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A voadeira mágica de Mauro Almeida

ALMEIDA, Mauro. Caipora e outros conflitos ontológicos. São Paulo, Ubu, 2021, 384p.

Para os trobriandeses, a vida, tal como a conhecemos, já existia nos tempos míticos, embora tivesse o mundo subterrâneo como cenário. Seus quatro clãs teriam saído da terra, lindamente paramentados, sob a forma de um iguana, um cachorro, um porco e um animal que variava entre o crocodilo, a serpente e o gambá. Desde que Bronislaw Malinowski publicou os Argonautas do Pacífico Ocidental, tais indígenas melanésios - que, além de navegar com destreza, deslocavam eficazmente a espinhosa questão da origem das coisas - povoam a imaginação dos antropólogos. Contudo Malinowski afirma que, naquela fase ctônica, “embora em condições semelhantes, ocorriam fatos de toda espécie que não ocorrem atualmente” (Malinowski, 2018MALINOWSKI, Bronislaw. 2018 [1922]. Os Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo, Ubu.: 410):

Nos tempos míticos, os seres humanos saem do solo, transformam-se em animais, e estes, por sua vez, transformam-se de novo em humanos; homens e mulheres rejuvenescem e mudam de pele; canoas voadoras atravessam os ares e as coisas se transformam em pedra (Ibidem).

E continua dizendo que há uma “linha divisória entre o mundo dos mitos e o mundo real” (Ibidem) nas ilhas do Pacífico. Décadas depois, num trecho conhecido de O Totemismo hoje, Lévi-Strauss citaria a emergência dos clãs trobriandeses para retraçar esta mesma linha. Nele, os animais se afastam de caminhos utilitários e, não sendo exatamente bons “para comer”, deixam de fuçar generalidades de um senso prático pretensamente natural. Em vez de confirmar nossos pressupostos “biológicos, psicológicos e morais” (Lévi-Strauss, 2018LÉVI-STRAUSS, Claude. 2018 [1962] . O Totemismo hoje. Lisboa, Edições 70.: 71), eles viram categorias ou operadores do intelecto humano. Porém, essa fauna lógica vive no meio de problemas concretos. A matemática selvagem de Lévi-Strauss é um convite à pesquisa empírica, eminentemente prática, que deixa o “campo livre à etnografia, e mesmo à história” (Ibidem).

Caipora e outros conflitos ontológicos, livro de Mauro Almeida lançado recentemente pela Ubu, explora novos terrenos partindo dessa trilha. Ao apresentá-lo, espero que uma modalidade do pensamento tão antiga quanto a genealogia tenha alguma utilidade. Na pior das hipóteses, o atalho nos conduzirá rapidamente à trajetória de nosso autor. No caso, Malinowski orientou, com Raymond Firth, Edmund Leach que orientou Stephen Hugh-Jones que orientou Mauro Almeida. Já Lévi-Strauss entra como um parente por afinidade nesta linhagem de etnógrafos.1 1 Mauro Almeida também é casado com a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, aluna do etnólogo francês e uma das maiores responsáveis pela boa recepção de seu professor no Brasil. O trabalho de Mauro retoma uma série de temas levistraussianos, lembrando-nos que a sensibilidade estrutural é feita tanto de rigor analítico e observação atenta quanto de imaginação e joie de vivre. Acontece que a afinidade na Amazônia, a região do autor, e no universo estruturalista é justamente o que define o parentesco.

Com o Caipora nas mãos, cem após a publicação dos Argonautas, o leitor poderá reviver a famosa abertura da monografia de Malinowski pelo avesso. Dessa vez ele estará rodeado por uma multidão, tendo que lidar com um equipamento teórico avançado, ora na floresta equatorial, ora no paraíso infinitista de Cantor e Espinosa,2 2 Cantor (1845-1918), matemático, e Espinosa (1638-1677), filósofo, aparecem em alguns dos momentos-chave do livro ao lado de outros estudiosos daquelas ciências humanas, na concepção lapidar de Giambattista Vico, que costumamos chamar erroneamente de exatas, duras, puras ou da natureza. São ambos de origem judaica - ainda que um tenha nascido numa família cristianizada e o outro tenha sido excomungado - e ambos se dedicaram a pensar grandezas infinitas formulando uma teoria dos conjuntos ou refletindo geometricamente sobre os atributos divinos. No Caipora o infinito aparece especialmente nos capítulos 6 “Guerras culturais e relativismo cultural” e 9 “Matemática concreta”. vendo a voadeira do autor aproximando-se mansamente. Dentre as personalidades que povoam as 384 páginas do livro encontramos inúmeros camaradas tirados da biblioteca - provenientes, aliás, de inúmeras épocas e ciências - junto com outros levantados do chão das estradas de seringa ou da luta sindical. Finalmente, enquanto Malinowski diz que, no começo de sua investigação, ele era “apenas um principiante, sem nenhuma experiência, sem roteiro e sem ninguém que possa auxiliá-lo” (Malinowski, 2018MALINOWSKI, Bronislaw. 2018 [1922]. Os Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo, Ubu.: 58), estamos lidando aqui com o livro de um antropólogo experiente que nos guia por um caleidoscópio de argumentos alinhavados por uma dialética impecável.

Caipora e outros conflitos ontológicos traz afinal uma seleção de artigos e ensaios que também parecem ter saído da terra, muitos deles - escritos em ocasiões específicas como debates, exposições ou disciplinas de pós-graduação -praticamente inéditos. Como os capítulos do livro foram ordenados de modo mais ou menos cronológico, neles podemos acompanhar boa parte do percurso intelectual de Mauro Almeida. Nascido no Acre, de onde saiu para estudar e para onde retornou a fim de pesquisar os seringueiros e outros povos da floresta, Mauro ensinou durante décadas na Unicamp, passando também pela Universidade de Chicago. Podemos avaliar a qualidade das suas aulas pelos textos dos capítulos 2, “Narrativas agrárias e a morte do campesinato”, e 7, “Simetria e entropia”, originalmente pensados como ementas de curso.

Não aludi em vão aos camponeses antifascistas do romance Levantados do chão, de Saramago. Caipora é também um livro militante. Entre os estudos à noite, o trabalho de dia numa editora que despertou seu interesse pela matemática (Cf. Almeida, 2021ALMEIDA, Mauro. 2021. Caipora e outros conflitos ontológicos. São Paulo, Ubu.: 304), a docência e a publicação de trabalhos premiados como a Enciclopédia da floresta, organizada com Manuela Carneiro da Cunha (2002CUNHA, Manoela Carneiro; ALMEIDA, Mauro. (orgs). 2002. Enciclopédia da floresta - o Alto Juruá: práticas e conhecimentos das populações. São Paulo: Companhia das Letras.), Mauro Almeida ainda conseguiu impulsionar a criação das reservas extrativistas no Acre, junto a muitos outros projetos ligados à agrobiodiversidade e à valorização do conhecimento das comunidades tradicionais amazônicas. Como ele escreve na “Introdução”, seu trabalho “pode parecer, à primeira vista, uma reunião heteróclita de etnografia e metafísica, marxismo e estruturalismo, engajamento e nefelibatismo” (Idem: 9). Porém, em seguida, Mauro afirma modestamente que “há nexo nisso” (Ibidem). Não nos enganemos. A coerência da produção dele é impressionante. Considerar, numa leitura apressada, que somente os capítulos iniciais da obra, dedicados à antropologia marxista e rural, têm a ver com todo seu ativismo seria tacanho. Desde o primeiro ensaio encontramos soluções de compromisso que unem a “economia política” ao casamento, à guerra e ao ritual e, via uma citação de Nancy Munn, aprendemos que o “valor” dos sistemas de troca ou do capital “é a extensão espaçotemporal do poder de alguém sobre outrem” (Idem: 135).

Folheando-o, o leitor perceberá que o livro é praticamente anamórfico. O ensaio que dá título à coletânea termina coincidentemente na sua metade, é no texto imediatamente anterior, contudo, que encontramos um trecho importante capaz de equiparar, como uma fita de Möbius, suas faces homólogas. Segundo o autor, as relações de produção dos seringueiros envolvem tanto patrões inescrupulosos quanto seres encantados:

Isso poderia sugerir crenças no sobrenatural. Mas não é o caso. (...) Os seringueiros não encontram dificuldades em entender que nós, da cidade, acreditamos em toda sorte de entidades invisíveis que afetam nossos corpos e que estão presentes no que comemos - germes, bactérias, vírus e assim por diante. Eles convivem, analogamente, com entidades invisíveis, cujos efeitos observam em seu cotidiano (Almeida, 2021ALMEIDA, Mauro. 2021. Caipora e outros conflitos ontológicos. São Paulo, Ubu.: 114-115).

Então, em vez de ceder a singularidades esdrúxulas e considerar Mauro Almeida como uma máquina de funcionamento ideal, capaz de atravessar todas as fronteiras, dizendo o xibolete correto do estruturalismo para as fileiras marxistas, como nem Sebag, Godelier ou Descola puderam fazer,3 3 Todos eles foram alunos de Lévi-Strauss que tentaram, de maneiras diversas, reunir o estruturalismo e o marxismo, como o próprio Mauro ressalta no primeiro capítulo do livro. Num episódio brutal do “Antigo testamento” a pronúncia de xibolete - “espiga” em hebraico - é utilizada para distinguir os membros conflitantes de duas tribos semitas. prefiro considerar sua antropologia peculiar como um amplo grupo de transformação. Exploremos, portanto, certas invariantes dela inspirando-nos nesta noção matemática tão familiar às tribos da antropologia estrutural.

Para Lévi-Strauss, o pensamento dos povos anteriormente chamados de primitivos - para ele seriam povos sem escrita - recusava, antes de tudo, a separação entre categorias sensíveis e inteligíveis. Nos mitos e na magia valeria o mesmo. Lendo-o com certa frequência, logo desconfiamos que esse é também o pensamento dele próprio e, por conseguinte, de Mauro Almeida. Pelo menos, a produção antropológica de ambos tenta integrar tudo o que dá. Sendo assim, nada mais estruturalista do que essa atenção simultânea às ditas ciências exatas e humanas, às percepções e ideias, à redução da distância entre modelos teóricos éticos e êmicos.

Trata-se de uma tarefa difícil. Para ficar apenas num exemplo, Lévi-Strauss mantêm a dicotomia entre relações concebidas e vividas, entre finalidades teóricas e práticas logo após o trecho citado na abertura desta resenha, ainda que o início e o fim de O Totemismo hoje questionem veementemente a distinção entre fenômenos interiores e exteriores, entre nós e os outros. Estamos diante de um horizonte de possibilidades, sendo otimista, ou, seguindo a terminologia de Gregory Bateson, de um double bind inquietante.

Em vista disso, no que diz respeito à ontologia - ou seja, à reflexão sobre aquilo que existe ou deixa de existir - há uma tensão extremamente produtiva em todo o livro. Ainda que a linguagem do autor seja bem-humorada e acessível, seu argumento de fundo não é simples. Em primeiro lugar, dado determinado conflito de pressupostos, normalmente tomamos atitudes polarizadas e excludentes. O seringueiro da página 244, que mantinha um relógio em casa, sincronizando-o com seu relógio de pulso e com o sol, só poderia estar certo ou errado, partindo desta concepção. Em paralelo, a utilização do termo ontologia irrefletidamente tende a reiterar um modismo que apenas repõe a velha noção de cultura em chave decididamente idealista. Mauro não aceita tais opções pré-definidas e, como Bateson costumava aconselhar para a resolução de problemas intrincados, passa ao largo das Simplégades do mito. Vejamos a definição do conceito central da obra, o anarquismo ontológico:

onde não há hierarquia nem escolha entre pedras, animais e humanos, nem há separação possível entre esferas técnico-produtivas e esferas simbólico-comunicativas. (...) esse anarquismo ontológico pressupõe agnosticismo metafísico - porque, como no caso do agnóstico, não sou obrigado a escolher entre as múltiplas ontologias colocando-me de fora, por assim dizer (Almeida, 2021ALMEIDA, Mauro. 2021. Caipora e outros conflitos ontológicos. São Paulo, Ubu.: 141-2, grifo do autor).

Podemos nos perguntar, então, se presumir qualquer fracionamento ontológico, tal como a linha divisória de Malinowski, é pertinente. Na prática, a teoria não é outra e Mauro ainda defende uma anarquia suplementar, dessa vez criativa e metafórica. Não estamos lidando, todavia, com um universo fantasioso e indistinto. Nas palavras dele, “a defesa da anarquia metafórica significa que a discussão intelectual não deve utilizar argumentos de autoridade, e sim travar-se sobre questões reais, ainda que estas estejam formuladas de maneira não técnica e alusiva” (Idem: 179).

Para o autor, abrir mão da realidade e da objetividade científica é um contrassenso politicamente temerário. Num dos capítulos iniciais do Caipora, ele argumenta que as grandes narrativas de outrora não podem dar lugar a arbitrariedades nominalistas ou ficcionais (Idem: 47 et seq.) e o livro termina com a proposta de uma “virada pragmática”, que seria o “complemento necessário da chamada virada ontológica” (Idem: 330). Com isso poderíamos cair, entretanto, num empirismo obtuso. A posição do autor a respeito lembra um kantismo4 4 Kant (1724-1804), filósofo iluminista, refletiu sistematicamente sobre as condições de existência do conhecimento humano ao tentar isolar os elementos apriorísticos da nossa cognição - intuições puras e categorias - das sensações e fenômenos perceptíveis. renovado. Percepções e fenômenos concretos não podem ser acessados independentemente de categorias e pressupostos intelectuais. Porém, a recíproca é verdadeira. Coexistimos com entes infinitos, infinitesimais ou, simplesmente, com tudo aquilo “que está além de qualquer experiência possível”, pelo menos para seres finitos e situados como nós (Idem: 181).

Depois de passarmos por capítulos dedicados à relatividade do número π e da física de Einstein chegamos à matemática concreta, cotidiana, dos povos ameríndios e das donas-de-casa. Se nem todo mundo pensa primorosamente, todos têm a capacidade de fazê-lo. Trata-se de um relativismo estrutural, no qual “todos os pontos de vista são ligados entre si por transformações que formam um grupo” (Idem: 249). Voltando ao seringueiro e seus relógios, sob determinada perspectiva tudo aquilo é circunstancial, pois envolve dados singulares da experiência e pressupostos específicos, mas, queiramos ou não, o raciocínio envolvido no caso é análogo à compreensão einsteiniana de tempo. Seguir as questões abertas por tais conjuntos de semelhanças e, sobretudo, de diferenças é precisamente a tarefa recolocada pela antropologia de Mauro Almeida.

Não devemos confundir, contudo, esse relativismo estrutural com o relativismo antropológico padrão. Este último é desqualificado taxativamente pelo autor como uma forma insidiosa e hipócrita de paternalismo epistêmico. Além de manter os pressupostos ontológicos dos pesquisadores acadêmicos intactos, o relativismo multiculturalista utiliza-os como medida universal. Tudo o que os outros pensam é construído contingencialmente, não passando de projeções daquilo que nós também não vemos, mas juramos que existe no éter transcendental: sociedade, ideologia, indivíduo e por aí vai.

No mesmo espírito do Pensamento Selvagem, Mauro Almeida argumenta que ontologias podem ser “incompatíveis entre si, mas concordam de maneira pragmaticamente satisfatória na maioria dos casos (embora a concordância entre em colapso em circunstâncias teóricas extremas)” (Idem: 147, grifo do autor). Todavia, esse tipo de concordância é refratário a qualquer privilégio ontológico. Ninguém detém a verdade última da existência, mas nada é exatamente quimérico. Cada qual à sua maneira, todos os povos que existem ou que já existiram domesticam, testam e controlam seu próprio pensamento por meio de categorias, instrumentos de mediação e modelos não empíricos. Evidentemente, todo esse aparato é aproximativo - Isaac Newton, Newton da Costa e o seringueiro dos relógios tateiam, como podem, realidades espaçotemporais, míticas ou mercadológicas que os ultrapassam -, sem ser gratuito, estando, inclusive, inevitavelmente aberto ao inesperado. Com o anarquismo ontológico, Mauro Almeida assume taticamente esse gênero de pensamento por modelos,5 5 Compare-se a ironia dele ao mencionar “administradores [das reservas extrativistas] e estudantes para quem modelos são tomados como entidades naturais cuja existência é referendada por bibliotecas” (Almeida, 2021: 164) com “A noção de estrutura em etnologia” (Lévi-Strauss, 2008: 299-344). Podemos resumir esse texto fundamental comentado no sétimo capítulo do livro, “Simetria e entropia” assim: modelos - estruturas, no caso - não devem ser “tomados como designação de entes efetivamente existentes” (Almeida, 2021: Ibidem), mas como ferramentas heurísticas. mantendo-se, não obstante, sempre atento à desigualdade e ao conflito. Aniquilar caiporas e sistemas de contagem implica em destruir comunidades humanas, animais e florestas.

Apesar de inspirar-se tanto em Lévi-Strauss, o autor não deixa de discordar dele, seguindo-o até nisso. Já dizia o próprio, num texto de juventude, “a fidelidade demasiado literal” a determinado método “na verdade, trai seu espírito” (Lévi-Strauss, 2008LÉVI-STRAUSS, Claude. 2008 [1958] . Antropologia Estrutural. São Paulo: Cosac Naify.: 48). Tomemos o exemplo da escrita, deixando de lado a crítica explícita ao catastrofismo levistraussiano que se encontra em “Simetria e entropia”. O etnólogo francês tratava-a de modo ambivalente. Não foi à toa que o seu ceticismo moral em relação às tecnologias de registro e acúmulo de conhecimento, mesmo com todas as suas potencialidades óbvias, atraiu as críticas inflamadas de Derrida ou Jack Goody. Acompanhando Stephen Hugh-Jones, Mauro aposta, entretanto, numa ampliação radical da noção de escrita. Dessa forma, não existem povos ágrafos - todos nós escrevemos em papel, na pedra, trocando presentes ou pintando corpos - nem a escrita reforça necessariamente hierarquias e assimetrias de poder. Pelo contrário, ela pode avizinhar-se alegremente do raciocínio matemático-especulativo ou das permutações infinitas da ciência do concreto. Mauro asselvaja nossa razão mais uma vez, graças ao Deus de Espinosa e aos caboclinhos que vivem no fundo dos rios!

Chama a atenção, por fim, a quantidade de temas e enfoques novos na obra. A bibliografia de Caipora e outros conflitos ontológicos traz autores contemporâneos inovadores como Renzo Taddei ou Anna Tsing, além de tirar muitos tamanduás injustamente esquecidos dos antigos refúgios de caça da antropologia. Mauro também continua escrevendo e intervindo nas discussões atuais. O último artigo do livro, de 2021, atesta-o, indo do terraplanismo às fake news. Neste sentido, cabe uma pequena correção na contracapa que nos informa que os textos da coletânea foram “publicados entre 1988 e 2015”. Algo simples que uma reedição resolverá.

Ao terminar a leitura do Caipora, ficamos com a impressão de que temos não apenas um, mas muitos mundos a construir e reimaginar. Talvez, como também propõem os trabalhos de Anna Tsing, tenhamos que encarar os terrenos baldios da destruição ambiental e da exploração cruel, que afinal não são absolutamente inevitáveis e muito menos homogêneos, com um otimismo bem informado, atento à indeterminação, às fronteiras e às margens, onde ocorrem “eventos inesperados que, apenas em retrospecto, parecem ser evidentes e previsíveis” (Idem: 98).

Com efeito, em um contexto de expansão agressiva do capitalismo, não é possível prever o que ocorrerá em um local particular, em uma luta particular que envolva um sujeito histórico específico. Surgem assim espaços de relativa liberdade para conduzir os conflitos em direções historicamente criativas (...) (Ibidem)

que nos levam de volta instantaneamente à inventividade, à honestidade intelectual e a generosidade de um autor que trata seus leitores horizontalmente seja nas tronqueiras de navegação laboriosa ou em passeios pelos igarapés sossegados. A anarquia de Mauro não é só metafórica.

Nos últimos meses tenho usado o Caipora para tudo, ele é meu vade mecum. Todavia, a orelha do volume, escrita por Eduardo Viveiros de Castro, adverte que Mauro Almeida possui uma “erudição só menor que a própria modéstia” e o qualifica como um personagem extremamente discreto. Lévi-Strauss também ficava aborrecido quando o chamavam de mestre ou guru.

Convém, mesmo relutante, respeitá-los recorrendo mais uma vez à sagacidade dos trobriandeses. Para não dizer que o livro de Mauro já nasceu clássico, reiterando a vacuidade de um lugar comum, tomemo-lo como um espelho mágico tirado de algum subterrâneo através de um ponto específico - no caso melanésio da caverna de Obukula e aqui da trajetória singular do nosso autor - que faz as potencialidades do nosso conhecimento antropológico rebrilharem enquanto atualiza a importância ético-política do mesmo. Caipora e outros conflitos ontológicos trata-se, enfim, de um livro incomum. Nele formigas podem virar cipó, as pedras crescem, pensadores mortos há séculos rejuvenescem, tudo muda de pele e até os bichos têm ciência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • ALMEIDA, Mauro. 2021. Caipora e outros conflitos ontológicos. São Paulo, Ubu.
  • CUNHA, Manoela Carneiro; ALMEIDA, Mauro. (orgs). 2002. Enciclopédia da floresta - o Alto Juruá: práticas e conhecimentos das populações. São Paulo: Companhia das Letras.
  • LÉVI-STRAUSS, Claude. 2008 [1958] . Antropologia Estrutural. São Paulo: Cosac Naify.
  • LÉVI-STRAUSS, Claude. 2018 [1962] . O Totemismo hoje. Lisboa, Edições 70.
  • MALINOWSKI, Bronislaw. 2018 [1922]. Os Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo, Ubu.
  • 1
    Mauro Almeida também é casado com a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, aluna do etnólogo francês e uma das maiores responsáveis pela boa recepção de seu professor no Brasil.
  • 2
    Cantor (1845-1918), matemático, e Espinosa (1638-1677), filósofo, aparecem em alguns dos momentos-chave do livro ao lado de outros estudiosos daquelas ciências humanas, na concepção lapidar de Giambattista Vico, que costumamos chamar erroneamente de exatas, duras, puras ou da natureza. São ambos de origem judaica - ainda que um tenha nascido numa família cristianizada e o outro tenha sido excomungado - e ambos se dedicaram a pensar grandezas infinitas formulando uma teoria dos conjuntos ou refletindo geometricamente sobre os atributos divinos. No Caipora o infinito aparece especialmente nos capítulos 6 “Guerras culturais e relativismo cultural” e 9 “Matemática concreta”.
  • 3
    Todos eles foram alunos de Lévi-Strauss que tentaram, de maneiras diversas, reunir o estruturalismo e o marxismo, como o próprio Mauro ressalta no primeiro capítulo do livro. Num episódio brutal do “Antigo testamento” a pronúncia de xibolete - “espiga” em hebraico - é utilizada para distinguir os membros conflitantes de duas tribos semitas.
  • 4
    Kant (1724-1804), filósofo iluminista, refletiu sistematicamente sobre as condições de existência do conhecimento humano ao tentar isolar os elementos apriorísticos da nossa cognição - intuições puras e categorias - das sensações e fenômenos perceptíveis.
  • 5
    Compare-se a ironia dele ao mencionar “administradores [das reservas extrativistas] e estudantes para quem modelos são tomados como entidades naturais cuja existência é referendada por bibliotecas” (Almeida, 2021ALMEIDA, Mauro. 2021. Caipora e outros conflitos ontológicos. São Paulo, Ubu.: 164) com “A noção de estrutura em etnologia” (Lévi-Strauss, 2008: 299-344). Podemos resumir esse texto fundamental comentado no sétimo capítulo do livro, “Simetria e entropia” assim: modelos - estruturas, no caso - não devem ser “tomados como designação de entes efetivamente existentes” (Almeida, 2021ALMEIDA, Mauro. 2021. Caipora e outros conflitos ontológicos. São Paulo, Ubu.: Ibidem), mas como ferramentas heurísticas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    09 Out 2022
  • Aceito
    23 Mar 2023
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