Acessibilidade / Reportar erro

A ascensão de “autoritários benevolentes” no retorno político à direita: de onde vêm e para onde vão?

RAFAEL, Vicente L.. The sovereign trickster: death and laughter in the age of Duterte. Durham: Duke University Press, 2022. 192 pp

O livro de Vicente Rafael representa esforços admiráveis em dois sentidos: primeiro, por analisar um fenômeno que está se desenrolando enquanto seu trabalho está sendo desenvolvido e, em segundo lugar, sua intenção em compreender um “Outro repugnante” (Harding, 1991HARDING, Susan. 1991. “Representing Fundamentalism: The Problem of the Repugnant Cultural Other”. Social Research, vol. 58, n. 2: 373-93. https://www.jstor.org/stable/40970650.
https://www.jstor.org/stable/40970650....
). O contexto de mortes, misoginia e formas de subjetivação que é apresentado aos leitores, causa desconforto ao desnudar a violência do mandato de Rodrigo Duterte, ex-presidente das Filipinas. É impossível, para os leitores brasileiros, não comparar suas artimanhas criminais com as de Jair Bolsonaro. Esse fator acaba transformando o desconforto em um pseudo conforto por mostrar atitudes presidenciais que já se tornaram naturalizadas pela maioria dos cidadãos brasileiros. Nesse sentido, o trabalho de Rafael é de extrema importância para lançar luz à atualidade política do Brasil.

Durante o velório de sua sogra, Rafael se encontrou em um limbo: cumprimentar ou não Duterte, que entrou na capela para homenagear a ex-senadora. Diante do visível apoio de seus familiares ao presidente, perguntas o motivaram a tentar compreender a grande porcentagem de apoiadores de um presidente explicitamente criminoso. Porém, essas perguntas acompanham todo o livro, delineando seus objetivos e chamando o leitor a se engajar na árdua tarefa de complexificar o que parece ser apenas fruto da maldade humana. Classificaria seu trabalho como uma tentativa de compreender o incompreensível para aqueles que não compartilham dos mesmos pressupostos morais de Duterte. Em suma, uma verdadeira tarefa antropológica.

Obviamente, as perguntas de Rafael foram e são influenciadas por seu vasto conhecimento acadêmico sobre as Filipinas. Ele é graduado em História e Filosofia pela Universidade de Manila, mestre e doutor em História pela Universidade de Cornell. Em sua trajetória acadêmica especializou-se em história do sudeste asiático, história intelectual europeia e antropologia, especificamente em temas voltados ao colonialismo, poder, raça e etnia, história social da mídia e mediação e teoria antropológica crítica. Assim como o assunto do livro, seus últimos trabalhos têm se voltado à história colonial e pós-colonial das Filipinas em comparação aos Estados Unidos.

A escrita do livro destina-se a dois interlocutores, acadêmicos e “leitores gerais informados” (: 4).1 1 Todas as traduções da obra são de minha autoria. Para isso, os capítulos estão divididos em duas partes: um ensaio perpassado por discussões teóricas, e esboços rápidos sobre acontecimentos do dia-a-dia, narrados por jornais e mídias sociais. Isso não quer dizer que o autor abriu mão de acrescentar conceitos nos esboços, mas o fez de forma rápida e descontextualizada de discussões teóricas mais amplas. Os esboços não seguem uma estrutura temporal, apenas antecipam ou adiam os temas tratados nos ensaios. Segundo Rafael, “eles colocam as coisas fora de alinhamento, forçando a pessoa a ver as lacunas entre e dentro dos argumentos dos ensaios [...] convidando assim a mais interpretações, correções e críticas” (: 4). Essa organização demonstra mais um estilo de escrita do que um convite, o que gera pequenas confusões durante a leitura e um vício de separação entre o que poderíamos chamar de etnografia e teoria. Nos ensaios teóricos, as informações que comprovam sua argumentação estão ausentes, sendo preenchidas apenas pelos breves esboços. Com exceção do último capítulo e da conclusão, os ensaios transformam-se em análises de um Duterte no divã.

A despeito da estrutura apresentada pelo autor, podemos dividir o livro em três partes segundo os temas abordados. Os capítulos 1 e 2 apresentam um panorama histórico-político das Filipinas. O primeiro, percorre o desenvolvimento de uma colônia que tornou-se independente e tentou estabelecer uma democracia marcada por trocas de favores, compra e venda de votos, uma oligarquia que se diz elite intelectual e política, protestos, governos autoritários, retornos democráticos e, acima de tudo, violência resultante da desconfiança do povo sobre seus governantes. Rafael mostra sua expertise como historiador quando conecta o início da colonização das Filipinas com a ascensão de Duterte ao poder. Existe um povo que anseia por um “ditador benevolente” que o livre dos males de uma sociedade desigual e racializada, diagnóstico da dependência histórica de “uma sucessão de regimes ditatoriais” (: 18). Há muitos paralelos que podem ser traçados entre a história política das Filipinas e a do Brasil, principalmente no que diz respeito à enxurrada de políticos que são eleitos como líderes carismáticos e populistas e o crescimento de milícias organizadas em torno da desconfiança na segurança pública.

No capítulo 2, Rafael analisa o mandato de Duterte comparando-o ao período ditatorial de Marcos, seu precedente. O primeiro acaba dando continuidade aos preceitos alimentados pelo segundo. Um Estado com altos índices de pobreza, desemprego e fome, também apresentará altas taxas de criminalidade e violência. A saída delimitada pelo poder governamental foi o estabelecimento de uma “cidadania neoliberal” recompensadora. Baseada na disciplina, essa cidadania é dirigida por uma biopolítica (Foucault, 2010FOUCAULT, Michel. 2010. The Birth of Biopolitics: Lectures at the Collège de France, 1978- 1979. New York, Picador.) que, por sua vez, é sustentada pela necropolítica (Mbembe, 2019MBEMBE, Achille. 2019. Necropolitics. Durham, Duke University Press.). Isso significa que os cidadãos são completamente responsáveis por suas ações, tendo o poder de decidir sobre agir de maneiras consideradas corretas e disciplinadas (trabalho, famílias estruturadas, boas notas na escola) ou erradas e indisciplinas (tráfico de drogas, vícios, criminalidade). Os disciplinados são recompensados por meio de auxílios de distribuição de renda e os indisciplinados, na ditadura de Marcos, presos e torturados e, na de Duterte, mortos. Essa atitude resulta na otimização de uma biopolítica - cidadãos disciplinados merecem viver e os demais são apenas deixados para morrer - que é alimentada por uma necropolítica - cidadãos indisciplinados merecem morrer diretamente pelas mãos do Estado. Aqui, o problema dos esboços aparece com nitidez: o único momento em que um exemplo concreto da argumentação aparece é no esboço final. Com isso, quero dizer uma situação real, com pessoas reais sob o regime da cidadania neoliberal.

A segunda parte do livro, que compreende os capítulos 3 e 4, está voltada, especificamente, para analisar as ações e verbalizações de Duterte. Apoiado pelo conceito de “estética da vulgaridade” de Mbembe (2019MBEMBE, Achille. 2019. Necropolitics. Durham, Duke University Press.), Rafael teoriza sobre como Duterte cria um falso sentimento de intimidade com seus eleitores por meio de piadas obscenas que publicizam seu corpo. Igualmente, ataca seus inimigos por uma linguagem falocêntrica. A posse do falo ilustra a autoridade patriarcal que merece obediência e a falta dele delimita a inferioridade. Para os opositores homens, conta histórias sobre o tamanho de seu pênis em comparação aos dos críticos. Para as mulheres, basta mantê-las em seu lugar de falta, prendendo ou estuprando aquelas que ameaçam e tentam apoderar-se do falo (: 46). Tudo isso é externalizado em forma de piadas contadas ao público. Por outro lado, a posse do falo interpreta o lugar do “autoritário benevolente”, como o pai que zela pela sua família e pretende erradicar os males da nação.

Além do riso, Duterte alicerça o sentimento de intimidade expondo suas comorbidades e fraquezas. A exposição de sua suposta vulnerabilidade inverte a hierarquia, aproximando o presidente das “pessoas comuns”. Ao mesmo tempo que admite ter medo da morte em suas piadas, ele continua afirmando seu poder fálico. Justifica seu prazer em matar pela necessidade de enfrentar a morte de frente por ter medo dela. Assim, não parece possível separar o riso da morte; a beleza da intimidade do horror da violência explícita. Para Rafael, o riso e a beleza provocados por Duterte, definiram a sua aprovação e alto índice de apoio nas eleições. A sua “linguagem grosseira” e “humor obsceno” enfrentam as “elites do establishment” (: 79) ultrapassando convenções burguesas das oligarquias que comandaram as Filipinas até então e da qual o próprio Duterte faz parte.

Ainda fazendo uma exposição sobre o lugar ocupado pela morte no governo, o autor procura desvendar os motivos íntimos que levaram Duterte a instaurar a guerra às drogas. Para Rafael, traficantes e usuários foram colocados, pela política do governo, no lugar de abjetos (Butler, 2010BUTLER, Judith. 2010. Frames of War: When Is Life Grievable? London, Verso.), sem humanidade e, assim, vítimas diretas da necropolítica. Nesse escopo, pessoas usuárias de drogas, ou “substâncias ilegais”, são interpeladas como “viciadas”, estão à mercê de sua irracionalidade, acima do bem e do mal e são soberanas de suas próprias vidas. Essas características denotam não apenas mortos-vivos, “eles chegam perto de ser o que Foucault descreve como ‘bárbaros’” (: 70): sujeitos que negam o contrato social de uma sociedade liberal; sua liberdade está em tirar a liberdade dos outros. A liberdade bárbara só pode ser exercida pela dominação de um poder desumano sobre a vida e a morte. Dessa forma, Duterte enxerga na morte dos viciados a possibilidade de absorver seus poderes e proteger sua autoridade. Apenas ele pode “superar todas as limitações do social e do político” (: 69). Aqui, mais uma vez, ele quebra as barreiras das regras e supera o establishment, admirando a população filipina.

É interessante como Rafael vai invertendo as posições de Duterte até o ponto de colocá-lo em uma completude divina. Ao mesmo tempo que o presidente demonstra suas fraquezas humanas, ultrapassa a humanidade pela liberdade de matar. Ao mesmo tempo que fala com o povo, pertence à oligarquia filipina. Ao mesmo tempo que é uma autoridade má, instaura uma intimidade por meio do riso. Ao mesmo tempo que mata viciados, já foi viciado em relaxante muscular. Ao mesmo tempo que representa uma quebra com o indivíduo liberal, propaga uma cidadania neoliberal. Ao mesmo tempo que instaura leis, as ultrapassa. Ao mesmo tempo que insiste na autoridade da posse do falo, castra-se ao falar em rede nacional que já sentiu atração por homens.

Ainda que a complexidade em definir as atitudes de Duterte seja exposta por Rafael , não há informações bem desenvolvidas para convencer o leitor sobre os motivos que levaram à eleição presidencial. Afinal, quem é o eleitorado de Duterte? Como foi sua campanha política? Como ele alcançou toda a extensão das Filipinas para tamanha aprovação por meio do riso? Quais são os principais argumentos mobilizados por quem continua apoiando Duterte no final de seu mandato? Em todo o livro, há apenas duas menções ao uso da internet. Na página 54, Rafael cita que Duterte usou sua conta do Twitter para postar uma foto sua recebendo tratamento em um hospital de Manila. A segunda vez, na página 154, para falar sobre fake news espalhadas por apoiadores. Houve influência das mídias sociais e desinformações na eleição presidencial? Que políticas organizam o acesso à internet em um contexto com o filipino? Essas são perguntas que somente começarão a ser respondidas no capítulo 5 e na conclusão.

Por fim, chegamos ao que considero ser a última seção do livro. O capítulo 5 e a conclusão são os pontos-chave para compreender como e por quais meios a política de Duterte afeta a população, não só filipina, mas a audiência de noticiários do circuito estadunidense e europeu. O quinto capítulo transporta os leitores até a população mais pobre da capital por intermédio de fotografias. Estão retratados corpos estendidos sobre as ruas, com as cabeças enroladas por fitas adesivas. Rafael provoca uma discussão muito interessante sobre a agência dos cadáveres, que são transformados em mártires ou exemplos de como a vida deve ser vivida por meio de fotografias. Acionando autores como Barthes, Butler, Azoulay e Smith, ele argumenta que as fotografias são partes integrantes da morte e das consequências posteriores, como o luto, revolta, prova da violação dos direitos humanos e das matanças extrajudiciais noturnas da guerra às drogas de Duterte.

Finalmente, aproximando-se de pesquisadores que se detiveram em estudos da população filipina mais de perto (Bernstein, Jensen e Hapal, Warburg), Rafael se aventura em interpretações sobre o apoio da população pobre à guerra às drogas. Inicia-se no capítulo 5, no qual lança mão de entrevistas, tanto para a mídia quanto para pesquisadores, para argumentar que a comprovação visual gera dois sentimentos: o trauma e o medo. O primeiro, naqueles que são abertamente contrários às atitudes fomentadas por Duterte, como é o caso dos fotógrafos e daqueles que assistem de longe; o segundo, nas pessoas mais afetadas pela política, que acabam concordando com a ideia de castigo às pessoas próximas que viviam indisciplinadamente. Além disso, estando sempre expostos à violência explícita ao levantar pela manhã e encontrar cadáveres pelas ruas, demonstram indiferença às fotografias.

É na conclusão que Rafael esconde o tesouro forjado pelos modos de vida das comunidades barangay, semelhantes ao que chamamos de favela no Brasil. As relações sociais são baseadas em trocas afetivas que geram intimidade e ajuda mútua (pakikisama), como empréstimos financeiros. Aqueles que possuem melhores condições financeiras também são dotados de autoridade patriarcal, uma vez que são os homens mais velhos. Estabelecem relações de clientelismo porque comandam as milícias locais (tanods) e subornam a polícia e agentes estatais. Aqueles que não são adeptos ao pakikisama são vistos como uma ameaça à ordem interna da comunidade e são vigiados e mortos pelos tanods, formando o que Rafael chamou de “comunidade autoimune”. A guerra às drogas de Duterte significa, para moradores das barangay, a diminuição da violência “intracomunidade”. Consoante à sua conclusão, “a guerra às drogas é um evento violento que intensificou a violência já inerente à estruturação da comunidade de intimidade” (: 139) favorecendo o apoio dessa mesma população.

Indubitavelmente, a complexidade e a riqueza de detalhes do livro de Vicente Rafael não se esgotam por aqui. Além das críticas e adendos, a coragem do autor em tentar compreender o incompreensível é fascinante. Ele nos chama ao que parece ter sido esquecido pela Antropologia nos últimos tempos: o esforço de realizar perguntas que, na maioria das vezes, são impossíveis de serem respondidas em um livro, ou em uma vida, mas que dão espaço a uma cativante imaginação antropológica. A principal contribuição de Rafael está nessa característica, em convidar o público acadêmico a não se limitar em mostrar o que sabe, mas se arriscar em enfrentar a contemporaneidade desconhecida e incerta.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • BUTLER, Judith. 2010. Frames of War: When Is Life Grievable? London, Verso.
  • FOUCAULT, Michel. 2010. The Birth of Biopolitics: Lectures at the Collège de France, 1978- 1979. New York, Picador.
  • HARDING, Susan. 1991. “Representing Fundamentalism: The Problem of the Repugnant Cultural Other”. Social Research, vol. 58, n. 2: 373-93. https://www.jstor.org/stable/40970650.
    » https://www.jstor.org/stable/40970650.
  • MBEMBE, Achille. 2019. Necropolitics. Durham, Duke University Press.
  • 1
    Todas as traduções da obra são de minha autoria.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023
Universidade de São Paulo - USP Departamento de Antropologia. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. Prédio de Filosofia e Ciências Sociais - Sala 1062. Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, Cidade Universitária. , Cep: 05508-900, São Paulo - SP / Brasil, Tel:+ 55 (11) 3091-3718 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista.antropologia.usp@gmail.com