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Laçando a antropologia: quando uma antropóloga ouviu os gaúchos e seus causos

LEAL, Ondina Fachel. . Os Gaúchos: cultura e identidade masculinas no Pampa . 1º ed. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2021, 358pp.

Quando Ondina Fachel Leal escreveu a primeira versão de Os Gaúchos: cultura e identidade masculina no Pampa (Leal, 2021LEAL, Ondina Fachel. 2021. Os Gaúchos: cultura e identidade masculinas no Pampa . 1 ed. Porto Alegre: Tomo Editorial .), em 1989, os Pampas eram um universo desconhecido para grande parte do público brasileiro. Permanece sendo, ao menos esse que a autora nos apresenta, um universo cultural, social e ambiental singular no sul do Brasil. Sua versão original, The Gauchos: Male Culture and Identity in the Pampas (Leal, 1989LEAL, Ondina Fachel. 1989. The Gauchos: male culture and identity in the Pampas, Berkeley, Tese de Doutorado, California University.), defendida na forma de tese de doutorado na Universidade da Califórnia, em Berkeley, foi escrita originalmente em inglês. Mas nada seria mais equivocado que a expectativa de encontrar um texto familiar, para quem já se enveredou pela primeira versão. A autora enfrentou de frente a tarefa de tradução de seu próprio texto, no sentido forte do termo, transformando e transbordando os sentidos originais, muito cuidadosa com o manuscrito original, mas ainda mais com o livro que passava a ganhar corpo. Ondina o fez com maestria, pois é como se outro livro surgisse em minhas mãos, ainda que, do mesmo modo, tudo parecia um reencontro, a mim, que também já havia lido a versão original. Surge, então, um livro singular, que busca novamente se enveredar em um campo que era, ele mesmo, desafiador de quase tudo que se dizia, na antropologia brasileira, sobre sociedades rurais, sobre seus habitantes e sobre seus territórios. De tão desafiador, escrever sobre ele levou Ondina a enfrentamentos com temas que apenas se insinuavam na antropologia brasileira, como gênero, territorialidade, corpo, ambiente, morte, entre tantos outros. Que desafio apresentar essa obra, que ainda fomenta inquietações entre os herdeiros desses debates.

Qual era esse campo, desafiador em si? Os Pampas sul-americanos, bioma compartilhado entre Brasil, Argentina e Uruguai, campos de pradaria nos quais, desde os tempos do Brasil colônia, homens vivem, caçam e criam bovinos, ovinos e equinos, campos que, apesar de recentemente cercados, já no século XX, permaneciam abertos e transitáveis para os protagonistas dessa obra: os gaúchos. Ao longo de sua narrativa, a autora define esses personagens de modo similar: “gaúchos tomados na acepção restrita do termo - peões campeiros, trabalhadores rurais da pecuária extensiva da região do Pampa latino-americano” (Leal, 2021LEAL, Ondina Fachel. 2021. Os Gaúchos: cultura e identidade masculinas no Pampa . 1 ed. Porto Alegre: Tomo Editorial .: 29); “cavaleiros e trabalhadores das estâncias dedicadas à criação de gado da região dos Pampas da América do Sul, o que corresponde a áreas da Argentina, Brasil e Uruguai” (Leal, 2021LEAL, Ondina Fachel. 2021. Os Gaúchos: cultura e identidade masculinas no Pampa . 1 ed. Porto Alegre: Tomo Editorial .: 37). Vale notar que “ser gaúcho significa ser homem (...) a cultura e a identidade gaúchas (...) são construídas tendo o homem como referência central” (Leal, 2021LEAL, Ondina Fachel. 2021. Os Gaúchos: cultura e identidade masculinas no Pampa . 1 ed. Porto Alegre: Tomo Editorial .: 191), e, quanto a isso, “o homem e seu cavalo estão desempenhando juntos uma mesma tarefa. De forma mais restrita, apenas a estes, aos vaqueiros montados que dominam as lidas campeiras, chamam gaúchos. Estes são os ‘verdadeiros’ gaúchos” (Leal, 2021LEAL, Ondina Fachel. 2021. Os Gaúchos: cultura e identidade masculinas no Pampa . 1 ed. Porto Alegre: Tomo Editorial .: 137, ênfases e aspas no original). Os gaúchos são cultura, ambiente e universo masculino, donde se excluem, normalmente, as mulheres. Mas estava lá Ondina, entre 1986 e 1988, fazendo sua pesquisa não apenas nas estâncias, mas nos galpões, as casas dos homens, donde partiam e para onde voltavam após suas lidas.

É interessante notar como a autora chegou nesse mundo dos homens: interessando-se pela representação radiofônica e televisiva do que era ser gaúcho, algo relativamente recente na história do Rio Grande do Sul, fruto da popularização do movimento tradicionalista e, especialmente, do movimento nativista nos ambientes urbanos, entre os anos 1970 e 1980.1 1 Luís Augusto Fischer, na apresentação da obra, discute muito bem as diferenças e os entreveros entre esses dois movimentos culturais (Fischer, 2021: 15-17). Ondina Leal já pesquisara, em seu trabalho de mestrado, a recepção de telenovelas - no caso, a novela da Rede Globo de Televisão Sol de Verão, que foi ao ar entre 1982 e 1983 - por parte de seu público-alvo, buscando entender, em suas próprias palavras, “como este bem cultural, produzido pela indústria cultural, é assistido, escutado, incorporado, vivenciado, enfim, reelaborado a partir do cotidiano das pessoas” (Leal, 1983LEAL, Ondina Fachel. 1983. A Leitura Social da Novela das Oito. Porto Alegre, dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grandeo do Sul., p. 14, ênfases no original). Era similar seu intuito ao se dirigir para a terra dos gaúchos, para os Pampas. No entanto, como acontece com toda grande pesquisa antropológica, seus sujeitos de pesquisa subverteram seu objetivo inicial.

Muitos são os avisos que nos atentam para essa mudança de percurso. A obra é cuidadosamente elaborada para que possamos acompanhar a autora em sua viagem aos Pampas. Cada tema é apresentado em uma sequência lógica de desvelamento do universo social da pesquisa, a começar pelo “Prefácio”, assinado por Luiz Fernando Dias DuarteDUARTE, Luiz Fernando Dias. 2021. “Prefácio: o mais eloquente dos silêncios”. Em: LEAL, Ondina Fachel. Os Gaúchos: cultura e identidade masculinas no Pampa. Porto Alegre: Tomo Editorial, pp. V-IX., e pela “Apresentação”, de Luís Augusto Fischer. Temas importantes são trazidos por ambos, debates caros à Antropologia são reiterados, notas importantes sobre o contexto de escrita da obra são apresentadas. Mas então seguimos para a obra em si e, entrando no universo de pesquisa na companhia da autora, abrimos esse desconhecido com a “Introdução: reencontrado os gaúchos”. Em sequência, o capítulo “O Gaúcho e o Pampa” nos apresenta uma retomada histórico-cultural de formação desse personagem simbiótico, o gaúcho. Na sequência, passamos a ter mais contato com o trabalho de campo em si, ao seguirmos para o capítulo “Trabalho de Campo”, depois, “O galpão e suas histórias”, seguido de “Mulher, a alteridade ausente”. Na metade final da obra, os capítulos que encaminham a narrativa para seu desfecho iniciam com “Os homens e seus galos” e, por fim, “O suicídio: a morte como um discurso final”.

O gaúcho, lembra a autora, no Capítulo “O gaúcho e o pampa”, é um personagem sem origem histórica definida, sem origem étnica definida, sem origem territorial definida. Mas, melhor que definir pela negativa, o gaúcho é o filho da terra, homens itinerantes que passam a aparecer nos registros coloniais em finais do século XVIII, como cavaleiros, caçadores de gado e comedores de carne bovina, comerciantes de couro que não entendiam aquele território - o Pampa - pela lógica das fronteiras nacionais. O Pampa era o mundo todo, e o mundo todo era uma mistura de fronteiras, países, línguas e histórias. Errantes, vagabundos, gaudérios, esses eram os gaúchos da literatura colonial, homens sem a propriedade de terra, que se misturaram entre guaranis, charruas, minuanos, portugueses, espanhóis e negros. Pois então os gaúchos eram guachos, “órfão, abandonado, errante” (Groussac, 1893 apudLeal, 2021LEAL, Ondina Fachel. 2021. Os Gaúchos: cultura e identidade masculinas no Pampa . 1 ed. Porto Alegre: Tomo Editorial .: 52), possivelmente a origem do etnomio. Mas, entre os peões campeiros, gaúchos eram os “filhos da mãe Pampa” (Leal, 2021LEAL, Ondina Fachel. 2021. Os Gaúchos: cultura e identidade masculinas no Pampa . 1 ed. Porto Alegre: Tomo Editorial .: 53), guachos de la Pampa. “Órfão, nômade, montado, livre, solto pelos campos e coxilhas, assimilado em parte com a população nativa pampeana que nessas terras já se encontrava, compondo uma territorialidade pelo seu próprio movimento e deslocamento” (Ibidem).

Homem-território, gênero, narração e ambiente, eis um debate que Ondi na nos adianta, e que seria retomado mais tarde pelos estudos de territorialidade e ambiente, em etnologia e antropologia rural. A chegada a campo é sempre uma questão delicada a uma etnógrafa ou a um etnógrafo. Mas em seu caso, havia um complicador. Em “Trabalho de campo: quando o campo é o campo” temos contato com esse complicador: a autora, mulher, entrando num mundo não apenas masculino, mas definido por ideais generificados de natureza, força e sacrifício, ideais relacionados ao homem, e de fraqueza, encantamentos, mentiras e subterfúgios, como ideais relacionados à mulher. A autora conseguiu contato com um proprietário rural a partir de conhecidos em comum, o que a levou até a Estância Boqueirão, na localidade conhecida como Rincão do Inferno, no município de Alegrete. Como um espaço social que constitui a própria ontologia do que é ser gaúcho, o caminho até o galpão foi, diríamos, de fora para dentro, partindo da cidade, para a estância e, por fim, o galpão. Foi preciso tempo para compor corpo com esses gaúchos, e aqui a questão está longe da metáfora. Uma corporeidade de uma experiência muito particular, não de ser gaúcho, não de ser mulher, mas de ser uma antropóloga em um mundo razoavelmente hostil, para compor uma narrativa singular, aquela que nos chega em mãos na forma de seu livro. O causo de Ondina, em meio a tantos outros causos e cantos, é o causo da Ondina no galpão, corpo-ambiente de uma narrativa, feita em seu cuidado de estar, conviver e ouvir, pacientemente, os gaúchos.

E o que poderia melhor definir o galpão? Tomo aqui a liberdade para usar dois termos que a autora não utiliza, mas poderíamos dizer: interseccionalidade e ambiente. Ondina, em outras palavras, diz isso logo no início do capítulo: “o galpão constitui um espaço social demarcado por uma unidade cultural, de classe e de gênero” (Leal, 2021LEAL, Ondina Fachel. 2021. Os Gaúchos: cultura e identidade masculinas no Pampa . 1 ed. Porto Alegre: Tomo Editorial .: 129). O galpão é a casa dos homens, dos gaúchos, onde se reúnem quando não estão nas lidas campeiras, lugar onde dormem, guardam suas coisas e fazem alguma refeição, construção geralmente de madeira, afastada, mas não tanto, da casa-grande, como seu oposto, sempre precisando de reparos, sempre em construção, como a materialização da vida campeira, sempre em movimento. Especialmente, é o lugar de causo, de colocar o pensamento em dia nas conversas da noite, quando a identidade gaúcha se materializava em versos, cantos e jocosidades verbalizadas, mas no qual os silêncios contemplativos, como no observar o poente, face do galpão estrategicamente aberta, donde se reuniam os gaúchos. “Tudo são pedaços da vida, da vida que se gasta nessas paragens” (Ibidem), disse Clemente, um gaúcho, à autora sobre os causos. Homem-ambiente-estória: classe, gênero e identidade construída nessa simbiose.

E nesse ambiente, e em seus causos, o universo pode ser dividido entre baguais e salamandras (Leal, 2021LEAL, Ondina Fachel. 2021. Os Gaúchos: cultura e identidade masculinas no Pampa . 1 ed. Porto Alegre: Tomo Editorial .: 172-189), isto é, entre características associadas ao mundo masculino e, outras, associadas ao mundo feminino. O gaúcho é um bagual, em sua macheza, grossura, jocosidade surgida no ambiente urbano para rir dos trabalhadores rurais, mas que esses, rindo de si mesmo, incorporaram no cotidiano do galpão para se definir em suas rudezas. A mulher, em contrapartida, é a salamandra, mito comum entre os galpões da fronteira sul, no qual a mulher seria como o anfíbio da estrutura mítica, fonte de encanto e seduções, armadilha para os homens que, provado em sua determinação, deve evitar ou escapar dos encantos femininos. De fato, poucos dos trabalhadores rurais mantinham alguma relação duradoura com alguma mulher. Exceção era feita ao capataz ou aos “gaúchos de casa” - geralmente mais velhos, que já não saíam para as lidas campeiras -, que podiam manter suas esposas nas estâncias, geralmente na função dos cuidados da casa e da alimentação dos demais. De resto, o universo generificado do galpão era tal que as mulheres eram realidades esporádicas na vida dos gaúchos, uma realidade excluída do centro de seu mundo social.

Já nos aventurando no capítulo “Mulher, a alteridade ausente”, a autora nos apresenta como o espaço social da estância, tragicamente, não é mais o espaço social da mulher. As estâncias do sul passaram pelo mesmo processo de expulsão dos trabalhadores rurais do campo que vinha acontecendo em outras paragens do Brasil (Martins, 2003MARTINS, José de Souza. 2003. O Sujeito Oculto: ordem e transgressão na reforma agrária. Porto Alegre: UFRGS Editora.; Silva, 1999SILVA, Maria Aparecida de Moraes. 1999. Errantes do fim do século. São Paulo: Editora Unesp.). No entanto, diferença primordial, os trabalhadores das estâncias não eram empregados no plantio ou na colheita, trabalho que pôde ser transformado em informal por conta de sua existência sazonal, mas no cuidado do gado, o que exige habilidade, conhecimento e tempo, além de pouquíssima mão-de-obra se comparada com a agricultura. Assim, esses peões não foram expulsos do campo, algo que a literatura da sociologia e da antropologia rural explorou muito pouco, diga-se de passagem. Mas suas esposas, filhas, companheiras e parentes mulheres foram, durante os anos 1960, com o fim da permissão informal de moradia para a família do trabalhador (assim como nos demais contextos rurais). Nos Pampas, as mulheres expulsas das estâncias, passaram a formar esses pequenos povoados chamados de Las Casas, o que transformou em espacialidade o universo social já generificado entre homens e mulheres.

Essa exclusão parece ter construído, contudo, uma alteridade sempre em conta na definição do que é ser gaúcho, do que é ser homem. Diz a autora: “[a mulher] existe como um ideal construído pelos homens, e ela desempenha um papel importante no imaginário gaúcho. Ela é o outro, a alteridade contra a qual os homens constroem sua identidade; ela é tudo o que um homem não é” (Leal, 2021LEAL, Ondina Fachel. 2021. Os Gaúchos: cultura e identidade masculinas no Pampa . 1 ed. Porto Alegre: Tomo Editorial .: 195, ênfase no original). Isso pode ser notado no penúltimo capítulo da obra, “Os homens e seus galos”. A briga de galos é analisada pela autora como um game, abordagem interessante que me lembrou etnografias clássicas, e sem qualquer relação de contexto, como Sociedade de Esquina (Whyte, 2005WHYTE, William Foote. 2005. Sociedade de Esquina: a estrutura social de uma área urbana pobre e degradada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. [1943]) e De corpo e alma (Wacquant, 20002WACQUANT, Loïc. 2002. Corpo e Alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro: Relume Dumará.), nas quais, ambos os autores, analisam como o boliche e o boxe, respectivamente, eram forjadores do espírito, no sentido de uma relação moral-corporal, de status e de reconhecimento, principal índice moral de uma certa sociabilidade restrita, como a dos gaúchos. Mas os galos, e todo seu aparato, como esporas e biqueiras, eram a personificação em si dessa moralidade, talvez mais que a dos próprios homens. As rinhas tiravam da rotina a postura rígida do gaúcho, que apostavam ou levavam seus galos para brigar. Em vez do silêncio habitual desses homens de poucas palavras, ali a falação era exacerbada, pois o galo era sua macheza animalizada, que se verbalizava exatamente pelo seu oposto: não sair do rinhadeiro “cacarejando feito uma galinha” (Leal, 2021LEAL, Ondina Fachel. 2021. Os Gaúchos: cultura e identidade masculinas no Pampa . 1 ed. Porto Alegre: Tomo Editorial .: 257). Isso seria o pior insulto a seu dono. É como se, “simbolicamente, o galo e o homem tornam-se fêmeas” (Ibidem).

Enfim, no capítulo final, a autora encerra magistralmente com “Suicídio: a morte como um discurso final”. A morte é a síntese de um ethos do ser gaúcho, expressão por excelência do modo como esses homens encaram a vida. Para “os gaúchos (...) a vida é uma luta cotidiana cheia de peleias com a natureza, com os animais, que precisa ser vivida com coragem e desenvoltura. Morrer é um detalhe neste percurso, o que também tem que ser enfrentado com bravura” (Leal, 2021LEAL, Ondina Fachel. 2021. Os Gaúchos: cultura e identidade masculinas no Pampa . 1 ed. Porto Alegre: Tomo Editorial .: 65). O suicídio é esse ato de bravura para os gaúchos. Mas muito cuidado é preciso nesse ponto. Distante deste contexto cultural, o suicídio se impõe como um problema social de magnitude cada vez maior, como tratam documentos da Organização Mundial da Saúde sobre o suicídio em si (OMS, 2014ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. 2014. Preventing Suicide: a global imperative. Genebra: s.n.), ou sobre os quadros generalizados de depressão e ansiedade, que podem levar ao suicídio (OMS, 2017ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDe. 2017. Depression and Other Common Mental Disorders Global Health Estimates. Genebra: s.n.). O suicídio é uma tragédia em todos os sentidos do termo. Internacionalmente, é um problema que já se apresenta como epidêmico em muitos lugares. Localmente, entre os gaúchos, é uma tragédia no sentido restrito do termo, um ato disruptivo que busca alterar uma realidade cotidiana, é a reivindicação de agência do gaúcho sobre aquilo que jamais abriu mão: sua vida. Essa tragédia do sacrifício, como lembra Ondina ainda no que se refere à rinha de galos, pode também ser assimilada à lógica da morte entre esses homens, baguais, cavaleiros montados que se confundem com seus cavalos, que não aceitam virar tatus, isto é, corpos cansados, a pé, desprovidos da montaria, que passam a se arrastar nessa vida, e vêm sua dignidade desmoronar diante de seus companheiros. Quando perde “la gana de vivir” (Leal, 2021LEAL, Ondina Fachel. 2021. Os Gaúchos: cultura e identidade masculinas no Pampa . 1 ed. Porto Alegre: Tomo Editorial .: 289), laça-se a morte como se laça o potro, recusando-se a tornar-se novamente um andante, num umbu raro nas pradarias dos Pampas, montado, enforcado, vindo a tornar-se narrativa e performance nos causos que se contarão e cantarão sobre ele nos galpões.

Eis que, ao fim, chegamos ao “Post-scriptum”, também novidade na versão em português. Trata-se de um reencontro com o diário de campo, aqui entendido em “suas adjacências” (Leal, 2021LEAL, Ondina Fachel. 2021. Os Gaúchos: cultura e identidade masculinas no Pampa . 1 ed. Porto Alegre: Tomo Editorial .: 336), como notas de campo, cartas ao orientador, fitas cassetes, panfletos, slides, retratos em preto-e-branco, fotografias. Estas, ausentes da versão original, encerram o causo de Ondina sobre os gaúchos do sul do Brasil, em uma delicadeza imagética notável. E ao encerrar dessa forma, convenço-me ainda mais de minha impressão durante toda a leitura do livro, de que a narrativa de Os Gaúchos é uma narrativa no sentido forte do termo, que compõe tempo-lugar-corpo, o corpo da narradora refigurado em suas palavras, o ambiente ambientado do tempo verbal conjugado em seu enredo, o tempo da etnografia como um tempo partilhado, generoso, que aproxima e conjuga a experiência, que compõe um mundo em comum em vez de cindir a autoria e o estória. Os pampas, os gaúchos e a antropóloga que se apresentam na obra são corpos, campos e tempos estoriados, um mundo em um causo. E para quem se interessa pelo universo rural brasileiro, eis um mundo até então estranho para todos nós, antropólogas e antropólogos, apresentado com maestria ímpar por Ondina Leal. Para quem se interessa por antropologia, recomendo fortemente a leitura deste livro, iniciado há 30 anos, mas que tamanha a coragem da autora de enfrentar os desafios de seu campo, quase inexplorado por seus pares, antecipou os mais atuais debates do nosso campo

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • DUARTE, Luiz Fernando Dias. 2021. “Prefácio: o mais eloquente dos silêncios”. Em: LEAL, Ondina Fachel. Os Gaúchos: cultura e identidade masculinas no Pampa. Porto Alegre: Tomo Editorial, pp. V-IX.
  • FISCHER, Luís Augusto. 2021. “Apresentação: trinta anos, trezentos anos”. Em: LEAL, Ondina Fachel. Os Gaúchos: cultura e identidade masculinas no Pampa . Porto Alegre: Tomo Editorial . pp. 13-27.
  • LEAL, Ondina Fachel. 1983. A Leitura Social da Novela das Oito. Porto Alegre, dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grandeo do Sul.
  • LEAL, Ondina Fachel. 1989. The Gauchos: male culture and identity in the Pampas, Berkeley, Tese de Doutorado, California University.
  • LEAL, Ondina Fachel. 2021. Os Gaúchos: cultura e identidade masculinas no Pampa . 1 ed. Porto Alegre: Tomo Editorial .
  • MARTINS, José de Souza. 2003. O Sujeito Oculto: ordem e transgressão na reforma agrária. Porto Alegre: UFRGS Editora.
  • ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. 2014. Preventing Suicide: a global imperative. Genebra: s.n.
  • ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDe. 2017. Depression and Other Common Mental Disorders Global Health Estimates. Genebra: s.n.
  • SILVA, Maria Aparecida de Moraes. 1999. Errantes do fim do século. São Paulo: Editora Unesp.
  • WACQUANT, Loïc. 2002. Corpo e Alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
  • WHYTE, William Foote. 2005. Sociedade de Esquina: a estrutura social de uma área urbana pobre e degradada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
  • 1
    Luís Augusto Fischer, na apresentação da obra, discute muito bem as diferenças e os entreveros entre esses dois movimentos culturais (Fischer, 2021FISCHER, Luís Augusto. 2021. “Apresentação: trinta anos, trezentos anos”. Em: LEAL, Ondina Fachel. Os Gaúchos: cultura e identidade masculinas no Pampa . Porto Alegre: Tomo Editorial . pp. 13-27.: 15-17).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    2023
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