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Viola tricolor. Lévi-Strauss e o pensamento selvagem

Lévi-Strauss and the wild thought

RESUMO

O ensaio propõe uma leitura de O pensamento selvagem em função da tarefa de reconstruir a tese lévi-straussiana segundo a qual o totemismo é um regime simbólico do pensamento selvagem. Para tanto, alguns pontos serão destacados: (i) o problema antropológico-filosófico do conceito de selvagem; (ii) a definição precisa e o emprego complexo do conceito em O pensamento selvagem; (iii) a distinção epistemológico-modal entre pensamento selvagem e pensamento domesticado; (iv) a lógica totêmica e a ontologia imagética do pensamento selvagem; e, como conclusão, (v) o seu rendimento cosmológico e filosófico para a inteligibilidade do Antropoceno.

PALAVRAS CHAVE:
Selvagem; natureza-cultura; totemismo; transformação; Antropoceno

ABSTRACT

The essay proposes a reading of The Wild Thought in order to reconstruct Lévi-Strauss’s thesis according to which totemism is a symbolic regime of the wild thought. Therefore, some points will be highlighted: (i) the anthropological-philosophical problem of the concept of wild; (ii) the precise definition and complex use of the concept in The Wild Thought; (iii) the epistemological-modal distinction between wild and tamed thought; (iv) the totemic logic and the imagetic ontology of the wild thought; and, as conclusion, (v) its cosmological and philosophical performance for the intelligibility of the Anthropocene.

KEYWORDS:
Savage; nature-culture; totemism; transformation; Anthropocene

To see a World in a Grain of Sand And a Heaven in a Wild Flower

Hold Infinity in the palm of your hand

And Eternity in an hour

-Blake, “Auguries of Innocence”

SELVAGEM

Em Raça e história, Lévi-Strauss descreve o atributo “selvagem” como produto de uma atitude etnocêntrica que atravessa as diferentes épocas, em particular, da cultura ocidental:

A atitude mais antiga, certamente assentada em sólidas bases psicológicas, já que tende a reaparecer em cada um de nós quando confrontados a uma situação inesperada, consiste em repudiar, pura e simplesmente, as formas culturais morais, religiosas, sociais ou estéticas mais afastadas daquelas a que nos identificamos. “Modos selvagens”, “isso não se faz entre nós”, “deveria ser proibido” e outras tantas reações grosseiras traduzem esse arrepio, essa repulsa diante de modos de vida, de crença ou de pensamento que nos são estrangeiros.

Na Antiguidade, por exemplo, confundia-se tudo o que não fazia parte da cultura grega (posteriormente greco-romana) na denominação de “bárbaro”; a civilização ocidental usaria mais tarde o termo “selvagem” no mesmo sentido. Por detrás desses epítetos, esconde-se a mesma opinião. É provável que a palavra “bárbaro” se refira, etimologicamente, à confusão e inarticulação do canto dos pássaros, em oposição ao valor significante da linguagem humana. E “selvagem” quer dizer “da selva”, evocando também um modo de vida animal, por oposição à cultura humana. Em ambos os casos, expressa-se a recusa de admitir o próprio fato da diversidade cultural; prefere-se rejeitar para fora da cultura, na natureza, tudo o que não se conforma às normas que regem a vida de quem julga (2013LÉVI-STRAUSS, Claude. 2013 [1973]. Antropologia estrutural dois. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Cosac Naify .: 362-363).

“Selvagem” traduz assim, em termos morais, repúdio ao diferente, repulsa diante do estrangeiro, e, em termos metafísicos, uma humanidade rejeitada “para fora da cultura”, reduzida à “natureza” - por outra humanidade, que, de tão autocentrada, tira de si mesma a norma do seu juízo, conferindo a este último um valor tão universal quanto exclusivo. A condição selvagem equivale, pois, à sub-humanidade: “estado de natureza” por oposição ao “estado de sociedade”, conforme propugnaram, das maneiras mais variadas, os filósofos europeus dos séculos XVII e XVIII, de Hobbes (o “homem lobo do homem”), através de Rousseau (o “bom selvagem”), até Kant (o “selvagem da Nova Holanda”).

Lévi-Strauss pretende nada menos que refutar essa atitude metafísico-moral, o etnocentrismo, demonstrando suas bases ilusórias bem como as consequências etnocidas e suicidas de tal atitude. A tese principal do antropólogo é a de que a diversidade cultural não consiste apenas em um valor “humanista” a ser cultivado, mas antes na condição antropológica fundamental para a existência e o progresso de toda e qualquer cultura humana. “Bárbaro é, antes de tudo, o homem que acredita na barbárie” (Lévi-Strauss, 2013LÉVI-STRAUSS, Claude. 2013 [1973]. Antropologia estrutural dois. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Cosac Naify .: 364): ou seja, se há selvageria e barbárie, elas decorrem da “recusa em admitir o próprio fato da diversidade cultural”. E essa recusa conduz, em última instância, ao colapso da própria cultura de referência.

Por comparação,soa mais forte atese gêmea,porém desigual,de Walter Benjamin: “Nunca houve um documento de cultura que não fosse também um documento de barbárie” (1994BENJAMIN, Walter. 1994 [1940]. “Sobre o conceito da História”. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7a. ed. São Paulo, Brasiliense, pp. 222-232.: 225) - tese que acusa o caráter constitutivo da barbárie em todo desenvolvimento histórico. Justaposta à de Lévi-Strauss, a tese de Benjamin evidencia que a admissão da diversidade cultural como fato incontornável é condição necessária, porém insuficiente para uma cultura isenta de barbárie. Para tanto, uma tal cultura teria de ser, a rigor, anti-histórica, refratária à desigualdade social como motor principal de seu desenvolvimento - condição que, ainda assim, é expressamente corroborada por Lévi-Strauss com sua famosa distinção, tão rica em sentidos apesar da aparente simplicidade, entre “sociedades frias”, que recusam a história, e “sociedades quentes”, que a aceleram:

Não há sentido em colocar a questão das sociedades “sem história”. Não se trata de saber se as sociedades ditas “primitivas” possuem ou não uma história, no sentido que nós damos ao termo. Essas sociedades estão na temporalidade como todas as demais, e tanto quanto elas, mas à diferença do que ocorre entre nós recusam a história e se esforçam por esterilizar em seu germe tudo o que possa vir a ser algum devir histórico. […] Nossas sociedades ocidentais são feitas para mudar, é esse o princípio de sua estrutura e de sua organização. As sociedades ditas “primitivas” assim nos parecem, sobretudo, porque foram concebidas por seus membros para durar (2013LÉVI-STRAUSS, Claude. 2013 [1973]. Antropologia estrutural dois. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Cosac Naify .: 355).

Uma vida política fundada no consenso, e que só admite decisões tomadas em unanimidade, parece ter sido concebida para excluir o emprego do motor da vida coletiva que utiliza afastamentos diferenciais entre poder e oposição, maioria e minoria, exploradores e explorados. Numa palavra, essas sociedades que poderíamos chamar “frias”, porque seu meio interno está próximo do zero de temperatura histórica, se distinguem, por suas populações reduzidas e seu modo mecânico de funcionamento, das sociedades “quentes”, surgidas em diversos pontos do globo após a revolução neolítica, onde diferenciações entre castas e classes são constantemente solicitadas para gerar devir e energia (2013LÉVI-STRAUSS, Claude. 2013 [1973]. Antropologia estrutural dois. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Cosac Naify .: 38-39).

Selvagem não é sinônimo de bárbaro: Lévi-Strauss emprega o termo para designar uma cultura contra a barbárie, cuja possibilidade Benjamin parece não admitir no plano da história. Sem dúvida, não é naquele primeiro sentido - “quente” porque extremadamente etnocêntrico, segundo o qual selvagem equivale a sub-humano - que o antropólogo utiliza depois o mesmo termo no título de O pensamento selvagem:

O pensamento selvagem não é, para nós, o pensamento dos selvagens nem o de uma humanidade primitiva e arcaica, mas o pensamento em estado selvagem, diferente do pensamento cultivado ou domesticado com vistas a obter um rendimento. Este apareceu em certos pontos do globo e em certos momentos da história, e é natural que, privado de informações etnográficas (e do sentido etnográfico que apenas a coleta e a manipulação de informações desse tipo permitem adquirir), tenha-se tomado o primeiro em sua forma retrospectiva, como um modo de atividade mental anterior ao outro. Hoje compreendemos melhor que os dois possam coexistir e se interpenetrar, como podem (pelo menos de direito) coexistir e se cruzarem espécies naturais, uma em estado selvagem e outras transformadas pela agricultura ou pela domesticação, embora - devido a seu próprio desenvolvimento e às condições gerais que requer - a existência destas ameace aquelas de extinção. Mas, seja isso deplorável ou motivo de alegria, conhecem-se ainda zonas onde o pensamento selvagem, tal como as espécies selvagens, acha-se relativamente protegido: é o caso da arte, à qual nossa civilização concede o estatuto de parque nacional, com todas as vantagens e os inconvenientes relacionados com uma fórmula tão artificial; e é sobretudo o caso de tantos setores da vida social ainda não desbravados onde, por indiferença ou impotência e sem que o mais das vezes saibamos por que, o pensamento selvagem continua a prosperar (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 245).

O pensamento selvagem não é, pois, simplesmente o “pensamento dos selvagens”, mas o pensamento “em estado selvagem”, à diferença do pensamento “cultivado ou domesticado”. Isso não significa que a esses “estados” não correspondam diferentes configurações civilizacionais bem localizadas no tempo e no espaço: civilizações em que o pensamento domesticado predominou e tem predominado sobre o pensamento selvagem, a ponto de recalcá-lo, e civilizações em que se dá precisamente o contrário. De fato, para discernir e interpretar as características do pensamento selvagem, Lévi-Strauss se vale abundantemente de exemplos em sua grande maioria extraídos de povos e culturas indígenas, sejam americanas, africanas, asiáticas ou oceânicas, do passado e do presente (segundo uma temporalidade também etnologicamente situada).

Será isso um indício de que a colonização europeia constitui, para o antropólogo, a forma mais extrema e atroz de domesticação do pensamento? É fato que a existência da assim chamada Civilização, ao ampliar seu domínio sobre o planeta, tem efetivamente levado à extinção, tanto por destruição sumária quanto por paulatina assimilação, incontáveis culturas tidas como “selvagens” - além, é claro, de inumeráveis espécies naturais.

Certamente, não há nisso nenhum “motivo de alegria”; e, se Lévi-Strauss sustenta por um momento a alternativa entre alegria e lamento, trata-se, certamente, de autoironia por parte de um exótico dissidente nativo do Ocidente moderno. Quanto a esse ponto, a biógrafa Emmanuelle Loyer comenta:

Em plena descolonização, a substituição do termo “primitivo” por “selvagem” [no título de O pensamento selvagem] tem algo de “incongruente”. É decerto um sinal da recusa obstinada do modelo evolucionista, mas o “selvagem” evoca perfeitamente a literatura de viagem do século XVIII. […] Lévi-Strauss o assume e explica: “É intencionalmente que retomo o termo. Ele exprime uma carga emotiva e crítica, e penso que não devemos retirar a paixão dos problemas” (2018: 421).

Será, então, que a referida emoção crítica, ou problematização passional, exprime um espírito de revolta contra a civilização moderna? Se a citada declaração de Lévi-Strauss puder ser lida preferencialmente à luz, por exemplo, do penúltimo parágrafo de Tristes trópicos, a resposta seria, muito provavelmente, afirmativa:

[…] libertando-me, com isso, de um orgulho intelectual cuja fatuidade avalio pela de seu objeto, aceito também subordinar suas pretensões às exigências objetivas da libertação de uma multidão a quem os meios de tal escolha continuam a ser negados (1996LÉVI-STRAUSS, Claude. 1996 [1955]. Tristes trópicos. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo, Companhia das Letras .: 391).

HUMANISMO FERAL

Tal dissidência é bastante evidente em seu célebre ensaio sobre Rousseau, no qual Lévi-Strauss descreve o advento da modernidade a partir do “mito da dignidade exclusiva da natureza humana” - mito instaurador não apenas do abismo metafísico entre homem e natureza, mas sobretudo de “uma primeira mutilação”, (meta)física, da “própria natureza”, “à qual viriam inevitavelmente seguir-se outras mutilações”, de diversas ordens:

Começou-se por cortar o homem da natureza e constituí-lo como um reino supremo. Supunha-se apagar desse modo seu caráter mais irrecusável, qual seja, que ele é primeiro um ser vivo. E permanecendo cegos a essa propriedade comum, deixou-se o campo livre para todos os abusos. Nunca antes do termo destes últimos quatro séculos de sua história, o homem ocidental percebeu tão bem que, ao arrogar-se o direito de separar radicalmente a humanidade da animalidade, concedendo a uma tudo o que tirava da outra, abria um ciclo maldito. E que a mesma fronteira, constantemente empurrada, serviria para separar homens de outros homens, e reivindicar em prol de minorias cada vez mais restritas o privilégio de um humanismo corrompido de nascença, por ter feito do amor-próprio seu princípio e sua noção (2013LÉVI-STRAUSS, Claude. 2013 [1973]. Antropologia estrutural dois. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Cosac Naify .: 53).

Tal “humanismo”, “incapaz de fundar no homem o exercício da virtude” (2013LÉVI-STRAUSS, Claude. 2013 [1973]. Antropologia estrutural dois. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Cosac Naify .: 53) e fundado, por sua vez, no “amor-próprio dos políticos e dos filósofos”, na medida em que “insiste em incompatibilizar por toda parte o eu e o outro, minha sociedade e as outras sociedades, a natureza e a cultura, o sensível e o racional, a humanidade e a vida” (2013LÉVI-STRAUSS, Claude. 2013 [1973]. Antropologia estrutural dois. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Cosac Naify .: 55), tem por contrário a própria antropologia, ou as “ciências humanas”, fundadas em uma “concepção do homem que põe o outro antes de si” e em uma “concepção da humanidade que, antes dos homens, põe a vida” (2013LÉVI-STRAUSS, Claude. 2013 [1973]. Antropologia estrutural dois. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Cosac Naify .: 49). Juntas, essas concepções constituem, para Lévi-Strauss, um “princípio” que é também um “objetivo”: “Para poder se aceitar nos outros, é preciso antes recusar-se em si mesmo” (2013LÉVI-STRAUSS, Claude. 2013 [1973]. Antropologia estrutural dois. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Cosac Naify .: 48).

Temos assim, contra o humanismo filosófico das mutilações, um outro humanismo ou mesmo um anti-humanismo, pois não é outra coisa senão a própria humanidade que é preciso recusar em si mesmo para poder aceitá-la nos outros, além dos limites da espécie humana:

Neste século em que o homem teima em destruir inumeráveis formas de vida, depois de tantas sociedades cuja riqueza e diversidade constituíam desde tempos imemoriais seu maior patrimônio, nunca, com certeza, nunca foi mais necessário dizer, como o fazem os mitos que um humanismo bem ordenado não começa por si mesmo. Coloca o mundo antes da vida, a vida antes do homem, o respeito pelos outros seres antes do amor-próprio. E que mesmo uma estadia de um ou dois milhões de anos nesta terra - já que de todo modo há um dia de acabar - não pode servir de desculpa para uma espécie qualquer, mesmo a nossa, dela se apropriar como coisa e se comportar sem pudor ou moderação (Lévi-Strauss, 2006LÉVI-STRAUSS, Claude. 2006 [1968]. A origem dos modos à mesa. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Cosac Naify. (Mitológicas III).: 460).

Logo, se se trata de um humanismo, é porque, “bem ordenado”, ele “não começa por si mesmo”: se “coloca o mundo antes da vida, a vida antes do homem, o respeito pelos outros seres antes do amor-próprio”, é porque só pode compreender o homem a partir dos outros seres, da vida e do mundo. A humanidade não é sequer inteligível por si mesma, mas somente por seus vínculos, sejam externos ou internos. Em sentido próximo, lemos no último capítulo de O pensamento selvagem (“História e dialética”), que “o objetivo último das ciências humanas não é constituir o homem, mas dissolvê-lo”, ou ainda, “reintegrar a cultura na natureza”, uma natureza não menos humana que não-humana. Trata-se, mediante aquela dissolução, da “resolução do humano como não-humano” (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 274-275) em um complexo cultural-natural infinitamente superior à de que qualquer um desses domínios tomado à parte: “a ideia de uma humanidade geral, para a qual a redução etnográfica conduz, não terá mais nenhuma relação com aquela que antes se fazia” (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 276). Humanismo feral?

Menciono essa qualidade, provocativa e talvez irresponsavelmente, em vista do conceito de “pensamento feral” formulado pela filósofa Juliana Fausto em contraste com o conceito lévi-straussiano de pensamento selvagem:

Claude Lévi-Strauss cunhou o conceito de pensamento selvagem (não o pensamento dos selvagens, como somos frequentemente lembrados), um tipo de pensamento “indomado”, mantido vivo no mundo ocidental moderno dentro das “reservas naturais” da arte, como ele diria. Os cães geralmente não são considerados animais selvagens; eles são principalmente uma espécie-com-humanos. Isso não significa que eles não possam experimentar seu próprio tipo de pensamento selvagem - ou mesmo de pensamento domesticado, quem sabe. Mas que modo de pensamento se expressa quando esses dois mundos entram em colapso, os pactos são rompidos, o seu mundo é ferido, e eles se tornam sem-humanos e, portanto, ferais? (2020KANT, Immanuel. 1980 [1787]. Crítica da razão pura. Tradução de Udo Baldur Moosburger e Valerio Rohden. São Paulo, Abril Cultural (Os Pensadores).).

Diante disso, a provocação contida no oxímoro “humanismo feral” consiste em especular, a propósito do objetivo lévi-straussiano de “dissolver o Homem”, sobre a possibilidade contra-antropológica de uma humanidade, no limite, “sem-humanos”.

Não obstante, se esse oxímoro pode fazer algum sentido, valeria talvez para a antropologia de Lévi-Strauss, mas talvez não para o pensamento que espiritualmente a inspira - qual seja, a filosofia selvagem dos povos indígenas, que, baseada em uma “deferência [‘moral’] para com o mundo” (2006LÉVI-STRAUSS, Claude. 2006 [1968]. A origem dos modos à mesa. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Cosac Naify. (Mitológicas III).: 490) da qual decorre, por sua vez, uma “lógica” toda própria, realiza a humanidade em sentidos completamente outros. Não é com essas outras humanidades que Lévi-Strauss procura romper. De fato, não faltam passagens em que o autor se refere a povos e culturas indígenas como “selvagens” e mesmo “primitivos” para marcar etnologicamente o seu próprio mundo, caracterizado pela predominância abusiva da domesticação, sob a forma da objetivação político-conceitual, como método científico.

Problematizando os limites etnológicos dessa forma de cientificidade, LéviStrauss levanta o “paradoxo do Neolítico”, respondendo a ele a solução que constitui o ponto de partida para a “antropologia estrutural” de O pensamento selvagem:

O homem do neolítico ou da proto-história foi, portanto, o herdeiro de uma longa tradição científica; contudo, se o espírito que o inspirava, assim como a todos os seus antepassados, fosse exatamente o mesmo que o dos modernos, como poderíamos entender que ele tenha parado e que muitos milênios de estagnação se intercalem, como um patamar, entre a revolução neolítica e a ciência contemporânea? O paradoxo admite apenas uma solução: é que existem dois modos diferentes de pensamento científico, um e outro funções, não certamente estágios desiguais do desenvolvimento do espírito humano, mas dois níveis estratégicos em que a natureza se deixa abordar pelo conhecimento científico - um aproximadamente ajustado ao da percepção e ao da imaginação, e outro deslocado; como se as relações necessárias, objeto de toda ciência, neolítica ou moderna, pudessem ser atingidas por dois caminhos diferentes: um muito próximo da intuição sensível e outro mais distanciado (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 30).

Percebemos por essa passagem que o mesmo paradoxo que ensejou a muitos a ilusão primitivista/supremacista do milagre moderno, às custas da negação da capacidade cognitiva e da supressão da humanidade dos outros povos e culturas, sugere a Lévi-Strauss a tese contrária de que a distinção entre pensamento selvagem e pensamento domesticado não é essencial, mas modal: apesar de suas discrepâncias, ambos constituem diferentes “funções”, “níveis”, “caminhos” pelos quais a natureza se deixa conhecer, “operações mentais que diferem menos na natureza que na função dos tipos de fenômeno a que são aplicadas” (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 28), ou melhor, diferentes modos pelos quais natureza e cultura se deixam articular entre si, pois nenhum deles “dialoga com a natureza pura mas com um determinado estado da relação entre a natureza e a cultura definível pelo período da história no qual se vive, pela civilização que é a sua e pelos meios materiais de que dispõe” (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 35).

Seja como for, importa no momento destacar a possibilidade e o fato, ressaltados pelo antropólogo, de coexistência e interpenetração entre esses estados/espécies de pensamento nos mesmos contextos culturais. Toda cultura realiza uma mescla de graus infinitamente variados, de pensamento selvagem e pensamento domesticado, sem o que jamais poderia distinguir-se das outras nem relacionar-se com elas. Assim, como vimos mais acima, se a arte encarna a sobrevivência subalterna do pensamento selvagem no mundo domesticado, não se deve perder de vista que também o pensamento selvagem possui suas próprias formas de “domesticação”, ou melhor, de co-domesticação; afinal, segundo Lévi-Strauss, ele é a “ciência do concreto” (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 31). O grande e terrível erro antropológico da “nossa” civilização teria sido dissociar esses modos de pensamento, que poderíamos qualificar de complementares (sem deixar por isso de reconhecê-los como divergentes), submetendo hierarquicamente, no tempo ou no espaço, mediante primitivismo e racismo, o pensamento selvagem ao pensamento domesticado. Contra essas modalidades extremas de etnocentrismo, O pensamento selvagem procura demonstrar que o pensamento selvagem é condição sine qua non de toda cultura possível, o “substrato de nossa civilização” (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 31).

Lévi-Strauss chega a discernir no totemismo certo princípio anti-etnocêntrico de alargamento da condição humana para além dos limites do grupo social e, em última instância, da própria espécie:

Disseram, não sem razão, que as sociedades primitivas fixam as fronteiras da humanidade nos limites do grupo tribal, fora do qual elas apenas percebem estrangeiros, ou seja, subhomens sujos e grosseiros, até mesmo não-homens: feras perigosas ou fantasmas. Isso muitas vezes é verdade mas omite que as classificações totêmicas têm com uma de suas funções essenciais fazer romper esse fechamento do grupo sobre si mesmo e promover a noção aproximada de uma humanidade sem fronteiras. O fenômeno é atestado em todas as terras clássicas da organização dita totêmica. [...] Essa universalização totêmica não abala somente as fronteiras tribais formando o esboço de uma sociedade internacional, ela também ultrapassa, às vezes, os limites da humanidade, num sentido não mais sociológico mas biológico, quando os nomes totêmicos são aplicáveis aos animas domésticos (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 189-190).

“Disseram, não sem razão…”: entre “eles”, inclui-se o próprio antropólogo, que, em Raça e história, declarava quase nos mesmos termos:

Para vastas frações da espécie humana, contudo, essa ideia [a da humanidade, “sem distinção de raça ou de civilização”] parece nunca ter existido. A humanidade cessa nas fronteiras da tribo ou grupo linguístico, às vezes até da aldeia. Tanto que um grande número de populações ditas primitivas se autodesignam por um nome que significa os “homens” (ou - mais discretamente, talvez? - os “bons”, os “excelentes”, os “completos”), implicando assim que as outras tribos, grupos ou aldeias não compartilham as virtudes ou mesmo a natureza humanas, compostas de “ruins”, “malvados”, “macacos” ou “lêndeas”. Chega-se a destituir o estrangeiro do mais mínimo grau de realidade ao fazer dele um “fantasma” ou “assombração” (2013LÉVI-STRAUSS, Claude. 2013 [1973]. Antropologia estrutural dois. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Cosac Naify .: 363).

Curioso notar que o mesmo argumento que servia, em Raça e história, à conclusão de que a negação etnocêntrica da humanidade alheia é uma espécie de constante universal das culturas, serve, em O pensamento selvagem, a uma caracterização mais completa do pensamento selvagem em sentido oposto, sugerindo uma potência de humanização diante da qual a Declaração Universal dos Direitos do Homem, ao preterir a diversidade cultural em favor da igualdade natural, soa “frustrantemente abstrata” (2013LÉVI-STRAUSS, Claude. 2013 [1973]. Antropologia estrutural dois. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Cosac Naify .: 364). Tido como superstição objetivamente injustificável, o totemismo permite nada menos que o estabelecimento de vínculos de parentesco entre grupos e indivíduos radicalmente estrangeiros, tanto da mesma espécie quanto de espécies diferentes. Consumando ao máximo sua lógica, ele conduz a uma “antropomorfização” irrestrita do cosmos e, com isso, a um conceito cosmológico “panpsiquista” de humanidade (Danowski & Viveiros de Castro, 2014DANOWSKI, Déborah; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2014. Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis, Cultura e Barbárie.: 97, 136, 147). O pensamento selvagem é assim “humano, demasiado humano”, mas em um sentido bastante diverso daquele afirmado por Nietzsche: sem exagero nem exclusividade, ele é humano, antes de mais nada, porque humaniza os seres e suas relações.

Mas, se levarmos a sério a referência de Lévi-Strauss a “feras e fantasmas” como imagens selvagens de outrem, não poderíamos dizer, alargando o espectro do pensamento selvagem, que ele não só humaniza, mas também que feraliza e fantasmagoriza - porém, não no sentido de rebaixar os outros à sub-humanidade, mas no sentido de elevá-los a uma sobre-humanidade, em particular no sentido da supraculturalidade da natureza, da sobrenatureza extra-humana? Com efeito, Lévi-Strauss afirma que uma das “fontes de resistência” do pensamento selvagem, em sua configuração indígena, ao desenvolvimento histórico, “econômico e social”, é devida a certa orientação cosmológica radicalmente diferente do naturalismo moderno como cosmologia da produção industrial:

A concepção que várias sociedades primitivas têm da relação entre natureza e cultura também pode explicar certa resistência ao desenvolvimento. Pois este implica reconhecer prioridade absoluta à cultura sobre a natureza, algo que não se verifica quase nunca fora da área da civilização industrial. A descontinuidade entre os dois reinos é universalmente reconhecida, sem dúvida, e não existe nenhuma sociedade, por mais modesta que seja, que não atribua um valor eminente às artes da civilização, por cuja descoberta e utilização a humanidade se distingue da animalidade. Contudo, entre os povos ditos “primitivos”, a noção de natureza sempre apresenta um caráter ambíguo: a natureza é pré-cultura e também subcultura, mas é sobretudo o lugar em que o homem pode esperar entrar em contato com os ancestrais, os espíritos e os deuses. De modo que há na noção de natureza um componente “sobrenatural”, e essa “sobrenatureza” está tão incontestavelmente acima da cultura quanto a própria natureza está abaixo dela (2013LÉVI-STRAUSS, Claude. 2013 [1973]. Antropologia estrutural dois. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Cosac Naify .: 353-354).

IT ADDRESSES SOMEBODY

Em que consiste essa estranha humanização, que não entende a natureza a partir da humanidade, mas a humanidade a partir de uma natureza mais que humana? Para tentar explicá-la, Lévi-Strauss elabora uma verdadeira epistemologia etnológica. Recusando a dicotomia entre magia e ciência, ele compara o pensamento selvagem à bricolagem, contrastada, por sua vez, à engenharia: enquanto o bricoleur opera efetivamente com “materiais fragmentários já elaborados”, sem “plano preconcebido”, o engenheiro opera idealmente com matérias-primas, a partir de modelos e normas previamente estabelecidos (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 32, nota). A bricolagem - “ciência que preferimos antes chamar de ‘primeira’ que de primitiva” (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 32) - é como que uma anti-demiurgia (na acepção platônica): passa, mediante signos, da imagem ao conceito, e não, mediante esquemas, do conceito à imagem (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 33);1 1 Para uma interpretação em sentido contrário, pela qual, em vista de explicar as condições epistemológicas da antropologia estrutural, se procura ressaltar, em vez da aliança efetiva com o pensamento totêmico indígena, uma pretensa filiação do “pensamento selvagem” de Lévi-Strauss à filosofia transcendental de Kant, cf. Pimenta, 2013. produz estruturas a partir de fatos, ao invés de fatos a partir de estruturas (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 38); em suma, busca uma “necessidade a posteriori”, em vez de obedecer a uma necessidade a priori (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 51):

O engenheiro sempre procura abrir uma passagem e situar-se além, ao passo que o bricoleur, de bom ou mau-grado, permanece aquém, o que é uma outra forma de dizer que o primeiro opera através de conceitos, e o segundo, através de signos. No eixo de oposição entre natureza e cultura, os conjuntos dos quais ambos se servem estão perceptivelmente deslocados. Com efeito, pelo menos uma das maneiras pelas quais o signo se opõe ao conceito está ligada a que o segundo se pretende integralmente transparente em relação à realidade, enquanto o primeiro aceita, exige mesmo, que uma certa densidade de humanidade seja incorporada ao real. Segundo a expressão vigorosa e dificilmente traduzível de Peirce: It addresses somebody (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 35).

Lévi-Strauss explica assim, paradoxalmente, a virtude do signo a partir de sua limitação. Devido à sua materialidade pré-formada, o signo não é capaz de representar um conjunto ilimitado de objetos, como faz o conceito. No entanto, a limitação do signo não tem valor de deficiência; nem a ilimitação do conceito, valor de superabundância. Em verdade, esses valores podem muito bem se inverter: quem parte de puros conceitos, afirma Kant, só pode conhecer objetos “na medida em que estes se deixam regular por aqueles” (1980KANT, Immanuel. 1980 [1787]. Crítica da razão pura. Tradução de Udo Baldur Moosburger e Valerio Rohden. São Paulo, Abril Cultural (Os Pensadores).: BXVI), isto é, só descobre o que já sabe; quem parte de signos, pode-se dizer com Deleuze, encontra “as próprias coisas, mas as coisas em estado livre e selvagem, além dos ‘predicados antropológicos’” (1988DELEUZE, Gilles. 1988 [1968]. Diferença e repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal.: 17), isto é, descobre o que jamais poderia ter sabido. Embora seja sempre gradual, a diferença é, em seu extremo, abissal: temos, de um lado, um mundo “integralmente transparente”, pretensamente desencantado, e, de outro, um mundo densamente opaco, assumidamente encantado; dito de outro modo, de um lado, apenas representações de objetos e, de outro, sempre encontros entre sujeitos. Em sentido “pós-estrutural”, interpreta Eduardo Viveiros de Castro:

Na epistemologia objetivista favorecida pela modernidade ocidental, conhecer é objetivar, dessubjetivar, explicitar a parte do sujeito cognoscente presente no objeto, de modo a reduzi-la a um mínimo ideal. A forma do Outro é a coisa. Inversamente, no xamanismo ameríndio, conhecer é personificar, tomar o ponto de vista daquilo que deve ser conhecido - daquilo, ou, antes, daquele; pois o conhecimento xamânico visa um “algo” que é um “alguém”, um outro sujeito ou agente. A forma do Outro é a pessoa. O objeto da interpretação é a contra-interpretação do objeto (2018: 50-52).

“O objeto da interpretação é a contra-interpretação do objeto”: não é precisamente isso que exprime a sentença de Peirce celebrada por Lévi-Strauss - It addresses somebody, ou seja, o “objeto” interpela o “sujeito”?

Mais rigorosamente, Lévi-Strauss caracteriza o pensamento selvagem por uma prodigiosa “reciprocidade de perspectivas”, na qual “os seres em questão se defrontam ao mesmo tempo como sujeitos e como objetos” (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 248). Se a epistemologia domesticada abre um fosso entre sujeito e objeto, entre cultura e natureza, a epistemologia selvagem habita como que a “terceira margem”, zona de contágio mútuo entre objeto e sujeito, natureza e cultura, a ponto de implicar ao mesmo tempo uma “humanização das leis naturais” e uma “naturalização das ações humanas”, um “antropomorfismo da natureza” e um “fisiomorfismo do homem” (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 247). Todo objeto é um tanto sujeito; todo sujeito é um tanto objeto; há sempre algo de humano no não-humano (“Uma figura humana pode ocultar uma afecção-jaguar”; Viveiros de Castro, 2006aVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2006a. “Une figure humaine peut cacher une affectionjaguar: réponse à une question de Didier Muguet”. Multitudes, n. 24: 41-52. DOI https://www.doi.org/10.3917/mult.024.0041.
https://www.doi.org/10.3917/mult.024.004...
); e há sempre algo de não-humano no humano (“A ferocidade do jaguar é de origem humana”; Goldman apudViveiros de Castro, 2018VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2018 [2009]. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, Ubu Editora e n-1 edições.: 60, nota). Mais ainda, tal duplicidade estrutural interna a cada termo da relação de conhecimento, sujeito e objeto, implica uma reversibilidade dinâmica das posições que eles ocupam; donde a “contra-interpretação” do sujeito pelo objeto, assim como a “contra-predação” (Vilaça, 1992VILAÇA, Aparecida. 1992. Comendo como gente: formas do canibalismo wari’. Rio de Janeiro, Editora UFRJ.: 70) do predador pela presa. Donde também a fonte selvagem da categoria de sobrenatureza, quase de todo banida pelo pensamento ultradomesticado: “A noção de uma sobrenatureza existe para uma humanidade que atribui a si mesma poderes sobrenaturais e que, em troca, empresta à natureza os poderes da sobre-humanidade” (Lévi-Strauss, 1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 247).2 2 Em um ensaio tardio, “Olhares sobre objetos”, LéviStrauss considera a arte e a língua de “povos sem escrita” como atestados de um vínculo essencial entre experiência e sobrenatureza, como se o objeto da experiência e da arte (e não da crença e da convenção) fosse, por excelência, o sobrenatural: “A arte dos povos sem escrita não remete apenas à natureza ou à convenção, nem às duas juntas. Remete igualmente ao sobrenatural. Nós, que não vemos mais o sobrenatural de frente, colocamos em seu lugar símbolos convencionais ou personagens humanos enobrecidos. […] A língua dos Wintu, índios da Califórnia, distingue as verdades da experiências e as crenças. Ora, é sempre através da categoria gramatical da experiência que se exprimem a respeito do sobrenatural. A língua reenvia os fenômenos e eventos que remetem à causalidade natural aos que são conhecidos de modo impessoal e indiretamente” (1997b: 121-122). O trecho revela, por parte de Lévi-Strauss, uma valoração consideravelmente mais positiva da experiência sobrenatural: a interpretação “subjetivista”, sutilmente antropocêntrica, da sobrenatureza, que marca a passagem supracitada, cede lugar, neste outro contexto, ao reconhecimento de sua objetividade extra-humana no pensamento selvagem.

Isso tudo se exprime em uma lógica da indiscernibilidade entre qualidades sensíveis e estruturas formais que Lévi-Strauss chama metonimicamente de totemismo, sem reduzi-la de todo ao que seria apenas uma de suas instanciações (embora tão difundida, multiforme e exemplar, como se demonstra em O pensamento selvagem). Por isso, o emprego recorrente da expressão “o totemismo, ou o que se deve entender por isso”, uma vez que, segundo Lévi-Strauss, o conceito antropológico se prestara por muito tempo à desqualificação do pensamento selvagem como préou anti-científico, ilógico. O “assim chamado” totemismo teria servido como atestado de “pretensa inépcia dos ‘primitivos’ para o pensamento abstrato” (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 15). Como? Sustentando-se, por exemplo, que “o interesse dos primitivos pelas plantas e animais totêmicos” - isto é, a predileção por formas naturais, sensíveis, para significar “abstrações”, tida como característica universal do totemismo -“era-lhes [aos ‘primitivos’] inspirado unicamente pelos reclamos de seu estômago” (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 17). Como categoria antropológica, o totemismo teria se prestado ao papel deplorável de atestar uma “proximidade entre homem e animal”, ou melhor, uma “confusão [do homem] com o animal”, capaz de “permitir isolar, no seio da própria cultura, o selvagem do civilizado” (1975LÉVI-STRAUSS, Claude. 1975 [1962]. Totemismo hoje. Tradução de Malcolm Bruce Corrie. Petrópolis, Vozes.: 14).

Contra essa pressuposição tendenciosa tão racista quanto especista - pois tão injusta para com os “primitivos” quanto para com os “animais” -, Lévi-Strauss demonstra, por meio de uma refutação da concepção hegemônica em torno ao totemismo, o caráter eminentemente “especulativo” (1975LÉVI-STRAUSS, Claude. 1975 [1962]. Totemismo hoje. Tradução de Malcolm Bruce Corrie. Petrópolis, Vozes.: 94) do pensamento selvagem. O “simbolismo animal” (1975LÉVI-STRAUSS, Claude. 1975 [1962]. Totemismo hoje. Tradução de Malcolm Bruce Corrie. Petrópolis, Vozes.: 80) praticado pelo totemismo não se deixaria explicar por razões ou motivos meramente utilitários ou arbitrários: além de não ser absoluto (há “totens exóticos”, como qualidades secundárias, objetos artificiais, emblemas alheios etc.), o emprego de espécies naturais (formas animais, por exemplo) não se deve simplesmente ao fato de serem “boas para comer”, mas ao fato de serem “boas para pensar” (1975LÉVI-STRAUSS, Claude. 1975 [1962]. Totemismo hoje. Tradução de Malcolm Bruce Corrie. Petrópolis, Vozes.: 94). Especula-se sobre os animais e as plantas, porque eles ensinam a pensar: “O mundo animal e o mundo vegetal não são utilizados apenas porque existem, mas porque propõe ao homem um método de pensamento” (1975LÉVI-STRAUSS, Claude. 1975 [1962]. Totemismo hoje. Tradução de Malcolm Bruce Corrie. Petrópolis, Vozes.: 23).

Mas o que tudo isso quer dizer? Em que consiste o totemismo, em sentido antropológica e etnologicamente válido?

HOMOLOGIA E TRANSFORMAÇÃO

Em Totemismo hoje e O pensamento selvagem, encontramos dezenas de formulações da definição e do problema do totemismo. Trata-se, em todos ou quase todos os casos, da atitude especulativa que (i) “pensa o mundo natural em termos de mundo social” (Lévi-Strauss, 1975LÉVI-STRAUSS, Claude. 1975 [1962]. Totemismo hoje. Tradução de Malcolm Bruce Corrie. Petrópolis, Vozes.: 86), e que (ii), a partir disso, estabelece um vínculo simbólico de parentesco - totem, palavra de origem ojibwa, significa justamente algo como “é de minha parentela” (1975LÉVI-STRAUSS, Claude. 1975 [1962]. Totemismo hoje. Tradução de Malcolm Bruce Corrie. Petrópolis, Vozes.: 26) - entre segmentos, coletivos e/ou individuais, da série da espécies naturais (“não-humanas”) e segmentos, coletivos e/ou, da série de grupos sociais (“humanos”). Trata-se menos de uma instituição cultural que de um processo simbólico-material de formação de mundo, a um só tempo sociológico e cosmológico, em que a “estrutura do universo” e a “estrutura da sociedade” se espelham mutuamente (1975LÉVI-STRAUSS, Claude. 1975 [1962]. Totemismo hoje. Tradução de Malcolm Bruce Corrie. Petrópolis, Vozes.: 50). Nesse sentido, o “operador totêmico” tem por função nada menos que a “mediação entre natureza e cultura” (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 107), isto é, uma semiose de ordem sociocósmica.

Como se explica em Totemismo hoje, trata-se de articular as séries natural e cultural por meio da associação entre quatro elementos: categoria (ou espécie) e indivíduo, do lado da série natural; e grupo e pessoa, do lado da série cultural (Lévi-Strauss, 1975LÉVI-STRAUSS, Claude. 1975 [1962]. Totemismo hoje. Tradução de Malcolm Bruce Corrie. Petrópolis, Vozes.: 26). Do jogo combinatório dos elementos, resultam quatro modalidades de totemismo enquanto relação “homológica”, de semelhança diferencial, entre as séries natural e cultural: (i) homologia entre categoria e grupo; (ii) homologia entre categoria e pessoa; (iii) homologia entre indivíduo e pessoa; e (iv) homologia entre indivíduo e grupo. Lévi-Strauss as exemplifica com quatro exemplos etnográficos respectivamente correspondentes a cada uma das modalidades:

O totemismo australiano, sob estas modalidades ditas “social” e “sexual”, postula uma relação entre uma categoria natural (espécie animal ou vegetal, ou classe de objetos ou de fenômenos) e um grupo cultural (metade, seção, subseção, confraria religiosa, ou o conjunto de pessoas do mesmo sexo); a segunda combinação corresponde ao totemismo “individual” dos índios da América do Norte, entre os quais o indivíduo procura, por meio de provas, ajustar-se a uma categoria natural. Como exemplo da terceira combinação, citaremos Mota, nas ilhas Banks, onde a criança é considerada como a reencarnação de um animal ou de uma planta encontrada ou consumida pela mãe no momento em que ela toma conhecimento de sua gravidez. […] A combinação grupo-indivíduo é atestada na Polinésia e na África toda vez que certos animais (lagartos guardiães na Nova Zelândia, crocodilos e “margaye” do leão ou da pantera, na África) são objeto de uma proteção e de uma veneração coletivas. […] Logicamente falando, as quatro combinações são equivalência por serem engendradas pela mesma operação (1975LÉVI-STRAUSS, Claude. 1975 [1962]. Totemismo hoje. Tradução de Malcolm Bruce Corrie. Petrópolis, Vozes.: 26-27).

Por sua vez, em O pensamento selvagem, as modalidades parecem reduzir-se estruturalmente a três principais: (i) homologia formal, “metafórica”, entre diferenças pertencentes a cada uma das séries (Lévi-Strauss, 1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 135); (ii) homologia dinâmica, “afinidade física e psicológica”, entre espécie/indivíduo e grupo/pessoa (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 133-134); e (iii) identidade fusional, “metonímica”, entre espécie/indivíduo e grupo/pessoa (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 135), a qual Lévi-Strauss termina por vincular ao sacrifício, por oposição ao totemismo (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 250-254). Apesar das variações combinatórias, o “sistema totêmico” como tal tem por paradigma estrutural, segundo Lévi-Strauss, a primeira dessas modalidades, aquela na qual se configura como sistema classificatório de correlações formais, dotado de um “duplo fundamento objetivo”, natural (a descontinuidade entre as espécies naturais) e cultural (a segmentação dos grupos sociais) (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 253).3 3 Seguindo-se o caminho aberto por Viveiros de Castro (2018) com foco na dinâmica transformacional do sacrifício, caberia especular a respeito dos “[in]fundamentos” virtuais do totemismo: por contraste, fluxo contínuo entre as espécies e conexão transversal entre as culturas?

Aquela “mesma operação” lógica, que resulta em modalidades de totemismo diferentes e até mesmo divergentes entre si, consiste no trabalho do operador totêmico enquanto “aparelho conceitual que filtra a unidade através da multiplicidade, a multiplicidade através da unidade,a diversidade através da identidade,e a identidade através da diversidade” (Lévi-Strauss, 1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 174). Lévi-Strauss procura representar tal operação logicamente complexa por meio de um diagrama - poliedro teratológico - composto por relações ao mesmo tempo inter-específicas e inter-grupais (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 173). Representada no diagrama, a relação natural entre espécie e indivíduo é estruturada da mesma maneira pela qual se estrutura a relação social entre grupo e pessoa. Sobretudo, o diagrama exibe a composição estrutural de uma entidade qualquer no totemismo (donde sua dimensão potencialmente ontológica): continuum entre geral e particular, sem jamais se reduzir nem à generalidade plena nem à particularidade absoluta. Em certo sentido, cada entidade totêmica contém em si o mundo inteiro, pois não consiste senão em uma trama relacional de outras entidades, tanto mais próximas quanto mais distantes no que se refere a suas propriedades comuns.

Contudo, isso não quer dizer que a homologia totêmica implique perfeita simetria entre as séries. A rigor, Lévi-Strauss tende a sustentar a primazia da série natural sobre a série cultural: sistema simbólico, o totemismo tomaria “de empréstimo” dos “reinos naturais” o seu “poder lógico de denotação” (1975LÉVI-STRAUSS, Claude. 1975 [1962]. Totemismo hoje. Tradução de Malcolm Bruce Corrie. Petrópolis, Vozes.: 24). De fato, como interpreta Viveiros de Castro, com Lévi-Strauss o totemismo “deixou de ser uma instituição, passando a ser um método de classificação e um sistema de significação”, mas, por outro lado, não é nada óbvio que “a referência à série das espécies naturais [seja] contingente” (2018: 167). Isso significa que há uma lógica da própria natureza, a partir da qual as sociologias humanas são como que produzidas e deduzidas por comparação? Será que tal homologia, explicada reiteradamente como “empréstimo”, implica, mais que relações lógicas, transformações efetivas entre humanidade e não-humanidade? O totemismo configuraria simbolicamente algum tipo de “socialidade” entre a sociedade e a natureza, algo como uma sociedade entre sociedades de naturezas e culturas distintas? Enquanto regime relacional, o simbolismo totêmico é menos real por ser “apenas” simbólico? Percebe-se o salto, antropologicamente arriscado, que se dá com essas perguntas: da homologia à transformação, da lógica à ontologia.4 4 Para Fréderick Keck, no que se refere ao estatuto da distinção entre natureza e cultura, o pensamento de Lévi-Strauss se altera significativamente na passagem de As estruturas elementares do parentesco a O pensamento selvagem, com a oposição estática entre domínios dando lugar a uma dinâmica diferencial entre séries, a qual, por sua vez, “pode ser interpretada de duas maneiras: metodológica, afirmando-se que a natureza é estruturada pela cultura; ou ontológica, dizendo-se que a cultura é estruturada como a natureza, da qual constitui o prolongamento” (2013: 130-131). Segundo o intérprete, O pensamento selvagem oscila entre uma orientação kantiana, mais explícita, e outra espinosana, menos evidente, sem que, contudo, esta jamais seja suprimida, ou mesmo suplantada, por aquela: “A nova análise metodológica da oposição natureza/cultura realiza-se, entretanto, tendo por fundo uma tendência que nunca deixou de animar o pensamento de Lévi-Strauss: a ideia de que natureza e cultura constituem-se, ambas, de estruturas, de modo que a cultura prolonga em seu próprio nível um movimento de estruturação que move a natureza. Nesse ponto, Lévi-Strauss ultrapassa a metodologia das ciências humanas a que se limita na maioria das vezes (afirmando, kantianamente, que não lidamos com a realidade em si, mas apenas com a realidade tal como é percebida e categorizada pelo homem) e entra com prudência no campo da ontologia (vendo espinosamente no campo da natureza naturada um produto da natureza naturante, que age tanto na natureza quanto na cultura, e cujo motor é o próprio intelecto)” (2013: 135-136).

Indo ainda mais longe, não seria o caso de aplicarmos à forma estrutural do totemismo a reciprocidade de perspectivas de que fala Lévi-Strauss? Significaria nada menos que uma alternância posicional entre os elementos de cada uma das séries: por exemplo, se, do ponto de vista da cultura humana, a natureza é animal, do ponto de vista da cultura animal, a natureza é que seria “humana” (ou seja, os humanos pertenceriam à natureza, e não à cultura). Estar situado, como espécie ou indivíduo, como grupo ou pessoa, do lado da natureza ou do lado da cultura, dependeria então da perspectiva, humana ou não-humana, de quem procede à classificação totêmica. O totemismo não seria mais humano que animal, tornando-se um “perspectivismo multinatural” (Luciani, 2010LUCIANI, José Antonio Kelly. 2010. “Perspectivismo multinatural como transformação estrutural”. Ilha - Revista de Antropologia, vol. 12, n. 1: 135-160. DOI https://www.doi.org/10.5007/2175-8034.2010v12n1-2p137.
https://www.doi.org/10.5007/2175-8034.20...
). Como diz Viveiros de Castro, ao levar a cabo a metamorfose do totemismo lógico em perspectivismo cosmológico: “O que uns chamam de ‘natureza’ pode bem ser a ‘cultura’ dos outros” (2018: 53).

Todavia, é certo que Viveiros de Castro, tendo por referência o “xamanismo transversal” amazônico (2018: 180), interpreta o perspectivismo - comunicação transformacional entre séries heterogêneas - como sendo equidistante do totemismo - homologia estrutural entre séries descontínuas - e do sacrifício - identidade fusional entre séries contínuas:

Nem animismo - que afirmaria uma semelhança substancial ou analógica entre animais e humanos -, nem totemismo - que afirma uma semelhança formal ou homológica entre diferenças intra-humanas e diferenças interespecíficas -, o perspectivismo afirma uma diferença intensiva que traz a diferença humano/não-humano para o interior de cada existente (2018: 61).

O xamanismo escapa à partição, que eu imaginava exaustiva, entre lógica totêmica e prática sacrificial. [...] As operações xamânicas, se não se deixam reduzir a um jogo simbólico de classificações totêmicas, tampouco são da mesma espécie que o contínuo fusional perseguido pelas interserialidade imaginária do sacrifício. Elas exemplificam uma terceira forma de relação, a comunicação entre termos heterogêneos (2018: 181).

Sem poder tratar a fundo da retomada crítica que Viveiros de Castro faz do contraste lévi-straussiano entre totemismo e sacrifício, sigamos a hipótese interpretativa proposta por José Antonio Kelly Luciani, segundo a qual “o perspectivismo multinatural pode ser visto como uma transformação estrutural do totemismo” (2010: 137). Apesar de estar embasada em uma “sugestão do próprio Viveiros de Castro” (2010: 137), a referida hipótese é diametralmente oposta à que é privilegiada pelo mesmo com apoio no capítulo 4 de O pensamento selvagem (“Totem e casta”), a de que o “dispositivo totêmico” tenderia, pelo contrário, a derivar no “dispositivo das castas” (Viveiros de Castro, 2018VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2018 [2009]. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, Ubu Editora e n-1 edições.: 198-199) - este último sendo entendido como operador de uma ordem estaticamente endogâmica e, no extremo, exclusivamente humana, “falsamente” naturalizada (Lévi-Strauss, 1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 146).

IMAGO MUNDI

O que de mais definitivo Lévi-Strauss estabelece, em O pensamento selvagem, a respeito do nexo entre simbólico e real no totemismo parece achar-se na seguinte passagem do capítulo 3 (“Os sistemas de transformações”), em que se discute a articulação entre classificações totêmicas e proibições alimentares:

A subordinação lógica da semelhança ao contraste é bem evidenciada pelas atitudes complexas que observam alguns povos ditos totêmicos em relação às partes do corpo dos animais epônimos. Os tucuna do alto Solimões, que têm uma exogamia “hipertotêmica” (os membros do clã do tucano não podem se casar entre si nem desposar um membro de um clã que tenha nome de pássaro etc.), consomem livremente o animal epônimo mas respeitam e preservam uma parte sagrada, utilizando outras como enfeites, distintivos. O animal totêmico se decompõe, então, em parte consumível, parte respeitável e parte emblemática. Os elema, do sul da Nova Guiné, observam uma proibição alimentar muito estrita em relação a seus totens, mas cada clã detém um privilégio exclusivo sobre o uso ornamental do bico, das plumas da cauda etc. Nos dois casos verifica-se, portanto, uma oposição entre partes consumíveis e partes não-consumíveis homóloga àquela entre as categorias de alimento e de emblema. Para os elema, essa oposição é assinalada por um duplo exclusivismo, negativo ou positivo: em face da espécie totêmica, cada clã se abstém de sua carne mas detém as partes que denotam caracteres específicos. Os tucuna são igualmente exclusivos em relação às partes distintivas mas adotam com referência à carne (pois animais especificamente diferentes mas consumíveis assemelham-se enquanto alimento) uma atitude comum.

A pele, as penas, o bico, os dentes podem ser meus, pois são aquilo pelo que o animal epônimo e eu diferimos um do outro; essa diferença é assumida pelo homem a título de emblema e para afirmar sua relação simbólica com o animal, ao passo que as partes consumíveis, portanto, assimiláveis, são o índice de uma consubstancialidade real, mas que, ao contrário do que se imagina, a proibição alimentar tem como objetivo verdadeiro negar. Os etnólogos cometeram o erro de reter somente o segundo aspecto, o que os levou a conceber a relação entre o homem e o animal como unívoca, sob a forma de identidade, de afinidade ou de participação. De fato, as coisas são infinitamente mais complexas: trata-se, entre a cultura e a natureza, de uma troca de similitudes por diferenças que se situam tanto entre os animais, de um lado, e entre os homens, de outro, quanto entre os animais e os homens.

As diferenças entre os animais, que o homem pode extrair da natureza e levar em conta de cultura (seja descrevendo-as sob a forma de oposições e de contrastes, conceitualizando-as, portanto, seja separando partes concretas, mas não perecíveis: penas, bicos, dentes - o que constitui igualmente uma “abstração”), são assumidas como emblemas por grupos de homens, a fim de desnaturalizar suas próprias semelhanças. E os mesmos animais são recusados como alimento pelos mesmos grupos de homens. Vale dizer: a semelhança entre o homem e o animal, resultado da possibilidade para o primeiro de assimilar a carne do segundo, é negada, mas somente enquanto se percebe que o partido inverso implicaria um reconhecimento pelos homens de sua natureza comum. É necessário, portanto, que a carne de qualquer espécie animal não seja assimilável por qualquer grupo de homens.

Ora, é claro que a segunda operação deriva da primeira como uma conseqüência possível mas não necessária: as proibições alimentares não acompanham sempre as classificações totêmicas e lhes estão logicamente subordinadas. Assim, elas não colocam um problema separado. Se por meio de proibições alimentares os homens negam uma natureza animal real em relação a sua humanidade, é porque lhes é necessário assumir os caracteres simbólicos com o auxílio dos quais eles distinguem os animais uns dos outros (e que lhes fornecem um modelo natural de diferenciação), para criar diferenças entre si (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 123-125).

A passagem é bastante complexa. Do ponto de vista lógico, mais abstrato, Lévi-Strauss mostra como o pensamento selvagem trabalha para compor semelhança com diferença, “conciliar oposição e integração” (1975LÉVI-STRAUSS, Claude. 1975 [1962]. Totemismo hoje. Tradução de Malcolm Bruce Corrie. Petrópolis, Vozes.: 103). Do ponto de vista cosmológico, mais concreto, procura explicar como ele resolve a antinomia entre “consubstancialidade real” e “diferença simbólica”, tanto entre animais humanos e animais não-humanos, quanto entre animais humanos e entre animais não-humanos. Neste segundo nível, trata-se de conjugar o simbólico e o real, classificação e alimentação ou casamento (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 121-125). Pensar e comer encontram-se intimamente relacionados sob a forma de um problema fundamental: se só posso comer (em duplo sentido, alimentar-me de e casar-me com) o que é diferente de mim, às custas de, procedendo em contrário, incorrer em canibalismo, como posso fazê-lo se, na condição de seres vivos, somos todos, humanos e não-humanos, “consubstancialmente” semelhantes? O pensamento selvagem resolve o problema distribuindo estrategicamente diferenças em um contínuo de semelhanças. O animal totêmico é simultaneamente semelhante e diferente: identifico-me parcialmente ao meu parente não-humano para melhor distinguir-me de meus parentes humanos. Como diz Lévi-Strauss: “É necessário, portanto, que a carne de qualquer espécie animal não seja assimilável por qualquer grupo de homens”. Com isso, a diferença entre humanidade e não-humanidade atravessa tanto os seres humanos quanto os seres não-humanos: ambos comestíveis (no sentido da alimentação e no do casamento) enquanto não-totêmicos, porém proibidos enquanto totêmicos.

O totemismo não serve, portanto, à instauração da “diferença” entre humanidade e animalidade sob a forma da separação “absoluta” entre cultura e natureza, no sentido da “máquina antropológica” ocidental, pela qual a humanidade se constitui, por meio da “superação da physis animal”, como ordem metafisicamente separada do conjunto da vida (Agamben, 2017AGAMBEN, Giorgio. 2017 [2002]. O aberto: o homem e o animal. Tradução de Pedro Mendes revisada por Giuseppe Cocco e Izabela D’Urço. 2a. ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.: 123-124). Ao contrário, no totemismo, diferença não equivale a separação nem superação, mas a articulação e troca. A diferença totêmica é eminentemente relacional: ela evidencia que a humanidade só pode segmentar-se em grupos sociais na medida em que se identifica com outras espécies vivas; mais ainda, mostra que nem humanidade nem não-humanidade são domínios absolutos, imutáveis, mas sim posições relativas, intercambiáveis. Daí o caráter variável e pluridimensional, jamais estável e unívoco, da diferenciação totêmica entre natureza e cultura: “troca de similitudes por diferenças que se situam tanto entre os animais, de um lado, e entre os homens, de outro, quanto entre os animais e os homens”.

Podemos então formular melhor um ponto antes destacado: dizíamos, com Lévi-Strauss, que, se os animais e as plantas são privilegiados pelo totemismo, não é porque seriam simplesmente “bons para comer”, mas sim porque são “bons para pensar” - o que foi interpretado mais acima nos seguintes termos: eles nos ensinam a pensar. Mas essa formulação, enfatizando preferencialmente o pensar, é por isso mesmo injusta com o comer. Pelo contrário, em sentido totêmico, pensar e comer tornam-se indiscerníveis: comer é pensar, pensar é comer.

Em termos cosmológicos, isso tem por consequência que todo e cada ser (seja animal, vegetal, mineral, artificial etc.) “significado” pelo pensamento selvagem assume o estatuto de imago mundi (Lévi-Strauss, 1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 75). Bem ao contrário do que se costuma pensar, não é só o homem que constitui um microcosmos. Todo indivíduo é espécie, pois cada signo selvagem exibe em holograma a estrutura do cosmos:

O exemplo dos osage, sioux meridionais, é revelador, pois suas classificações têm um caráter sistemático, pelo menos na aparência. Os osage dividiam os seres e as coisas em três categorias respectivamente associadas ao céu (sol estrela, grou, corpos celestes, noite, constelação das Plêiades etc.), à água (mexilhão, tartaruga, Typha latifolia (um junco), nevoeiro, peixes etc.) e à terra firme (urso negro e branco, puma, porco-espinho, cervo, águia etc.). A posição da águia seria incompreensível se não se conhecesse o caminho que percorre o pensamento osage, associando a águia ao raio, o raio ao fogo, o fogo ao carvão e o carvão à terra: é, portanto, como um dos “senhores do carvão” que a águia é um animal “terrestre”. Do mesmo modo, e sem que nada possa sugeri-lo antecipadamente, o pelicano desempenha um papel simbólico em virtude da idade avançada a que chega, e o metal, devido a sua dureza. Às vezes, um animal desprovido de qualquer utilidade prática é invocado nos ritos: a tartaruga de cauda denteada em serra. Sua importância seria sempre ininteligível se não se soubesse, por outro lado, que o número 13 possui um valor místico para os osage. O sol nascente emite 13 raios, que se dividem num grupo de seis e num grupo de sete, correspondendo respectivamente ao lado esquerdo e ao lado direito, à terra e ao céu, ao verão e ao inverno. Ora, os dentes da cauda dessa espécie de tartaruga são em número de seis ou sete, conforme o caso; o peito do animal representa, então, a abóbada celeste, e a linha cinzenta que o atravessa, a via láctea. Não seria menos difícil predizer a função pan-simbólica atribuída ao cervo, cujo corpo é uma verdadeira imago mundi: seus pêlos representam a relva; suas coxas, as colinas; seus flancos, as planícies; sua espinha, as elevações; seu pescoço, os vales; sua galhada, toda a rede hidrográfica (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 75).

O filósofo Emanuele Coccia retomou recentemente a solução lévi-straussiana ao problema antropológico do totemismo sob a forma de uma cosmologia expressamente “pan-simbólica”, na qual o pensamento selvagem demonstra seu caráter mais que humano:

Se toda espécie é intrinsecamente interespecífica, ao contrário do que acreditamos e repetimos durante séculos, todo conhecimento e toda ciência, a cada instante de seu desenvolvimento, a cada latitude geográfica e cultural, é uma forma de totemismo. Poderíamos dizer que é sempre ao observar o não-humano que a humanidade (assim como qualquer outra espécie) pôde e poderá compreender a si própria: todo saber que diz respeito à nossa vida só pode ser tomado de empréstimo à observação. A autoconsciência é, sempre, interespecífica. Assim, é aplicando os conceitos que descrevem nossa vida que compreendemos a vida das espécies e das formas de vida diferentes da nossa. Totemismo e antropomorfismo são, sob esse ponto de vista, dois processos idênticos: se descobrimos que uma parte de nossa vida é idêntica à dos não-humanos, podemos reconhecer traços de humanidade nestes últimos; inversamente, cada vez que atribuímos um traço humano a uma planta ou a um animal, reconhecemos também que há em nós algo que não possui uma natureza puramente humana. E os dois processos são estruturalmente necessários: se cada espécie é definida como uma modificação de uma espécie que a precedeu, então todo conhecimento de uma única espécie é constitutivamente interespecífico. Sob certo ponto de vista, todo conhecimento é totêmico, pois não pode haver sabedoria que não seja tomada de empréstimo a outros seres vivos. E, vice-versa, todo conhecimento de si é sempre um conhecimento de outras formas de vida, pois cada forma de vida é uma colagem de várias espécies (Coccia, 2020COCCIA, Emanuele. 2020. Metamorfoses. Tradução de Madeleine Deschamps e Victoria Mouawad. Rio de Janeiro, Dantes Editora.: 204-205).

“A autoconsciência é, sempre, interespecífica”: se admitíssemos e performássemos de verdade,tanto teórica quanto praticamente,essa apercepção,descobriríamos, por uma reversão da ordem “civilizada” do pensamento, que habitamos um mundo, ou melhor, um complexo exorbitante de mundos, de todo diferente daquele filtrado por “nossa” cultura hegemonicamente antropocêntrica. Seríamos então tomados por uma vertigem cosmológica, a do pensamento selvagem: como afirma Lévi-Strauss, a nossa ideia, assim transformada, de humanidade “não teria mais nenhuma relação” com aquela fazíamos antes.

Eis, portanto, a solução do problema colocado pelo totemismo, cuja formulação menos inadequada Lévi-Strauss encontra na obra do antropólogo britânico Radcliffe-Brown: “Por que a maioria dos povos primitivos adota, nos seus costumes e nos seus mitos, uma atitude ritual para com os animais e as outras espécies naturais?” (apudLévi-Strauss, 1975LÉVI-STRAUSS, Claude. 1975 [1962]. Totemismo hoje. Tradução de Malcolm Bruce Corrie. Petrópolis, Vozes.: 67). Resposta: porque os assim chamados “primitivos” realizam a diferença entre natureza e cultura de formas “infinitamente mais complexas”, tanto lógica quanto cosmologicamente, do que os auto-intitulados “civilizados”. Ou seja, porque não são em nada primitivos: porque sempre compreenderam, e ainda o fazem, que entre natureza e cultura há muito mais coisas do que sonha (ou sequer sonha) “nossa” filosofia.

Obviamente, não é em vão que uso o termo “filosofia”. É o próprio Lévi-Strauss quem o emprega frequentemente, ao longo de seus escritos (“filosofia selvagem”, “filosofia indígena”), a fim de descrever a maneira original e prodigiosa com que “a atividade empírica e especulativa daqueles que chamamos primitivos” resolve de antemão as oposições, quase sempre antinômicas na tradição filosófica ocidental, entre “diacronia e sincronia, fato e estrutura, estética e lógica”:

Por seu caráter formal e pela “tomada” que exerce sobre toda espécie de conteúdo, essa preocupação [com a diferença] explica por que as instituições indígenas, ainda que elas mesmas levadas pelo fluxo da temporalidade, podem manter-se à distância constante da contingência histórica e da imutabilidade de um plano, navegando, se assim se pode dizer, numa corrente de inteligibilidade. Sempre a uma distância razoável de Cila e Caribdes: diacronia e sincronia, fato e estrutura, estética e lógica, sua natureza só pôde escapar aos que pretendiam defini-la apenas por um aspecto. Entre o profundo absurdo das práticas e das crenças primitivas proclamado por Frazer e sua validação especiosa através das evidências de um pretenso senso comum invocado por Malinowski, há lugar para toda uma ciência e toda uma filosofia (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 90).

É como se os traumas e as feridas de que padece nosso pensamento ultradomesticado - por força de sua extrema dificuldade em reconhecer a diferença como condição de toda relacionalidade e inteligibilidade - estivessem de saída subvertidos e sanadas na esfera do pensamento selvagem indígena. Diante disso, recusar aos povos extramodernos, sejam eles do presente mais contemporâneo ou do passado mais remoto, a capacidade especulativa e o espírito filosófico, não pode ser senão uma forma particularmente atroz de etnocentrismo, propensa às atitudes mais nefastas perante a alteridade sociocósmica (racismo e especismo, primitivismo e supremacismo, etnocídio e genocídio etc.).

Contra a persistência atávica de tal juízo filosófico propriamente primitivo porque espiritualmente indigente, conclui, com toda razão, um outro estudioso do pensamento selvagem, aliás de orientação metodológica radicalmente divergente da antropologia estrutural de Lévi-Strauss,5 5 Com efeito, a arquihipótese de Joseph Campbell acerca do “monomito” é de todo incompatível com a antropologia lévi-straussiana, na qual os mitos (sempre no plural) são compreendidos como “sistemas de transformações” por definição refratários à sua unificação em uma “mitologia universal”. que “nossa noção geralmente aceita de história da filosofia se acha fundamentada numa suposição falsa em todos os seus termos”:

É impossível dizer se o mito configurava-se originalmente como ilustração da fórmula filosófica ou se esta constituía uma destilação que tinha o mito como ponto de partida. Por certo o mito remonta a eras perdidas no tempo, mas o mesmo ocorre com a filosofia. Quem poderá saber que pensamentos povoavam a mente dos velhos sábios que o desenvolveram, guardaram e transmitiram? Com muita frequência, durante a análise e penetração dos segredos do símbolo arcaico, apenas podemos sentir que nossa noção geralmente aceita de história da filosofia se acha fundamentada numa suposição falsa em todos os seus termos - a noção segundo a qual o pensamento abstrato e metafísico se inicia quando surge pela primeira vez nos nossos registros existentes (Campbell, 2007CAMPBELL, Joseph. 2007 [1949]. O herói de mil faces. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo, Pensamento.: 261).

RECIPROCIDADE E REGRESSO

Em que medida o pensamento de Lévi-Strauss - como, aliás, o próprio pensador sugere com respeito a Bergson, “filósofo de gabinete [que] pensa como um selvagem”, e a Rousseau, filósofo “militante da etnografia”, na medida em que ambos, ainda que por caminhos opostos, teriam experimentado “em si mesmos, por um processo de interiorização, modos de pensar tirados principalmente de fora ou simplesmente imaginados” (1975LÉVI-STRAUSS, Claude. 1975 [1962]. Totemismo hoje. Tradução de Malcolm Bruce Corrie. Petrópolis, Vozes.: 99-107) - é ele mesmo selvagem?

A questão é consideravelmente difícil, pois demanda uma consideração profunda do método da antropologia estrutural com vistas a discernir seus dispositivos próprios de domesticação. Pois é inegável que, em certos momentos, O pensamento selvagem flerta, para o dizer o mínimo, com a ultradomesticação civilizada, inclusive sob a figura extremamente problemática de um materialismo histórico de viés essencialista:

Bem entendido, é unicamente pela comodidade da exposição e por que esse livro é dedicado à ideologia e às superestruturas que parecemos lhes dar uma espécie de prioridade. Não pretendemos de maneira nenhuma insinuar que transformações ideológicas gerem transformações sociais. A ordem inversa é a única verdadeira: a concepção que os homens têm das relações entre natureza e cultura é função da maneira pela qual suas próprias relações sociais se modificam. Mas, sendo aqui nosso objetivo esboçar uma teoria das superestruturas, é inevitável, por razões de método, que concedamos a elas uma atenção privilegiada e que pareçamos colocar entre parênteses ou num plano subordinado os fenômenos mais relevantes que não figuram em nosso programa do momento. Entretanto não estudamos senão as sombras perfiladas no fundo da caverna, sem esquecer que é apenas a atenção por nós concedida que lhes confere uma aparência de realidade (Lévi-Strauss, 1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 135-136).

Ora, as “sombras perfiladas no fundo da caverna”, tidas por Lévi-Strauss como meros simulacros, são, para um pensador indômito como Davi Kopenawa, nada menos que o “verdadeiro coração”, o “verdadeiro interior”, dos seres da floresta, as “imagens dos ancestrais animais”, espectros ontologicamente independentes, espíritos:

As imagens que fazemos descer e dançar como xapiri são suas formas de fantasma. São seu verdadeiro coração, seu verdadeiro interior. Os ancestrais animais do primeiro tempo não desapareceram, portanto. Tornaram-se os animais de caça que moram na floresta hoje. Mas seus fantasmas também continuam existindo. Continuam tendo seus nomes de animais, mas agora são seres invisíveis. Transformaram-se em xapiri que são imortais. Assim, mesmo quando a epidemia xawara tenta queimá-los ou devorá-los, seus espelhos sempre voltam a desabrochar. São verdadeiros maiores. Não podem desaparecer jamais (Kopenawa & Albert, 2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. 2015 [2010]. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Companhia das Letras.: 117).

Embora tal exame comparativo entre o conceito antropológico-estrutural de signo e o conceito xamânico-transversal de imagem6 6 Cf. Viveiros de Castro, 2006b. esteja, no momento, fora do meu alcance, gostaria, ainda assim, de encerrar com duas indicações de resposta, bastante parciais.

Eis a primeira. É fato que Lévi-Strauss se interessa sobretudo por demonstrar a ubiquidade etnológica do pensamento selvagem, seja entre “selvagens” ou entre “civilizados”. A seguinte passagem do capítulo 8 de O pensamento selvagem (“O tempo reencontrado”) exprime esse interesse com máxima eloquência, sendo uma das mais importantes de toda a obra. Talvez em nenhuma outra passagem fique tão clara a natureza do pensamento selvagem, tal como Lévi-Strauss a compreende. E a passagem em questão, que já vínhamos comentando acima a propósito da noção de reciprocidade de perspectivas, se caracteriza por evidenciar magistralmente como mundos tão diferentes, como o da “civilização mecânica” e o das civilizações, por contraste, “orgânicas”, seriam ambos atravessados constitutivamente, ainda que de modos bastante diversos (recalcado no primeiro caso, e manifesto no segundo), pelo pensamento selvagem. Isso é tudo:

Para compreender a penetração de que dão prova os pretensos primitivos quando observam e interpretam os fenômenos naturais, não é preciso invocar o exercício de faculdades desaparecidas ou o uso de uma sensibilidade supranumerária. O índio americano que decifra um rastro por meio de índices imperceptíveis, o australiano que identifica sem hesitar as pegadas deixadas por um membro qualquer de seu grupo não agem diferentemente de nós quando dirigimos um automóvel e percebemos com um simples golpe de vista uma leve mudança de direção das rodas, uma flutuação da marcha do motor ou mesmo a suposta intenção de um olhar no momento de ultrapassar ou evitar um carro. Por mais incongruente que possa parecer, essa comparação é rica de ensinamentos, pois o que aguça nossas faculdades, estimula nossa percepção, dá segurança a nossos julgamentos é, de um lado, que os meios de que dispomos e os riscos que corremos são incomparavelmente aumentados pela potência mecânica do motor, de outro, que a tensão resultante do sentimento dessa força incorporada se exerce em uma série de diálogos com outros motoristas, cujas intenções, semelhantes às nossas, traduzem-se em signos que nos obstinamos em decifrar porque são precisamente signos que solicitam intelecção. Transposta para o plano da civilização mecânica, encontramos então essa reciprocidade de perspectivas na qual homem e mundo se fazem espelho um do outro e que nos pareceu poder sozinha dar conta das propriedades e das capacidades do pensamento selvagem. Um observador exótico julgaria, sem dúvida, que a circulação de automóveis no centro de uma grande cidade ou numa autoestrada ultrapassa as faculdades humanas; de fato, ela as ultrapassa, quando coloca frente a frente não homens ou leis naturais mas sistemas de forças naturais humanizadas pela intenção dos motoristas e homens transformados em forças naturais pela energia física de que se fazem mediadores. Não se trata mais da operação de um agente sobre um objeto inerte nem da ação de resposta de um objeto promovido ao papel de agente sobre um sujeito que se teria desprovido em seu favor sem nada lhe pedir em troca, ou seja, de situações que comportem, de um lado e de outro, uma certa dose de passividade: os seres em questão se defrontam ao mesmo tempo como sujeitos e como objetos e, no código que utilizam, uma simples variação da distância que os separa tem a força de uma intimação muda (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 245-246).

Lida nos dias de hoje, após quase sessenta anos desde sua primeira publicação, a comparação entre um passeio na floresta e um trajeto rodoviário deveria espantar não só por seu caráter inusitado, mas também por seu teor eminentemente elucidativo. Ao demonstrar a reciprocidade de perspectivas como “mútuo espelhamento entre homem e mundo”, no qual a “humanização das leis naturais” é acompanhada pela “naturalização das ações humanas”, Lévi-Strauss formula - confessamente inspirado pelo pensamento selvagem - nada menos que o princípio de inteligibilidade da atual configuração planetária, ininteligível apenas com base na epistemologia moderna: o Antropoceno, nova época histórico-geológica, na qual a agência antrópica se revela força natural capaz de alterar drástica e irreversivelmente a geobiosfera. Afinal, como poderíamos jamais compreender que a História, suposta intrinsecamente humana, e somente humana, tenha “virado” natureza, e vice-versa (Chakrabarty, 2013CHAKRABARTY, Dipesh. 2013 [2009]. “O clima da história: quatro teses”. Coordenação de Tradução de Idelber Avelar. Sopro, n. 91: 2-22. Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/n91.html.
http://culturaebarbarie.org/sopro/n91.ht...
), a não ser reconhecendo, contra hábitos seculares do pensamento, a possibilidade de “sistemas de forças naturais humanizadas pela intenção dos homens e homens transformados em forças naturais pela energia física de que se fazem mediadores” - forças sobre as quais os humanos ultradomesticados não temos nenhum controle?

Segundo Lévi-Strauss, tais sistemas naturais-culturais são dinamicamente assimétricos, ou seja, desequilibrados: o progresso cultural pode in extremis - e é precisamente o caso do Antropoceno - acarretar um regresso da natureza, como ensina o pensamento selvagem que se exprime nos mitos. No quarto volume das Mitológicas, O homem nu, lemos:

Não devemos esquecer que tais atos de mediação não reversíveis acarretam pesadas contrapartidas. De um lado, empobrecimento quantitativo da ordem natural, na duração, pela determinação de um termo para a vida humana, e no espaço, pela diminuição do número de espécies animais, em decorrência de sua desastrosa investida celeste. E também empobrecimento qualitativo, já que o Pica-Pau, por ter conquistado o fogo, perdeu a maior parte de suas penas vermelhas, e se em compensação o Melro adquiriu seu peito rubro, foi na forma de uma lesão anatômica, decorrente de seu fracasso na mesma missão. De modo que, seja pela destruição de uma harmonia primeira, ou pela introdução de afastamentos diferenciais que a alteram, o acesso da humanidade à cultura se faz acompanhar, no plano da natureza, por uma espécie de degradação que a faz passar do contínuo para o discreto (2011LÉVI-STRAUSS, Claude. 2011 [1971]. O homem nu. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Cosac Naify . (Mitológicas IV): 484).

Nesta passagem, comentada por Viveiros de Castro (2018VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2018 [2009]. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, Ubu Editora e n-1 edições.: 257-258) para mostrar que, segundo os mitos ameríndios analisados por Lévi-Strauss, a articulação entre natureza e cultura pode assumir os mais diversos sentidos, inclusive, um sentido ao mesmo tempo “pró-cultural” e “anti-natural”, temos que o “acesso da humanidade à cultura”, a sua famigerada emancipação, conduz ao “empobrecimento”, à “destruição” e à “degradação”, tanto quantitativas quanto qualitativas, da natureza, da qual ela mesma faz parte como espécie viva mesclada a inúmeras outras espécies. Em vista disso, Viveiros de Castro encerra seu comentário à mesma passagem corroborando a última sentença de Lévi-Strauss: “O aquecimento global da história, o fim das histórias frias, é o fim da Natureza” (2018: 258). Sentença que já se encontrava formulada nas páginas finais de Tristes trópicos, em que a humanidade, representada sobretudo pela história quente da civilização industrial, é descrita “entropologicamente” como máquina cultural de máxima aceleração da desintegração termodinâmica do cosmos (Lévi-Strauss, 1996LÉVI-STRAUSS, Claude. 1996 [1955]. Tristes trópicos. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo, Companhia das Letras .: 391-392) - logo, desde uma perspectiva que evoca a visão apocalíptica do “Anjo da História”, o qual contempla desesperadamente o progresso histórico como acumulação ilimitada de ruínas (Benjamin, 1994BENJAMIN, Walter. 1994 [1940]. “Sobre o conceito da História”. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7a. ed. São Paulo, Brasiliense, pp. 222-232.: 226).7 7 Sobre essa conexão, ver Almeida (1999: 178-179). Por fim, não é à toa que o discurso filosoficamente mais profundo acerca da catástrofe socioambiental em curso seja A queda do céu, obra na qual se anuncia a “morte dos xamãs”, provocada pelo “povo da mercadoria”, como sendo a desrazão mais imediata para o cataclisma universal (Kopenawa & Albert, 2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. 2015 [2010]. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Companhia das Letras.: 488-498).

Ora, o que explica melhor aquele princípio, tão lúcido quanto revolucionário, e esse diagnóstico, tão sóbrio quanto sombrio, senão a orientação ao menos parcialmente selvagem do pensamento de Lévi-Strauss?

VIOLA TRICOLOR

A segunda indicação de resposta à questão acima colocada consiste no breve comentário de uma evidência preciosa a respeito, fornecida pelo próprio Lévi-Strauss. Não é qualquer evidência. Muito além de um “formidável trocadilho, quebra-cabeça magistral para todas as traduções” (Loyer, 2018LOYER, Emmanuelle. 2018 [2015]. Lévi-Strauss. Tradução de André Telles. São Paulo, Edições Sesc.: 421), trata-se precisamente do totem de O pensamento selvagem, a saber, a flor que conhecemos pelo nome de “amor-perfeito” e que, em francês, é chamada de pensée sauvage.

Apêndice ao texto original de O pensamento selvagem (e “Nota introdutória” na tradução brasileira da obra), encontramos uma série de seis lendas, bastante semelhantes entre si, a respeito dessa espécie vegetal, hermafrodita e autofértil: Viola tricolor. Tomemos a quarta e a sexta delas:

Vocês admiram minhas pétalas, diz a flor da violeta, mas considerem-nas mais de perto: seu tamanho e sua ornamentação diferem. A de baixo se espalha, é a madrasta malvada que se apropria de tudo; ela instalou-se em duas cadeiras ao mesmo tempo, pois, como vêem, têm duas sépalas sob essa grande pétala. A sua direita e a sua esquerda estão suas próprias filhas; cada uma delas tem seu assento. E bem longe dela podem-se ver as duas pétalas do alto: suas duas enteadas, que se acocoram humildemente no mesmo assento. Então, o bom Deus se apieda da sorte das enteadas abandonadas; ele castiga a madrasta malvada virando a flor sobre seu pedúnculo: a madrasta, que se achava no alto quando a flor estava no lugar, a partir de então ficará embaixo, e uma grande corcunda lhe cresce nas costas; suas filhas recebem uma barba como punição por seu orgulho, e esta as torna ridículas aos olhos de todas as crianças que as vêem, ao passo que as enteadas desprezadas agora são colocadas mais alto que elas (Lévi-Strauss, 1962LÉVI-STRAUSS, Claude. 1962. La pensée sauvage. Paris, Plon.: 359-360; 1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 12).

Um dia, sem que os pais o soubessem, um irmão desposou sua irmã (sem saber que ela era sua irmã). Quando os dois tomaram conhecimento de seu crime involuntário, sentiram tanto desgosto, que Deus teve piedade deles e os transformou nessa flor (o pensamento), que guardou o nome de bratky (os irmãos) (1962LÉVI-STRAUSS, Claude. 1962. La pensée sauvage. Paris, Plon.: 360; 1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 12-13).

O que significa que a obra tenha por título, ou melhor, totem, essa flor, a qual, nas lendas reportadas, encarna relações limítrofes de parentesco - o abandono das enteadas pela madrastra, de um lado, e o incesto involuntário entre irmão e irmã, de outro? Mais ainda, será Viola tricolor metáfora de O pensamento selvagem - ou o contrário? Qual é o sentido literal e qual o sentido figurado, se é que a distinção se aplica ao caso, de “pensamento selvagem”: o vegetal ou o noético? O pensamento é “como” a flor, ou a flor é “como” o pensamento?

Embora pareçam talvez absurdas, essas perguntas têm sua validade corroborada por uma citação à primeira vista despretensiosa que Lévi-Strauss faz de Balzac, bem na metade do livro: “As ideias são, em nós, um sistema completo, semelhante a um dos reinos da natureza, uma espécie de floração cuja iconografia será descrita por um homem de gênio que passará por louco, talvez” (apudLévi-Strauss, 1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 149). Na sequência, o ant(rop)ólogo pondera, provocativamente: “Mas a quem tentar essa empresa sem dúvida será necessário mais loucura que gênio” (1997aLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997a [1962]. O pensamento selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2a. ed. Campinas, Papirus.: 149).

Perguntávamos antes se, tomado em reciprocidade de perspectiva com seu próprio objeto, o pensamento de Lévi-Strauss é ele mesmo, de algum modo, selvagem. Sem ter respondido à questão, descobrimos que cabe também questionar se ele não é, em seus próprios termos, “louco, talvez”: mais uma vez, feral, de uma feralidade noético-vegetal… Pois, acima de tudo, não é justamente tal “espécie de floração” das ideias que se cultiva em O pensamento selvagem?

Voilà la pensée sauvage: flor incestuosa, fruto da aliança pecaminosa, monstruosa, entre amor contra-natureza e pensamento extra-humano.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2018 [2009]. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, Ubu Editora e n-1 edições.
  • 1
    Para uma interpretação em sentido contrário, pela qual, em vista de explicar as condições epistemológicas da antropologia estrutural, se procura ressaltar, em vez da aliança efetiva com o pensamento totêmico indígena, uma pretensa filiação do “pensamento selvagem” de Lévi-Strauss à filosofia transcendental de Kant, cf. Pimenta, 2013PIMENTA, Pedro Paulo. 2013. “Kant no pensamento selvagem de Lévi-Strauss”. Revista de Antropologia, vol. 56, n. 1: 291-320. DOI https://www.doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2013.64498.
    https://www.doi.org/10.11606/2179-0892.r...
    .
  • 2
    Em um ensaio tardio, “Olhares sobre objetos”, LéviStrauss considera a arte e a língua de “povos sem escrita” como atestados de um vínculo essencial entre experiência e sobrenatureza, como se o objeto da experiência e da arte (e não da crença e da convenção) fosse, por excelência, o sobrenatural: “A arte dos povos sem escrita não remete apenas à natureza ou à convenção, nem às duas juntas. Remete igualmente ao sobrenatural. Nós, que não vemos mais o sobrenatural de frente, colocamos em seu lugar símbolos convencionais ou personagens humanos enobrecidos. […] A língua dos Wintu, índios da Califórnia, distingue as verdades da experiências e as crenças. Ora, é sempre através da categoria gramatical da experiência que se exprimem a respeito do sobrenatural. A língua reenvia os fenômenos e eventos que remetem à causalidade natural aos que são conhecidos de modo impessoal e indiretamente” (1997bLÉVI-STRAUSS, Claude. 1997b [1993]. Olhar, escutar, ler. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Companhia das Letras .: 121-122). O trecho revela, por parte de Lévi-Strauss, uma valoração consideravelmente mais positiva da experiência sobrenatural: a interpretação “subjetivista”, sutilmente antropocêntrica, da sobrenatureza, que marca a passagem supracitada, cede lugar, neste outro contexto, ao reconhecimento de sua objetividade extra-humana no pensamento selvagem.
  • 3
    Seguindo-se o caminho aberto por Viveiros de Castro (2018VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2018 [2009]. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo, Ubu Editora e n-1 edições.) com foco na dinâmica transformacional do sacrifício, caberia especular a respeito dos “[in]fundamentos” virtuais do totemismo: por contraste, fluxo contínuo entre as espécies e conexão transversal entre as culturas?
  • 4
    Para Fréderick Keck, no que se refere ao estatuto da distinção entre natureza e cultura, o pensamento de Lévi-Strauss se altera significativamente na passagem de As estruturas elementares do parentesco a O pensamento selvagem, com a oposição estática entre domínios dando lugar a uma dinâmica diferencial entre séries, a qual, por sua vez, “pode ser interpretada de duas maneiras: metodológica, afirmando-se que a natureza é estruturada pela cultura; ou ontológica, dizendo-se que a cultura é estruturada como a natureza, da qual constitui o prolongamento” (2013KECK, Fréderick. 2013 [2011]. Introdução a Lévi-Strauss. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, Contraponto.: 130-131). Segundo o intérprete, O pensamento selvagem oscila entre uma orientação kantiana, mais explícita, e outra espinosana, menos evidente, sem que, contudo, esta jamais seja suprimida, ou mesmo suplantada, por aquela: “A nova análise metodológica da oposição natureza/cultura realiza-se, entretanto, tendo por fundo uma tendência que nunca deixou de animar o pensamento de Lévi-Strauss: a ideia de que natureza e cultura constituem-se, ambas, de estruturas, de modo que a cultura prolonga em seu próprio nível um movimento de estruturação que move a natureza. Nesse ponto, Lévi-Strauss ultrapassa a metodologia das ciências humanas a que se limita na maioria das vezes (afirmando, kantianamente, que não lidamos com a realidade em si, mas apenas com a realidade tal como é percebida e categorizada pelo homem) e entra com prudência no campo da ontologia (vendo espinosamente no campo da natureza naturada um produto da natureza naturante, que age tanto na natureza quanto na cultura, e cujo motor é o próprio intelecto)” (2013LÉVI-STRAUSS, Claude. 2013 [1973]. Antropologia estrutural dois. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo, Cosac Naify .: 135-136).
  • 5
    Com efeito, a arquihipótese de Joseph Campbell acerca do “monomito” é de todo incompatível com a antropologia lévi-straussiana, na qual os mitos (sempre no plural) são compreendidos como “sistemas de transformações” por definição refratários à sua unificação em uma “mitologia universal”.
  • 6
    Cf. Viveiros de Castro, 2006bVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2006b. “A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos”. Cadernos de Campo, vol. 14/15: 319-338. DOI https://www.doi.org/10.11606/issn.2316-9133.v15i14-15p319-338.
    https://www.doi.org/10.11606/issn.2316-9...
    .
  • 7
    Sobre essa conexão, ver Almeida (1999ALMEIDA, Mauro W. B. de. 1999. “Simetria e entropia: sobre a noção de estrutura em Lévi-Strauss”. Revista de Antropologia, vol. 42, n. 1-2: 163-197. DOI https://www.doi.org/10.1590/S0034-77011999000100010.
    https://www.doi.org/10.1590/S0034-770119...
    : 178-179).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Dez 2020
  • Aceito
    29 Out 2021
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