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Notas sobre os Sonhos Yanomami

RESUMO

Este artigo pretende compreender alguns aspectos dos sonhos yanomami, como sua relação com a noite e com o pei utupë - imagem vital que constitui a pessoa yanomami. Neste sentido, apresento o cotidiano de uma casa coletiva e os momentos de uma festa intercomunitária reahu. Entre o dia-a-dia e a festa, passo pelo mito de origem da noite e pelas noções de pessoa e cosmos yanomami, buscando demonstrar como a relação entre a noite e a emergência do sonho e do sentimento de saudade supõe uma outra relação mais profunda entre a noite e a manifestação do pei utupë.Também procuro demonstrar como a festa intercomunitária reahu, ocasião em que se realiza os ritos funerários, se constitui como um simulacro do céu dos pore, destino póstumo yanomami, tomando a forma de um grande sonho.

PALAVRAS CHAVE:
Yanomami; sonhos; imagem; saudade; morte

ABSTRACT

This article seeks to understand some aspects of Yanomami dreams, such as their relationship with the night and with the pei utupë - the “vital image”, one of the constituents of the Yanomami person. To highlight these connections, I present the daily life of a collective house and moments of a reahu intercommunity feast. I also touch on the myth of the origin of night and the notions of the Yanomami person and cosmos, seeking to demonstrate how the relationship between the night, the emergence of the ability to dream, and the feeling of longing, presupposes another relationship between the night and the manifestation of the pei utupë. I also try to demonstrate how the reahu intercommunity feast, when funeral rites are held, is a simulacrum of the heavenly life of the spirits of the dead (pore), the posthumous destiny of the Yanomami, the feast thus taking the form of a great dream.

KEYWORDS:
Yanomami; dreams; image; nostalgia; death

No fim da tarde vou visitar o velho Luigi, o xamã mais velho do Pya ú1 1 Pya ú é a comunidade yanomami onde realizei o meu trabalho de campo. Nesta ocasião localizava-se na região do Toototopi, Terra Indígena Yanomami, estado do Amazonas. Um ano depois da minha última estadia em campo os Pya ú thëri entraram em um conflito com uma comunidade yanomami localizada do lado da Venezuela. Após uma série de eventos, eles se mudaram para a região do Xihopi, próximo ao rio Mapulao e atualmente constituem a comunidade Kawani. Permaneci o período de 11 meses, transcorridos em etapas que se iniciaram em novembro de 2015 e foram até fevereiro de 2017. Naquela ocasião, o Pya ú contava com uma população de 154 pessoas divididas em duas malocas distantes uma da outra por uma breve caminhada de menos de 1km. , que tem aproximadamente 80 anos. Sento no banquinho e chego bem perto de sua rede para que possa me ouvir claramente. Luigi me olha e sorri. Olha para o centro descoberto da casa, procurando algo no céu que eu não alcanço. Aponta com seu braço comprido e me diz:

“Quando você for embora e o céu estiver desse jeito eu sentirei a sua falta”.

O céu estava daquele jeito quando o sol se põe ao entardecer, uma cor alarajanda tomava conta do horizonte, e aos poucos, ia dando lugar à escuridão. Junto com a lua e as estrelas, tomando conta do espaço, o som dos animais da noite surgia: ouvia-se a balbúrdia dos grilos e sapos, e dos Yanomami, que, de volta na casa, se reuniam com suas famílias ao redor do fogo que aquecia a comida, os corpos e as conversas.

Quando cai a noite é o momento em que se sente saudade. Também é somente à noite que se sonha, assim me diziam os Yanomami. Este artigo se constrói como uma tentativa de compreender por que os Yanomami associam o sonho e a saudade à noite.

Para tanto, realizo uma descrição de um dia no cotidiano da maloca do Pya ú, incluindo também momentos de uma festa reahu. Entre o dia-a-dia e a festa, passo pelo mito de origem da noite e pelas noções de pessoa e cosmos yanomami, buscando demonstrar como a relação entre a noite e a emergência do sonho e do sentimento de saudade supõe uma outra relação mais profunda entre a noite e a manifestação do pei utupë, i.e., da imagem vital da pessoa yanomami.

Também procuro demonstrar como a festa intercomunitária reahu, ocasião em que se realiza os ritos funerários, se constitui como um simulacro do céu dos pore, destino póstumo yanomami, tomando a forma de um grande sonho.

***

De dia não há espaço para sonhos, é preciso cuidar da vida. Os homens vão caçar ou vão para a roça com as mulheres, as crianças brincam e brincando cuidam dos seus irmãos mais novos. Até os cachorros não ficam parados, vão para a floresta com seus donos na expectativa de voltar no fim da tarde com alguma caça. As galinhas voam por todos os lados, cagando na casa de todos e sendo imediatamente enxotadas com pedaços de pau. O macaco-prego de estimação também não perde tempo, enquanto as galinhas não estão, sorrateiramente vai até seus ninhos e rouba seus ovos. Quando alguém vê e grita, o macaco corre desesperado pelo centro da casa tentando se desviar de uma chuva de paus e objetos que voam em sua direção. Os ovos vão caindo e quebrando no chão enquanto o macaco sobe pelo teto da casa e foge para o mato.

A casa de dia está vazia, todos estão muito ocupados nos seus afazeres. Com exceção dos doentes e dos mais velhos, ninguém fica deitado na rede de dia. As mulheres voltam para casa em torno do meio-dia, trazendo cestos cheios de macaxeira e de outros alimentos que encontraram na roça: cana-de-açúcar, milho, mamão, banana, etc. Deitam seus cestos diante de suas casas e logo se colocam a descascar macaxeira, para em seguida ralar e espremer a massa que será assada e transformada em beiju na manhã seguinte.

Os homens que saíram para caçar começam a voltar antes do escurecer, no fim da tarde. Esse momento é sempre de muita expectativa, mulheres e crianças ficam a espera para ver se seus filhos, maridos e irmãos voltaram com alguma caça.

A casa que ficou vazia o dia todo passa então a ganhar vida, a luz do sol vai aos poucos ficando cada vez mais escassa e o círculo dos fogos é que passa a dar vida à casa coletiva e às sombras que se projetam na parte baixa. As famílias se reunem em volta das panelas, que cozinham a carne dos animais caçados no dia, enquanto cozinha, mãos surgem de todos os lados molhando o beiju no caldo fervente, apaziguando temporariamente a fome de carne da gente. É nesta ocasião que os assuntos são colocados em dia. As crianças, numa gritaria só, dançam e brincam no centro da maloca, e fazem que não escutam os chamados insistentes de suas mães para que deixem de brincar e voltem para suas casas, pois já se fez noite. Mas é só quando a comida fica pronta, que, num piscar de olhos, os bandos infantis se desfazem e os pequenos vultos correm em direção aos seus fogos, buscando por um pedaço de carne que vão comer acompanhado de beiju, macaxeira ou banana cozida.

Enquanto comem, as pessoas ouvem os hereamu, discursos proferidos diariamente pelos mais velhos, os pata thë pë, no centro da casa. Essas falas iniciam-se assim que anoitece ou na alvorada, antes do amanhecer, e tratam de assuntos diversos como notícias ouvidas pela radiofonia, a organização de tarefas do cotidiano ou o planejamento de uma festa que se aproxima. Em geral, esses discursos duram horas, e muitas vezes continuam noite adentro.

Aos poucos a casa vai ficando silenciosa novamente, cada um volta para sua rede, os cachorros vão se ajeitando em meio às cinzas dos fogos tentando se aquecer, as crianças dormem saciadas de sua fome de carne. Cada família dorme em volta de um fogo, que é mantido aceso ao longo de toda a noite pelos abanos constantes das mulheres. São elas que mantêm os corpos aquecidos.

A casa dorme, mas o sono é geralmente cortado pelo choro de alguma criança ou pelo canto de um xamã. É o momento do sonho.

A noite dos Yanomami corresponde ao dia dos animais.Enquanto os Yanomami dormem e sonham, os animais saem a vagar pela floresta. A noite também é o dia dos pore pë, ou seja, dos mortos, e dos xapiri pë, espíritos auxiliares dos xamãs. Da mesma forma, quando de dia os Yanomami acordam e vão cuidar dos seus afazeres, esses animais vão dormir, pois para eles é noite. Essa inversão entre dia dos vivos e noite dos mortos/espíritos/animais parece ser fundamental para compreender a relação do sonho com a noite. Voltarei a essa questão mais adiante.

Na língua yanomae há algumas palavras utilizadas para expressar um sonho. Mari é uma delas, significa sonho (substantivo) e quando seguida de um sufixo orientador se torna um verbo. Kuramae thapi são duas outras palavras que também se referem a sonho, mas nos sonhos que me foram contados pelos Yanomami do Pya ú, foram menos utilizadas2 2 De acordo com a publicação mais atualizada sobre as línguas Yanomami no Brasil, haveria a existência de seis línguas da família Yanomami: 1) Yanomam, Yanomae, Yanomama ou Yanomami; 2) Yanomami ou Yanomami; 3) Sanöma; 4) Ninam; 5) Yaroamë e 6) Yãnoma, divididas por sua vez em dezesseis dialetos (Ferreira; Senra; Machado, 2019). A língua falada pelos Yanomami do Pya ú é o 1) Yanomae e os termos descritos no dicionário do Lizot (2004) corresponderia ao 2) Yanomami. . Kuramaé um verbo transitivo que diz respeito aos sonhos em que se vê pessoas que estão distantes, ou lugares afastados (Lizot, 2004LIZOT, J. 2004. Diccionario enciclopédico de la lengua yãnomãmi. Caracas, Vicariato Apostólico de Puerto Ayacucho .: 183). Já thapi é um substantivo que significa sonho, premonição, presságio que se tem em sonho; thapimou é sonhar com um lugar distante, com pessoas ausentes ou com um morto (Ibid.: 434).

Há ainda o verbo he tharëai que significa sonhar com alguém, escutar ruídos enquanto se dorme ou ainda uma visão obtida sob o efeito de substâncias psicoativas. He tharëprou significa ver em sonhos algo que se recorda claramente, e pode se referir ainda a capacidade de lembrar de lugares ou acontecimentos pertencentes ao passado (Ibid.: 81).

Quase todas as noites, um xamã entoa um canto. Dizem que seus espíritos auxiliares, os xapiri pë descem pelas cordas de suas redes e chegam bem perto de seus corpos tentando acordá-los: “Nós queremos cantar, acorde, pai!3 3 “Yamaki amoamuu pihio, wa rarayou, hwapa!” . O xamã então desperta e se põe a entoar um canto que vai noite adentro.

Outra razão que faz com que cantem à noite está relacionada aos sonhos com parentes. Foi o caso de Person, um xamã que havia sonhado com sua mãe que estava muito doente. Ao ver o pei utupë, ou seja, a imagem vital de sua mãe em sonho, pôs-se a cantar para enviar seus xapiri pë para a maloca onde ela morava. Claudio também havia sonhado com sua mãe em outra noite, mas nesse caso ela já havia falecido anos atrás. Disse que acordou com o pensamento triste e por isso pôs-se a cantar.

Sonhar com os mortos não é exclusividade dos xamãs, qualquer pessoa pode ser acometida com esse tipo de sonho, que em geral causa extrema comoção, pois revive, naquele que sonha, a lembrança do parente morto, e estabelece uma via de comunicação entre vivos e mortos que deve ser abolida. É durante essas visitas oníricas que a dor do luto é reanimada e pode continuar incessantemente até que as cinzas do morto em questão passem pelo devido tratamento funerário (Albert, 1985ALBERT, Bruce. 1985. Temps du sang, temps des cendres. Représentation de la maladie, espace politique et système ritual chez les Yanomami du sud-est (Amazonie brésilienne). Paris, Tese de Doutorado, Université Paris X - Nanterre.: 640).

Os sonhos com parentes distantes equivalem a uma forma atenuada dos sonhos com os mortos, já que tanto em um caso como no outro, se trata de pessoas que não estão. O que está em evidência sobretudo, é a distância temporal/espacial que por um lado separa os vivos dos mortos, e por outro os parentes vivos que se encontram em lugares distantes.

A possibilidade de juntar pessoas ou de aproximar lugares nos remete às diferentes dimensões espaciais e temporais que são postas em relação durante o tempo do sonho, mari tëhë. Uma dessas dimensões corresponde ao tempo mítico, onde os xamãs, seja pelo uso da yãkoana, seja através dos sonhos, acessam constantemente. Voltando aos cantos dos xamãs, aqueles entoados durante a noite são os mesmos entoados à luz do dia, mas há uma diferença crucial entre eles: de dia os xamãs inalam yãkoana, à noite não. Sob o efeito dessa substância psicoativa, o pei utupë do xamã se desprende do corpo e viaja por diferentes tempos e lugares, se deixando levar pelos caminhos luminosos e espelhados de seus espíritos auxiliares, os xapiri pë. Vê coisas que as pessoas comuns não são capazes nem sequer de imaginar.

No sonho, não apenas os xamãs como todas as pessoas passam por essa separação entre corpo e imagem. Processo análogo ocorre no momento da morte, o corpo, pei siki, se decompõe, a imagem, pei utupë se desprende definitivamente de sua base material e se transforma em um espectro, pore, que vai viver nas costas do céu, o hutu mosi.

A yãkoana é um pó resultado de um processo meticuloso de extração, secagem e pulverização da resina da casca de uma árvore (Virola enlogata), que pode ainda ser misturada a folhas secas e cinzas para potencializar seu efeito4 4 Para uma descrição mais detalhada das substâncias que podem compor a yãkoana e de seus efeitos ver Albert & Milliken (2009: 114-116). . Esse pó é inalado pelos xamãs durante as sessões de xamanismo diurno. O mundo ao qual a yãkoana dá acesso é feito de pura imagem, e é a própria imagem do xamã, uma vez separada do corpo, que vai percorrer esse universo imagético, permitindo que veja os eventos míticos enquanto estes se desenrolam em um continuum espaço-tempo.

Em um universo feito de pura imagem, a visão é atributo importante. A yãkoana inalada de dia desencadeia o mesmo processo que o sonho durante a noite. Ambos dão acesso a um mundo de imagens. Imagens que estão o tempo todo no mundo de fora, mas que só podem ser acessíveis por meio da imagem que está do lado de dentro do corpo, o pei utupë.

A imagem deixa o corpo durante o sonho e age como um pore, um espectro. Da mesma forma, quando um xamã está sob o efeito da yãkoana, se diz que ele está poremu5 5 Onde pore - espectro, fantasma; e -mu - sufixo derivacional que serve para descrever uma função ligada a um nominal. Assim, pore + mu = poremu, agir como um espectro, como um fantasma. . Esta mesma palavra também é utilizada para se referir a uma pessoa que fala enquanto dorme. Aliás falar dormindo é uma evidência clara de que a pessoa está sonhando. É por isso que os Yanomami dizem que os cachorros também sonham, pois os latidos e grunidos que soltam enquanto dormem são um sinal explícito de sua capacidade onírica.

Vimos, portanto, que tanto a yãkoana como o sonho agem sobre a imagem, ou melhor, é por meio do sonho e da yãkoana que a imagem age. Entretanto, a yãkoana deve ser inalada apenas durante o dia, enquanto o sonho só pode acontecer durante a noite. Inalar yãkoana de noite poderia desencadear um tipo de excesso, uma vez que a noite, sendo destinada ao sonho, já tornou possível a separação daquilo que de dia permaneceu unido, o corpo e sua imagem.

Entende-se dessa maneira o porquê da yãkoana ser inalada apenas de dia e não durante a noite. Entretanto, é importante colocar que sonho e xamanismo não se opõem um ao outro, pelo contrário, são faces da mesma moeda que se complementam ativa e continuamente6 6 Como coloca Albert: “o xamanismo noturno, associado aos sonhos, é parte fundamental do xamanismo yanomami. A iniciação e o trabalho xamânico parecem dominar a produção onírica dos xamãs, cujos sonhos são, assim, constituídos principalmente de restos alucinatórios do xamanismo diurno”. Ver Nota 23, p. 616 (Kopenawa & Albert, 2015). .

Porém, ainda fica sem resposta a questão do por que é só à noite que se sonha e por que é só no fim do dia que se sente saudade.

Na tentativa de elucidar essas questões apresento a seguir o mito de origem da noite.

MITO DE ORIGEM DA NOITE

No início a noite não existia, era sempre dia. Por isso as pessoas caminhavam muito pela floresta, caçavam e voltavam com sua presa e a comiam.

- Vão caçar, pois a noite não existe! - diziam os mais velhos.

Havia um yanomami chamado Yawarioma que caminhava sempre pela floresta. Devagar, ele ia por todas as direções. Um dia, caminhando sozinho, escutou a voz da noite. Era o mutum, que dizia:

- Ii-hi.

Ele era a noite e ensinava o nome dos rios em todas as direções. Chorando, dizia:

- Ii-hi, ii-hi, naquela direção está o rio Toototopi. Ii-hi, ii-hi, por ali há o rio Marito.

Assim Titiri, o mutum dono da noite, falava. Antes de ele ensinar o nome dos rios, nós não sabíamos. Foi com essas palavras que ele nos ensinou o nome das águas:

- Ii-hi, ii-hi, naquela direção está o rio Palimi u, ii-hi, ii-hi.

Assim Titiri dizia. Foi quando Yawarioma ouviu e procurou o mutum. Porém, ele não conseguia enxergar, pois ao redor de Titiri reinava a mais completa escuridão. Yawarioma voltou para sua casa e contou para sua mãe:

- Mãe, na floresta há um mutum, porém ao seu redor é tudo escuro.

A mãe deu as seguintes instruções:

- Coloque breu (warapa koko) num pedaço de pau e depois acenda com o fogo. Em seguida, fleche o mutum.

Yawarioma voltou para a floresta e foi ao encontro do mutum. Levou o breu e o colocou num pedaço de pau que acendeu com o fogo. Então levantou o pau, e o fogo iluminou Titiri. Ele estava lá, sentado sobre um galho. Depois que Yawarioma conseguiu enxergá-lo, flechou-o. “Thaiii! Thikuuuu! Throuu!”7 7 As onomatopeias são partes fundamentais das narrativas yanomami. No caso dos mitos, que são narrados, em geral, pelos xamãs, além de tornar a narrativa mais rica e a performance do xamã mais admirável, as onomatopeias trazem consigo detalhes que, longe de serem apenas um artifício da língua, indicam um refinamento acústico por meio do qual os Yanomami percebem e dão sentido ao mundo ao seu redor. Assim, foi-me explicado que esses três sons que se seguem logo após Yawarioma ter visto o mutum correspondem respectivamente a três momentos: o estalo da corda do arco no instante em que a flecha é lançada em direção ao mutum; o momento em que a flecha acerta o alvo; e o momento em que o mutum cai rodopiando no chão. Para mais considerações sobre a experiência acústica dos Yanomami, ver texto de Albert intitulado “A floresta poliglota”, disponível em: https://subspeciealteritatis.wordpress.com/2018/11/05/a-floresta- poliglota-bruce-albert/ .

Assim, a grande noite se espalhou por todos os lados, e ouviram-se as vozes dos animais noturnos. Os Yanomami dormiram. Antes os Yanomami não dormiam à noite, por isso eles não sonhavam - pois era sempre dia. Antigamente a noite não existia.

***

Essa é uma das versões do mito de origem da noite que me foi contada por Luigi, um dos grandes xamãs do Pya ú. Entre uma conversa e outra, ele me conta as viagens xamânicas que realiza e os mitos que conhece por meio dos seus sonhos. Sempre faz questão de dizer que só à noite é que se pode sonhar. Antes do surgimento da noite, os Yanomami dormiam quando sentiam vontade e saíam para caçar a qualquer hora, estavam indo e vindo o tempo todo.

Em outras versões, copulavam em plena luz do dia, escondendo-se atrás da fumaça de suas fogueiras (Cocco; Lizot; Finkers, 1991LIZOT, J. 1991. “Palabras en la noche - El diálogo Ceremonial, una Expresión de las Relaciones Pacíficas entre los Yanomami”. In: La Iglesia en Amazonas, Puerto Ayacucho, n. XII, v. 53: 54-72.). Com a morte de Titiri, a ordem temporal é instaurada. A partir de então, a noite será o momento para dormir e sonhar. À luz do dia se ocuparão das tarefas cotidianas, da caça, da roça, da pesca. Uma ordem espacial também surge: antes os Yanomami não sabiam para onde iam, mas Titiri nomeou os rios, os montes, mapeando, assim, os caminhos da floresta.

No mito apresentado acima, Yawarioma tenta flechar o mutum, porém ao seu redor reina a escuridão. Seguindo o conselho de sua mãe, o herói acende warapa koko na ponta de um pau e ilumina o mutum, conseguindo flechá-lo mortalmente.

Warapa koko8 8 Warapa koko é uma resina inflamável retirada da árvore warapa kohi (Protium spp.) e utilizada, entre outras coisas, na improvisação de tochas durante a noite. Ver Albert & Milliken (2009: 90). Ver também verbete warapa em Lizot (2004: 465). é um tipo de breu de fácil combustão que serve, entre outras coisas, para prender fogo. Essa resina também é usada pelos Yanomami quando querem parar de sonhar. Foi o caso de Ailton, que, após a morte de sua avó, passou a vê-la constantemente em sonhos. Angustiado, comentou o caso com a sua mãe, que imediatamente lhe preparou warapa koko, passando-o pelo fogo e esfregando-o contra sua pele. A partir dessa noite, Ailton deixara de sonhar.

Como vimos, no mito o warapa koko ilumina o mutum, dono da noite e da escuridão, para que este possa ser visto pelos Yanomami. Passada sobre o corpo, a resina faz com que a pessoa deixe de sonhar. Aqui, o warapa koko - que simboliza a luz - está para o mutum - símbolo da noite e da escuridão - da mesma forma que o dia está para a noite.

warapa koko (luz) : mutum (escuridão) :: dia : noite

Nessa equação o sonho apareceria no polo oposto ao warapa koko, uma vez que este tem a qualidade de acabar com ele da mesma forma que faz com a escuridão ao redor do mutum. A luz põe fim à noite e aos sonhos; e esses dois, por sua vez, opõem-se ao dia. Assim, em um mundo onde só havia a luz, o sonho não podia existir.

Se essa equação explica alguma coisa, ainda não esclarece o porquê dos Yanomami afirmarem que só à noite é que se sonha. Ora, a essa pergunta poderia-se facilmente responder que só à noite é que se sonha, porque é de noite que se dorme. Essa constatação óbvia ainda que responda a nossa pergunta, apenas o faz de maneira superficial. No mito, como vimos, antes da origem da noite os Yanomami dormiam de dia, mas não podiam sonhar. Foi apenas com a instauração da noite que sonharam pela primeira vez.

Aqui parece haver uma relação mais profunda entre aquilo que se refere à imagem vital da pessoa yanomami, o pei utupë, e o período do dia que corresponde à noite, e também a uma oposição entre o que corresponderia à noite dos vivos e o dia dos mortos/espíritos/espectros.

A fim de esclarecer um pouco mais essas questões, passo a seguir para descrição de alguns momentos de uma festa reahu. Essas festas são realizadas entre comunidades ligadas por laços de parentesco e aliança e são ocasiões nas quais se realiza o ritual funerário yanomami. Para que o morto possa se separar definitivamente do mundo dos vivos é preciso que seja dado às suas cinzas o devido tratamento. Vamos à festa.

REAHU - A FESTA DOS MORTOS

Fátima me chama, estamos atrasadas. A maloca está vazia, nem os cachorros ficaram. As mulheres já estão no mato. No fim da pista de pouso, pegamos o caminho à esquerda para encontrar as outras mulheres. Apesar da pressa, Fátima para, entra no mato e pega um caule que retira de uma planta, passa os dedos para tirar qualquer farpa e delicadamente insere-o no septo nasal. Olha para mim e sorri satisfeita, como se tivesse encontrado o último detalhe que faltava para compor o seu visual de festa.

- Você age muito como uma moça, Fátima!9 9 Kaho wa mokomu mahi, Fátima!”. - digo-lhe sorrindo e brincando com a sua vaidade.

Ela me sorri de volta e responde:

- Quando há festa, eu me torno moça. Depois, quando a festa acaba, eu volto a ser velha novamente 10 10 Reahu kuo tëhë ya mokoprario, waiha reaku maprario tëhë ya pata korayu”. .

Seguimos para a clareira que fica a poucos metros da casa coletiva. Lá encontramos as mulheres e crianças em plena ação. O cheiro de urucum está por toda parte e marca os corpos. Espelhinhos com moldura de plástico cor laranja passam de mão em mão. Com palitos ou canudinhos feitos dos caules de plantas encontradas pelo caminho, as mulheres confeccionam pequenos pincéis com os quais irão pintar umas às outras. Enfiam uma das pontas nos recipientes com urucum e nos potes de violeta genciana e delicadamente vão traçando linhas senoidais umas sobre os corpos das outras.

É um frenesi total. Esse é o momento que antecede a dança que faremos ao entrar na maloca. Os convidados já nos esperam. É a nossa vez de dançar para eles. Os homens também costumam se preparar para esse momento, mas por alguma razão apenas dois pata apareceram; e as mulheres, furiosas, pintam-se maldizendo a preguiça e a falta de participação dos homens.

Após um período que dura horas, todos devidamente pintados e ornamentados, seguimosemfilaindianaemdireçãoàcasa, soltandogritoseufóricoseanunciando a nossa aproximação. Do lado de dentro da casa, gritos não menos entusiasmados respondem à nossa chegada, indicando que já nos aguardam. Paramos em frente a uma das entradas da casa e aos poucos as pessoas decidem quem entra com quem e quem entra primeiro.

Entram, então, os mais jovens, os rapazes, devidamente ornamentados e carregando consigo seus arcos e flechas nas mãos - mas às vezes pode ser uma espingarda, lanças ou qualquer objeto utilizado para realizar a dança. Esse momento é marcado por um ar de extrema jocosidade, sobretudo entre os homens, que às vezes buscam objetos inusitados para tornar a sua performance ainda mais cômica11 11 Essa dança de apresentação que os convidados realizam no início de uma festa reahu reproduz a dança dos yarori, primeiros ancestrais humanos/ animais que aparece no mito de origem do fogo. (ver Kopenawa & Albert, 2015: 612-613, nota 17). .

Entram dançando, dando passos para frente e para trás. Parando em alguns momentos diante dos que estão dentro da maloca, jogam o objeto no chão, depois o recolhem e seguem adiante até contornarem toda a casa. E saem por onde entraram, dando vez para os que ainda não dançaram. As moças entram com folhas novas de palmeira que foram devidamente trançadas ou desfiadas no momento em que se pintavam. Entram aos pares, trios ou sozinhas. Em seguida, entram os mais velhos.

Enquanto isso os xamãs inalam yãkoana, dançam e cantam do lado de fora. Nesse momento, é comum que as mulheres também inalem um pouco do pó para deixarem de ter vergonha/medo e dançarem com desenvoltura. Agitam nas mãos os objetos que carregam. E, no caso das anciãs, as patayoma, que dançam freneticamente, estas agitam seus braços ao lado das orelhas, como se tivessem levantando um peso imaginário.

No dia anterior foi o contrário: nós, os anfitriões, aguardamos impacientes a chegada dos visitantes, que fizeram essa mesma dança de apresentação no primeiro dia de festa. Na qualidade de visitantes, ao fim da dança os homens se colocam um ao lado do outro dentro da casa, acocoram-se com seus arcos e flechas na mão, enquanto aguardam os seus anfitriões. Estes chegam eufóricos e saúdam freneticamente seus convidados, abraçando-os e dizendo palavras amistosas.

Em seguida, pegam um por um e levam até o lugar onde deverão pendurar suas redes. As mulheres, que estão sentadas perto de uma das entradas da casa e rodeadas de crianças, ao verem seus maridos sendo alocados seguem em disparada na mesma direção, carregando seu cesto com toda a parafernália da família: redes, panelas, cuias, facas, tudo de que precisarão para passar os próximos dias.

Para qualquer canto que se olhe, redes de cores e tecidos variados se amontoam umas em cima das outras e balançam energeticamente. Dentro delas, cunhados, primas, parentes que não se veem há algum tempo colocam os assuntos em dia. Um clima de alegria e flertes paira no ar, e ouvem-se vozes e risadas por toda parte.

Enquanto isso, no centro da casa, à plena luz do dia, começa a tomada do mingau de banana. A bebida, que consiste basicamente em quilos e mais quilos de banana cozida e diluída em água, é armazenada dentro do tronco de uma grande árvore, que, semanas antes, fora derrubada e talhada para essa finalidade.

Cunhados oferecem uns aos outros cuias cheias de mingau. Quanto maior o recipiente, maior o desafio. E, na falta de cuia, garrafas pets cortadas, bacias de alumínio, jarros de plástico servem bem ao propósito. O homem que recebe o recipiente transbordando de mingau deve esvaziá-lo, de preferência em goles cavalares, sob os olhares auspiciosos dos demais, que, ao verem a cuia vazia, soltam gritos entusiasmados. As mulheres também oferecem e recebem cuias, tendo como alvo sempre os homens com os quais possuem uma relação de afinidade. É impensável recusar uma cuia. E, ao socorro de um homem que está sendo bombardeado por mulheres que trazem cuias de todos os lados, surgem outros homens, oferecendo para essas mulheres cuias ainda maiores.

Entre os jovens, esse momento de oferta do mingau se constitui como uma ótima ocasião para se aproximarem das moças e rapazes que desejam conhecer. Esse será o princípio do que mais tarde poderá vir a ser um intercurso sexual. As crianças, com suas pequenas cuias, também participam desse momento. Os meninos, com as barriguinhas estufadas, reclamam, mas tomam a bebida ofertada pelas meninas - e correm em direção à canoa para buscar mingau e ofertar a bebida, por sua vez.

Os homens atacam seus cunhados, e as mulheres os maridos em potencial. Nesse duelo há uma oposição entre consanguíneos e afins, mas também entre homens e mulheres. Neste último caso, a oferta de mingau nem sempre simboliza um ataque, mas pode sugerir também um interesse sexual, sobretudo quando se trata dos jovens. Essa rivalidade entre homens e mulheres também aparecerá em outros momentos no decorrer da festa.

O homem desafiado prova sua valentia tomando a bebida até o fim. Fugir a uma cuia ofertada ou sair antes de acabar todo o mingau é sinal de covardia. Os duelos continuam por horas a fio. À medida que a canoa esvazia, as barrigas se enchem e dilatam; e, antes que explodam, o líquido é vomitado em jatos ferozes que jorram em todas as direções, deixando o chão do centro da casa amarelado e com um cheiro azedo de banana que se espalha pelo ar.

Cada vômito incita ainda mais o ânimo geral: os homens soltam gritos, e mais cuias cheias são oferecidas àquele que acaba de vomitar. Um misto de exaustão e zombaria toma conta de todos. E, antes de anoitecer, empanturrados, empinam com um certo orgulho seus ventres dilatados e caminham lentamente em direção às suas redes, onde vão permanecer até o dia seguinte ou até o próximo evento.

OS DIÁLOGOS CERIMONIAIS WAYAMU12 12 O wayamu é um diálogo cerimonial realizado no contexto da festa intercomunitária reahu. Justamente por se tratar de uma fala cerimonial, ela se constitui como uma arte verbal muito refinada e que se caracteriza por complexos jogos de palavras e figuras de linguagem, como metáforas, metonímias, sinédoques, etc. Para uma descrição mais detalhada do wayamou, ver Lizot (1991) e Kelly (2017).

Cai a noite, e as redes continuam agitadas. Os fogos são acesos e esquentam as panelas e as conversas das pessoas. No céu a lua cheia ilumina o centro da casa. Meio que quase despercebidos, dois homens caminham para o centro da casa, posicionam-se de cócoras e começam a cantar frases ritmadas. Um é o anfitrião, e o outro é o convidado - e ambos ficam durante um bom tempo nesse diálogo cerimonial, trazendo notícias de longe, dando recados, falando sobre coisas da festa. As pessoas ao redor parecem que não prestam atenção, mas todo mundo ouve, ou quase todo mundo. Ao longo da noite, os pares vão se substituindo, sempre mantendo esse formato: um anfitrião e um convidado.

Os mais jovens - e, portanto, menos experientes - costumam falar primeiro e gaguejam diante do árduo exercício que requer bastante habilidade. Gargalhadas estouram de um lado e outro da casa, fazendo-se comentários hilários sobre a performance dos novatos. À medida que a noite avança, a casa silencia, e o wayamu prossegue. Agora são os mais experientes que vão para o centro da casa, os pata thë pë. Esse diálogo permanecerá até o raiar do dia. Quando aparecem os primeiros raios de sol, os homens voltam para suas redes. Antes que se possa dormir, a casa acorda, e já é hora de preparar mais mingau de banana para tomar à tarde.

AS DANÇAS NOTURNAS

Assim segue mais um dia de festa13 13 A duração das festas yanomami depende de vários fatores, podendo ser realizada em alguns dias ou mesmo durar semanas. Isso vai depender de diversos fatores que vão desde a finalidade da festa (destruir os pertences do morto ou enterrar suas cinzas), até o número de convidados e alimentos disponíveis. Um cálculo minucioso que deve ser feito pelos organizadores da festa para que não falte comida e sobre reclamações. . E, quando se pensa que nesta noite se dormirá, mais uma vez passamos em claro. É a noite em que as mulheres dançam. Assim como no wayamu, quase que sem querer, um bando de meninas começa a puxar um canto. Uma menina canta, mas, tímida, desafina - para prazer de todos, que dão risadas. Gritos de incentivo vindo dos homens soam de todos os lados da maloca.

Aos poucos outras mulheres vão se juntando ao pequeno grupo. Mulheres com seus filhos a tiracolo, meninas segurando seus irmãozinhos pelas mãos, velhas se apoiando em paus para poderem acompanhar. Caminham na parte coberta, contornando a maloca por dentro, e assim seguem noite afora. As mais jovens que não se juntam ao grupo são instadas pelas demais a levantar da rede e aumentar o coro. Com o passar das horas, o corpo já não aguenta mais e as vozes ficam roucas. Mesmo assim, seguem elas, estimuladas pelas mulheres mais velhas, as patayoma, a continuarem até o amanhecer.

Nesse momento da dança e do canto noturno, também surge uma espécie de rivalidade entre homens e mulheres. É preciso aguentar firme a noite toda e, se possível, não deixar os homens dormirem. As moças balançam as redes dos rapazes, chacoalham cabaças barulhentas, amarram nos pés badulaques de toda sorte e pisam com força para se fazerem ouvir. Os rapazes mudam suas redes de lugar ou mesmo dormem em outra maloca para fugir das investidas das mulheres.

Os galos começam a cantar, o que não significa que está amanhecendo, pois na floresta esses bichos cantam a hora que bem entendem. Mas é um sinal de que é preciso aguentar firme, pois daqui a pouco o sol vai nascer e finalmente as mulheres vão soltar seu grito coletivo e vão para o rio banhar-se antes de deitar em suas redes.

Mas amanhece e a festa continua. Não há tempo para dormir. De dia, durante essas festas, há muito o que fazer. É preciso preparar o mingau que será tomado neste mesmo dia. Dependendo da quantidade de carne, os homens saem para caçar. Se há algum lugar interessante para a pesca, lá saem os homens em busca de timbó para bater, e as mulheres vão junto com seus cestos xote he e filhos para pegar o maior número de peixes possível.

Novamente cai a noite, e dessa vez são os homens que cantam. Da mesma forma que as mulheres, começam aos poucos. Os mais jovens, seguidos de bandos infantis, entoam as canções. Um canta primeiro, e em seguida o grupo repete em coro a música - e assim continuam por uma dezena de vezes, até um outro jovem, por livre e espontânea pressão dos demais, entoar uma nova canção.

Assim, cantando, fazem o mesmo percurso das mulheres: contornam a casa, passando em frente de todos os fogos. Os rapazes são muito mais ofensivos em suas investidas para não deixar que as moças durmam. Os meninos batucam em panelas roubadas de suas mães e avós, arrastam garrafas pets cheias de pedrinhas, usam qualquer coisa que encontram pela frente e com a qual possam batucar, fazendo um estardalhaço; e, sempre quando podem, dão fortes solavancos nas redes das jovens. As moças, por sua vez, vão subindo cada vez mais as suas redes, a fim de evitarem as brincadeiras dos jovens. Ainda assim, os rapazes não desistem e, mesmo com as redes amarradas a 3 metros do chão, jogam objetos em direção às moças. Outras jovens revidam jogando água ou qualquer coisa que grude nos cabelos. Os jovens batem em retirada; e, durante toda a noite, só se vê vultos correndo em várias direções e gargalhadas por todos os lados. As patayoma gritam, protestando contra o roubo de suas panelas e furiosas com o estardalhaço que os rapazes fazem. Esses protestos só fazem atiçar ainda mais o ímpeto dos jovens, que alegremente continuam com sua algazarra noite adentro.

Os homens terminam suas cantorias assim que começa a amanhecer; e, como fizeram as mulheres, vão para o rio banhar-se e tentar dormir um pouco, embora não consigam, pois já é dia.

Esse momento da dança14 14 As danças não são realizadas necessariamente nesta ordem: mulheres em um dia, homens em outro. É comum também, numa mesma noite, cantarem os homens primeiro e após as mulheres, ou vice-versa, ou ainda dançarem homens e mulheres juntos. , como toda brincadeira entre sexos opostos, evidencia uma (in)tensão sexual que envolve a atmosfera da festa. Não é à toa que essas provocações ocorram predominantemente entre as moças e os rapazes solteiros, ou seja, entre os jovens. A noite é também o momento ideal para os encontros amorosos, pois é durante essas festas que ocorre uma intensa circulação de pessoas vindas de outras malocas. E, devido às noites tumultuadas regadas a cantos e danças, é fácil dormir em outras redes sem levantar maiores suspeitas.

Amanhece mais um dia, e os cachos de bananas pendurados15 15 Os cachos de banana são pendurados imediatamente após a volta dos caçadores, que passam de 10 a 15 dias na floresta fazendo uma caçada coletiva, hwenimu, e moqueiam a carne que será distribuída ao final da festa. vão diminuindo - sinal de que a festa está para chegar ao fim. A cada dia, pencas e mais pencas são descidas e cozidas em enormes panelas de alumínio para o preparo de mais mingau, que será, mais um dia, devidamente oferecido, tomado e vomitado. As mulheres vão para a roça buscar o máximo de macaxeira possível e voltam com seus cestos carregados. As meninas também acompanham suas mães nessas tarefas. Passam o dia a descascar quilos do tubérculo para ralar, espremer e, na manhã seguinte, preparar os beijus que os visitantes levarão para casa junto com a carne moqueada.

Na manhã seguinte, bem cedinho, as placas de ferro já estão postas sobre os fachos de lenha. A massa extraída da macaxeira, já devidamente peneirada, transforma-se em uma farinha branca e úmida que será moldada pelas mãos das mulheres, as quais, com o auxílio de uma faca, dão acabamento aos grandes discos de beiju.

A fumaça das fogueiras cobre toda a parte baixa da casa e sobe pela parte alta até encontrar os raios de sol filtrados pela palha do teto, formando numerosos feixes de luz. O cheiro de beiju recém-assado é inebriante e se espalha por toda a maloca. Os discos são empilhados e entregues para os organizadores16 16 Os organizadores da festa podem ser homens ou casais que receberam uma cabaça com as cinzas do morto e se comprometeram em realizar o ritual funerário. As cabaças são deixadas aos cuidados das mulheres. É na frente de suas casas que começam a ser pendurados os cachos de banana e também é em cima dos seus fogos que fica suspensa a carne moqueada que será distribuída ao fim da festa. Será no pilar de sua casa que, ao final do reahu, as cinzas do morto serão enterradas. da festa. No último dia, eles, junto com outros pata thë pë, realizarão a divisão da carne moqueada, que será entregue para cada visitante junto com os beijus.

O CHORO FÚNEBRE E O ENTARDECER

O choro marca o clímax e o desfecho do reahu. É nesse momento que fica evidente a razão de todos estarem reunidos na mesma casa há dias. Há um morto para ser chorado, e suas cinzas precisam ser devidamente enterradas. O choro fúnebre acontece no fim da tarde17 17 Durante o trabalho de campo, participei de quatro reahu. Em um deles, o choro foi realizado de madrugada. Em um outro, um pata chamou as pessoas para chorarem, dizendo que, apesar de o sol ainda estar alto, já era hora de chorar. Nesse dia o tempo estava nublado, e o homem achou que era mais tarde do que de fato era. Esse detalhe foi comentado pelas mulheres quando voltávamos para casa, ao notarem que ainda demoraria algumas horas para o sol se pôr e que, portanto, haviam chorado antes do tempo. . Aos poucos as mulheres vão se juntando em frente à casa onde está a cabaça que contém as cinzas do morto. Os homens acompanham, as crianças, os jovens. Todos se acocoram e começam a chorar.

As patayoma, com os pômulos enegrecidos, levantam os braços e aos prantos evocam frases que enaltecem as virtudes daquele que morreu. Algumas andam em duplas de braços dados, indo de um lado para o outro, chorando seus lamentos, relembrando momentos que viveu com a pessoa falecida. Às vezes, quando há roupas ou qualquer objeto do morto que deverá ser destruído, levantam a peça em questão, abraçam, passam de mão em mão, até ir parar na fogueira e ser queimada pelas brasas do fogo. As alamedas se intensificam com a combustão do objeto, e os gritos e choros também aumentam. Todos choram, crianças, jovens, velhos.

Um buraco é cavado bem abaixo do fogo doméstico da família que está oferecendo a festa. A cabaça que passou de mão em mão é, enfim, aberta, e as cinzas são entornadas no buraco. Os choros eclodem mais fortes, lamentos dolorosos são pronunciados. Em seguida, mingau de banana é derramado por cima e depois tudo é coberto por terra. Aos poucos, com o mesmo silêncio com que se formou, o grupo de pessoas se desfaz, cada um indo para sua rede, sem pronunciar uma palavra. Algumas pessoas continuam a chorar e a lamentar de suas redes. A noite cai, e por um instante a casa silencia.

Mas esse silêncio não dura muito. Um grupo de mulheres se dirige ao centro da casa e forma um círculo dando as costas umas para as outras. Elas, então, entoam canções sem sair do lugar. Isso dura alguns minutos. Tempo depois o círculo se desfaz, e a partir daí não haverá mais canto, nem dança, nem diálogos cerimoniais. A noite passa tranquila, nem uma voz, nem um choro de criança, nem sequer um latido. Parece que, por consenso ou por cansaço, todos entendem que a festa acabou; e a casa dorme envolta em um silêncio profundo.

Na manhã seguinte, os convidados pegam seus cestos carregados de carne moqueada e beiju e seguem o caminho de volta para casa. Enquanto eles seguem sem olhar para trás, os de casa saem para vê-los ir embora. A casa, que antes era pura efervescência, torna-se vazia, e a vida retorna ao seu ritmo normal.

***

Após essa breve descrição de momentos de um reahu, destaco alguns pontos que lançam luz sobre o tema dos sonhos e do sentimento de saudade.

Como foi possível notar, durante essas festas, a noite é o momento quando quase tudo acontece: diálogos cerimoniais, danças, cantos, etc. Ninguém dorme e parece haver aí uma predominância do dia dos mortos sobre a noite dos vivos, uma vez que estes últimos parecem se comportar como pore (espectro), conforme explicarei mais adiante.

O choro fúnebre acontece em geral no fim da tarde, momento em que, como vimos, os Yanomami dizem sentir saudade.

O reahu oferece, portanto, mais elementos que corroboram as afirmações feitas pelos Yanomami, no entanto ainda não resolvem a questão da relação dos sonhos com a noite e com a emergência da saudade. Para compreender melhor essa relação, apresento a seguir uma breve descrição da pessoa e do cosmos yanomami.

PEI UTUPË E HUTU MOSI

A pessoa yanomami18 18 Para o objetivo da análise que proponho neste artigo, procuro detalhar aqui, apenas o componente da pessoa yanomami que corresponde ao pei utupë, não me detenho, portanto, a uma maior descrição dos demais componentes. Para uma descrição mais detalhada sobre esse tema entre os Yanomae ver Albert, 1985: 139-156. Entre os Yanomami da Venezuela ver Lizot, 2007: 287-293. é formada por diferentes componentes: pei siki corresponde a pele, ao invólucro corporal. Para além dos orgãos vitais, pulmões, coração, fígado, etc., dentro do corpo encontram-se os seguintes componentes: o pei uuxi, “interior” e o pei mi amo “centro” do corpo. Há ainda o pei utupë, que se refere a “imagem essencial” e o nõreme, que corresponde ao “princípio vital”. Já o pei pihi seria o pensamento consciente. Fora do corpo existe o rixi, que corresponde ao duplo animal que toda pessoa possui desde o seu nascimento (Albert & Gomez, 1997ALBERT, Bruce; GOMEZ, Gale Goodwin. 1997. Saúde Yanomami. Um manual etnolingüístico. Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi.: 47).

No momento da morte o pei utupë sai do corpo e se transforma em uma espécie de espectro, pore, e vai viver no hutu mosi, o céu.

De maneira semelhante, no momento do sonho, essa separação entre corpo, pei siki, e a imagem, pei utupë, também acontece. A diferença consiste no fato de que durante o sonho, a imagem retorna para o corpo antes da pessoa acordar. Na morte, essa separação é irreversível. A imagem se transforma em pore, um espectro que continua vivo.

E vivo o pore vai morar no hutu mosi, que é o primeiro patamar celeste do mundo yanomami. O patamar em que os Yanomami vivem está logo abaixo, hwei misi. É no hutu mosi que vivem os pore e também alguns seres mitológicos. Em cima dele há o segundo patamar celeste, tukurima mosi. Abaixo do nível onde vivem os Yanomami, se encontra ainda um patamar subterrâneo, hoterima mosi, habitado por seres canibais que se alimentam de alguns componentes que compõem o corpo yanomami e de substâncias patogênicas enviadas pelos xamãs (Smiljanic, 1999: 52-54).

Assim, após a morte, a imagem se transforma em pore definitivamente, e vai se juntar aos seus parentes mortos no hutu mosi, um céu que se caracteriza sobretudo por estar em constante festa. Lá todos vivem felizes e rodeados por uma enorme quantidade e variedade de comida. Ao chegarem no hutu mosi, os pore passam por um processo de rejuvenescimento, voltam a ser moças e rapazes e enquanto tais estão sempre devidamente ornamentados, dançam e cantam o tempo todo, e, é claro, namoram entusiasticamente19 19 Essas características do céu dos mortos lembram em muito as descrições de Cocanha, país imaginário descrito pelos poetas e pensadores desde a Idade Média e que expressava uma terra de abundância, ociosidade, juventude e liberdade. Ver Cocanha - várias faces de uma utopia. Hilario Franco Junior, 1998. Por sua vez, essa Cocanha lembra em muito o carnaval, marcado, entre outras coisas, por uma suspenção do trabalho cotidiano e uma ênfase na licenciosidade sexual. Um dia antes de começar o reahu, um yanomami me disse em português: “Amanhã, começa o nosso carnaval!” .

Mas não só de festa vivem os pore, eles também fazem roças, caçam e pescam, realizam as mesmas atividades cotidianas que costumavam desempenhar quando estavam no patamar dos Yanomami. Além disso, participam de excursões guerreiras contra grupos inimigos.

Os pore se casam com as mesmas pessoas que haviam se casado no patamar yanomami e com elas têm os mesmos filhos. Com o passar do tempo, eles também envelhecem, e ao morrer se transformam em moscas gigantes. Nas descrições que me foram contadas, essas moscas descem e vão viver na floresta dos vivos, mas longe da casa coletiva. Em outras, elas vão viver em um patamar ainda mais alto, acima do céu, no tukurima mosi (Albert, 1985ALBERT, Bruce. 1985. Temps du sang, temps des cendres. Représentation de la maladie, espace politique et système ritual chez les Yanomami du sud-est (Amazonie brésilienne). Paris, Tese de Doutorado, Université Paris X - Nanterre.: 632; Smiljanic, 1999: 54).

Se prestarmos atenção, há uma notável semelhança entre o hutu mosi, para onde vão os pore no momento da morte, e a festa intercomunitária reahu. Lembremos que o céu dos pore se caracteriza, sobretudo, por estar sempre em uma constante festa. Há uma abundância de alimentos e uma licenciosidade exuberante.Além disso, quando os pore ali chegam, passam por um processo de rejuvenescimento. Recordo aqui a frase de Fátima: “Quando há festa, eu me torno moça. Depois, quando a festa acaba, eu volto a ser velha novamente”. O momento do reahu é, sem dúvida, a ocasião em que todos voltam a ser jovens, e o entusiasmo e a participação dos mais velhos é uma prova disso. Todos se pintam e se enfeitam, tomam parte nas danças e nos cantos e, durante toda a festa, incentivam os jovens a participarem ativamente.

No decorrer do reahu, troca-se o dia pela noite. As grandes atividades acontecem ao anoitecer: danças, cantos, diálogos cerimoniais vão até o nascer do dia. Existe uma quantidade abundante de comida, preparada especialmente para essa ocasião. É durante essas festas que sobretudo os jovens vivem momentos intensos de intercursos sexuais. Ninguém dorme, e parece haver aí uma predominância do dia dos mortos sobre a noite dos vivos, uma vez que estes últimos parecem comportar-se como pore.

Entretanto, o que significa dizer que os vivos se comportam como os mortos? Já vimos que o contexto da festa reahu se aproxima em muito do céu dos mortos. E, para que essa aproximação se torne ainda mais verdadeira, é preciso que os vivos experimentem a noite como se fossem os pore, dançando e cantando naquilo que para estes corresponde ao dia.

Mas há mais. Essa aproximação entre o céu dos pore e a festa dos vivos parece relevante na medida em que aponta para um aspecto central do próprio reahu. É preciso que, durante toda a festa, os vivos se comportem como pore, para que possam no final da mesma realizar a separação definitiva entre os vivos e o morto. É apenas ao fim do reahu, quando ocorre o choro fúnebre e o enterro das cinzas, que tal separação acontece. Os primeiros voltam, então, a se comportar como yanomami, i.e., vivos, e retornam para suas casas para dar prosseguimento ao cotidiano de suas vidas, enquanto o último é retirado do convívio dos vivos e sua lembrança deverá ser obliterada.

É como se o reahu, assim como o sonho, fosse a antecipação da morte de cada um. A festa é a um só tempo a ruptura e a manutenção da relação entre vivos e mortos, mas também a antecipação do destino irremediável de cada pessoa, da morte que a todos espreita. Nesse sentido, poderíamos dizer que o reahu parece constituir-se como um grande sonho, uma vez que todos os vivos se comportam como se fossem pore20 20 Lembremos aqui que o sonho é o momento em que o pei utupë se separa do corpo e sai a vagar e isto acontece no período da noite, que corresponde ao dia dos animais, espectros, espíritos, etc. , sem, no entanto, morrer.

Entretanto, se olharmos mais de perto, essa aparente inversão entre dia e noite só acontece em parte, pois, se por um lado a noite dos vivos se transforma no dia dos pore, o mesmo não acontece durante o dia dos vivos, que, como vimos, continua sendo dia, com os Yanomami realizando as atividades referentes à festa mesmo tendo passado a noite inteira em claro. O que parece acontecer nesse caso é que o dia dos vivos permanece igual, e a inversão apenas acontece à noite, quando os Yanomami se comportam como pore e a noite “se torna” dia também.

Nesse caso, poderíamos dizer que o que ocorre é um dia sem fim, que começa com o dia dos vivos e continua com o “dia” dos pore. Um cenário similar àquele prefigurado no tempo das origens, momento no qual reinava um dia absoluto, e a noite ainda não havia sido criada.

Sob este aspecto é preciso admitir também que, se a festa reahu se aproxima do céu dos mortos, apenas o faz de maneira caricatural; se o hutu mosi se constitui como um mundo de fartura e abundância, as coisas no mundo dos vivos se passam de outra forma. Assim, durante o reahu, ainda que ocorra toda uma mobilização da comunidade anfitriã com o objetivo de que haja a maior quantidade possível de alimento, condição imprescindível para a realização da festa21 21 Na falta de banana, pode- se também realizar uma festa com mingau de pupunha ou ainda macaxeira. , essa fartura é apenas relativa.

Como vimos, as bananas são destinadas para a preparação do mingau, que é tomado em quase todos os dias da festa. Embora seja muito apreciado e encha os estômagos dos Yanomami, o mingau de banana não sacia a fome; e a carne moqueada, que foi caçada semanas antes do início da festa, não deve ser consumida antes do fim da mesma, quando deverá ser, então, distribuída aos convidados no momento em que retornarão para suas casas.

Aqueles que vieram para a festa e que não foram necessariamente convidados pelos pata thë pë22 22 Normalmente estes “penetras” costumam ser os jovens, mas é comum que alguns adultos também compareçam a festas para as quais não foram formalmente convidados. Essa restrição ao número de pessoas acontece, sobretudo, quando não há comida suficiente para oferecer aos convidados e se privilegia a presença daqueles que possuíam um vínculo direto com o morto e dos pata thë pë das comunidades. , caso não possuam algum parente próximo que possa alimentá-los durante a festa, acabam passando fome. Muitas vezes algumas pessoas retornam para suas casas antes do final da festa, justificando não terem o que comer, o que também, além de gerar um mal-estar geral, é um constrangimento para a comunidade anfitriã, pois não existe nada mais xiimi (sovina) do que oferecer uma festa sem ter comida suficiente para alimentar seus convidados.

Isso acontece também quando a festa, por alguma razão, dura mais dias do que o esperado. Em geral, os reahu costumam durar em torno de 3 a 7 dias, a depender de uma série de fatores23 23 Esses fatores se referem, entre outras coisas, ao número de convidados, a importância/ influência do próprio morto em questão e também à finalidade da festa. Aqui descrevi um reahu em que foram enterradas as cinzas do morto, mas há festas em que o objetivo é destruir os matihi pë (pertences) do morto. Estas costumam ser menores e contar com a participação de menos pessoas. . Quando extrapola muito esse período, a convivência começa a se tornar um problema.

Assim, embora os convidados se encontrem em uma comunidade onde estão cercados por pessoas com as quais estão ligados por laços de parentesco e aliança, eles não estão em casa. Por parte dos anfitriões, que festejam entusiasticamente o início da festa e a chegada dos convidados, depois de um tempo passam a não tolerar aquilo que antes celebravam. Isso acontece também no caso das festas que terminam, mas mesmo assim os convidados não vão embora.

A ocasião de uma festa reahu é um momento de grande alegria e reencontro com os parentes, mas também é um momento em que não se está em casa, no caso dos convidados - os quais, depois de algum tempo, anseiam retornar para suas casas e cuidar de suas roças. Da mesma forma, para os anfitriões, receber os parentes é uma ótima ocasião para colocar as notícias em dia e realizar trocas que sustentam e mantêm suas redes de alianças. Entretanto, após um tempo também desejam estar entre os seus e voltar para o cotidiano de suas vidas.

Neste sentido percebe-se que, apesar de a festa reahu parecer constituir-se como uma forma especular do hutu mosi, ela apenas o é em um primeiro momento. Vista mais de perto, percebe-se que um mundo como o dos mortos não pode ser atingido em terra, a não ser que o seja de maneira caricatural. Esse simulacro que os vivos fazem do mundo dos mortos também não se realiza por causa daquilo que precisamente separa os vivos dos mortos: o corpo. Após dias sem dormir direito e algumas vezes sem comer bem, o último dia da festa é ansiado, tanto porque se trata do ápice da festa quanto porque os corpos dos vivos não aguentam mais e precisam de descanso.

Voltemos um pouco ao tema da saudade que perpassou este trabalho em vários momentos. Vimos que, durante o reahu, o momento do choro fúnebre ocorre justamente no fim da tarde, que é quando os Yanomami dizem sentir saudade. São os outros, estejam vivos ou mortos, que despertam em nós os sonhos de nostalgia. É a pessoa objeto do sonho que é o sujeito do sentimento. Nesse contexto, o sentimento vem do outro, vem de fora, e a pessoa que sonha fica vulnerável a ele na medida em que a imagem aflora, ou seja, com o surgimento da noite.

CONCLUSÃO

De dia o corpo é materia bruta, e aquilo que se vê é o que está cerca, não é possível “enxergar” muito além quando o sol está alto no céu. A noite é quando através dos sonhos o pei utupë pode viajar por lugares longínquos e desconhecidos. Dia e noite trazem consigo uma outra relação: o perto e o longe.

De dia se vive e se vê o que os olhos alcançam, é como se a luz do dia ofuscasse o que há oculto na densidade do corpo, da floresta e do mundo. À noite a imagem liberta do corpo, consegue ver verdadeiramente longe. Viajar por lugares onde o corpo nunca esteve, mas por onde o pei utupë pode vagar, correndo sempre o risco de se perder e de fazer o corpo padecer.

Não se sonha de dia, porque o dia é dos vivos, dos corpos, da matéria bruta que apodrece quando a morte chega. A noite é o mundo das imagens, dos mortos, dos espíritos auxiliares dos xamãs, os xapiri pë. E no pei utupë da pessoa yanomami é onde se encontra o que realmente importa. Do sentimento de nostalgia que é tão presente na vida desse povo até o conhecimento mais profundo e refinado que os xamãs têm dos mitos e das dimensões que compõem o cosmos yanomami.

Os sentimentos e os conhecimentos precisam passar pela imagem para que possam de fato ganhar importância e então atingir o corpo. É por meio da imagem que tudo se consolida e é nela onde tudo começa e termina.

Se, por um lado, é preciso estar vivo para poder sonhar, também é preciso morrer um pouco a cada noite para seguir sonhando. A morte cotidiana que se experimenta a cada noite durante o sonho é o simulacro e a antecipação da morte derradeira que a todos alcança, da morte definitiva que separa o corpo da imagem, os vivos dos mortos.

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    Pya ú é a comunidade yanomami onde realizei o meu trabalho de campo. Nesta ocasião localizava-se na região do Toototopi, Terra Indígena Yanomami, estado do Amazonas. Um ano depois da minha última estadia em campo os Pya ú thëri entraram em um conflito com uma comunidade yanomami localizada do lado da Venezuela. Após uma série de eventos, eles se mudaram para a região do Xihopi, próximo ao rio Mapulao e atualmente constituem a comunidade Kawani. Permaneci o período de 11 meses, transcorridos em etapas que se iniciaram em novembro de 2015 e foram até fevereiro de 2017. Naquela ocasião, o Pya ú contava com uma população de 154 pessoas divididas em duas malocas distantes uma da outra por uma breve caminhada de menos de 1km.
  • 2
    De acordo com a publicação mais atualizada sobre as línguas Yanomami no Brasil, haveria a existência de seis línguas da família Yanomami: 1) Yanomam, Yanomae, Yanomama ou Yanomami; 2) Yanomami ou Yanomami; 3) Sanöma; 4) Ninam; 5) Yaroamë e 6) Yãnoma, divididas por sua vez em dezesseis dialetos (Ferreira; Senra; Machado, 2019FERREIRA, H. P.; SENRA, E. B.; MACHADO, A. M. A. (Org). 2019. As línguas Yanomami no Brasil: Diversidade e Vitalidade. São Paulo. Instituto Socioambiental e Hutukara Associação Yanomami.). A língua falada pelos Yanomami do Pya ú é o 1) Yanomae e os termos descritos no dicionário do Lizot (2004LIZOT, J. 2004. Diccionario enciclopédico de la lengua yãnomãmi. Caracas, Vicariato Apostólico de Puerto Ayacucho .) corresponderia ao 2) Yanomami.
  • 3
    Yamaki amoamuu pihio, wa rarayou, hwapa!”
  • 4
    Para uma descrição mais detalhada das substâncias que podem compor a yãkoana e de seus efeitos ver Albert & Milliken (2009ALBERT, Bruce; MILLIKEN, William. 2009. Urihi a: A terra-floresta yanomami. São Paulo, Instituto Socioambiental; IRD.: 114-116).
  • 5
    Onde pore - espectro, fantasma; e -mu - sufixo derivacional que serve para descrever uma função ligada a um nominal. Assim, pore + mu = poremu, agir como um espectro, como um fantasma.
  • 6
    Como coloca Albert: “o xamanismo noturno, associado aos sonhos, é parte fundamental do xamanismo yanomami. A iniciação e o trabalho xamânico parecem dominar a produção onírica dos xamãs, cujos sonhos são, assim, constituídos principalmente de restos alucinatórios do xamanismo diurno”. Ver Nota 23, p. 616 (Kopenawa & Albert, 2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. 2010. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. São Paulo, Companhia das Letras.).
  • 7
    As onomatopeias são partes fundamentais das narrativas yanomami. No caso dos mitos, que são narrados, em geral, pelos xamãs, além de tornar a narrativa mais rica e a performance do xamã mais admirável, as onomatopeias trazem consigo detalhes que, longe de serem apenas um artifício da língua, indicam um refinamento acústico por meio do qual os Yanomami percebem e dão sentido ao mundo ao seu redor. Assim, foi-me explicado que esses três sons que se seguem logo após Yawarioma ter visto o mutum correspondem respectivamente a três momentos: o estalo da corda do arco no instante em que a flecha é lançada em direção ao mutum; o momento em que a flecha acerta o alvo; e o momento em que o mutum cai rodopiando no chão. Para mais considerações sobre a experiência acústica dos Yanomami, ver texto de Albert intitulado “A floresta poliglota”, disponível em: https://subspeciealteritatis.wordpress.com/2018/11/05/a-floresta- poliglota-bruce-albert/
  • 8
    Warapa koko é uma resina inflamável retirada da árvore warapa kohi (Protium spp.) e utilizada, entre outras coisas, na improvisação de tochas durante a noite. Ver Albert & Milliken (2009ALBERT, Bruce; MILLIKEN, William. 2009. Urihi a: A terra-floresta yanomami. São Paulo, Instituto Socioambiental; IRD.: 90). Ver também verbete warapa em Lizot (2004LIZOT, J. 2004. Diccionario enciclopédico de la lengua yãnomãmi. Caracas, Vicariato Apostólico de Puerto Ayacucho .: 465).
  • 9
    Kaho wa mokomu mahi, Fátima!”.
  • 10
    Reahu kuo tëhë ya mokoprario, waiha reaku maprario tëhë ya pata korayu”.
  • 11
    Essa dança de apresentação que os convidados realizam no início de uma festa reahu reproduz a dança dos yarori, primeiros ancestrais humanos/ animais que aparece no mito de origem do fogo. (ver Kopenawa & Albert, 2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. 2010. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. São Paulo, Companhia das Letras.: 612-613, nota 17).
  • 12
    O wayamu é um diálogo cerimonial realizado no contexto da festa intercomunitária reahu. Justamente por se tratar de uma fala cerimonial, ela se constitui como uma arte verbal muito refinada e que se caracteriza por complexos jogos de palavras e figuras de linguagem, como metáforas, metonímias, sinédoques, etc. Para uma descrição mais detalhada do wayamou, ver Lizot (1991LIZOT, J. 1991. “Palabras en la noche - El diálogo Ceremonial, una Expresión de las Relaciones Pacíficas entre los Yanomami”. In: La Iglesia en Amazonas, Puerto Ayacucho, n. XII, v. 53: 54-72.) e Kelly (2017KELLY, J. 2017. “On Yanomami ceremonial dialogues: a political aesthetic of metaphorical agency”. Jornal de la Société des Américanistes, v. 103, n. 1: 179-214.).
  • 13
    A duração das festas yanomami depende de vários fatores, podendo ser realizada em alguns dias ou mesmo durar semanas. Isso vai depender de diversos fatores que vão desde a finalidade da festa (destruir os pertences do morto ou enterrar suas cinzas), até o número de convidados e alimentos disponíveis. Um cálculo minucioso que deve ser feito pelos organizadores da festa para que não falte comida e sobre reclamações.
  • 14
    As danças não são realizadas necessariamente nesta ordem: mulheres em um dia, homens em outro. É comum também, numa mesma noite, cantarem os homens primeiro e após as mulheres, ou vice-versa, ou ainda dançarem homens e mulheres juntos.
  • 15
    Os cachos de banana são pendurados imediatamente após a volta dos caçadores, que passam de 10 a 15 dias na floresta fazendo uma caçada coletiva, hwenimu, e moqueiam a carne que será distribuída ao final da festa.
  • 16
    Os organizadores da festa podem ser homens ou casais que receberam uma cabaça com as cinzas do morto e se comprometeram em realizar o ritual funerário. As cabaças são deixadas aos cuidados das mulheres. É na frente de suas casas que começam a ser pendurados os cachos de banana e também é em cima dos seus fogos que fica suspensa a carne moqueada que será distribuída ao fim da festa. Será no pilar de sua casa que, ao final do reahu, as cinzas do morto serão enterradas.
  • 17
    Durante o trabalho de campo, participei de quatro reahu. Em um deles, o choro foi realizado de madrugada. Em um outro, um pata chamou as pessoas para chorarem, dizendo que, apesar de o sol ainda estar alto, já era hora de chorar. Nesse dia o tempo estava nublado, e o homem achou que era mais tarde do que de fato era. Esse detalhe foi comentado pelas mulheres quando voltávamos para casa, ao notarem que ainda demoraria algumas horas para o sol se pôr e que, portanto, haviam chorado antes do tempo.
  • 18
    Para o objetivo da análise que proponho neste artigo, procuro detalhar aqui, apenas o componente da pessoa yanomami que corresponde ao pei utupë, não me detenho, portanto, a uma maior descrição dos demais componentes. Para uma descrição mais detalhada sobre esse tema entre os Yanomae ver Albert, 1985ALBERT, Bruce. 1985. Temps du sang, temps des cendres. Représentation de la maladie, espace politique et système ritual chez les Yanomami du sud-est (Amazonie brésilienne). Paris, Tese de Doutorado, Université Paris X - Nanterre.: 139-156. Entre os Yanomami da Venezuela ver Lizot, 2007LIZOT, J. 2007. “El mundo intelectual de lós yanomami: cosmovisión, enfermedad y muerte com uma teoria sobre em canibalismo”. In: FREIRE, Germán; TILLET, Aimé. (Ed.). Salud indígena em Venezuela. Caracas, Ediciones de la Dirección de Salud Indígena, pp. 269-323.: 287-293.
  • 19
    Essas características do céu dos mortos lembram em muito as descrições de Cocanha, país imaginário descrito pelos poetas e pensadores desde a Idade Média e que expressava uma terra de abundância, ociosidade, juventude e liberdade. Ver Cocanha - várias faces de uma utopia. Hilario Franco Junior, 1998FRANCO JUNIOR, Hilario. 1998. Cocanha - várias faces de uma utopia. São Paulo, Ateliê Editorial.. Por sua vez, essa Cocanha lembra em muito o carnaval, marcado, entre outras coisas, por uma suspenção do trabalho cotidiano e uma ênfase na licenciosidade sexual. Um dia antes de começar o reahu, um yanomami me disse em português: “Amanhã, começa o nosso carnaval!
  • 20
    Lembremos aqui que o sonho é o momento em que o pei utupë se separa do corpo e sai a vagar e isto acontece no período da noite, que corresponde ao dia dos animais, espectros, espíritos, etc.
  • 21
    Na falta de banana, pode- se também realizar uma festa com mingau de pupunha ou ainda macaxeira.
  • 22
    Normalmente estes “penetras” costumam ser os jovens, mas é comum que alguns adultos também compareçam a festas para as quais não foram formalmente convidados. Essa restrição ao número de pessoas acontece, sobretudo, quando não há comida suficiente para oferecer aos convidados e se privilegia a presença daqueles que possuíam um vínculo direto com o morto e dos pata thë pë das comunidades.
  • 23
    Esses fatores se referem, entre outras coisas, ao número de convidados, a importância/ influência do próprio morto em questão e também à finalidade da festa. Aqui descrevi um reahu em que foram enterradas as cinzas do morto, mas há festas em que o objetivo é destruir os matihi pë (pertences) do morto. Estas costumam ser menores e contar com a participação de menos pessoas.
  • CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA:

    Não se aplica.
  • FINANCIAMENTO:

    Essa pesquisa contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (FAPESC) e do PPGAS/UFSC/CAPES.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    23 Maio 2021
  • Aceito
    08 Jul 2021
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