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Tempo e evento na onirocrítica ameríndia: um balanço bibliográfico

Time and event in Amerindian onirocritic: a bibliographic review

Tiempo y acontecimiento en la onirocrítica amerindia: un balance bibliográfico

RESUMO

Este artigo consiste na revisão bibliográfica da literatura etnológica sobre sonhos dedicada aos povos indígenas das Terras Baixas da América do Sul. O fio condutor da exposição é a análise do acontecimento onírico, resultado das perambulações da alma, e sua influência na vida desperta. Sustento que, como eventos reais - não restritos à psicologia individual -, as distintas relações que a alma estabelece com seus interlocutores oníricos influem diretamente na interpretação dos sonhos e nos efeitos que se fazem notar na vigília. Ao considerar a inadequação de um repertório conceitual pautado no método psicanalítico e nas noções de presságio, destino e fatalidade, busco uma concepção de onirocrítica que inclua a ideia de um tempo aberto e reversível. A reflexão que proponho organiza-se em dois momentos: (I) o sonho como diagnóstico de eventos em curso e (II) a manipulação das possibilidades engendradas como virtualidade.

PALAVRAS CHAVE:
Sonho; tempo; evento; etnologia indígena; perspectivismo

ABSTRACT

This article consists of a bibliographical review of the ethnological literature on dreams dedicated to the indigenous peoples of the South American Lowlands. The main thread of the exposition is the analysis of the dream event, the result of the soul's wanderings, and its influence on waking life. I claim that, as real events not restricted to individual psychology the distinct relations that the soul establishes with its dream interlocutors directly influence the interpretation of dreams and the effects they have on waking life. By considering the inadequacy of a conceptual repertoire based on the psychoanalytic method and on the notions of omen, fate and fatality, I seek a conception of onirocritic that includes the idea of an open and reversible time. The reflection that I propose is organized in two moments: (I) the dream as a diagnosis of ongoing events and (II) the manipulation of the possibilities engendered as virtuality.

KEYWORDS:
Yanomami; dreams; image; nostalgia; death

RESUMEN

Este trabajo consiste en una revisión bibliográfica de la literatura etnológica sobre los sueños dedicada a los pueblos indígenas de las Tierras Bajas de Sudamérica. El hilo conductor de la exposición es el análisis del acontecimiento onírico, resultado de las deambulaciones del alma, y su influencia en la vida de vigilia. Planteo que, como hechos reales no restringidos a la psicología individual -, las distintas relaciones que el alma establece con sus interlocutores oníricos influyen directamente en la interpretación de los sueños y en los efectos que se observan en la vida de vigilia. Al considerar la insuficiencia de un repertorio conceptual basado en el método psicoanalítico y en las nociones de presagio, destino y fatalidad, busco una concepción de la onirocrítica que incluya la idea de un tiempo abierto y reversible. La reflexión que propongo se organiza en dos momentos: (I) el sueño como diagnóstico de los acontecimientos en curso y (II) la manipulación de las posibilidades engendradas como virtualidad.

PALABRAS-CLAVES:
Sueño; tiempo; acontecimiento; etnología indígena; perspectivismo

Time is out of joint!

Hamlet (W. Shakespeare )

INTRODUÇÃO

A importância dos sonhos para os povos ameríndios é observada desde longa data. Segundo os relatos de Hans Staden, antes de partir para a guerra, os Tupinambá consultavam os seus pajés. Estes conselhavam atentar aos sonhos, pois caso fosse visto, durante o sono, a carne dos inimigos assando, isso indicava vitória. Se ao invés da carne dos inimigos fossem as deles mesmos, então, nada de bom adviria, e o melhor seria permanecer na aldeia. André Thevet faz considerações semelhantes: “os índios preocupam-se muito com os sonhos e creem que os mesmos se tornam realidade. De sorte que, se sonham que vencerão o inimigo, ou, ao contrário, que sucumbirão em combate, não há como tirar-lhes a fantasia da cabeça” (1978THEVET, André. 1978 [1557]. As singularidades da França antártica. São Paulo, EDUSP.: 154).

Os trechos acima destacam a interferência dos sonhos no curso dos acontecimentos diurnos e, em virtude disso, a necessidade de uma postura diligente frente a eles. Os sonhos não se restringem ao domínio da noite, donde a relevância de sua interpretação para compreender o desenrolar dos eventos. Tomadas como anúncios do porvir, as imagens oníricas são consideradas com gravidade; esse valor “premonitório” faz dos sonhos um modo de vislumbrar de relance ou entrever algo do futuro.

Sendo assim, o sonho é um guia que não deve ser desdenhado, na medida em que realmente interfere na vigília. Isso significa que não se restringem à esfera individual tampouco aos limites do sono e da noite, pois o despertar não interrompe o que foi sonhado. A respeito da interpretação, no entanto, não é suficiente dizer que descortina um destino ao qual se está fadado, ao contrário, quem sonha não está preso aos seus sonhos, que se revelam, antes, como orientações e conselhos. A atividade onírica não é um modo de antever desígnios transcendentes aos quais quem sonha está irremediavelmente atado.

A partir de detalhada revisão da bibliografia sobre o tema dos sonhos dedicada aos povos ameríndios, minha intenção neste artigo é analisar a atividade onírica como acontecimento, ou seja, a experiência da pessoa durante o sono, na tentativa de abordar a complexa dinâmica do entrelaçamento entre vida noturna e vigília. Minha hipótese é que as perambulações oníricas da alma, ou duplo, sendo eventos reais, não restritos à psicologia individual, e as distintas relações que estabelece com os interlocutores oníricos influem, de maneira decisiva, na interpretação dos sonhos, bem como na orientação das ações da vida desperta1 1 “Almost the opposite situation obtains in the case of Western interpretive patterns, including psychoanalysis. Here, dreams are considered irrelevant to the public; they do not provide access to a realm of common interest, for which, on the contrary, everyday waking experience - and especially visually confirmable experience - is Paramount. This is why we want to hear a leader’s waking thoughts about the world, but we never discuss his or her dreams. For psychoanalysis, dreams are important for what they reveal about individuals, but not for what they reveal about reality. Like fiction, they do not reflect a different facet of a complex reality, but rather fantasy or imagination or unreality” (Urban,1996: 8-9). . Outrossim, rejeito por sua inadequação e insuficiência as noções de presságio, destino e fatalidade, tendo em vista uma noção de onirocrítica que inclua a ideia de um tempo aberto e reversível. A reflexão que proponho trata o processo onirocrítico em dois momentos distintos, quais sejam: (I) Exegese: o diagnóstico de eventos em curso à luz da defasagem reflexiva da alma, efeito da fragmentação da pessoa; (II) Pragmática: a manipulação das possibilidades engendradas pela alma, visando a efetivá-las ou desfazê-las segundo o contexto.

ONTOLOGIA ONÍRICA: A FRAGMENTAÇÃO DA PESSOA

“Que os teus sonhos sejam bons”, “nos veremos amanhã se você tiver bons sonhos” (Perrin, 1992PERRIN, Michel. 1992. Les praticiens du rêve: un exemple de chamanisme. Paris, PUF.: 49), dizem os Goajiro como boa noite; a primeira expressão se assemelha a uma fórmula comumente empregada, ao passo que a segunda revela um perigo inusitado, pois o reencontro, ou a possibilidade de prosseguir a vida cotidiana, parece depender da ocorrência de bons sonhos. De maneira semelhante, os Kaxinawa se saúdam pela manhã: “como foram os teus sonhos?”, “o que você sonhou?” (McCallum, 1996: 31), ou “você sonhou com que esta noite?”, min hawa namaxumen? (Lagrou, 2007LAGROU, Els. 2007. A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro, Topbooks.: 377). Já os Zápara perguntam: “como você nasceu?”, imashina pagarirankichu?, referindo-se ao despertar; ao que respondem, caso a noite tenha transcorrido sem sobressaltos, “nasci bem”, ali pagarini, posto que cada amanhecer é um renascimento (Bilhaut, 2011BILHAUT, Anne-Gaël. 2011. El sueño de los Záparas: patrimonio onírico de un Pueblo de laAlta Amazonía. Quito, FLACSO, Sede Equador, Edições Abya-Yala.: 119). Fórmula similar é empregada pelos seus vizinhos Quichua de Ávila, “reviver”, causarina (do verbo causana, “viver”), tem o sentido de “despertar-se” e “voltar à vida” (Kohn, 2002KOHN, Eduardo. 2002. Natural engagements and ecological aesthetics among the Ávila Runa of Amazonian. Madison, Tese de doutorado, Universidade de Wisconsin-Madison.: 187).

As expressões de boa noite e bom dia explicitam a importância dos sonhos para a vida desperta. Compreender as imagens da noite tem sentido capital para as escolhas do dia que se segue. Nessas expressões, são enfatizados os riscos de uma interrupção no curso da vida, pois as ameaças são reavivadas a cada adormecimento. E mais, as saudações traduzem uma conexão entre o sonho e a morte: não há sonho sem a fragmentação da pessoa.

O corpo adormecido, por ser desprovido de vida e de alma, é como um cadáver, segundo os Quichua; não à toa, o despertar é um renascimento, e dormir se equipara à morte (Kohn, 2002KOHN, Eduardo. 2002. Natural engagements and ecological aesthetics among the Ávila Runa of Amazonian. Madison, Tese de doutorado, Universidade de Wisconsin-Madison.: 187, ver também 2006KOHN, Eduardo. 2007. “How dogs dream: Amazonian natures and the politics of transspecies”. American Ethnologist , v. 34, n. 1: 3-24. DOI https://doi.org/10.1525/ae.2007.34.1.3
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). Essa associação entre o sonho e a morte é reiterada alhures: “dormir é como morrer”, dizem os Ette, do norte da Colômbia (Vargas, 2007VARGAS, Niño. 2007. “Sueño, realidad y conocimiento: nocíon del sueño y fenomenología del soñar entre los Ette del norte de Colombia”. Antípoda, v. 5: 293-315.: 306); entre os Juruna, povo tupi do rio Xingu, “o sono é uma modalidade tênue de morte, uma pequena morte, ou uma espécie de morte classificatória, nana” (Lima, 2005LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um peixe olhou para mim. O povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo, Unesp.: 259); para os Yanomami, “o sono é sem dúvida a experiência mais intensa de morte (como uma interrupção radical do pensamento reflexivo) apreensível em vida” (Albert, 1985ALBERT, Bruce. 1985. Temps du sang, temps des cendres: representation de la maladie, systeme rituel et espace politique chez les Yanomami du sud-est (Amazonie br.silienne). Paris, Tese de doutorado, Université Paris X.: 143); nas palavras dos Goajiro, “o Sonho é irmão da morte”, e estar desperto, Kata’ouwaa, significa “estar vivo” (Perrin, 1992PERRIN, Michel. 1992. Les praticiens du rêve: un exemple de chamanisme. Paris, PUF.: 34); de acordo com os Trio, dormir é como morrer, pois a alma do olho, amore, entra no mundo onírico e pode não retornar mais (Magaña, 1990MAGAÑA, Edmundo. 2000 (1990). “Zarigueya, Señor de los sueños. Uma teoria tareno”. In: PERRIN, Michel (ed.). Antropología y experinecias del sueño. Quito: Abya-Yala, pp.117-144.: 124). Os Cubeo chamam os espectros dos mortos de dekókü (homens sonhos), o mesmo termo empregado para a alma que deixa o corpo durante o sonho (Goldman, 1968GOLDMAN, Irving. 1968. “Los Cubeo. Indios del noroeste del Amazonas”. México, Instituto Indigenista Interamericano, n. 49.: 328). Entre os Marubo, nos sonhos,

bem como nas doenças, os duplos estão distantes, vivendo em outro lugar, enquanto a pessoa é deixada quase morta, uma carcaça abandonada, situação que complexifica “o campo semântico de morrer, vopia, e despertar, vesoa” (Cesarino, 2008CESARINO, Pedro Niemeyer. 2008. Oniska: a poética da morte e do mundo entre os Marubo da Amazônia ocidental. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, UFRJ/Museu Nacional.: 102).

No sonho, à semelhança das doenças e outras situações liminares, está em curso um processo de fragmentação da pessoa, cujo limite pode ser sua morte definitiva. A fragmentação, enquanto condição do sonho, de fato é uma “pequena morte” (ver artigo de Roberto Romero neste dossiê) que transforma a pessoa, de modo que despertar não basta para recuperar integralmente uma condição ontológica prévia. Essa experiência de morte em vida compõe um cenário de gradações de vitalidade, reconfigurado a cada amanhecer num processo de inelutável transformação.

Não sendo uma mera comparação, a relação entre sonhar e morrer se fundamenta numa concepção de mortalidade humana que é um gradiente no qual se admitem distintos estados, cujas diferenças não são de ordem qualitativa, por isso não constituem estados ontológicos discretos, mas encarnam transições. No continuum entre vida e morte, marcado pela tendência inexorável de aumento da entropia, a morte é um modo de relação processual que comporta diferentes “estados de mortalidade” (Taylor, 1993TAYLOR, Anne-Christine. 1993a. “Des fantômes stupédiants. Langage et croyance dans la pensée achuar”. L’Homme, v. 33: (126-128): 429-447. DOI https://doi.org/10.3406/hom.1993.369648
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: 432), caracterizados por variações de grau ou duração, e não de tipo. Tais estados são processos vinculados por metamorfoses, sem delimitação precisa, numa cadeia aberta que tem como fronteira essa morte infindável: “Ser uma pessoa é então uma sequência de configurações relacionais, um conjunto de ligações em uma cadeia de metamorfoses simultaneamente aberta e conectada. A cadeia é aberta porque a própria morte é um processo infindável...” (Taylor, 1996TAYLOR, Anne-Christine. 1996. “The soul’s body and its states: an amazonian perspective on the nature of being human”. Journal of Royal Anthropological Institute, v. 2, n. 2: 201-215. DOI https://doi.org/10.2307/3034092
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: 210). Os estados de mortalidade expressam a perda de componentes da pessoa ou de seu princípio anímico em diferentes durações: o sonho, como a perambulação da alma durante a noite; a doença, como sua ausência prolongada; e a morte, como sua partida definitiva.

Assim, o sonho é uma expressão da mortalidade humana na qual quem sonha está suscetível a mudanças gradativas em sua configuração relacional, também devido a uma disposição particular à alteridade onírica. Excetuando-se os xamãs - com frequência, reconhecidos por sua capacidade excepcional de sonhar -, o sonhador não iniciado não tem garantia de ter preservada sua integridade. A alma que perambula durante o sono pode não retornar ao amanhecer; pode ser que ela retorne em breve, dentro de poucas noites, caso esteja somente perdida, ou ainda pode ser que não retorne jamais. A captura implica numa a perda abrupta. Mas ela também pode ocorrer homeopaticamente: a cada noite essa fração da pessoa vai se integrando às novas relações que estabelece na outra vida, e, acostumando-se a elas, acaba por abandonar definitivamente sua forma diurna de existir. Recupero a seguir, com mais vagar, alguns casos etnográficos a fim de aprofundar e detalhar a construção do argumento. Com isso, interessa-me ressaltar a ideia de fragmentação da pessoa como uma forma de morte e condição da vida onírica; bem como, a suscetibilidade reflexiva da alma com os riscos que acarreta.

Os Wari’, grupo de língua txapakura de Rondônia, dizem que não sonham, situação indesejada na qual a alma (jam) é suscetível de ser capturada por feiticeiros, animais ou espíritos dos mortos (Vilaça, 2005VILAÇA, Aparecida. 2005. “Chronically unstable bodies: reflections on amazoniancorporalities”. Journal of Royal Anthropological Institute , v. 11: 445-464.: 461). No contexto onírico, jam é o duplo da pessoa que se contrapõe ao corpo (kwere), “porque é tudo o que ele não é, e representa mesmo a sua ausência, estando, entretanto, intrinsecamente relacionado a ele” (Vilaça, 1992VILAÇA, Aparecida. 1992. Comendo como gente. Rio de Janeiro: ANPOCS & Editora da UFRJ.: 55). Se, em algumas ocasiões, os Wari’ dizem que seu duplo saiu do corpo (mao na jamikon, “o jam dele partiu”), ao retornar, ele desaparece (om pin na jamikon, “acabou o jam dele”), pois o jam só existe enquanto se manifesta: o corpo Wari’ e seu duplo não podem ter existência simultânea (idem: 56). A alma existe somente nas situações em que o corpo está inerte - sua presença revela a ausência do corpo: no sonho, nas enfermidades sérias e na morte.

Por isso, os Wari’ afirmam que ver uma pessoa viva em sonho é um prenúncio de sua morte; é sinal de que seu duplo está atuando e, por conseguinte, de que sua integridade física está ameaçada. A própria condição da atividade onírica é problemática, por tal razão, raramente dizem que sonham com pessoas vivas. Não há atividade onírica saudável, afinal, a fragmentação é condição para o sonho e as ações da alma anulam o corpo e adoecem-no.

Ver a imagem de alguém no sonho, então, indica que a alma está de fato alhures, ou seja, que já está separada do corpo e que começou a abandoná-lo, logo, não há dúvidas de que a morte se aproxima. Isso porque a alma não dá ao corpo os sentimentos, o pensamento ou a consciência, mas a instabilidade ou a capacidade de metamorfose, central para a humanidade (Vilaça, 2005VILAÇA, Aparecida. 2005. “Chronically unstable bodies: reflections on amazoniancorporalities”. Journal of Royal Anthropological Institute , v. 11: 445-464.: 452). Essa capacidade intrínseca de transformação deve ser controlada, idealmente eclipsada, fato que explica os diversos procedimentos profiláticos ou de cura em vista de impedir o deslocamento da alma e fixá-la no corpo.

Também entre os Mamaindê, grupo Nambiquara do noroeste do Mato Grosso, o sonho implica a fragmentação da pessoa: seus enfeites, que fazem a pessoa sonhar, lhe abandonam à noite e podem não retornar ao amanhecer. Denominados genericamente wasain’du (coisas), os enfeites estão vinculados ao corpo e são descritos como componentes da pessoa, das relações que o constituem. A linha de algodão que possuem, vista pelo xamã como um colar de contas pretas, é, para os Mamaindê, o seu rumo, a sua memória e aquilo que os faz sonhar. Quando acontece de a perderem, acabam doentes, desorientados, não reconhecem seus parentes. Nesse contexto, as “coisas” perdidas são equacionadas e traduzidas por “espírito” (yauptidu), donde a perda da linha/colar equivale à perda do próprio espírito (Miller, 2007MILLER, Joana. 2007. “As coisas: os enfeites corporais e a noção de pessoa entre os Mamaindê (Nambiquara)”. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, UFRJ/Museu Nacional.: 146). Assim, dizem: “‘a linha/colar é o nosso rumo, a nossa vida, sem ela não podemos viver’” (idem: 161). Sem o “espírito”, os Mamaindê não sonham, posto ser o sonho o seu locus de ação. Além dos enfeites visíveis, há os enfeites invisíveis, localizados dentro do corpo, que só o xamã é capaz de enxergar e revelar nas sessões d e cura. Tal como a linha/colar, os enfeites internos são chamados de nusa wasain’du (nossas coisas) ou nusa yauptidu (nosso espírito). O xamã os vê como versões reduzidas de animais: uma oncinha, localizada dentro do dente, é a responsável pela vontade de comer carne; um beija-flor, localizado próximo ao coração, é o responsável pela vontade de beber chicha; e uma cigarrinha, localizada dentro do coração, tem sua ação relacionada à respiração/batida deste órgão. Os animais em miniatura também são responsáveis pela capacidade de sonhar, ter memória e “ter rumo”. Quando doentes, desprovidos de suas coisas, isto é, seus animaizinhos ou enfeites invisíveis, os Mamaindê dizem que semelhantes a uma casa vazia.

Durante o sonho, a oncinha e o beija-flor saem do corpo - a cigarrinha jamais o deixa -, levando consigo a linha/colar de algodão, que para eles é um caminho, uma estrada, como um fio de Ariadne sem o qual eles se perdem (Miller 2007MILLER, Joana. 2007. “As coisas: os enfeites corporais e a noção de pessoa entre os Mamaindê (Nambiquara)”. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, UFRJ/Museu Nacional.: 176). Se a linha/colar é rompida ou roubada, eles não conseguirão voltar e vagarão sem destino. Essa ausência priva a pessoa de todas as suas volições: ela deixa de comer e de beber, não anda mais, acaba por não reconhecer seus parentes, não sonha; em suma, sem seus enfeites (ou espírito), a pessoa enfraquece e adoece. Caberá ao xamã intervir para trazer os animaizinhos de volta. Como narrou a Miller uma jovem Mamaindê (idem: 178-179).

[D]urante o sonho, [a jovem] viu a sua oncinha sentada perto dela. A oncinha era pequena como um gato. Ela mandou a sua oncinha sair para pegar um gambá que estava comendo as galinhas que ela criava perto de casa, mas o gambá correu para o mato. A sua oncinha foi atrás e se perdeu. Depois disso, ela acordou muito fraca, mal conseguia andar. Na noite seguinte, ela sonhou novamente. No sonho, viu a sua oncinha muito magra deitada no mato e pediu a dois rapazes que a trouxessem de volta. Eles ficaram com medo, mas ela disse à oncinha que os seguisse. Deste modo, a jovem recuperou sua oncinha. Naquela mesma noite, o xamã cantou para curá-la. Ele trouxe novos colares, aos quais ela se referiu como wasain’du, para colocar dentro do seu corpo e confirmou o que ela já sabia: ela estava doente porque tinha perdido sua oncinha. No dia seguinte, ela acordou se sentindo melhor, voltou a comer e ficou curada.

A postura Wari’ frente aos sonhos é oposta àquela dos Mamaindê: enquanto a visualização noturna da alma é, para aqueles, mau sinal, signo de instabilidade, manifestação própria de uma pessoa não saudável; para estes, o sonho é a manifestação da presença do espírito em sua capacidade para sonhar, sem o qual ficam doentes, desorientados, não reconhecem os parentes e perdem as próprias vontades.

Já entre os Juruna, o sono é descrito como um processo de perda progressiva da alma-princípio vital, de transformação do estado de vivente para o de ‘ï’anay (a coletividade dos espíritos mortos), donde o perigo inerente aos passeios noturnos: “transição entre vida e morte, graus de vida e graus de alma, graus de realidade e graus de falsidade, o sono é passagem ou distanciamento que variam em grau” (Lima, 2005LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um peixe olhou para mim. O povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo, Unesp.: 260). Ao dormir, a alma pode tomar o caminho dos mortos e encontrar os parentes falecidos, de modo que a condição daquele que dorme se aproxima da condição das pessoas mortas. No sonho, a vulnerabilidade reflexiva da alma resulta no seu assemelhamento com o objeto visto: “se estive com quem morreu, então estive morta também” (idem: 259). Ao narrar um sonho, os Juruna usam a expressão ‘ï’anay (ha) de (na condição de ‘ï’anay) para cada unidade do discurso, a fim de distinguir o domínio sobre o qual falam e seu grau de realidade, bem como a pessoa do discurso, um “eu” onírico e um “eu” do narrador. Sobre o emprego dessa expressão nas narrativas oníricas, é esclarecedor o relato que Lima apresenta (2005: 258):

Nós nos tornamos ‘ï’anay. Já te falei outro dia que dormimos com nossa morte nana, e morremos um pouco ao dormir. (...) Por isso, ao acordarmos dizemos: “eu estava ‘ï’anay, “sonhando, eu, ‘ï’anay de...”. Quando estamos dormindo nossa alma lá longe se torna ‘ï’anay - o sono parece a partida de nossa alma para longe ao morrermos, nossa alma acha-se lá longe e vê os ï’anay. É por isso que para falar de sonho usamos “‘ï’anay”, nós nos tornamos ‘ï’anay, vemos os ‘ï’anay ao dormir. (...) Por vezes sonhamos com se’uraha (nossos mais velhos) que já morreram há muito tempo, nós nos tornamos ‘ï’anay ao dormir e os vemos, vemos os ‘ï’anay.

Nos casos etnográficos mobilizados, a atividade onírica decorre da fragmentação da pessoa, a saída de sua alma ou duplo durante o sono. Os exemplos salientam os riscos específicos das andanças noturnas, possibilidades sempre vigentes para quem sonha: a captura dos componentes da pessoa ou de seu princípio anímico, a perda do caminho de volta e a sujeição paulatina ao ponto de vista dos interlocutores oníricos. Em comum, as relações estabelecidas nos sonhos são eminentemente predatórias e há uma desvantagem para o sonhador que, de partida, é vulnerável, dada certa assimetria reflexiva entre a perspectiva da alma e aquela da pessoa desperta.

VERDADE E REALIDADE ONÍRICA

A fragilidade da integração entre corpo e alma, tema largamente desenvolvido na etnologia indígena, é evidente nas restrições da couvade, no adoecimento e no ato de matar, bem como nos sonhos, em que a alma se desprende e vive uma outra existência, ainda que suas ações repercutam na vida desperta. Contudo, o sonho não é uma “vida independente da alma”. Em primeiro lugar, não há um dualismo platônico da alma em oposição ao corpo, como a essência se opõe à aparência, o invisível ao visível, ou o imaterial ao material. A relação entre o corpo e a alma é, antes, similar àquelas ilusões entre figura e fundo, não sendo possível vê-los simultaneamente. Em termos perspectivistas, a alma é o corpo atualizado em outro conjunto de relações, e essa reversibilidade cria interessantes inversões, não livres de deformações e assimetrias. A alma é, igualmente, caracterizada como uma parte do corpo ou umcomponente da pessoa. Todavia, essa relação não se limita àquela entre a parte e o todo, como um membro pertence a um corpo, pois, sendo um aspecto destacável, é um outro do corpo, entendido como um duplo da pessoa, embora não coincida completamente com ela2 2 “Longe, muito distante minha alma vaga”, dizem os Mehinaku povo de língua arawak do Alto Xingu, ao iniciar um relato onírico (Gregor, 1981). Esse discurso é marcado pela separação do narrador da experiência narrada: para tal adotam termos que denotam distância espacial e utilizam a terceira pessoa. Mesmo quando os sonhos são contados na primeira pessoa, o narrador pode fazer uma pausa para identificar o ator principal do drama: “Não era eu — foi minha alma no meu sonho que fez essas coisas”. Sobre os sonhos que não são lembrados, o sonhador se vale igualmente da terceira pessoa para se afastar deles. Em vez do pessoal, “eu não me lembro o que sonhei”, os Mehinaku falam de seus sonhos como se deles estivessem apartados, como se fosse uma coisa externa: “isso se escondeu de mim”. Os Mehinaku se separam dos seus sonhos, atribuindo-os às ações de outrem: “parecem se aproximar da posição passiva do espectador, semelhante a quem assiste à televisão ou a uma performance teatral” (Gregor, 1981: 712). .

A alma é um lado da pessoa, porém é um “outro lado”, não transcendente, o lado do Outro, “inequivocamente inscrita no polo outro-afim do diagrama amazônico. (...) [É] a dimensão eminentemente alienável, porque eminentemente alheia, da pessoa amazônica” (Viveiros de Castro, 2002: 443). Sendo assim, a alma não é uma interioridade protegida no âmago de cada indivíduo; ao invés disso, seria uma estabilidade mínima, compondo uma paisagem interna que é fruto de refração, ou seja, delimitada a partir da compreensão que se tem do modo como outrem o percebe.

Conforme sugeri, os riscos de captura, a perda do caminho de volta e a vulnerabilidade se devem a uma reversibilidade não simétrica do ponto de vista da alma em relação à perspectiva da pessoa na vigília. No entanto, esse movimento de reversibilidade não implica que essas passagens sejam equivalentes em seus efeitos. A própria condição do sonho é um fracionamento que provoca um deficit reflexivo ou uma suscetibilidade ao ponto de vista da alteridade onírica, que se expressa em transformações na alma, logo, inescapavelmente no corpo. Com a expressão “reversibilidade não simétrica” quero dizer que o corpo e a alma são, por um lado, como as figuras da gestalt, para as quais figura e fundo são intercambiáveis, mas, por outro, a passagem do ponto de vista do corpo para aquele da alma não equivale ao movimento inverso. A alma, no sonho, está à mercê de transformações, uma vez que sua defasagem reflexiva não a permite levantar suspeitas a respeito das entidades oníricas com as quais interage, situação semelhante aos encontros solitários na floresta3 3 Mas há uma diferença fundamental entre as duas situações. Os encontros solitários na floresta não são determinados de antemão, pois a presa potencial ainda pode recorrer ao benefício da dúvida, posto que não foi privada da consciência de que as aparências enganam. Suspeitar permanece uma opção; não responder às interpelações é uma possibilidade. O caçador, por exemplo, pode manter sua intenção predatória se dirigir o seu olhar primeiro, se vir antes de ser visto, de maneira a não se deixar determinar pelo olhar da alteridade que pode transformá-lo em presa. O sonhador, por outro lado, é, por definição, desavisado, ele não duvida das aparências, responde prontamente ao chamado dos seus interlocutores e acaba induzido a distorções perceptivas e a equívocos semióticos. , marcados pelo risco da hesitação de quem detém o ponto de vista humano da relação: “a forma canônica desses encontros sobrenaturais consiste, então, na intuição súbita de que o outro é humano, entenda-se, que ele é o humano, o que desumaniza e aliena automaticamente o interlocutor (Viveiros de Castro, 2012VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2012. “Immanence and fear: stranger-events and subjects in Amazonia”. HAU Journal of ethnographic theory, v. 2, n. 1: 27-43. DOI https://doi.org/10.14318/hau2.1.003
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: 36). Essa suscetibilidade à alteridade dos sonhos revela-se a própria condição da atividade onírica, afinal, a comunicação somente é viável numa zona de comensurabilidade ontológica4 4 “É verdade! Se os xapiri não tivessem o olhar fixado em nós, não poderíamos sonhar tão longe. Apenas dormiríamos como lâminas de machado no chão da casa” (Kopenawa; Albert, 2015: 463). .

Tal vulnerabilidade às perspectivas outras pode traduzir-se em confusão semiótica, pois a verdade humana é virada do avesso em virtude de uma “mais-valia da realidade” dos seres oníricos, afinal, nos sonhos “eu sou o que o olhar de outrem me constitui” (Lima, 2005LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um peixe olhou para mim. O povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo, Unesp.). Novamente, no exemplo juruna, as inversões que marcam a morte são também aquelas dos sonhos: “o dia se transforma em noite, e esta em dia; o sol em lua, esta em sol; a voz sonora em sussurrada, e vice-versa” (Lima, 2005LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um peixe olhou para mim. O povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo, Unesp.: 336). Sonhar que se está dançando ou enfeitando é ruim, as risadas e a música para quem dorme são a choradeira para aquele que está desperto. Assim sendo, sonhar com cauim fermentado, embriaguez e dança não é bom sinal: “‘A alma da festa é a nossa morte’, resumia Mareaji (exprimindo-se em português). Ele me dizia que era para se morrer que se dançava em sonho (...)” (Lima, 2005LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um peixe olhou para mim. O povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo, Unesp.: 255).

Conforme dito, os Juruna utilizam a expressão ’i’anay de a fim de marcar a condição, semelhante a dos espíritos, na qual se desenvolve a experiência onírica, ainda no discurso adicionam aos verbos o sufixo -pãpã, como em sonho-pãpã, andar-pãpã, ver-pãpã com o fim de reforçar a disjunção entre sonho e vigília. Isso não significa que o sonhador considere os sonhos irreais, tampouco o equipara à realidade desperta: talvez porque o sonho se localize em alguma região não contida entre a realidade e a irrealidade - nem pré-real, nem aquém da realidade, sua dimensão virtual o põe além do real, num plano que concentra em potência uma miríade de possibilidades.

POSSIBILIDADES VIRTUAIS: SONHO COMO QUASE-ACONTECIMENTO

Se os sonhos não são representações ou visões sem densidade existencial, mas acontecimentos que performam ou encerramtransformações latentes - nos termos de Bárbara Tedlock: “the dreaming experience itself is ‘performative’, in the sense that it is already part of the doing of something, and not merely a description of the doing of something” (1992: 7) -, então, não é suficiente dizer que sejam verdadeiros ou falsos, tampouco é adequada a oposição entre realidade e irrealidade, pois os sonhos transbordam os distintos planos do real em que estão implicados os componentes da pessoa. A noção de verdade que nos interessa é pragmática, porque a veracidade do sonho depende do seu processo de efetivação ou anulação.

As transformações postas em curso através dos sonhos enredam o sujeito da vigília numa cadeia causal que borra as fronteiras entre esses dois domínios temporais e evidencia a contiguidade entre corpo e alma. Como não há uma oposição entre o corpo e a alma e sim uma composição, as doenças têm uma dimensão somática e, portanto, ambas as dimensões da pessoa se implicam reciprocamente, mesmo que não de modo simétrico e com uma notável decalagem temporal.

A análise de Ellen Basso (1987BASSO, Ellen. 1987. “The implications of a progressive theory of dreaming”. In: TEDLOCK, Bárbara (ed.) Dreaming: anthropological and psychological interpretations. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 86-104.) para os sonhos Kalapalo do alto Xingu aponta um caminho produtivo na formulação do argumento. De acordo com a autora, os Kalapalo concebem seus sonhos em termos performativos e progressivos: a atividade onírica fabrica eventos que produzem efeitos pelo simples fato de terem ocorrido; sendo uma situação vivida pela alma akua, um fenômeno interativo não uma essência imaterial (idem: 95), ela performatiza ações na vigília. As sentenças usadas nos relatos dos sonhos estabelecem a conexão condicional, hipotética e futura entre um conjunto particular de imagens oníricas e seu efeito recorrente na vida desperta. Tais construções expressam a ideia de que certos acontecimentos são efeitos de ações desencadeadas em sonho. A autora oferece alguns exemplos: “quando sonhamos que estamos queimando, logo seremos mordidos por uma aranha ou uma formiga”; “quando sonhamos que estamos cortando pequi com uma faca, embreve, cortaremos o pé em um graveto quando estivermos viajando”; “se vemos uma pedra ou o nascer do sol, então teremos vida longa” (Basso, 1987BASSO, Ellen. 1987. “The implications of a progressive theory of dreaming”. In: TEDLOCK, Bárbara (ed.) Dreaming: anthropological and psychological interpretations. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 86-104.: 103-104)5 5 Em muitas pesquisas é patente a centralidade do arcabouço conceitual psicanalítico na adoção da distinção entre “conteúdo latente” e “conteúdo manifesto” (Basso, 1987; Gregor, 1981; Krauck, 1987, 1988, 1989, 1992, dentre outros autores). Haveria uma mensagem expressa em linguagem obscura a ser desvendada, posto que o sonho recordado é somente um substituto deformado de outra coisa, de um conteúdo inconsciente, ao qual se pretende chegar através da interpretação. O sonho se inscreve, assim, em dois registros: um que corresponde ao sonho lembrado e contado pela pessoa — o conteúdo manifesto —, e um oculto, inconsciente, que se atinge pela interpretação — os pensamentos oníricos latentes. Encontrar o sentido de um sonho seria, portanto, percorrer, através da interpretação, o caminho que leva do conteúdo manifesto aos pensamentos latentes. Além disso, esses estudos misturam elementos do “método de decifração” quando se valem de uma concepção unívoca do conteúdo simbólico, resultando em correlações precisas entre um signo e um efeito particular. . Neste sentido, os sonhos dizem menos sobre a psicologia individual que sobre as possibilidades desencadeadas por transformações não controladas, sofridas pela pessoa enquanto akua. Essa potência performativa dos sonhos expressa uma transformação a que foi submetida a alma. Cabe salientar que sonhar não é uma modalidade de epifania ou de acesso ao transcendente, por isso presságios e outras categorias que fazem referência a um destino traçado alhures não são adequados ao contexto onírico ameríndio, muito embora aparentemente a estrutura das sentenças dos relatos pareçam recorrer a chaves simbólicas fixas de interpretação, voltarei a esse ponto adiante. O sonho não é uma predição à qual se está fadado, justamente por não ser o vislumbre de mecanismos causais ex machina irrevogáveis.

Com frequência, quem sonha não está alerta ao que se passa durante o seu sono, pois, não raro, só restam lampejos ao despertar, os quais, muitas vezes, são insuficientes para impedir que as transformações desencadeadas em sonhos se efetivem. Contudo, a efemeridade dos afloramentos oníricos não se explica por um caráter esotérico: a falta de nitidez e o acesso obnubilado decorrem da variação ou, mais precisamente, da oscilação perspectiva e sua assimetria. Como as lembranças dos sonhos são reminiscências vagas, pouco exatas e raramente nítidas, há vácuos na memória, espaços para incertezas que dão margem a reconstruções dos nexos causais. O que parece valer como explicação onírica de um evento na vigília é menos a exatidão das causas eficientes que a determinação de razões suficientes, o sonho é uma instância explicativa sempre possível de ser acionada a posteriori. Ademais, conforme dito, o que foi iniciado/desencadeado nos sonhos se realiza com certo atraso temporal na vida desperta. Esse descompasso perspectivo entre a vida noturna e vigília traduz a assimetria reflexiva da relação instável entre corpo e alma, cujo valor é mais performativo que preditivo.

Isso porque a passividade do sonhador transfere a ação para a vigília; dito de outro modo, é no despertar que se age a fim de desfazer os sonhos ou mesmo garantir o curso de sua efetivação. Sendo assim, a interpretação está atrelada à ação: recuperado o modo corrente da comunicação humana ao despertar, o exame dos sonhos consiste em desfazer as distorções semióticas, desmascarando, com cautela, uma intencionalidade predatória outra, não reconhecida no curso do sonho6 6 Nos termos de Gregory Urban (1996: 222): “The implicit theory of dreams may be rendered as follows: in the course of dreaming, one’s own spirit wanders about. It encounters other spirits, both human and nonhuman. The nonhuman spirits present themselves in a variety of guises, both animal and human. Not all dreams envolve encounters with nonhuman spirits and ghosts, but some of them - indeed, almost all that socially circulate - do. The art of interpretation consists in identifying a dream figure as adisguised spirit”. .

É, portanto, a reversão das volições do sonhador, invertidas pela verdade da alteridade, a ação que contrafactua os eventos oníricos como se não tivessem ocorrido. As experiências oníricas são revertidas através do trabalho de interpretação a não-eventos que já aconteceram nas noites pregressas, com isso é desfeito um horizonte de possibilidades engendradas em sonhos. O amanhecer não é suficiente para dissipar esses eventos virtuais, porque despertar não expiraos sonhos, relegando-os ao passado. Além disso, se não forem desfeitos, eles continuam acontecendo, ou quase-acontecendo, justamente porque implicam um futuro enquanto virtualidade: “na medida em que o presente é sempre implicado ou semeado com o futuro, esse ‘virtual-past’ implica um estranho tipo de ‘present-future’” (Rodgers, 2004RODGERS, David. 2004. “Foil: indifference, incompossibility and the complexion of Ikpeng shamanism”. MS, inédito.).

Os sonhos também oferecem balizas para a ação, não restritas a desmanchar o que foi tecido durante o sono. Em vez de neutralizados, os sonhos podem ser manipulados e efetivados, de acordo com as possibilidades que prefiguram. Não somente as pessoas se configuram em perspectivas incompossíveis, também a tessitura dos acontecimentos é múltipla, se os eventos acontecem para alguém, ou nos termos certeiros de Tânia Stolze Lima em sua análise da caçada dos Juruna aos porcos: “Todo ser ou fenômeno é dois” (1996: 39). O evento da caçada constitui-se em acontecimentos que correm paralelos um ao outro em referências que podem divergir ou convergir sem a simultaneidade no tempo e no espaço. As anomalias metafísicas do “tempo bilinear múltiplo”(idem) formuladas pela autora no contexto citado aplicam-se de forma generalizada aos fenômenos e eventos nas paisagens multinaturais, uma intuição etnográfica que mereceria ser levada adiante. No exemplo da caçada, o paralelismo entre o acontecimento da vigília e seu duplo onírico pode transcorrer no movimento inverso e o sonho continua uma ação iniciada na experiência sensível do caçador. Ou ainda, a caçada pode ser se iniciada em terra alheia por ação da alma e “está para se realizar, para ele [caçador], nos próximos dias. O duplo da caça pode assim ser ou o prolongamento de um passado ou o desencadeamento de um futuro” (Lima, 1996LIMA, Tânia Stolze. 1996. “ O dois e seu Múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo emuma cosmologia tupi”. Mana, v. 2, n. 2: 21-47. DOI: 10.1590/S0104-93131996000200002
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: 39, grifo nosso). Os sonhos dizem o que “já aconteceu amanhã” (idem: 41). Em vista disso, a interpretação onírica tem uma faceta de análise “précognitiva” - para evocarmos Philip K. Dick (2012DICK, Philip K. 2012. Realidades Adaptadas. São Paulo, Aleph.) -, no sentido que permitem contemplar vários futuros, não limitados a um horizonte temporal fechado. Isso faz com que os sonhos assumam uma “textura conceitual de precognição ou agouro” (Rodgers, 2004RODGERS, David. 2004. “Foil: indifference, incompossibility and the complexion of Ikpeng shamanism”. MS, inédito.). Caso houvesse apenas uma via temporal, a informação precognitiva dos sonhos não teria valor. Se assim fosse, ao ter acesso à informação, não haveria possibilidade de alterar o que foi sonhado; o que não ocorre, uma vez que a narração e a interpretação podem indicar a profilaxia das prefigurações virtuais e a via temporal entrevista em sonho pode ser rejeitada.

É nesse sentido que afirmo a dimensão de quase-acontecimento (Viveiros de Castro, 2012VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2012. “Immanence and fear: stranger-events and subjects in Amazonia”. HAU Journal of ethnographic theory, v. 2, n. 1: 27-43. DOI https://doi.org/10.14318/hau2.1.003
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) desses eventos, pois eles transbordam para a vigília, quando terminam de acontecer ou quase terminam, se a linha espaço-temporal da sobrenatureza inflete afirmando-se na realidade. Os sonhos importam porque são eventos que sempre quase-ocorrem, seja porque foram desfeitos com antecipação, seja porque estão na iminência de ocorrer: com frequência, o sonho é concebido como um modo de quase-morrer todas as noites, o que justifica o uso de técnicas profiláticas. Cabe reformular para os sonhos esta questão posta por Viveiros de Castro (idem)7 7 “Clearly, all of us almost always escape. Almost always nothing happens: or more exactly, something always almost-happens. This is precisely how the subjectivities that wander the forest are typically experienced by the Indians - they are usually only almost-seen, communication is almost-established. And the result is always an almostdeath. The almost-event is the supernatural’s defautmode of existence. We need tohave almost-died to be able to tell” (Viveiros de Castro, 2012: 38). : “O que acontece quando algo quase acontece?”. Assim, o que acontece quando os sonhos quase acontecem? Nas palavras do autor, “alguém que quase morreu já não é mais o mesmo. Quase acontecer algo é um modo de acontecer outra coisa que aquele algo, é um modo de acontecer” (idem: 38). Sendo experiências de confronto com mundos quase-reais, na iminência de se precipitarem para a vida desperta, os sonhos, à guisa de outros quase eventos, remetem a configurações temporais imprevisíveis. Recupero, de forma sumária, uma passagem da etnografia de Elizabeth Pissolato (2007PISSOLATO, Elizabeth. 2007. A duração da pessoa. Mobilidade, parentesco e xamanismo mbya (guarani). São Paulo, Unesp .) realizada com os Guarani Mbya, na qual a autora mostra que a ideia segundo a qual os sonhos “premonitórios” antecipam o que ocorrerá com alguém não se aplica inteiramente. As imagens oníricas não têm o estatuto do destino, pois são essencialmente não-fixas, quer dizer, “o nhe’ë, o nome-alma, carrega tendências do agir futuro da pessoa e seus desdobramentos” (Pissolato, 2007PISSOLATO, Elizabeth. 2007. A duração da pessoa. Mobilidade, parentesco e xamanismo mbya (guarani). São Paulo, Unesp .: 307), no entanto, os acontecimentos são expressos em termos de possibilidades, não determinadas, de algo acontecer e só se confirmam plenamente a posteriori, de acordo com decisões pautadas nos futuros possíveis. O verbo usado no contexto onírico é “ver”, -exa, e sonhar é -exa ra’u, que é mais um modo de ver na forma de um pressentimento que uma determinação do que vai efetivamente acontecer:

Assim, vê-se o que possivelmente acontecerá ou o que poderia acontecer, mas que pode efetivamente não ocorrer no caso de uma medida preventiva ser adotada por parte das pessoas que podem ser afetadas. O que o sonho conta não está apenas no sonho nem em um tempo determinado nele contido; há uma negociação entre o sonhador e aquilo que sonhou, em que a atitude/propensão do primeiro é fundamental à definição dos resultados produzidos desta experiência. A começar, o sonhador poderá ele mesmo optar por contar ou não seu sonho a outrem, no primeiro caso dispondo-se já a certa negociação de sua experiência subjetiva para a interpretação da mensagem, digamos, do sonho (Pissolato, 2007PISSOLATO, Elizabeth. 2007. A duração da pessoa. Mobilidade, parentesco e xamanismo mbya (guarani). São Paulo, Unesp .: 322).

Segundo a análise proposta por Cédric Yvinec (2005YVINEC, Cédric. 2005. “Que dissent les tapirs? De la communication avec les non-humains en Amazonie”. Journal de la Société des Américanistes, v. 91, n. 1: 41-70. DOI https://doi.org/10.4000/jsa.2811
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; ver também Descola 1989DESCOLA, Philippe. 1989. “HeadShrinkers versus shrinks: jivaroan dream analysis”. Man, v. 24, n. 3: 439-450. DOI https://doi.org/10.2307/2802700
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)8 8 O método estrutural aplicado aos sonhos se baseia na ideia de que aatividade onírica opera como uma forma de bricolagem similar àquela do pensamento mítico. A analogia entre mito e sonho se deve ao uso comum que fazem de certos tipos de processos mentais, não por uma questão de identidade de conteúdo simbólico (Descola, 1989: 439). A análise estrutural dos sonhos consiste em extrair das imagens oníricas relações elementares, dissociá-las em unidades lógicas mínimas, às quais são aplicadas regras de homologia, inversão e permutação que fazem aflorar seu sentido. Assim, centra-se menos na interpretação metafórica dependente de um léxico icônico, ou de um conjunto de “chaves dos sonhos” estereotipadas, que em uma gramática que combina as regras estruturais e os vários códigos, num procedimento homólogo àquele da análise estrutural dos mitos. Isto significa que o simbolismo onírico não se reduz à mera comparação ou correlação estável entre um signo e seu sentido, ou seja, a linguagem metafórica não opera pela transferência de sentido entre dois termos. A relação passa a ser entre códigos: de uma categoria ou classe de termos para outra classe ou categoria. A afinidade do método é reveladora de uma afinidade entre os objetos, segundo Descola: mito e sonho se movem de maneira similar do sensível para o inteligível, do concreto para o abstrato (1989: 448). Os sonhos, também como os mitos, acionam uma pluralidade de códigos simbólicos dos quais nenhum deles é mais relevante que os demais, a ponto de ser tomado isoladamente. Por isso, vale para o sonho o que é dito para o mito: “nenhum código é mais verdadeiro do que outro: a essência ou, se quiserem, a mensagem do mito se apoia na propriedade comum a todos os códigos, enquanto códigos, de ser mutuamente conversíveis” (Lévi-Strauss, 1985: 231). , baseada na distinção entre sonhos metafóricos e literais, estes últimos prescindiriam de toda interpretação por serem acontecimentos completos, acabados, i.e., fatos que correspondem precisamente ao seu conteúdo explícito, cujo sentido não difere daquele da vigília, sem qualquer aspecto que requeiraser desvendado. Ao passo que os primeiros não seriam atos, mas signos, interpretados a partir de variados processos lógicos, remetendo a um sentido diferente do manifesto por seu conteúdo e expressando ações incompletas ou embrionárias. Efetivamente, alguns sonhos pedem interpretações enquanto outros parecem de pronto inteligíveis, praticamente dispensando o esforço da exegese. A relevância dessa distinção não é qualificar uma tipologia onírica, mas elucidar as relações que fundamentam essa diferença interpretativa. As reminiscências podem ser mais ou menos nítidas, mais ou menos completas, fatores estes que determinam a extensão dos comentários sobre as experiências da noite.

Conforme dito, esses aspectos decorrem da assimetria reflexiva da alma, em virtude disso são necessárias interpretações para restituir a intencionalidade do sonhador. Outrossim, alguns sonhos podem contar com a intervenção de outros personagens de modo que os sonhos tomam a forma de mensagens, alertas e advertências cujo sentido costuma ser imediato, o que não significa que as ações estejam finalizadas. Nem todos os sonhos requerem extensas elucidações; entretanto, insisto que todos suscitam algum modo de ação, ora para cancelá-los, ora para realizá-los. A distinção entre ações acabadas e inacabadas não configura um critério, porque toda interpretação e toda narração solicitam ações pelo fato dos sonhos não serem acontecimentos completos.

A distinção algo taxonômica entre sonhos metafóricos e sonhos literais, de resultado não imediato e imediato, revela-se problemática na medida em que se funda num critério pouco preciso. Como medir o tempo de realização de um acontecimento? Qual o limite do virtual? Em alguns casos a tarefa é simples: uma caçada é sonhada e em poucos dias se realiza. Em outros, o sonho pode ser esquecido, mas permanece acontecendo alhures até que, um dia, inesperadamente, se atualiza na vigília. E mesmo aqueles sonhos aparentemente precisos, como os sonhos conceptivos, cuja interpretação é evidente, exigem a ação do sonhador para serem concluídos. É um equívoco considerar a onirocrítica como um beco sem saída, uma avaliação dos sonhos como rascunhos de eventos ou fatos consumados, pois ela é justamente o inverso: sendo uma pragmática, um saber não somente especulativo, mas igualmente voltado para fins cotidianos, ela abre a possibilidade de manipulação por não respeitar as limitações da linearidade espaço-temporal. Os sonhos contêm em si uma infinidade de mundos que coexistem em potência9 9 A categoria dos sonhos póstumos e dos ex-sonhos Parakanã complexificam a ideia de tempo envolvida no fenômeno onírico. A morte de um sonhador, em particular aquele que um dia foi chamado de “grande senhor da chuva” (amynjarohoa), provoca tempestades torrenciais com raios e vento. Essa chuva resulta de sua atividade onírica passada, seus sonhos têm continuidade mesmo após sua morte, pois osresquícios desses acontecimentos persistem como virtualidade. Os ex-sonhos, -poahipawerropi, deixam engendradas possibilidades que podem precipitar na vida desperta. As chuvas também podem ser provocadas por sonhos póstumos, porquanto a capacidade xamânica do morto permanece. Então, sonhos póstumos e os ex-sonhos podem se atualizar como eventos meteorológicos (Fausto, 2001: 406-407). .

Antes de prosseguir, faço breves observações a respeito da importância dos sonhos no xamanismo ameríndio. Certamente, a questão mereceria ser debatida com mais vagar tendo em vista a pluralidade das práticas e conhecimentos, bem como a complexidade dos distintos contextos etnográficos, contudo, ultrapassa o escopo deste artigo empreender esta discussão que será oportunamente desenvolvida. A mudança do estatuto predatório dos sonhos se justifica pela intervenção de um terceiro ponto de vista que equaliza a desigualdade das relações estabelecidas nessa referência. Divindades, xamãs falecidos, antepassados, espíritos com os quais se estabelecem relações de aliança podem intervir em prol do sonhador, orientando suas ações, que não mais repercutirão na vigília de maneira desviada e descontrolada. As intervenções benéficas garantem certa lucidez para entrever o que já está em curso. Na vigília, os sonhos são traduzidos como alertas e mensagens sobre acontecimentos a serem evitados ou concluídos. A preservação do discernimento também permite a aquisição de cantos e outros saberes que constituem fonte fundamental de capacidades existenciais. Quando essas relações são estabelecidas e conservadas, os sonhos se transformam em um dos principais veículos de ação xamânica. Tal vocação se manifesta, muitas vezes, desde a juventude, pela prolífica atividade onírica, e seu aprendizado ocorre, em grande medida, nesse outro domínio. Ao alargar as fronteiras perceptivas e comunicativas, o xamã faz de seus sonhos um meio controlado de agir na prefiguração da vida desperta.

O xamã pode induzir e controlar suas viagens oníricas, deslocar-se segundo suas escolhas e ir mais longe que os não iniciados em suas perambulações noturnas. Esse outro modo de agir do xamanismo faz dos sonhos um meio o controlado de produzir a realidade: o xamã não se limita a vislumbrar o que está em curso, ele sobredetermina a ordem dos eventos. Sua habilidade para o onirismo é aperfeiçoada ao longo de um árduo processo iniciatório, resultando em sonhos que podem ser induzidos e controlados voluntariamente10 10 “Entre os Barasana (Hugh-Jones, 1979: 10), através do sonho entra-se em contato com o mundo dos ancestrais (he) de forma involuntária, embora o xamã estabeleça contato com esse mundo de forma voluntária. Observa-se o mesmo tipo de associação entre os yaminawa: o sonho como forma incontrolável de entrar em contato com o mundo dos espíritos, e o uso de alucinógeno, pelo xamã, para ter acesso controlado àquele mundo (Townsley, 1988: 127). A mesma distinção entre sonhador (processo involuntário) e xamã (processo voluntário) pode ser reconhecida entreos pirahã” (Gonçalves, 2001: 269). . Permanecendo alerta, ele mantém uma desconfiança constante das aparências e intenções de seus interlocutores, de modo que, ao retornar de suas andanças, ao amanhecer, é capaz de relatá-las com precisão e interpretá-las sem recorrer ao auxílio de outrem.

Entre os Parintintin, povo tupi kagwahiva do rio Madeira, as ações mais importantes do xamã, ipají, se fazem por meio dos sonhos (Kracke, 1987KRACKE, Waud. 1987. “Myths in dreams, thought in images: an Amazonian contribution to the psychoanalytic theory of primary process”. In: TEDLOCK, Bárbara (ed.). Dreaming: anthropological and psychological interpretations. Cambridge, Cambridge University Press , pp. 31-54., 1988KRACKE, Waud. 1988. “J’ai souvent été trompé lorsque je dormais: a gramática onírica Kagwahiv”. Trabalho oferecido ao 46º Congresso dos americanistas, Amsterdam, Julho de 1988., 1989KRACKE, Waud. 1989. “O poder do sonho no xamanismo Tupi (Parintintin)”. Série Antropológica, n. 79. Brasília: UnB., 1992KRACKE, Waud. 1992. “He Who dreams. The nocturnal source of transforming power in Kagwahiv shamanism”. In: LANGDON, Esther & BAER, Gerhard. Portals of power: shamanism in South America. Albuquerque, University of New México Press, pp.127-148.). O sonho não é somente uma via de aquisição de conhecimentos e de comunicação com mundo extrassensível; ele é igualmente o veículo através do qual o xamã exerce seu poder para transformar ou influenciar as condições ou eventos no mundo. A partir dos seus sonhos, o xamã pode tornar disponível caça para um caçador - o verbo usado para descrever esta ação é o verbo -hãmongó, “trazer boa caça através dos sonhos” (Kracke, 1992KRACKE, Waud. 1992. “He Who dreams. The nocturnal source of transforming power in Kagwahiv shamanism”. In: LANGDON, Esther & BAER, Gerhard. Portals of power: shamanism in South America. Albuquerque, University of New México Press, pp.127-148.:138; ver também Magaña, 1990MAGAÑA, Edmundo. 2000 (1990). “Zarigueya, Señor de los sueños. Uma teoria tareno”. In: PERRIN, Michel (ed.). Antropología y experinecias del sueño. Quito: Abya-Yala, pp.117-144.) -, vingar-se dos inimigos, enviar doenças e curá-las ou, ainda, fazer uma mulher conceber uma criança (Kracke, 1992KRACKE, Waud. 1992. “He Who dreams. The nocturnal source of transforming power in Kagwahiv shamanism”. In: LANGDON, Esther & BAER, Gerhard. Portals of power: shamanism in South America. Albuquerque, University of New México Press, pp.127-148.; ver também Saladin d’Anglure e Morin, 1998SALADIN D’ANGLURE, Bernard. & MORIN, Françoise. 1998. “Mariage mystique et pouvoir chamanique chez les shipibo d’Amazonie péruvienne et les Inuit du Nunavut canadien”. Anthropologie et Sociétés, v. 22, n. 2: 49-74. DOI: https://doi.org/10.7202/015537ar
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; Colpron, 2004COLPRON, Anne-Marie. 2004. “Dichotomies sexuelles dans l’étude du chamanisme: le contre-exemple des femmes chamanes shipibo-conibo”. Montreal,Tese de doutorado, Universidade de Montréal.). Os sonhos dos xamãs se distinguem por seu poder causativo; em vez de prefigurar ou vislumbrar um futuro possível, o xamã é aquele que sobredetermina a realidade, produzindo-a ativamente. Tal mudança de estatuto alarga as fronteiras diplomáticas e perceptivas do xamã e, embora o controle que exerça no domínio onírico não sublime todos os riscos, os sonhos podem servir de modelo para pensar exercício do poder xamânico. Se “todo mundo que sonha tem um pouco de pajé”, como assinala Kracke (1987KRACKE, Waud. 1987. “Myths in dreams, thought in images: an Amazonian contribution to the psychoanalytic theory of primary process”. In: TEDLOCK, Bárbara (ed.). Dreaming: anthropological and psychological interpretations. Cambridge, Cambridge University Press , pp. 31-54.) para os Parintintin, colocação que repercute alhures (Fausto, 2001FAUSTO, Carlos. 2001. Inimigos fiéis: história, guerra e xamanismo na Amazônia. São Paulo, Edusp.: 341; Gonçalves, 2001GONÇALVES, Marco Antônio. 2001. O mundo inacabado. Ação e criação em uma cosmologiaamazônica. Rio de Janeiro, UFRJ.: 268; Lagrou, 2007LAGROU, Els. 2007. A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro, Topbooks.: 377; Langdon, 1999LANGDON, Esther. 1999. “Representações do poder xamanístico nas narrativas dos sonhos Siona”. Ilha, v. 1, n. 1, 2: 35-56.: 39; e outros), então, o que distingue o xamã do não iniciado é menos uma questão do que se “é” que algo que se “tem”. Trata-se antes de uma qualidade ou capacidade adjetiva e relacional que de um atributo substantivo (Viveiros de Castro, 2002VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002. A inconstância da alma selvagem. São Paulo, Cosac & Naify .: 322). Certa vocação xamânica pode, por exemplo, expressar-se através de intensa atividade onírica; e o processo iniciatório para tornar-se xamã requer um longo e penoso aprendizado, no qual os sonhos também desempenham uma função crucial na transformação da condição do noviço (Cesarino, 2008CESARINO, Pedro Niemeyer. 2008. Oniska: a poética da morte e do mundo entre os Marubo da Amazônia ocidental. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, UFRJ/Museu Nacional.: 129, 133-ss; Chaumeil, 1983CHAUMEIL, Jean Pierre. 1983. “ L’autre sauvage. Chamanisme et altérité”. In: DESCAMPS, Christian. (dir.). Amériques latines: une altérité. Paris: Éditions du Centre Pompidou, pp. 69-89.; Crocker, 1987CROCKER, Jon Christopher. 1985. Vital souls. Tucson, Arizona, The University of ArizonaPress.: 201-202; Kopenawa; Albert,2015; Perrin, 1992PERRIN, Michel. 1992. Les praticiens du rêve: un exemple de chamanisme. Paris, PUF.; Reid, 1978REID, Howard. 1978. “Dreams and their interpretation among the Hupda maku indians of Brazil”. Cambridge Anthropology, v. 4, n. 3: 1-28.: 9; Vilaça, 1992VILAÇA, Aparecida. 1992. Comendo como gente. Rio de Janeiro: ANPOCS & Editora da UFRJ.: 77-85).

CONSIDERAÇÕES FINAIS: O TEMPO DESARMÔNICO

Conforme apresentei, a função da interpretação não é produzir a inteligibilidade de um sentido oculto, uma forma disfarçada de realização de desejos e que, por isso, sobre ele incide uma censura cujo efeito é a deformação onírica. Enfatizo que a interpretação não consiste em decodificar uma mensagem expressa em linguagem cifrada, antes, a causa das dificuldades decorrem do trabalho de corrigir as deformações perceptivas dos acontecimentos, a fim de desmascarar as intenções outras. A restituição tardia da reflexividade do sonhador restringe, ao despertar, a reversão da desordemsemiótica: énessemomentoqueemergemasdúvidasquantoàidentidade dos seres oníricos. No entanto, nem todo sonho provoca inquietação: alguns podem passar despercebidos, sem serem submetidos à interpretação ou mobilizarem qualquer ação profilática. O mais comum é que os sonhos que deixam indícios corporais, como cansaço, dores, gosto ruim na boca, falta de apetite, ou alguma enfermidade, dispendam maiores esforços. Por isso, considerar a condição física após o despertar é essencial para compreender os eventos da noite e seus efeitos.

Novamente, nãosãotodosossonhosquerequisitamextensasinterpretações, o que não quer dizer que constituam ações finalizadas; ao contrário, como todo sonho, estes também implicam a continuação na vigília para que sejam feitos eficazes. Em outras situações, interpretar os sonhos serve para desfazê-los, ou seja, para desmanchar os acontecimentos que foram postos em curso. E há casos em que a tênue memória do sonho, que se esmaece com facilidade, é a razão do seu esquecimento ocasional, ainda que técnicas mnemônicas sejam usadas. Os espaços criados pelos caprichos da memória acabam sendo preenchidos com reformulações posteriores, uma vez que o esquecimento não invalida os efeitos que persistem paralelamente à vida. Esta é uma característica notável dos sonhos, acordar não é suficiente para interrompê-los, pois os eventos oníricos ultrapassam quem os sonhou: após o despertar, o sonhador deixa de ser uma de suas causas - ainda que não muito eficiente - e tais eventos ganham certa “autonomia”.

O esforço interpretativo se assemelha à diagnose: o intérprete procede à análise das evidências, a acuidade do seu discernimento lhe sugerirá que evento está em curso. Se for bem sucedido, poderá contemplar suas possibilidades, inscritas no presente, e dirigi-las em vista de efetivar as alternativas que lhe sejam mais proveitosas. Assim, os sonhos pedem mais que sua interpretação, pois não é suficiente decifrá-los, mostrando que a vida tem muito mais de sonho do que a memória permite alcançar. Isso não significa que abro mão da importância da exegese, apenas pretendo pôr em relevo a dimensão pragmática do segundo momento da onirocrítica. Essa paisagem onírica está distante dos desígnios impenetráveis da providência ou das determinações implacáveis das leis naturais. Por esse aspecto, esclareço, não me valho do termo “oniromância”11 11 De acordo com o funcionamento das “ chaves dos sonhos”, as imagens oníricas, reduzidas a fórmulas esquemáticas, correspondem a interpretações precisas, que são presságios. Quanto aos processos mentais de decifração, estes seriam universais, mas cada sociedade combinaria suas regras lógicas à sua maneira, privilegiando algumas delas. Nessas análises, fala-se de “oniromância” (Perrin, 1992), na medida em que as chaves revelam os medos, as ansiedades e as obsessões, e constituem um modo de lidar com o infortúnio: “les clés de songes sont un témoignage pathétique de ce désir qu’a l’homme de comprendre ce qui frappe et d’avoir prise sur son destin” (ibidem: 50). Vários trabalhos (Basso, 1987; Gregor, 1981; Guss, 1980; Magaña, 1990; Reid, 1978) buscam constituir um léxico onírico fechado, fundamentado em equivalências que correlacionam as imagens sempre idênticas, termo por termo, num registro finito comum, a situações particulares. , usada para a arte da previsão do futuro, com base na interpretação das imagens da noite.

A contemplação de vários futuros possíveis, não limitados a um tempo único e linear, e a neutralização de eventos ocorridos, contradizendo a noção de passado fechado e futuro aberto, levantam questões acerca da natureza peculiar do tempo subjacente ao fenômenos. A possibilidade de contrafactuar os acontecimentos oníricos e reduzi-los a “não-eventos”,revertendo o fluxo corriqueiro do tempo. O futuro não é um destino ao qual se está predestinado por uma necessidade absoluta. Ao contrário, o sonho se opõe à coerção: ao permitir entrever os futuros possíveis, vai contra a fatalidade dos presságios. O presente dos acontecimentos em curso, então, não é um parâmetro contundente para orientar a ordem dos acontecimentos, quer dizer, o movimento do anterior para o posterior, a flechado tempo única e linear, já não tem prioridade diante dos desvios que podem ser feitos. O sonho relativiza a preponderância do presente, do atual. A dinâmicado tempo, vista através dos sonhos, não altera somente a direção da flecha do tempo, pois esse efeito seria irrisório; aqui, o princípio de uma “mão única” do tempo é que está abolido. Sem uma sucessão obrigatória, os desvios tornam compossíveis diferentes incompossíveis, fazendo existir passados não realizados, por exemplo. Os quase-eventos de uma linha temporal desfeita também integram a dinâmica do tempo múltiplo. Isso porque o trânsito diário entre as perspectivas do corpo e da alma não fixa de antemão, em nenhuma delas, uma orientação inevitável para os eventos, na medida em que os sonhos afirmam várias direções concomitantes, paralelas, num sistema aberto.

Enquanto saber prático, o sonho se conjuga antes no pretérito imperfeito que no perfeito. Esse é um aspecto singular dos acontecimentos oníricos: eles não se concluem durante o sono; em outros termos, seus efeitos estão reservados para a vigília. Portanto, a natureza do evento, na vida desperta, difere daquela das causas geradas em sonhos. Isto porque essa heterogeneidade faz pensar numa duplicidade da causalidade, ou seja, um evento se submete, por um lado, a causas materiais, “reais” (entenda-se, aquelas dos sonhos), e, por outro, a causas incorporais, quase-causas que beiram a ficção (leia-se, aquelas causas produzidas em sonho depois que transpõem o despertar). Nos sonhos, porém, as causas são ineficazes, estéreis e impenetráveis; é só passando à vigília que seu estatuto se altera; agora, como quase-causas, rompida a relação causal que regem os sonhos, seus efeitos assumem uma certa independência. Assim, se fazem sentir na vigília à maneira das ondas concêntricas sobre a água estanque: não se viu efetivamente a pedra cair, todavia, ainda são visíveis as ondulações que a queda produziu.

As técnicas profiláticas neutralizam as ações postas em curso evitando sua efetivação. A medida mais comum é o resguardo nos dias subsequentes ao sonho que se quer dissipar; recomenda-se, principalmente, evitar locais distantes ou isolados da aldeia. Mas o que foi sonhado pode ser desfeito de modos variados: os Parintintin, logoaoacordar,podem realizaroritode“quebrarremédio”,opohãmondók,que consiste em desmanchar uma folha de palha, pedaço por pedaço, dizendo o efeito pretendido, por exemplo, “sonhei à toa... ele não vai pegar molestia” (Kracke, 1989KRACKE, Waud. 1989. “O poder do sonho no xamanismo Tupi (Parintintin)”. Série Antropológica, n. 79. Brasília: UnB.: 14). O mesmo resultado é obtido pelos Parintintin quando os sonhos são contados rapidamente junto ao fogo; semelhantemente, para garantir que o sonho se efetive, ele deve ser narrado longe das chamas (idem, 1987: 33). Já os Zápara, da Amazônia peruana, depois de um sonho ruim, podem se lavar pela manhã, pois a água leva os sonhos e livra a pessoa que os experimentou de suas consequências nefastas. Ela pode também optar por não se levantar, ou pelo menos permanecer em casa, se estiver na aldeia ou mesmo na cidade. Em geral, quando constatam que o sonho foi ruim, não há alternativa de sonhar outra coisa ou modificar o curso do sonho. Destarte, do mesmo jeito que afastam a chuva em direção a outro rio ou a outra aldeia com um sopro e um gesto da mão, afugentam o sonho ruim em direção a outras pessoas: “cuando sueñas mal, te lavas la cabeza, y dices soplando: ‘Paytas muskuchingui iritsata! Suuuuuuuu’”(lit. Faça-o sonhar mal!) (Bilhaut, 2011BILHAUT, Anne-Gaël. 2011. El sueño de los Záparas: patrimonio onírico de un Pueblo de laAlta Amazonía. Quito, FLACSO, Sede Equador, Edições Abya-Yala.: 234). Entre os Goajiro, quando um sonho anuncia uma desgraça, a estrategia é “fazer passar” o que foi sonhado, modificando os planos feitos para o dia e realizando atos rituais apropriados - o comum é o sacrifício de algum animal(Perrin, 1992PERRIN, Michel. 1992. Les praticiens du rêve: un exemple de chamanisme. Paris, PUF.: 54).

Entre os Paumari, povo arawá da região do médio Purus, contar os sonhos ao amanhecer é a ação profilática central, sobretudo caso o sonho seja ruim. Sobre esse “princípio”, esclareceu-me uma senhora Paumari com um relato pessoal de um sonho que seu marido havia esquecido de lhe contar há alguns anos. Certa vez, seu marido foi pescar e acabou picado por uma cobra. Sua vida foi salva pelos missionários, que o levaram de avião para a cidade. Ele se lembrou, logo em seguida, que não havia contado um sonho que tivera na noite anterior. Quando voltou machucado da pescaria, falou à sua esposa: “Você se lembra do sonho que eu disse que tinha que te contar?”. Essa foi a causa do acidente, segundo ela, pois se ele tivesse contado o sonho, talvez a picada tivesse sido evitada. Ele também não deveria ter saído de casa, pelo menos não nos próximos dias, e deveria ter permanecido alerta. Só assim é possível evitar que o sonho se realize. Se um sonho ruim é contado, então, nas palavras dela: “ele passa” (Shiratori, 2013: 125).

Essa mesma precaução foi assinalada por Fátima Paumari da aldeia Crispim. Relatando sonhos comuns e seus efeitos frequentes, na maioria das vezes ruins, ela enfatiza: “mas, se a gente conta o sonho, ele não vai acontecer. Tem que contar sempre porque, então, não acontece. É um tipo de proteção. A gente tem que se cuidar se sonhou”. Outra técnica utilizada consiste em cutucar o nariz com o talinho [pecíolo] de uma folha até espirrar:

“para [o sonho] não acontecer, você pega uma folha bem novinha de uma árvore. Então, tira todas as partes até deixar o talinho. Mete isso no nariz e fica cutucando, até espirrar. Assim, depois de espirrar, aquele sonho não vai acontecer. Você espirra o sonho. Aquilo não vai acontecer” (Shiratori, 2013: 126).

Contudo, frequentemente, os sonhos são esquecidos. Mas esquecê-los não os dissipa, posto que esses sonhos perdidos seguem existindo e acabam ocorrendo, à revelia de quem os sonhou. Essas situações parecem inverter aordem corriqueira dos acontecimentos: desprecavido sobre o que lhe aguarda, o sonhador irá viver as causas da qual o sonho é o efeito, numa espécie de “retrocausalidade”. Ele atualizará esses eventos e só se dará conta após “concretizá-los” em sua vida desperta. Cito, novamente, um trecho de uma conversa com Fátima Paumari:

Se eu dormir, aí eu sonho. Eu não estou pensando que vai acontecer aquilo, mas “vadami” [sonho] traz uma coisa que vai ser difícil para mim. A gente vai passando: “masiko” [mês] 1, “masiko” 2, “masiko” 3, até um ano ou dois. Quando parece que a gente esquece aquele sonho, quando não está nem mais lembrando, ele acontece. A família da gente pode adoecer e vai até a morte. Isso é o “vadami”. E a gente fala: “por isso que eu sonhei aquele sonho, agora ele realizou com a morte”.

Tudo se passa como se houvesse um desnível temporal entre esses dois mundos.Omundo-outro antecipando este mundo. Basso (1987BASSO, Ellen. 1987. “The implications of a progressive theory of dreaming”. In: TEDLOCK, Bárbara (ed.) Dreaming: anthropological and psychological interpretations. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 86-104.: 97) também relata situação semelhante entre os Kalapalo: “quando Agifuticortou seu pé com um machado, seu pai, Kakaku, imediatamente perguntou se ele teve um sonho ruim na noite passada, e, recebendo uma resposta negativa, insistiu a seu filho que ele talvez tenha se esquecido que recentemente teve um sonho no qual se feria”. Muitos dos sonhos analisados parecem assumir a aparência de previsões ou anúncios do porvir, não obstante, como visto, eles não dizem respeito exatamente ao futuro. Tampouco os sonhos são feitos com base no passado, não são revisões de lugares comuns vividos.

A onirocrítica ameríndia não se fundamenta em interpretações progressivas ou regressivas, seu foco incide na passagem do onírico à vigília. Em outras palavras, todo sonho demanda uma ação específica, uma pragmática fundada na virtualidade da dimensão onírica. Não é pretérito, posto que permanece em curso, mesmo após o despertar, porém, sem constranger o sonhador se impondo a ele como um destino. O trabalho interpretativo é um meio de alterar a ordem dos acontecimentos levando em consideração certas prefigurações tecidas nos sonhos. Consiste em identificar as possibilidades emergentes12 12 Emprego a expressão “possibilidade emergente” no sentido proposto por Michael Brown em sua análise dos sonhos Aguaruna (1987), do Alto Rio Mayo, Peru, para os quais os sonhos alteram a noção de causalidade. Segundo sua teoria, os sonhos são experiências que revelam “possibilidades emergentes” ou prováveis, eventos que estão se desenvolvendo, mas que ainda não são fatos completos, pois ainda não ocorreram na vigília. Quando, por exemplo, uma mulher encontra uma pedra que suspeita ter o poder de ajudar no crescimento da mandioca, ela procura em seus sonhos por sinais que confirmem suas hipóteses. Confirmado o poder da pedra pelo sonho, ela completará os procedimentos que a transformam em um amuleto (nantag) que promove o crescimento da planta. De maneira similar, um homem que sonha que está beijando uma mulher atraente sabe que seu sonho assinala uma caçada bem sucedida. Portanto, logo que acordar de tal sonho (chamado de kuntúknagbau), ele sairá, na primeira luz da manhã, em busca de caça. A lógica reversa se aplica aos sonhos de infortúnio: se um homem sonha com picada de cobra, ele permanecerá os próximos dias em casa para se prevenir que essa possibilidade, no momento somente emergente, se torne realmente um evento trágico. , eventos que estão sendo gestados em terra estrangeira. Parafraseando Spadafora (2010SPADAFORA, Ana Maria. 2010. “Cumplí tu sueño: pedagogía de la oniromandia y conocimiento práctico entre las mujeres Pilagá del Gran Chaco (Formosa, Argentina)”. Mundo Amazónico, v. 1: 89-109.: 96), em sua análise dos sonhos pilagá, a onirocrítica ameríndia é uma estrutura prática destinada a questionar, reverter e modificar o curso da vida das pessoas. A possibilidade de manipulação dos eventos oníricos aponta para um aspecto crucial, mas até o momento mal considerado: a temporalidade múltipla - não a sucessão, mas a coexistência de tempos distintos. Os símbolos oníricos são quase sempre interpretados como predições do futuro, o formato padrão para explicar o sonho é: “se eu sonho isso, então aquilo ocorrerá”. Entretanto, menos que prever um evento futuro, o sonho traz à luz eventos virtuais que não foram notados pela pessoa na vigília; é uma mirada mais profunda nas condições não atualizadas do presente.

O sonho como acontecimento contraria frontalmente figuras que fundamentam a representação habitual do tempo: a linha, a flecha (mesmo invertida), o círculo, a espiral ou a fonte jorrando. Em termos conceituais, o tempo homogêneo e progressivo, o tempo cíclico, o tempo originário. Portanto, no emaranhado temporal que entrelaça sonho e vigília, composto de diversas escolhas possíveis, a onirocrítica indígena não é se submeter a um resultado previsto, mas moldar o próprio real.

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  • 1
    “Almost the opposite situation obtains in the case of Western interpretive patterns, including psychoanalysis. Here, dreams are considered irrelevant to the public; they do not provide access to a realm of common interest, for which, on the contrary, everyday waking experience - and especially visually confirmable experience - is Paramount. This is why we want to hear a leader’s waking thoughts about the world, but we never discuss his or her dreams. For psychoanalysis, dreams are important for what they reveal about individuals, but not for what they reveal about reality. Like fiction, they do not reflect a different facet of a complex reality, but rather fantasy or imagination or unreality” (Urban,1996URBAN, Gregory. 1996. Metaphysical community: the interplay of the senses and the intellect. Austin, University of Texas Press.: 8-9).
  • 2
    “Longe, muito distante minha alma vaga”, dizem os Mehinaku povo de língua arawak do Alto Xingu, ao iniciar um relato onírico (Gregor, 1981GREGOR, Thomas. 1981. “Far, far away my shadow wandered…: the dream symbolism and dream theories of the Mehinaku Indians of Brazil”. American Ethnologist, v. 8, n. 4: 709-720. DOI https://doi.org/10.1525/ae.1981.8.4.02a00030
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    ). Esse discurso é marcado pela separação do narrador da experiência narrada: para tal adotam termos que denotam distância espacial e utilizam a terceira pessoa. Mesmo quando os sonhos são contados na primeira pessoa, o narrador pode fazer uma pausa para identificar o ator principal do drama: “Não era eu — foi minha alma no meu sonho que fez essas coisas”. Sobre os sonhos que não são lembrados, o sonhador se vale igualmente da terceira pessoa para se afastar deles. Em vez do pessoal, “eu não me lembro o que sonhei”, os Mehinaku falam de seus sonhos como se deles estivessem apartados, como se fosse uma coisa externa: “isso se escondeu de mim”. Os Mehinaku se separam dos seus sonhos, atribuindo-os às ações de outrem: “parecem se aproximar da posição passiva do espectador, semelhante a quem assiste à televisão ou a uma performance teatral” (Gregor, 1981GREGOR, Thomas. 1981. “Far, far away my shadow wandered…: the dream symbolism and dream theories of the Mehinaku Indians of Brazil”. American Ethnologist, v. 8, n. 4: 709-720. DOI https://doi.org/10.1525/ae.1981.8.4.02a00030
    https://doi.org/10.1525/ae.1981.8.4.02a0...
    : 712).
  • 3
    Mas há uma diferença fundamental entre as duas situações. Os encontros solitários na floresta não são determinados de antemão, pois a presa potencial ainda pode recorrer ao benefício da dúvida, posto que não foi privada da consciência de que as aparências enganam. Suspeitar permanece uma opção; não responder às interpelações é uma possibilidade. O caçador, por exemplo, pode manter sua intenção predatória se dirigir o seu olhar primeiro, se vir antes de ser visto, de maneira a não se deixar determinar pelo olhar da alteridade que pode transformá-lo em presa. O sonhador, por outro lado, é, por definição, desavisado, ele não duvida das aparências, responde prontamente ao chamado dos seus interlocutores e acaba induzido a distorções perceptivas e a equívocos semióticos.
  • 4
    “É verdade! Se os xapiri não tivessem o olhar fixado em nós, não poderíamos sonhar tão longe. Apenas dormiríamos como lâminas de machado no chão da casa” (Kopenawa; Albert, 2015: 463).
  • 5
    Em muitas pesquisas é patente a centralidade do arcabouço conceitual psicanalítico na adoção da distinção entre “conteúdo latente” e “conteúdo manifesto” (Basso, 1987BASSO, Ellen. 1987. “The implications of a progressive theory of dreaming”. In: TEDLOCK, Bárbara (ed.) Dreaming: anthropological and psychological interpretations. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 86-104.; Gregor, 1981GREGOR, Thomas. 1981. “Far, far away my shadow wandered…: the dream symbolism and dream theories of the Mehinaku Indians of Brazil”. American Ethnologist, v. 8, n. 4: 709-720. DOI https://doi.org/10.1525/ae.1981.8.4.02a00030
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    ; Krauck, 1987KRACKE, Waud. 1987. “Myths in dreams, thought in images: an Amazonian contribution to the psychoanalytic theory of primary process”. In: TEDLOCK, Bárbara (ed.). Dreaming: anthropological and psychological interpretations. Cambridge, Cambridge University Press , pp. 31-54., 1988KRACKE, Waud. 1988. “J’ai souvent été trompé lorsque je dormais: a gramática onírica Kagwahiv”. Trabalho oferecido ao 46º Congresso dos americanistas, Amsterdam, Julho de 1988., 1989KRACKE, Waud. 1989. “O poder do sonho no xamanismo Tupi (Parintintin)”. Série Antropológica, n. 79. Brasília: UnB., 1992KRACKE, Waud. 1992. “He Who dreams. The nocturnal source of transforming power in Kagwahiv shamanism”. In: LANGDON, Esther & BAER, Gerhard. Portals of power: shamanism in South America. Albuquerque, University of New México Press, pp.127-148., dentre outros autores). Haveria uma mensagem expressa em linguagem obscura a ser desvendada, posto que o sonho recordado é somente um substituto deformado de outra coisa, de um conteúdo inconsciente, ao qual se pretende chegar através da interpretação. O sonho se inscreve, assim, em dois registros: um que corresponde ao sonho lembrado e contado pela pessoa — o conteúdo manifesto —, e um oculto, inconsciente, que se atinge pela interpretação — os pensamentos oníricos latentes. Encontrar o sentido de um sonho seria, portanto, percorrer, através da interpretação, o caminho que leva do conteúdo manifesto aos pensamentos latentes. Além disso, esses estudos misturam elementos do “método de decifração” quando se valem de uma concepção unívoca do conteúdo simbólico, resultando em correlações precisas entre um signo e um efeito particular.
  • 6
    Nos termos de Gregory Urban (1996URBAN, Gregory. 1996. Metaphysical community: the interplay of the senses and the intellect. Austin, University of Texas Press.: 222): “The implicit theory of dreams may be rendered as follows: in the course of dreaming, one’s own spirit wanders about. It encounters other spirits, both human and nonhuman. The nonhuman spirits present themselves in a variety of guises, both animal and human. Not all dreams envolve encounters with nonhuman spirits and ghosts, but some of them - indeed, almost all that socially circulate - do. The art of interpretation consists in identifying a dream figure as adisguised spirit”.
  • 7
    Clearly, all of us almost always escape. Almost always nothing happens: or more exactly, something always almost-happens. This is precisely how the subjectivities that wander the forest are typically experienced by the Indians - they are usually only almost-seen, communication is almost-established. And the result is always an almostdeath. The almost-event is the supernatural’s defautmode of existence. We need tohave almost-died to be able to tell” (Viveiros de Castro, 2012VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2012. “Immanence and fear: stranger-events and subjects in Amazonia”. HAU Journal of ethnographic theory, v. 2, n. 1: 27-43. DOI https://doi.org/10.14318/hau2.1.003
    https://doi.org/10.14318/hau2.1.003...
    : 38).
  • 8
    O método estrutural aplicado aos sonhos se baseia na ideia de que aatividade onírica opera como uma forma de bricolagem similar àquela do pensamento mítico. A analogia entre mito e sonho se deve ao uso comum que fazem de certos tipos de processos mentais, não por uma questão de identidade de conteúdo simbólico (Descola, 1989DESCOLA, Philippe. 1989. “HeadShrinkers versus shrinks: jivaroan dream analysis”. Man, v. 24, n. 3: 439-450. DOI https://doi.org/10.2307/2802700
    https://doi.org/10.2307/2802700...
    : 439). A análise estrutural dos sonhos consiste em extrair das imagens oníricas relações elementares, dissociá-las em unidades lógicas mínimas, às quais são aplicadas regras de homologia, inversão e permutação que fazem aflorar seu sentido. Assim, centra-se menos na interpretação metafórica dependente de um léxico icônico, ou de um conjunto de “chaves dos sonhos” estereotipadas, que em uma gramática que combina as regras estruturais e os vários códigos, num procedimento homólogo àquele da análise estrutural dos mitos. Isto significa que o simbolismo onírico não se reduz à mera comparação ou correlação estável entre um signo e seu sentido, ou seja, a linguagem metafórica não opera pela transferência de sentido entre dois termos. A relação passa a ser entre códigos: de uma categoria ou classe de termos para outra classe ou categoria. A afinidade do método é reveladora de uma afinidade entre os objetos, segundo Descola: mito e sonho se movem de maneira similar do sensível para o inteligível, do concreto para o abstrato (1989: 448). Os sonhos, também como os mitos, acionam uma pluralidade de códigos simbólicos dos quais nenhum deles é mais relevante que os demais, a ponto de ser tomado isoladamente. Por isso, vale para o sonho o que é dito para o mito: “nenhum código é mais verdadeiro do que outro: a essência ou, se quiserem, a mensagem do mito se apoia na propriedade comum a todos os códigos, enquanto códigos, de ser mutuamente conversíveis” (Lévi-Strauss, 1985LÉVI-STRAUSS, Claude. 1985. A oleira ciumenta. São Paulo, Editora Brasiliense.: 231).
  • 9
    A categoria dos sonhos póstumos e dos ex-sonhos Parakanã complexificam a ideia de tempo envolvida no fenômeno onírico. A morte de um sonhador, em particular aquele que um dia foi chamado de “grande senhor da chuva” (amynjarohoa), provoca tempestades torrenciais com raios e vento. Essa chuva resulta de sua atividade onírica passada, seus sonhos têm continuidade mesmo após sua morte, pois osresquícios desses acontecimentos persistem como virtualidade. Os ex-sonhos, -poahipawerropi, deixam engendradas possibilidades que podem precipitar na vida desperta. As chuvas também podem ser provocadas por sonhos póstumos, porquanto a capacidade xamânica do morto permanece. Então, sonhos póstumos e os ex-sonhos podem se atualizar como eventos meteorológicos (Fausto, 2001FAUSTO, Carlos. 2001. Inimigos fiéis: história, guerra e xamanismo na Amazônia. São Paulo, Edusp.: 406-407).
  • 10
    “Entre os Barasana (Hugh-Jones, 1979HUGH-JONES, Christine. 1979. From the milk river: spatial and temporal processes in Northwest Amazonia. Cambridge, Cambridge University Press .: 10), através do sonho entra-se em contato com o mundo dos ancestrais (he) de forma involuntária, embora o xamã estabeleça contato com esse mundo de forma voluntária. Observa-se o mesmo tipo de associação entre os yaminawa: o sonho como forma incontrolável de entrar em contato com o mundo dos espíritos, e o uso de alucinógeno, pelo xamã, para ter acesso controlado àquele mundo (Townsley, 1988TOWNSLEY, Graham. 1988. Ideas of order and patterns of change in Yaminahua society. Cambridge, Tese de doutorado, University of Cambridge.: 127). A mesma distinção entre sonhador (processo involuntário) e xamã (processo voluntário) pode ser reconhecida entreos pirahã” (Gonçalves, 2001GONÇALVES, Marco Antônio. 2001. O mundo inacabado. Ação e criação em uma cosmologiaamazônica. Rio de Janeiro, UFRJ.: 269).
  • 11
    De acordo com o funcionamento das “ chaves dos sonhos”, as imagens oníricas, reduzidas a fórmulas esquemáticas, correspondem a interpretações precisas, que são presságios. Quanto aos processos mentais de decifração, estes seriam universais, mas cada sociedade combinaria suas regras lógicas à sua maneira, privilegiando algumas delas. Nessas análises, fala-se de “oniromância” (Perrin, 1992PERRIN, Michel. 1992. Les praticiens du rêve: un exemple de chamanisme. Paris, PUF.), na medida em que as chaves revelam os medos, as ansiedades e as obsessões, e constituem um modo de lidar com o infortúnio: “les clés de songes sont un témoignage pathétique de ce désir qu’a l’homme de comprendre ce qui frappe et d’avoir prise sur son destin” (ibidem: 50). Vários trabalhos (Basso, 1987BASSO, Ellen. 1987. “The implications of a progressive theory of dreaming”. In: TEDLOCK, Bárbara (ed.) Dreaming: anthropological and psychological interpretations. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 86-104.; Gregor, 1981GREGOR, Thomas. 1981. “Far, far away my shadow wandered…: the dream symbolism and dream theories of the Mehinaku Indians of Brazil”. American Ethnologist, v. 8, n. 4: 709-720. DOI https://doi.org/10.1525/ae.1981.8.4.02a00030
    https://doi.org/10.1525/ae.1981.8.4.02a0...
    ; Guss, 1980GUSS, David. 1980. “Steering for dreams: dream concepts of the Makiritare”. Journal of the latin American Lore, v. 6, n. 2: 297-312.; Magaña, 1990MAGAÑA, Edmundo. 2000 (1990). “Zarigueya, Señor de los sueños. Uma teoria tareno”. In: PERRIN, Michel (ed.). Antropología y experinecias del sueño. Quito: Abya-Yala, pp.117-144.; Reid, 1978REID, Howard. 1978. “Dreams and their interpretation among the Hupda maku indians of Brazil”. Cambridge Anthropology, v. 4, n. 3: 1-28.) buscam constituir um léxico onírico fechado, fundamentado em equivalências que correlacionam as imagens sempre idênticas, termo por termo, num registro finito comum, a situações particulares.
  • 12
    Emprego a expressão “possibilidade emergente” no sentido proposto por Michael Brown em sua análise dos sonhos Aguaruna (1987BROWN, Michael. 1987. “Ropes of sand: order and imagery in Aguaruna dreams”. In:TEDLOCK, Bárbara (ed.). Dreaming: Anthropological and psychological Interpretations. Cambridge, Cambridge University Press , pp. 154-170.), do Alto Rio Mayo, Peru, para os quais os sonhos alteram a noção de causalidade. Segundo sua teoria, os sonhos são experiências que revelam “possibilidades emergentes” ou prováveis, eventos que estão se desenvolvendo, mas que ainda não são fatos completos, pois ainda não ocorreram na vigília. Quando, por exemplo, uma mulher encontra uma pedra que suspeita ter o poder de ajudar no crescimento da mandioca, ela procura em seus sonhos por sinais que confirmem suas hipóteses. Confirmado o poder da pedra pelo sonho, ela completará os procedimentos que a transformam em um amuleto (nantag) que promove o crescimento da planta. De maneira similar, um homem que sonha que está beijando uma mulher atraente sabe que seu sonho assinala uma caçada bem sucedida. Portanto, logo que acordar de tal sonho (chamado de kuntúknagbau), ele sairá, na primeira luz da manhã, em busca de caça. A lógica reversa se aplica aos sonhos de infortúnio: se um homem sonha com picada de cobra, ele permanecerá os próximos dias em casa para se prevenir que essa possibilidade, no momento somente emergente, se torne realmente um evento trágico.
  • CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA:

    Não se aplica.
  • FINANCIAMENTO:

    Fapesp 2018/23468-1

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2021
  • Aceito
    10 Set 2021
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