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Novas perspectivas sobre os sonhos ameríndios: uma apresentação

Quem envereda pelo tema dos sonhos depara-se com uma imensa literatura, tão antiga quanto a escrita, tão heterogênea quanto são as formas de conhecer. Se até mesmo os rouxinóis sonham sonhos de rouxinóis, como nota Buffon em sua História Natural, a tarefa de atribuir sentido ao fenômeno ultrapassa as fronteiras das áreas do saber: os sonhos são reivindicados pelas artes e pela literatura como fonte de inspiração criativa; pelas religiões, como meio de comunicação direta com o divino; pela psicanálise, como a “via real” para o inconsciente; pelas ciências médicas e biológicas, como fenômenos fisiológicos, neurológicos, característicos da fase REM (rapid eye movement) do sono; por diversos povos, que os assumem como um meio de aquisição de conhecimentos sobre si, sobre outrem e sobre o mundo.

Entre os povos ameríndios, em geral, e das terras baixas da América do Sul, em particular, a importância dos sonhos é observada desde longa data, como já assinalamos relatos dos primeiros viajantes europeus. Abundamnas crônicas e etnografias dessa região referências ao papel central que os sonhos e seus relatos possuem no cotidiano destes povos. Entretanto, apesar de ser um tema recorrente, a experiência onírica destes coletivos assumiu, de modo geral, um papel menor nas etnografias, o que talvez diga mais sobre os seus etnógrafos do que sobre os próprios coletivos. Não raro, o tema vê-se reduzido a trechos de capítulos ou a breves considerações etnográficas ou anedóticas nos trabalhos que se dedicam a abordá-lo. Tudo se passa, a despeito das inúmeras revisões da literatura antropológica, como se fosse mantida a grande divisão, estabelecida por Durkheim, entre representações individuais e representações coletivas, as primeiras - os sonhos, por exemplo - sendo reservadas ao campo de estudo da Psicologia.

Nos últimos anos, porém, tem-se notado um curioso reinteresse pela temática, que vai deixando de ser secundária para figurar como um tópico que norteia as etnografias, renovando o campo de debates em torno de temas clássicos, agora considerados indissociáveis da atividade onírica. Para mencionar apenas alguns deles: a “noção de pessoa”, a relação entre “corpo” e “alma”, os conceitos de tempo e espaço, as implicações mútuas entre mitologia e história, as dinâmicas territoriais, a caça e a agricultura, o xamanismo e a guerra.1 1 Veja-se por exemplo a publicação recente na Revista de Antropologia de dois artigos versando sobre a temática dos sonhos entre povos i92016) e Ramos (2018) Além da revisão da produção bibliográfica dedicada ao tema dos sonhos nas terras baixas da América do Sul, os artigos aqui reunidos propõem, em conjunto, uma renovação deste campo de debates, atualizando-o por meio de novos trabalhos etnográficos e de questões teóricas e conceituais que vêm ganhando espaço tanto no debate antropológico atual, quanto nas discussões sobre o cenário político e ecológico da emergência climática e sanitária, aprofundados pelo atual governo fascista brasileiro.

É inegável que acontecimentos recentes e debates impulsionados por intelectuais e lideranças indígenas tenham recolocado o lugar da vida onírica no centro das preocupações da etnologia. A pandemia de covid-19, atrelada a uma aguda crise ecológica e sociopolítica, nos obrigou a reconsiderar o sonho como dispositivo capaz de nos livrar de confinamentos - ambientais, sociais e mentais - e a imaginar outros mundos possíveis. Como insistiu Ailton Krenak, em uma série de manifestos proferidos durante a fase mais crítica da pandemia, “é preciso sonhar para adiar o fim do mundo”.2 2 Veja-se por exemplo Krenak (2020) e o debate entre ele e o neurocientista Sidarta Ribeiro, que pode ser acessado pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=95tOtpk4Bnw&ab_channel=CompanhiadasLetras Isso porque a atividade onírica seria, para diferentes povos indígenas, um modo de se conectar ao mundo e aos mais diversos seres que o povoam, e não de dar as costas para ele tornando-o mero recurso, passível de ser transformado em mercadoria e então aniquilado. Retomar a potência dos sonhos seria também retomar modos de subjetivação e de criatividade que não aqueles cultivados pelo regime capitalista e neoliberal. A revolução iniciada por Freud em A interpretação dos sonhos (1900FREUD, Sigmund. 2019 [1900]. A interpretação dos sonhos. São Paulo: Companhia das Letras.) ganharia, assim, novos ares coma consideração de formas indígenas do sonhar. Como insiste Davi Kopenawa em seu manifesto cosmopolítico, que é A queda do céu (2015KOPENAWA, Davi; Bruce Albert. 2015. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras .), co-escrito com Bruce Albert, é preciso deixar de sonhar apenas “consigo mesmo” para então “viajar longe”, abrir-se para múltiplos mundos, por exemplo, o mundo dos xapiripë, imagens vitais dos seres que habitam a terra-floresta.

Este dossiê reúne contribuições recentes focadas nas terras baixas da América do Sul sob o intuito de evidenciar o tema da atividade onírica em sua relação com as cosmopolíticas indígenas (e por cosmopolíticas compreendemos o processo de composição de pessoas, coletivos e mundos). Em comum, esses trabalhos refletem sobre os sonhos como acontecimentos plenos de consequências, não se restringindo à vida noturna. Afinal, nem todo sonho estaria restrito ao sono, revelando sua vizinhança com outros fenômenos, como as alterações - menos de consciência do que corporais - propiciadas pelo consumo de substâncias psicoativas. Em linhas gerais, partimos da ideia de que os sonhos seriam concebidos pelos povos indígenas menos como representações geradas por um inconsciente psíquico individual do que como experiências reais, capazes de surtir efeito sobre a vigília, de ser coletivizadas, de alterar o rumo dos acontecimentos. Tendo em vista essa translação de perspectiva, visam-se aqui as teorias etnográficas do sonhar que levam em consideração asserções ontológicas indígenas, asserções que escapam de teorias universalizantes.

No artigo “Tempo e evento na onirocrítica ameríndia: um balanço bibliográfico”, Karen Shiratori revisita a bibliografia acerca dos sonhos entre os povos indígenas da América do Sul traçando uma importante reflexão sobre o estatuto dos sonhos como acontecimentos, isto é, mais do que representação ou discurso, devolvendo-lhe a sua condição de experiência, tão enfatizada pelos indígenas. Por meio dessa abordagem, que permeia os demais textos deste dossiê, a autora repassa algumas das principais questões etnográficas associadas ao “acontecimento onírico ameríndio”, em especial suas conexões com a vigília, o tempo e a morte. Ao questionar uma interpretação demasiadamente calcada na abordagem dos sonhos e da onirocrítica indígenas como premonição ou revelação de um futuro determinado, a autora refina a abordagem destes relatos, indicando como o que está em jogo é menos um destino premeditado do que um tempo múltiplo, reversível e desarticulado. Aqui, os sonhos e suas interpretações são apresentados em toda a sua capacidade de alterar o curso dos acontecimentos. Neste movimento, é a agência dos sonhos (e dos próprios indígenas) que é enfatizada, pois “todo sonho demanda uma ação específica, uma pragmática fundada na virtualidade da dimensão onírica. Não é pretérito, posto que permanece em curso, mesmo após o despertar, porém, sem constranger o sonhador se impondo a ele como um destino”.

Num espírito semelhante e aprofundando a revisão bibliográfica presente no dossiê, o artigo de Gemma Orobitg, “Para além do sonho e da vigília: o sonho ameríndio e a existência”, dialoga em muitos aspectos com os problemas percorridos pela análise de Shiratori, em particular com a oposição entre sonho e vigília que norteou historicamente boa parte da discussão sobre sonhos. Baseada em sua pesquisa de campo entre os Pumé da Venezuela, Orobitg também se volta para questões associadas ao próprio estatuto existencial e ontológico dos sonhos nas cosmopolíticas ameríndias, tomando-os como fonte de vitalidade, criatividade e imaginação. Orobitg resgata suas primeiras experiências entre os Pumé, desvelando as maneiras como, aos poucos, o idioma dos sonhos se tornou o principal articulador de suas conversas com mestres indígenas e, mais do que isso, o modo mesmo como ela os conhecia ao mesmo tempo em que se fazia conhecer por eles. A partir desta interlocução, a autora desenvolve a ideia do “aspecto intransitivo da atividade onírica”, um certo “ser feito sonhar”, enquanto explora a experiência onírica como deslocamento entre o “aqui e o alhures”, tão característico das descrições dos sonhos como “viagem da alma”, tema que perpassa todos os trabalhos deste dossiê.

O artigo “Notas sobre os sonhos yanomami” de Hanna Limulja introduz o leitor ao universo onírico destes povos. Baseado em extensa pesquisa de campo na comunidade yanomami do Pya’u, no Amazonas, Limulja (2022aLIMULJA, Hanna. 2022a. Notas sobre os sonhos yanomami. Revista de Antropologia , vol. 65, n. 3: e186098. DOI: https://www.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.186098.
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) apresenta uma belíssima descrição do cotidiano da aldeia, animado, de tempos em tempos, pela realização das festas reahu, o importante ritual funerário que marca “a um só tempo a ruptura e a manutenção da relação entre vivos e mortos”. A partir do comentário de Luigi, o xamã mais velho da comunidade, segundo o qual o crepúsculo é o momento privilegiado para sentir saudades, Limulja desfila toda uma cuidadosa análise do porquê os Yanomami associarem o sonho e a saudade ao período noturno. Para tanto, a autora remonta ao mito de origem da noite, quando Yawarioma flechou o mutum na floresta, rodeado pela escuridão, e com isso “espalhou a grande noite por todos os lados”, dando fim ao tempo em que os Yanomami não dormiam, pois sempre era dia. Caminhando cuidadosamente entre o cotidiano da aldeia, a mitologia e as festas, a autora nos apresenta uma visão muito próxima da experiência onírica yanomami e demonstra como a noite, o sonho e a saudade estão associados à manifestação do pei utupë, componente do corpo que os antropólogos costumam traduzir por “imagem vital” e que, durante a noite e o sono, se desprende do corpo e vaga por caminhos desconhecidos e potencialmente perigosos. Ao aproximar a intensidade dos dias da festa ao cotidiano ritual das aldeias dos mortos que habitam o hutu mosi a autora sugere que, naquele intervalo de tempo, é como se os vivos experimentassem a condição de morto ou pore. Em suas palavras: “É preciso que durante toda a festa os vivos se comportem como pore, para que possam no final da mesma realizar a separação definitiva entre os vivos e os mortos.” Neste ponto, Limulja toca em um tema também transversal aos artigos do dossiê: a conexão íntima entre as experiências do sonho e da morte entre os indígenas sul-americanos. Neste sentido, as festas, assim como os sonhos, são experiências de quase-morte, pois, “se por um lado, é preciso estar vivo para poder sonhar, também é preciso morrer um pouco a cada noite para seguir sonhando.”

Saliente-se que o artigo de Limulja tem como complemento a resenha deMarcelo Hotimsky, incluída nesta edição da Revista de Antropologia, sobre seu livro recém lançado, O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos yanomami (Limulja, 2022bLIMULJA, Hanna. 2022b. O desejo dos outros: uma etnografia dos sonhos yanomami. São Paulo: Ubu.), no qual a reflexão aqui apresentada ganha novos contornos e detalhes.

Em “Plants, dreams and metaphors: reflections on Amerindian means of influence”, José Antonio Kelly dá continuidade a uma reflexão sobre os temas da ação e influência nas terras baixas da América do Sul. Em um trabalho anterior, de cunho comparativo e em co-autoria com Marcos de Almeida Matos (Kelly e Matos, 2019KELLY, José Antonio; MATOS, Marcos de Almeida. 2010. Política da consideração: ação e influência nas terras baixas da América do Sul. Mana - Estudos de Antropologia Social, vol. 25. n. 2: 391-426. DOI: https://www.doi.org/10.1590/1678-49442019v25n2p391
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), o autor buscava demonstrar a pertinência etnográfica da separação entre causas e agentes de uma ação cujo efeito resulta na própria relação, seguindo de perto a análise contida em O gênero da dádiva, de Marilyn Strathern. Agora, neste artigo, Kelly aborda os sonhos, as plantas mágicas e o discurso metafórico como meios alternativos por meio dos quais uma pessoa pode incrementar sua eficácia, isto é, sua influência sobre outras pessoas num contexto relacional. Para se tornarem efetivas, tais interações envolvem, conforme destaca Kelly, os aspectos imateriais da pessoa, hipótese que leva adiante a etnografia daribi de Roy Wagner, segundo o qual “the ‘causality’ perceived by the Daribi is a recognition of the fact that everything that happens to a person originates with one of these souls.” As intuições que orientam esta reflexão resultam, de um lado, do prolongado trabalho de campo com os Yanomami e de pesquisas recentes acerca dos diálogos cerimoniais wayamu e, de outro, da interlocução com os trabalhos de Bianca Hammerschmidt sobre as plantas mágicas entre os Shipibo e, em especial, de Hanna Limulja, autora também presente neste dossiê, sobre o universo onírico dos Yanomami da aldeia Thoothootopi. Dentre os temas e hipóteses desenvolvidos pelo autor estão a incorporação de agências outras em vista de ampliar a influência pessoal; a correlação entre visões, sonhos e cantos devido à sua eficácia pragmática; o uso de substâncias, como o tabaco, enquanto veículo de uma almejada agência extra-humana..

Em “A troca do fio e os descaminhos do duplo: sonho e vigília entre os Ye’kwana do rio Auaris”, Majoí Favero Gongora reflete sobre o entrelaçamento entre sonho e vigília a partir de asserções ontológicas do povo Ye’kwana do rio Auaris. Resultado de prolongadas estadias de trabalho de campo, a autora apresenta uma atenta descrição etnográfica da vida onírica deste povo, aliada a uma rigorosa revisão bibliográfica. Assim como demonstram os demais autores deste dossiê, refletir sobre a vida onírica entre os povos ameríndios requer considerar o modo como tais povos concebem a noção de pessoa e a configuração relacional instável entre os elementos que a compõem, notadamente, a alma, duplo ou espírito, conceito cuja amplitude semântica impede traduções unívocas. A expressão desta instabilidade é a fragmentação ou afastamento do princípio anímico em relação ao corpo, uma excorporação ou projeção cuja duração é variável, traduzindo-se em diferentes estados corporais, a saber: o sonho, o adoecimento, a embriaguez, a alucinação e, no limite, a morte. Em suma, a vida onírica seria tão perigosa quanto necessária, pois, a despeito da vulnerabilidade em relação à alteridade e dos riscos de adoecimento/captura, o sonho seria uma importante via de aquisição de capacidades e conhecimentos.

Entre os Ye’kwana, apresenta Gongora (2022GONGORA, Majoí Favero. 2022. A troca do fio e os descaminhos do duplo: sonho e vigília entre os Ye’kwana do rio Auaris. Revista de Antropologia , vol. 65, n. 3: e185356. DOI: https://www.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.185356.
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), “a pessoa humana (soto) é constituída por uma multiplicidade de duplos (sg. äkaato), aspectos autônomos, destacáveis e diferentes entre si, que estão ligados ao corpo (äjö)”. O sonho, adekato, é efeito da excorporação do duplo do olho, uma extensão da pessoa que manifesta sua exterioridade e autonomia em relação ao corpo e à vida da vigília. Em uma formulação comum a diferentes povos indígenas, o sonho, como experiência que descortina um horizonte de fragmentação da pessoa, assemelha-se à morte. Outro tema potente que a autora elabora, e que encontra ressonância nos demais artigos deste dossiê, é a relação entre sonho e mito. Entre os Ye’kwana, em tempos míticos, “sonhar era uma forma de pensar e de provocar intencionalmente transformações no mundo, originando pessoas, paisagens, plantas, instrumentos, alimentos, objetos.” Esses eram os sonhos do demiurgo celeste Wanaadi e que foram desfeitos em embate com seu irmão gêmeo e antagonista, Odo’sha, o que interferiu no curso benéfico da realidade sonhada pelo primeiro. Aqui, sonho e realidade compõem uma trama complexa inicialmente tecida nos sonhos de Wanaadi e na ação deletéria de Odo’sha, que inverteu o efeito performativo benéfico dos sonhos de Wanaadi e que, agora, manipula os fios invisíveis que conectam o duplo do olho à pessoa transformando em descaminhos os sonhos das pessoas comuns.

Em “É preciso força pra saber sonhar: reflexões a respeito dos sonhos entre famílias tupi-guarani no sudoeste do estado de São Paulo”, Lígia Rodrigues de Almeida investiga os processos de aprendizado e construção do corpo e suas relações com a atividade onírica. Entendidos como “viagens da alma enquanto o corpo dorme”, os sonhos tupi-guarani, como em muitos outros contextos apresentados neste dossiê, estão intimamente associados ao movimento, aos caminhos e aos cantos. A autora está interessada no desdobramento dos sonhos na vigília, mas especialmente em como a noção de mbaraeté, também traduzida como “força”, corresponde à maior ou menor habilidade dos sonhadores em transitar entre os lados de lá e de cá, isto é, as diversas terras que percorrem nos caminhos oníricos. A partir de suas conversas com as famílias tupi-guarani, Almeida ainda observa diferenças importantes entre a relação dos adultos e das crianças com os sonhos, demonstrando como a conexão corpos-espíritos é tão importante como aquela entre sonho e vigília nestes contextos.

Em “Numa terra estranha: sonho, diferença e alteração entre os Tikmũ’ũn (Maxakali)”, Roberto Romero toma a recorrência do tema da “viagem da alma” entre os povos ameríndios e alhures como ponto de partida de sua reflexão etnográfica. Os entendimentos e equivocações acerca das noções de “viagem” e “alma” são levados adiante a partir de rica pesquisa etnográfica entre os Tikmũ’ũn, mais conhecidos como Maxakali, da região do Vale do Mucuri, estado de Minas Gerais. Viajar e sonhar apresentam importantes paralelos, tanto porque as experiências oníricas comumente são descritas em termos de deslocamentos da alma durante o sono, como porque as viagens são importantes catalizadores de sonhos. Tais deslocamentos noturnos da alma, espírito ou imagem são eminentemente perigosos, conforme destaca o autor: “o koxuk da pessoa sai (xupep) momentaneamente do seu corpo-carne (ũyĩn) e perambula por aí, seguindo caminhos (potahat) muitas vezes perigosos, de onde nem sempre é possível retornar” (Romero, 2022ROMERO, Roberto. 2022. Numa terra estranha: sonho, diferença e alteração entre os Tikmũ’ũn (Maxakali). Revista de Antropologia , vol. 65, n. 3: e 185796. DOI: https://www.doi.org/10.11606/1678-9857.ra.2022.185796.
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). O autor aprofunda a noção do sonho como acontecimento ao propor sua reflexão acerca do onirismo tikmũ’ũn em sua condição de experiência de “quase-morte” equacionadas em função das noções de distanciamento e proximidade. Assim, a hipótese do autor inverte a formulação genérica da experiência onírica ao incluir e transformar as variantes e funções a serem consideradas, ou seja, nos seus termos “se os sonhos são como viagens, no que as viagens se assemelham aos sonhos?”.

O dossiê encerra-se com a entrevista com a antropóloga e curadora Sandra Benites (do povo Guarani Ñandeva), o cineasta Alberto Álvares (do povo Guarani Mbya) e a liderança e agente de saúde Sérgio Yanomami. Eles falam de como seu trabalho e sua atuação política estão fortemente atrelados à atividade onírica, e comentam a dificuldade de sonhar em contextos urbanos, no “mundo dos brancos”. Como disse Sérgio Yanomami: “No meu pensamento, acho que os brancos não sonham. Eles não andam em seus sonhos. As almas deles não andam dentro da floresta. Já os Yanomami, em seus sonhos, andam pelo mundo inteiro e por isso não querem fazer destruição, causar poluição, destruir a Terra - eles querem economizar, proteger a Terra.” Ao lado do conjunto das reflexões teóricas e etnográficas apresentadas nos artigos, a entrevista aprofunda a compreensão de que os sonhos podem ser uma potente tecnologia de aliança e reconexão, desvelando outros modos de subjetivação e de atuação política. Como dispositivos de abertura e asselvajamento, os sonhos confirmam sua relevância coletiva e cosmopolítica que os reposicionam no centro da vida política e social. Que com esses ensinamentos possamos revitalizar a percepção de que a vida também é feita sonhando.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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    Veja-se por exemplo a publicação recente na Revista de Antropologia de dois artigos versando sobre a temática dos sonhos entre povos i92016) e Ramos (2018RAMOS, Danilo Paiva. 2018. A caminho da Cidade das Onças: diálogos sobre sonhos no percurso para a Serra Grande-Metrópole dos Hupd’äh. Revista de Antropologia , vol. 61, n. 1: 329-359. DOI: https://www.doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2018.145528.
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    Veja-se por exemplo Krenak (2020KRENAK, Ailton. 2020. “Sonhar para adiar o fim do mundo”. In: A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras .) e o debate entre ele e o neurocientista Sidarta Ribeiro, que pode ser acessado pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=95tOtpk4Bnw&ab_channel=CompanhiadasLetras

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022
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