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As muitas autonomias e seus mundos: olhares cruzados Brasil-México

No contexto latino-americano, o campo conceitual das “autonomias” engloba, de maneira geral, práticas políticas que questionam a concentração do poder, a subordinação, o autoritarismo e a hierarquia impostos pelos Estados nacionais, ao mesmo tempo que constroem experiências de autodeterminação, autogestão e autorregulação ( López & Rivas, 2020LÓPEZ Y RIVAS, Gilberto. 2020. Pueblos indígenas en tiempos de la cuarta transformación. México, DF, Bajo Tierra Ediciones.). O presente dossiê reúne artigos de antropólogos oriundos do Brasil e do México que analisam etnograficamente esses “processos autonômicos” em regiões hoje correspondentes a esses dois países, além de casos que, mesmo não se reconhecendo como “autonomias”, mantêm uma relação com esse campo ao conjugar formas e objetivos com essas experiências.

No âmbito desse campo de estudos, bastante profuso, hoje, em âmbito latino-americano, o que propomos aqui não é buscar contrastes ou analogias entre casos diversos que envolvam princípios de autodeterminação e de oposição aos poderes centralizados, rota repetida em grande parte dos esforços comparativos sobre as autonomias nos últimos anos. O que buscamos é ampliar, cosmopoliticamente, as perguntas sobre o que podem ser essas autonomias, a partir do cruzamento de olhares e perspectivas entre os horizontes do México -onde existe, nas últimas décadas, um amplo debate sobre a categoria “autonomia”, que é simultaneamente analítica e nativa -e do Brasil, onde, ainda que o termo “autonomia” não circule da mesma forma, os trabalhos que propõem apresentar teorias etnográficas relacionadas a espaços de construção de autodeterminação e autogestão vêm formulando instigantes questões, que podem contribuir de forma relevante com o debate latino-americano sobre as autonomias.

Entendemos que uma rede de intercâmbios pode fortalecer-se na medida em que as perguntas sobre as autonomias não imponham a associação da categoria a práticas variadas e ontologicamente diversas, mas que terminam sendo análogas em seus percursos políticos e nas redes de relações que instauram. Assim, buscamos aqui entender e contornar esse efeito de sobreposição e similaridade não de forma mecânica, mas acompanhando as questões levantadas pelas próprias coletividades quando levam adiante isso que se pode entender como autonomias. Ao mesmo tempo, propomos colocar em relação teorias etnográficas, formulações nativas relacionadas a essas experiências e os debates oriundos de México e Brasil sobre os saberes e as práticas que esses coletivos materializam ao se oporem ao Estado, ao capitalismo ou, ainda, a princípios ontológicos ocidentais que separam, por exemplo, natureza e cultura.

Dessa forma, os artigos presentes no dossiê apresentam, em primeiro lugar, um foco etnográfico, discutindo as propostas conceituais e as práticas que dão vida às diversas experiências apresentadas, envolvendo formas de existir atravessadas por ontologias que tensionam as categorias envolvidas nas chamadas autonomias, como as de território, comunidade, autogoverno, autoconsumo, política, natureza, entre outras.

Sobre as autonomias

Há um abundante número de revisões sobre essas experiências de autonomia que sugerem percursos a partir dos quais elas se tornaram relevantes para os povos tradicionais e outros coletivos subalternos do continente americano que se adscrevem a esse campo de práticas políticas. Trata-se de um conjunto de conceitos e práticas que, pela sua amplitude multifacetada, tem produzido uma multiplicidade de relações, obtendo recepção junto a tradições tão opostas como a do pensamento liberal, em sua discussão sobre a garantia de direitos, ou a do pensamento de esquerda, que propõe a emancipação e autodeterminação dos povos ( Díaz-Polanco, 1996DÍAZ-POLANCO, Héctor. 1996. Autonomía regional: la autodeterminación de los pueblos indios. México, DF, Siglo XXI.; Díaz-Polanco; López & Rivas, 1986DÍAZ-POLANCO, Héctor & LÓPEZ Y RIVAS, Gilberto. 1986. Nicaragua: autonomía y revolución. México, J. Pablos Editor, 1988, c1986.).

Do mesmo modo, o estudo das autonomias entrelaça-se com momentos de transformação dos marcos jurídicos nacionais e internacionais, por meio dos quais se estariam desenhando novos sujeitos históricos em demanda pelo direito à autodeterminação e à autonomia, assim como eventos históricos significativos, a partir dos quais essas populações produziram formas de poder e propostas de governos próprios, opondo-se ao sistema colonial, enfrentando as normas dos estados nacionais ou dispondo-se ao autogoverno frente ao Estado e aos empreendimentos capitalistas e desenvolvimentistas ( Bartolomé, 2006BARTOLOMÉ, Miguel Alberto. 2006. Procesos interculturales: antropología política del pluralismo cultural en América Latina. México, DF, Siglo XXI Editores.; Lopez Barcenas, 2008LOPEZ BARCENAS, Francisco. 2008. Autonomías indígenas en América Latina. Ciudad de México, MC Editores.).

Essa densidade de relações torna o entendimento das autonomias um esforço complexo, que já contornou a revisão histórica de conceitos e categorias que tiveram por desfecho os chamados processos autonômicos, assim como polêmicas, na teoria social e política, sobre seu significado. Envolvendo teóricos, especialistas e intelectuais oriundos dos coletivos, esses debates tornaram-se significativas trocas interculturais entre prática e teoria que resultaram, no cenário latino-americano, na afirmação dos povos e coletivos como atores políticos da sociedade abrangente e sujeitos de conhecimentos que se debruçam sobre um mundo comum que é por eles questionado.

Assim, as autonomias são, simultaneamente, um campo de construções coletivas, disputas teóricas e afirmações políticas. É por isso que, mais recentemente, tem se consolidado a ideia de “processos autonômicos”, em que atores diversos se propõem a esse objetivo, enquanto os estudos a eles relacionados vêm se dedicando a entender como a noção de autonomia e seus objetivos práticos descortinam um horizonte emancipatório em cada caso, descrevendo e analisando essas trajetórias ( López & Rivas, 2020LÓPEZ Y RIVAS, Gilberto. 2020. Pueblos indígenas en tiempos de la cuarta transformación. México, DF, Bajo Tierra Ediciones.).

Processos protagonizados pelos povos tradicionais, camponeses e indígenas de toda a América Latina, as autonomias aparecem como uma alternativa às formas coloniais e estatais de fazer política e como uma maneira de contornar ou confrontar a hesitação coletiva por parte dos Estados-nação -ou mesmo a oposição direta, em vários casos -em relação à garantia dos direitos dessas populações envolvidas, mostrando-se, segundo vários autores, como um horizonte possível frente aos extremos racistas, desenvolvimentistas, neoextrativistas e (ultra)neoliberais que configuram as realidades do continente ( Gonzalez et al., 2010 GONZALEZ, Miguel; BURGUETE CAL Y MAYOR, Araceli; ORTIZ, Pablo (orgs.). 2010. La autonomia a debate: autogobierno indigena y estado plurinacional en America Latina. Quito, Ecuador: Flacso/Centro de Investigaciones & Estudios Superiores en Antropologia Social.; López; Guerreiro, 2018LÓPEZ, Pavel & GUERREIRO, Luciana García. 2018. Movimientos indígenas y autonomías en América Latina: escenarios de disputa y horizontes de posibilidad. Buenos Aires, El Colectivo/ Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales.).

Parte das experiências chamadas de “autonomias” pelos movimentos sociais e indígenas, bem como pela literatura acadêmica, surge nos países da América Latina a partir de lutas políticas que alcançam instalar novas ordens de governo, como nos casos emblemáticos da Colômbia, Nicarágua e, mais recentemente, Bolívia: trata-se de transformações do próprio Estado, induzidas pela pressão dos movimentos indígenas e com o objetivo de criar uma ordem de governo que dialogue com as figuras territoriais autonômicas ( Gonzalez et al., 2010 GONZALEZ, Miguel; BURGUETE CAL Y MAYOR, Araceli; ORTIZ, Pablo (orgs.). 2010. La autonomia a debate: autogobierno indigena y estado plurinacional en America Latina. Quito, Ecuador: Flacso/Centro de Investigaciones & Estudios Superiores en Antropologia Social.).

As autonomias podem surgir também como resultado de processos legais indiretos, a partir de transformações políticas e jurídicas mais amplas, que facilitam a instalação dos autogovernos -como no caso da Venezuela, onde o reordenamento territorial nacional garantiu uma remunicipalização de acordo com os lugares ocupados pelos sujeitos coletivos históricos; ou os de Panamá e Brasil, onde novos marcos normativos de direitos coletivos permitiram, sem um regulamento autonômico, espaços que autorizam práticas de autonomia nas figuras de Comarcas ou Terras Indígenas ( Gonzalez et al., 2010 GONZALEZ, Miguel; BURGUETE CAL Y MAYOR, Araceli; ORTIZ, Pablo (orgs.). 2010. La autonomia a debate: autogobierno indigena y estado plurinacional en America Latina. Quito, Ecuador: Flacso/Centro de Investigaciones & Estudios Superiores en Antropologia Social.).

Finalmente, temos também casos em que as autonomias decorrem de demandas “ desde abajo”, como no México, onde os próprios povos indígenas e comunidades camponesas reivindicam a condição de declarar autonomia para municípios ou autogovernar regiões multiculturais, dispensando-se a necessidade do reconhecimento do Estado, em função do absoluto desinteresse de seus agentes em dialogar com essas coletividades ( Leo, López & Rivas, 2005LEO, Gabriel & LÓPEZ Y RIVAS, Gilberto (orgs.). 2005. Autonomías indígenas en América Latina. Nuevas formas de convivencia política. México, DF, Plaza y Valdés Editores.; Lopez Barcenas, 2008LOPEZ BARCENAS, Francisco. 2008. Autonomías indígenas en América Latina. Ciudad de México, MC Editores.).

As autonomias abrangem trajetórias que, em sua diversidade, reivindicam a manutenção ou o restabelecimento de autogovernos, incluem a constituição ou fortalecimento de sistemas próprios de justiça, educação e saúde e protagonizam iniciativas de conservação ou recuperação da soberania alimentar, de criação de meios de comunicação, entre outras práticas de autogestão. Tais experiências, por sua vez, conectam-se entre si, muitas vezes, a partir do desafio comum de defender suas formas de viver e seus territórios frente aos grandes empreendimentos econômicos ligados aos Estados, a multinacionais interessadas nos recursos naturais ou mesmo ao crime organizado, como o narcotráfico, que avança sobre esses espaços coletivos. Mas, como buscamos apontar, os processos autonômicos, mesmo apresentando pontos de convergência, por enfrentarem adversários comuns, devem ser tratados no plural, e, mesmo consistindo em um paradigma político e de luta que aglutina alternativas emancipatórias para os coletivos que se propõem a esse caminho, trata-se de transcursos que objetivam experiências históricas e cosmopolíticas muito diversas.

Nesse sentido, podemos dizer que o dossiê surge, também, da percepção compartilhada, entre uma série de pesquisadores, de que a troca de perspectivas entre as duas áreas geográficas/etnográficas (México e Brasil) e entre as propostas levantadas pelos casos pesquisados resulta numa fertilização recíproca, principalmente, a partir do olhar privilegiado que essas experiências proporcionam às discussões ontológico-políticas que a Antropologia contemporânea tem realizado. Propõe-se, assim, um debate sobre as autonomias com base em pesquisas que, de alguma forma, promovem a troca de experiências entre esses dois polos, seja pelo fato de seus autores acompanharem os debates dos dois espaços ou de terem realizado intercâmbios de pesquisa entre os dois países.

No âmbito do Brasil, esse diálogo tem surgido, geralmente, a partir de pesquisas etnográficas que atentam à dimensão ontológico-política desses processos, relacionadas aos enfrentamentos entre as populações indígenas e tradicionais e as políticas brasileiras de administração territorial, incluindo-se a ação de setores como o agronegócio, a mineração, o turismo ou a construção de grandes obras -todas iniciativas que contam com pleno apoio do Estado. Trata-se de um olhar que aporta ao debate latino-americano uma dimensão pouco explorada no campo dos “estudos autonômicos” e que permite aprofundar a dimensão cosmopolítica em jogo nessas experiências.

Por outro lado, o intercâmbio com o debate público mexicano relacionado às autonomias permite-nos, em primeiro lugar, conectar a discussão etnológica e antropológica brasileira aos estudos críticos latino-americanos, os quais, ao longo das últimas décadas, têm mantido amplo diálogo com os posicionamentos políticos dos movimentos indígenas e camponeses no continente. Tal bibliografia sublinha a dimensão epistemológica e prática das demandas indígenas, negras e camponesas por autodeterminação e autogoverno, apontando a existência de uma tradição política histórica nascida no continente, que, na contemporaneidade, se expressa por meio das propostas de autonomia ( Escobar, 2013ESCOBAR, Arturo. 2013. “Desde abajo, por la izquierda, y con la tierra. La diferencia de Abya Yala/Afro/Latin/América”. In: WALSH, Catherine (org.). Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re) vivir, tomo II. Quito, Abya-Yala.; López Bárcenas, 2008LOPEZ BARCENAS, Francisco. 2008. Autonomías indígenas en América Latina. Ciudad de México, MC Editores.).

Destaque-se, ainda, a contribuição específica dos brasileiros à análise do cenário mexicano, demonstrando o grande potencial dos estudos de base etnográfica, a partir sobretudo de casos consagrados na literatura clássica sobre as autonomias, como a experiência das comunidades zapatistas em Chiapas. Fundamentada na cosmologia e nas teorias nativas -frequentemente envolvendo conceitos oriundos de línguas indígenas -, a análise mostra, nos artigos aqui reunidos, que essa contribuição pode, efetivamente, representar uma possível agenda de trabalho na compreensão dos sentidos desses processos a partir do próprio ponto de vista dos atores envolvidos.

É possível, além disso, perceber, no conjunto de estudos apresentados, um evidente potencial para o debate com o campo interdisciplinar da Ecologia Política, a partir das teorias indígenas/quilombolas/camponesas desenvolvidas nos espaços autônomos apresentadas nas pesquisas. Autores das mais diversas áreas -geografia, sociologia, teoria literária -chamam a atenção para a relevância desse diálogo nos últimos anos Escobar, 2010ESCOBAR, Arturo. 2010. Territorios de diferencia: lugar, movimientos, vida, redes. Bogotá, Envión Editores.; Latour, 2019LATOUR, Bruno. 2019. Políticas da natureza: como associar as ciências à democracia. São Paulo: Editora Unesp.; Pimentel, 2021PIMENTEL, Spensy K. 2021. “Notícias de uma assembleia tempestuosa: a ecologia política segundo os kaiowa e guarani”. Estudos Avançados, 35 (102). https://doi.org/10.1590/s01034014.2021.35102.008.
https://doi.org/10.1590/s01034014.2021.3...
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Em suma, entendemos que as reflexões etnográficas e antropológicas trazidas pelo dossiê nos indicam caminhos para continuar as discussões sobre as muitas formas possíveis das autonomias latino-americanas, e, sobretudo, a respeito dos muitos mundos para os quais elas nos abrem janelas e portas, abandonando “o realismo cientifico ocidental moderno” -que promove uma base única e universal para entender o mundo -e nos conduzindo aos “conflitos ontológicos” -em que pragmáticas particulares permitem as relações entre os muitos mundos, se parafraseamos Mauro Almeida ( 2021ALMEIDA, Mauro. 2021. “Caipora e outros conflitos ontológicos”. In: Caipora e outros conflitos ontológicos. São Paulo, Ubu Editora, pp. 135-174.).

Consideramos que a Antropologia pode dar uma contribuição fundamental para que as proposições cosmopolíticas lançadas por esses povos, coletivos, comunidades e suas experiências autonômicas possam ser mais bem compreendidas, não apenas como reivindicações centradas na terra e no controle territorial e de recursos, mas como um verdadeiro desafio intelectual, prático e ontológico à sociedade abrangente.

Entre México e Brasil

Um dos desafios deste dossiê e, por extensão, dos trabalhos apresentados pelos pesquisadores envolvidos na ampliação desses debates é certa incomensurabilidade teórica e etnográfica das questões trabalhadas. Assim, a proposta foi convidar autores que tivessem alguma circulação entre os horizontes mexicano e brasileiro, com o fim de facilitar a troca de olhares, mas, paradoxalmente, buscando contribuições que não se dedicassem apenas a elaborar debates teóricos ou políticos sobre as autonomias, tornando essa categoria um eixo importante das questões, porém não o seu único operador.

Desse modo, as elaborações dos autores são esforços que se centram nas suas próprias questões e soluções, ou melhor, nas questões levantadas pelos interlocutores das pesquisas, abordando temas como: a importância dos sistemas político-rituais ao produzir uma organização coletiva não estatal; os espaços recuperados nas lutas territoriais como formas de produzir lugares para viver “de seu próprio jeito” (ou seja, a luta pela autodeterminação, num sentido amplo); a produção de iniciativas coletivas que se propõem como projetos emancipatórios comuns, em que a autonomia articula complexos diálogos entre saberes tradicionais e de especialistas; ou a análise sobre como a prática da autonomia abre espaço para relações que não se limitam a uma demanda pelo autogoverno, mas se ampliam em torno do objetivo da manutenção, da retomada ou da revitalização de outros mundos possíveis.

Trata-se de uma diversidade de abordagens em que a noção de autonomia se torna um referente ora explícito, ora oculto, numa espécie de binômio “figura-fundo”, envolvendo uma troca e um diálogo que busca pôr em relação os percursos descritos por cada um dos autores, contornando a tentação de criar algum tipo de modelo geral que termine por impor nossos conceitos às trajetórias dos coletivos junto aos quais se pesquisa, e abrindo espaço à diversidade de experiências com o fim de alargar o próprio conceito de autonomia.

O esforço deste dossiê é, assim, mais próximo a uma troca recursiva que busca relacionar -tendo em vista a força que a categoria de autonomia tem como operador conceitual e político -a produção teórica presente nos cenários mexicano e brasileiro, bem como os efeitos que a categoria tem nos coletivos para garantir direitos e transformar o Estado, o diálogo político que mobiliza e conecta lutas emancipatórias diversas. Um campo de debates ao qual buscamos incorporar a dimensão cosmopolítica que cerca tais “processos autonômicos”, ainda, sem terminar impondo uma noção de autonomia única, nem fixando-a a alguma dessas experiências.

Trata-se de um desafio paradoxal que ora dividimos com os leitores.

Os artigos

Tendo em vista esse panorama, observemos como os artigos integrantes do dossiê comparecem a esse conjunto. As antropólogas Ana Paula Morel, brasileira, e Mariana Mora Bayo, mexicana, nos apresentam estudos que, no espírito acima apontado, acrescentam pontos relevantes para a reflexão antropológica acerca das icônicas comunidades neozapatistas da região de Chiapas, México. Apoiadas em análises que privilegiam as categorias de pensamento nas línguas maya -selecionadas pelos próprios zapatistas para refletir sobre seu projeto cosmopolítico -e em práticas concretas como a educação autônoma e as plantações nas terras recuperadas, as autoras demonstram que até mesmo os casos classicamente abordados pelas Ciências Sociais para refletir sobre os processos autonômicos podem ser revisitados de forma renovada, a partir de um olhar etnográfico sensível à produção conceitual dos próprios indígenas, capaz de revelar contornos inéditos da já tão famosa experiência zapatista.

A partir de suas relações com educadores zapatistas, Morel nos mostra como o movimento é povoado de suas próprias teorias sobre o mundo, sua origem e seus fins. Segundo os educadores, sustentados por conceitos na língua tzotzil, o mundo começou junto dos yajval (deuses), quando a realidade e a perfeição eram inseparáveis. Essa origem foi desregulada pelo capitalismo e pelo colonialismo, que nos levaram ao slaj’em balumil ou fim do mundo. Tal processo em curso, provocado pelos danos causados a essas entidades, os zapatistas propõem “adiar” convocando a aprender com a terra, unindo entendimentos e sentidos com base no reconhecimento da grandeza dos diversos seres que habitam o planeta.

Esse adiamento do fim do mundo torna-se possível quando se coloca em prática a sua autonomia, conforme aponta Mariana Mora Bayo; isso envolve políticas como a do cuidado mútuo e a da criação de milpas, isto é, plantações coletivas de milho ao lado de feijão e outras leguminosas e verduras, que operam como centro dos processos de territorialização autonômica; assim como cuidados que marcam uma forma de levar adiante esse mundo possível. Tais práticas opõem as fazendas e o ajvalil, o patrão-governo e o patrão-marido, às autonomias, onde as milpas e os cuidados mútuos permitem o lekil kuxlejal, ou vida-existência coletiva digna, na qual se respeitam as existências de todos os seres que habitam o planeta, relacionando a prática autonômica a uma dimensão cosmopolítica.

Por meio de uma análise em diálogo com as discussões sobre as autonomias, Mejía Lara, pesquisador mexicano radicado no Brasil, e Izaque João, antropólogo indígena do povo Kaiowá, demonstram, com seus artigos, que no Brasil é também possível renovar nossa visão antropológica sobre as chamadas retomadas. Contribuem, ainda, com o debate latino-americano sobre as ocupações de terras indígenas a partir de considerações ontológico-políticas. Entre os Tupinambá de Olivença, da Bahia, Mejía Lara percebe a complexidade cosmopolítica que se esconde por trás da ideia de que as retomadas seriam apenas operações para “recuperação de terras”. Izaque João, por sua vez, parte de seu depoimento pessoal, como membro de uma família que realizou a retomada de seu tekoha, para descrever, de forma cosmologicamente minuciosa, quais são as forças e entidades invisíveis que precisam ser acionadas para garantir o sucesso de uma ação que visa a recriar um território espiritualmente adequado para ser habitado pelos Kaiowá.

Dessa forma, Izaque João levanta o problema de como a luta pela terra entre os Kaiowá e Guarani nas comunidades no sul de Mato Grosso do Sul pode, por um lado, se definir como um processo em busca de autodeterminação e autonomia, mas, nos termos dessas comunidades, passa por uma transformação dos espaços recuperados em dimensões cósmicas para que possam efetivamente tornar-se um tekoha -“lugar onde se pode viver do nosso próprio jeito”, sendo os cantos dos rezadores e rezadoras -ñanderu e ñandesy -peça fundamental nesse processo.

São questões que entram em relação com o artigo de Mejía Lara, o qual, tomando como referente a compreensão que os Tupinambá de Olivença alcançam com seu processo de “recuperação do território” e buscando um diálogo com as práticas indígenas autonômicas, mostra como essas retomadas, convertidas nas últimas décadas numa importante prática para autodemarcar as Terras Indígenas e avançar contra aqueles que têm se apropriado dos seus territórios, não se restringem a conflitos fundiários, mas propagam relações ontológicas centrais para esses povos, materializando o que esses indígenas propõem para o mundo comum que dividimos.

Os últimos dois artigos são os de Spensy K. Pimentel e de Johannes Neurath. Antropólogo austríaco radicado no México e com forte diálogo com a Etnologia praticada no Brasil, Neurath nos apresenta uma relevante análise sobre o povo Wixarika ou Huichol, que mantém um riquíssimo histórico de autodeterminação e insubordinação frente ao Estado mexicano, ressaltando uma experiência política que tem recebido uma atenção muito menor do que a dispensada às experiências zapatistas nos últimos trinta anos enquanto “autonomias”. Além de abordar a experiência dos Wixaritari, Neurath dialoga intensamente, em seu texto, com autores indígenas que têm se destacado no cenário mexicano nas últimas décadas, como os ayuujk Floriberto Díaz e Yásnaya Elena Aguilar Gil. Trata-se de um esforço que propõe pensar os Wixaritari como uma “sociedade complexa contra o Estado”, trazendo ao campo de discussão não apenas essa variedade de autores, mas também tópicos clássicos da análise clastriana.

Pimentel, em contrapartida, parte de sua convivência, no sul da Bahia, com os integrantes da rede conhecida como Teia dos Povos, para refletir sobre quais são os alcances e limites da aplicação das ideias de autonomia difundidas a partir de experiências como as do México em um cenário que integra indígenas, camponeses, quilombolas, pescadores e outras coletividades. O autor aponta, ainda, como a agroecologia surge como um “conector cosmopolítico” que compõe alianças entre as diferentes coletividades, nessa rede que busca dialogar de forma consciente com diversas experiências autonômicas presentes em toda a América Latina. Participam da Teia, vale anotar, diversos pensadores comunitários que têm obtido reconhecimento acadêmico recentemente, a partir de seu “notório saber”, em universidades como a UFMG, por meio do projeto Encontro de Saberes.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023
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