Esse intenso trânsito religioso é importante para compreender as diferentes modulações de força que percorrem o terreiro de Álvaro Pizarro. Como o próprio zelador assinala, enquanto praticava o budismo nunca deixou de cultuar de alguma forma a umbanda, e, também assim, algo do budismo e de outras linhas que fazem parte da vida do Sacerdote permanecem.

Como uma forma de agrupar essas diferentes linhas e forças que percorrem o Sacerdote e seu terreiro, Hermes Veras mostra como a fé da qual fala Álvaro, a fé que curava por si só, é um tipo de força relacional. Uma forma de experimentar a vida que atravessa diferentes e divergentes experiências religiosas de forma transversal. Foi assim que a vida de Álvaro Pizarro “produziu uma religião compósita de múltiplos elementos” (:57).

No capítulo 2, “Que terreiro é esse? Pisa devagar”, Hermes Veras apresenta mais detalhadamente a localização do Terreiro de Mina Deus Esteja Contigo, no bairro Floresta Park, no município de Ananindeua, à margem da rodovia BR-316. O autor oferece uma descrição do espaço físico, seus diferentes cômodos e as várias imagens de santos, orixás, caboclos, exus, pretos-velhos e princesas turcas presentes no terreiro. Elabora igualmente um esboço genealógico da casa e apresenta seu calendário ritual.

O autor mostra como a história do terreiro se entrelaça com a de seu fundador, como apresentado anteriormente, de modo que a interfecundação religiosa do zelador de orixá está também presente na sua casa, sem reduzi-la a uma única modalidade religiosa. Assim como Álvaro Pizarro, o terreiro é composto de várias linhas que o atravessam, tanto linhas potenciais que podem ser desenvolvidas, como linhas cruzadas em composição. Aqui, a “nação” tem sua raiz como um rizoma, como algo conectivo, mais um “e” e menos um “é”. O terreiro “é de Mina Nagô e Umbanda e Kardecismo e Catolicismo Popular” (:82).

É dentro dessa disposição rizomáticaque as relações afroindígenas na Amazônia aparecem como uma imagem presente em terreiros semelhantes ao Mina Deus Esteja Contigo, com sua composição de entidades, mas também no entrecruzamento de práticas como a pajelança com a umbanda, a mina e o candomblé. O que essa imagem oferece é uma maneira mais complexa e criativa de se observar os efeitos desses encontros, que envolve não apenas a “umbandização” das religiões amazônicas, como uma “amazonização” da Umbanda e efeitos semelhantes de interfecundação (:83).

O caráter transformacional das “nações”, explica Álvaro, se dá pela resistência negra atrelada aos seus deuses, que tiveram que enfrentar o percurso imposto pelos sistemas coloniais e escravistas aos povos africanos em diáspora (:84). O autor retoma assim a “Lei de Herskovits” (Goldman, 2012GOLDMAN, Marcio. 2012. O dom e a iniciação revisitados: o dado e o feito em religiões de matriz africana no Brasil. Mana - Estudos em Antropologia Social, vol. 18, n. 2: 269-288. DOI 10.1590/S0104-93132012000200002
https://doi.org/10.1590/S0104-9313201200...
), lembrando que a flexibilidade dos candomblés é primeira, e que para seus adeptos cada casa é um caso. A variabilidade é própria da experiência dos terreiros, muito mais ligados à pragmática das suas práticas que a algum corpus doutrinário.

No capítulo 3, “Agregando divindades, irradiando forças” temos uma descrição ritual mais centrada na “gira”, mas também com a apresentação da “mesa branca”. Como aponta Hermes Veras, seguindo sua experiência etnográfica, o ritual aparece como “qualquer ação relacionada ao contato com as divindades onde se produza um efeito tangível no relacionamento humano, interno e cósmico (...) Contato com forças presentes tanto fora quanto dentro do plano da agência humana” (:98). Um efeito de irradiação, como grau de recepção da experiência das forças e entidades no corpo dos adeptos e igualmente presente na captação e distribuição dessas energias nas práticas ritualísticas do Mina Deus Esteja Contigo.

Assim, temos a descrição da “gira”: sua estrutura ritual, cantos, rezas, procedimentos, gestos, movimentos, danças, defumação, limpeza, as entidades presentes e suas falanges. Menos presente no cotidiano da casa, mas não menos relevante para sua composição são as sessões de “mesa branca” que, ligadas ao espiritismo kardecista, promovem a comunicação entre vivos e mortos. Para além dessas duas modalidades rituais, Veras fala sobre a presença do “corte” (ou sacrifício), que aparece como um rito mais reservado, mesmo que não totalmente fechado. São essas vertentes de modalidade ritual que constituem os lados do terreiro.

A potência transformadora do ritual é demonstrada no caso do sacrifício do galo. Nele, o autor experimenta uma fecundação literária em forma de conto para especular sobre o ponto de vista compartilhado entre o adepto, que realiza o sacrifício, e o animal que será sacrificado. Explora, ainda, como essa conexão se dá através do galo, visto como mediador que, modificando o sentido que carrega, altera o efeito do rito, dependendo da intenção direcionada a ele (:118).

É no capítulo 4, “Conversas sobre leituras: apreensão cosmológica de livros”, que o autor retoma um tema importante para o campo de estudos da etnologia afro-brasileira: a leitura dos livros produzidos por intelectuais, acadêmicos e teólogos praticantes dessas religiosidades. A partir da troca de livros com o Sacerdote, o autor pode aprender com as formulações feitas por Álvaro sobre essa forma de busca de conhecimento pela leitura dessas obras. O tema é sempre alvo de diversas especulações acerca da utilização dessa literatura, que quase sempre ignoram seu aspecto etnográfico, ou seja, os efeitos empíricos da utilização dos livros.

Os textos etnográficos de antropólogos que pesquisaram religiões de matriz africana se tornam sagrados, segundo o Sacerdote, por terem absorvido um pouco de “axé” e “energia” da religião (:139). O livro está encadeado ao sistema de forças mobilizado pelo terreiro, dando acesso parcial à energia captada por ele.

No entanto, Hermes observa, a partir do ensinamento do Sacerdote, que não se pode partir dos livros como quem extrai deles o conhecimento inicial para sua prática. Não, os livros fazem parte dessa busca por conhecimento, desse aprimoramento que faz parte da trajetória daqueles que possuem uma “missão”, um “carma”, que já tem alguma relação, alguma “coalisão” com as entidades. O médium é um veículo, mediador das entidades com esse mundo, mas não só ele; todos que possam ser veículos por meio do simples ato de ler um livro, por exemplo, carregam consigo um tipo de mediunidade. O médium concentra mais essa presença e a potencializa.

Dessa forma, a contribuição etnográfica sobre a recepção dos livros por parte dos afro-religiosos é muito mais complexa que a mera mimetização do conteúdo disposto. As obras parecem aglutinar parte de um conhecimento que está ligado a outros “fundamentos” que não aqueles da intencionalidade inicial de alguns pesquisadores. Por isso, Álvaro Pizarro, ao comentar sobre um livro emprestado por Hermes, sinaliza para a incapacidade desses autores em captar esses “fundamentos” que são mais perceptíveis aos adeptos dessas religiões. Assim, o aprendizado tem sempre mais de um lado, e é necessário participar de uma trajetória para catar certas folhas.“Primeiro você será rezador”, foi uma lição colocada ao aprendiz, que reflete sobre a possibilidade de uma antropologia antes de tudo “rezadora”, para então poder retornar a disciplina acadêmica já fecundada pela reza (:137).

É preciso, antes de tudo, “fazer existir, não julgar” (Deleuze, 1997DELEUZE, Gilles. 1997. Crítica e clínica. São Paulo, Editora 34.). Deixar fluir e passar, ver a etnografia como prolongamento e continuidade da “irradiação” de forças da religião por outros meios. Assim como aponta Hermes em uma de suas epígrafes, citando Latour: “em cada uma de nossas atividades, aquilo que fabricamos nos supera”. Se a prática da escrita antropológica, quando entra em relação com as forças mobilizadas nos terreiros, deixa passar algo dessas forças, é certo supor que nossas intenções como pesquisadores são ligeiramente superadas por elas e que, longe de ser um fracasso da objetividade científica, seus efeitos apontam para um desconhecido fundamental que envolve aqueles que se dedicam a trabalhar nesse campo. E apontam, igualmente, para a necessidade de se honrar a missão que se recebe, como apontou Álvaro para Hermes, como ensinou o Sacerdote ao aprendiz.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • BASTIDE, Roger. 1989. As religiões africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das interpenetrações de civilizações. São Paulo, Livraria Pioneira.
  • DELEUZE, Gilles. 1997. Crítica e clínica. São Paulo, Editora 34.
  • GOLDMAN, Marcio. 2012. O dom e a iniciação revisitados: o dado e o feito em religiões de matriz africana no Brasil. Mana - Estudos em Antropologia Social, vol. 18, n. 2: 269-288. DOI 10.1590/S0104-93132012000200002
    » https://doi.org/10.1590/S0104-93132012000200002

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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