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A troca do fio e os descaminhos do duplo: sonho e vigília entre os Ye’kwana do rio Auaris

The switch of the thread and the misplacement of the double: dream and wakefulness among the Ye'kwana of the Auaris River

RESUMO

O artigo versa sobre reflexões dos Ye’kwana do rio Auaris acerca das experiências oníricas e os seus efeitos na vigília. O sonho é um afastamento temporário do duplo em relação à pessoa (corpo) e, nesse sentido, é expressão dos caminhos e descaminhos do duplo em outros mundos. Meus interlocutores contam que as pessoas comuns não sonham bem, pois ao dormirem seus duplos andam por lugares onde o encontro com entes perigosos é corriqueiro. Diferentemente dos pajés, as pessoas comuns não controlam os percursos de seus duplos durante o sonho. Além de trazer à baila as histórias verdadeiras (wätunnä) sobre a origem da morte, da descontinuidade entre o sonho e a vigília e do sono, o estudo aborda conceitos centrais para o entendimento da configuração da pessoa ye’kwana duplo (äkaato) e fio do duplo (wadeeku ekaato) e analisa a onirocrítica nativa, uma reflexão especulativa e prática implicada em futuros possíveis prefigurados nos sonhos.

PALAVRAS-CHAVE:
Etnologia ameríndia; Ye’kwana; sonho; noção de pessoa; cosmopráxis ameríndia

ABSTRACT

The article deals with reflections of the Ye'kwana (Auaris River) on dream experiences and their effects in wakefulness. The dream is a temporary departure from the double in relation to the person (body), it is an expression of the paths and misplacements of the double in other worlds. The Ye'kwana say that ordinary people do not dream well, because when sleeping their doubles walk through places where the encounter with dangerous beings is common. Unlike the shamans, ordinary people do not control the paths of their doubles during the dream. In addition to bringing up histories wätunnä about the origin of the death, the discontinuity between dream and wakefulness and the sleep, the article analyzes central concepts for the understanding of the ye'kwana personhood - double and thread of the double and addresses the native onirocritic, a speculative reflection and praxis involved with the possible futures prefigured in dreams.

KEYWORDS:
Amerindian ethnology; Ye’kwana; dream; personhood; Amerindian cosmopraxis

INTRODUÇÃO

Este artigo baseia-se em estudos etnográficos realizados com os Ye’kwana do rio Auaris (Roraima, Brasil) desde 2013 - parte dessas reflexões deram origem a uma tese de doutorado (Gongora, 2017GONGORA, Majoí Favero. 2017. Ääma ashichaato: replicações, transformações, pessoas e cantos entre os Ye’kwana do rio Auaris. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.). Falantes de uma língua da família karib, os Ye’kwana são originários da região de cabeceira dos rios Cunucunuma, Padamo, Cuntinamo, Metacuni, Ventuari e Auaris e seus territórios estão localizados na Venezuela, nos estados Amazonas e Bolívar, e no Brasil, no noroeste de Roraima, na Terra Indígena Yanomami. Na Venezuela, são mais de 7,9 mil pessoas que habitam em mais de sessenta comunidades e, no Brasil, são mais de 760 indivíduos (Siasi/Sesai, 2019) que vivem em três aldeias principais.1 1 Segundo o censo realizado, em 2011, pelo Instituto Nacional de Estadística/INE da Venezuela havia 7.997 pessoas pertencentes ao povo Ye’kwana. Com relação aos dados das aldeias ye’kwana, o mapa Território e Comunidades Yanomami Brasil-Venezuela (ISA, 2014) registra 66 comunidades na Venezuela. No Brasil, as principais aldeias são: Fuduuwaadunnha e Kudatannha (rio Auaris) e Waichannha (rio Uraricoera).

Abordar os sonhos da perspectiva ye’kwana implica em um olhar atento à sua concepção de pessoa e aos efeitos das experiências oníricas na vida em vigília. O mesmo poderia ser dito sobre outras ontologias amazônicas nas quais a pessoa também é compreendida como uma “singularidade dividual de corpo e alma” (Viveiros de Castro, 2002aVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002a. A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São Paulo, Cosac & Naify.: 444). A pessoa ye’kwana é uma configuração múltipla, pois constituída por aspectos distintos e independentes entre si (duplos) que estão ligados ao corpo, mas podem se desanexar dele por motivos diversos. Como observou Viveiros de Castro, a “alma é a dimensão eminentemente alienável, porque eminentemente alheia, da pessoa amazônica”, “dada, pode ser tomada” (ibidem: 443). Essa condição instável da alma é um elemento central no plano ontológico da pessoa ameríndia, pois gera um estado de vulnerabilidade que torna a vida terrena uma experiência perigosa (Taylor, 1996TAYLOR, Anne-Christine. 1996. The Soul’s Body and Its States: An Amazonian Perspective on the Nature of Being Human. In: The Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 2, n. 2: 201-215.; Vilaça, 2005VILAÇA, Aparecida. 2005. “Chronically Unstable Bodies: Reflections on Amazonian Corporalities. The Journal of the Royal Anthropological Institute , vol. 11, n. 3: 445-464. DOI 10.1111/j.1467-9655.2005.00245.x
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). De acordo com Civrieux, a principal causa de morte entre os Ye’kwana é o roubo do duplo, pois, ao se desprender do corpo, pode ser capturado por Odo’sha (1997: 192).

O entendimento de que o afastamento do duplo ou da alma em relação ao corpo traz instabilidade à vida humana é amplamente compartilhado entre os ameríndios, assim como a compreensão de que o sonho é uma excorporação temporária da alma ou duplo (Vianna, 2016VIANNA, João Jackson Bezerra. 2016. Notas cromáticas sobre os sonhos ameríndios: transformações da pessoa e perspectivas. Revista de Antropologia, vol. 59, n. 3: 265-294. DOI 10.11606/2179-0892.ra.2016.124820
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: 274). Entre os Yanomami, o sonho é “um estado de ausência temporária da imagem corpórea/essência vital (utupë) que se destaca do invólucro corporal (siki) para ir longe” (Kopenawa e Albert, 2015KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. 2015. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo, Companhia da Letras.: 616, nota 3). Algo semelhante foi descrito sobre os Krahó: karõ, o duplo habita o corpo da pessoa, ausenta-se durante o sonho e, ao permanecer afastado por um período maior, pode provocar adoecimento (Carneiro da Cunha, 1978CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 1978. Os Mortos e os Outros: uma análise do sistema funerário e da noção de pessoa entre os índios Krahó. São Paulo, Editora Hucitec.).

Shiratori (2013SHIRATORI, Karen Gomes. 2013. O acontecimento onírico ameríndio: o tempo desarticulado e as veredas dos possíveis. Rio de Janeiro, Tese de Doutorado, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.) observa que os sonhos ameríndios são, via de regra, experiências relacionadas à fragmentação da pessoa, como a doença e a morte. A autora destaca que as experiências oníricas são eminentemente perigosas, pois o sonhador comum não tem controle sobre as relações que podem se dar entre o duplo desgarrado e seus interlocutores oníricos. Há sempre o risco do duplo ser capturado ou perder-se no caminho de volta e, nesse sentido, a pessoa comum não sabe antecipadamente se sua integridade estará preservada ao final do sonho.

Ao despertar, a pessoa poderá ter acesso às reminiscências da experiência onírica e lançar um olhar atento às implicações do sonho nos dias subsequentes. Esse é um ponto importante aqui. O “vislumbre das ações noturnas da alma anuncia possibilidades desenhadas como virtualidade em uma cadeia causal na qual toda pessoa está implicada”, entretanto, prossegue a autora,“estas possibilidades não operam como um destino inexorável, de modo que a interpretação pode ser entendida como uma forma de manipular a ordem dos eventos” (Shiratori, 2013SHIRATORI, Karen Gomes. 2013. O acontecimento onírico ameríndio: o tempo desarticulado e as veredas dos possíveis. Rio de Janeiro, Tese de Doutorado, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.: 69). Nesse sentido, para muitos ameríndios, os acontecimentos vividos pelo duplo durante o sonho podem afetar significativamente a experiência da pessoa a depender das ações tomadas ao despertar. À luz da ontologia ye’kwana, analiso a seguir o entrelaçamento entre sonho e vigília.

A PESSOA E SEUS DUPLOS

A pessoa humana (soto) é constituída por uma multiplicidade de duplos (sg. äkaato), aspectos autônomos, destacáveis e diferentes entre si, que estão ligados ao corpo (äjö). Na literatura etnológica (Civrieux, 1997CIVRIEUX, Marc de. [1970] 1997. Watunna - An Orinoco creation cycle. Austin. University of Texas Press.; Barandiarán, 1962BARANDIARÁN, Daniel de. 1962. “Shamanismo Yekuana o Marikitare”. In: Antropológica, Caracas, n. 11: 61-90.; Guss, 1990GUSS, David M. 1990. To Weave and Sing - Art, Symbol and Narrative in the South American Rainforest. Berkeley, University of California Press.), a noção äkaato foi traduzida de diferentes formas: princípio vital; duplo; alma; espírito; sombra; reflexo; eu imaterial etc. Os Ye’kwana de Auaris costumam traduzir este conceito por “espírito” ou “alma”.

Como opção tradutória, prefiro o termo “duplo”. Tomada de empréstimo de Vernant (1999VERNANT, Jean-Pierre. [1974] 1999. “Razões do mito”. In: Mito e Sociedade na Grécia Antiga. Rio de Janeiro, José Olympio, pp. 171-197.), como notou Cesarino (2011CESARINO, Pedro de Niemeyer. 2011. Oniska: poética do xamanismo na Amazônia. São Paulo, Perspectiva/; FAPESP.: 44), essa noção tem sido usada na etnologia para descrever a relação de exterioridade do duplo em relação à pessoa: possui vida própria e subsiste à morte (Carneiro da Cunha, 1978CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 1978. Os Mortos e os Outros: uma análise do sistema funerário e da noção de pessoa entre os índios Krahó. São Paulo, Editora Hucitec.; Viveiros de Castro, 1986VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1986. Araweté: os deuses canibais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.; Lima, 1996LIMA, Tânia Stolze. 1996. O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi. In: Mana - Estudos De Antropologia Social, vol. 2, n. 2: 21-47. DOI 10.1590/S0104-93131996000200002
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; 2005LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um peixe olhou para mim: o povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo, Editora Unesp e ISA; Rio de Janeiro: NuTI.; Coelho de Souza, 2002COELHO DE SOUZA, Marcela Stockler. 2002. O Traço e o Círculo: o conceito de parentesco entre os Jê e seus antropólogos. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.; Cesarino, 2011CESARINO, Pedro de Niemeyer. 2011. Oniska: poética do xamanismo na Amazônia. São Paulo, Perspectiva/; FAPESP.). Minha escolha relaciona-se ao fato de que, com frequência, o vocábulo äkaato é empregado em contextos nos quais a ênfase discursiva está justamente no momento em que o duplo, excorporado, torna-se uma extensão da pessoa alhures (Gongora, 2017GONGORA, Majoí Favero. 2017. Ääma ashichaato: replicações, transformações, pessoas e cantos entre os Ye’kwana do rio Auaris. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.: 410).

De acordo com meus interlocutores, a pessoa humana possui inúmeros duplos.2 2 Em sua etnografia, Guss registrou seis duplos (1990: 49). Dois deles alojam-se no interior do corpo: nos olhos (änu) e no coração (äwaanö). Para se referir a esses duplos, os Ye’kwana usam termos flexionados, como ayenudu ekaato (duplo do teu olho).3 3 Guss (1990: 50) encontrou as seguintes denominações - transcritas com a grafia que adotei em minha pesquisa (Gongora, 2017): ayenudu akano äkaato (duplo dentro do teu olho) e adheenö akano äkaato (duplo dentro do teu coração). Em Auaris, o duplo do coração de uma pessoa é comumente designado de yo’tadö (seu cerne).4 4 Ao segmentar o termo, temos: y- (marca de posse pessoal para 3° pessoa) + do’ta (‘meio’) + -dö (sufixo de posse). Do’ta também designa o tronco do corpo humano e iye yo’tadö, a parte interna ou o âmago de uma árvore (Gongora, 2017: 86). Esse vocábulo também é utilizado como designação genérica do duplo de uma pessoa, servindo de sinônimo para chääkato (seu duplo - ch -índice da 3° pessoa singular e äkaato, duplo), que é o termo mais empregado.

Ao longo da pesquisa de campo encontrei poucas descrições sobre o duplo do coração. Assim como o duplo do olho, é de origem celeste e foi enviado por Wanaadi, o demiurgo, para dar vida aos corpos na terra.5 5 Ao segmentar o termo, temos: y- (marca de posse pessoal para 3° pessoa) + do’ta (‘meio’) + -dö (sufixo de posse). Do’ta também designa o tronco do corpo humano e iye yo’tadö, a parte interna ou o âmago de uma árvore (Gongora, 2017: 86). Após a morte da pessoa, os duplos que se alojavam nos olhos e no coração retornam a seus lugares de origem: o céu de Wanaadi. A ausência de informações sobre o duplo do coração contrasta com a relevância que o duplo do olho assume nas falas de meus interlocutores. É no olho que está a verdadeira sabedoria.

Esse duplo também é compreendido como o próprio pensamento (tö’tajätödö) e a sabedoria (sejje) da pessoa. Não por acaso o termo äsejjedö (tua sabedoria) é uma de suas denominações. Tal conceito é análogo às noções ewrï ekatï dos Waiwai (Mentore, 1993MENTORE, George. 1993. “Tempering the social self: body adornment, vital substance, and knowledge among the Waiwai.” In: Journal of Archaeology and Anthropology, n. 9: 22-34.); beru yuxin dos Kaxinawa (McCallum, 1996MCCALLUM, Cecilia. 1996. The body that knows: From Cashinahua Epistemology to a Medical Anthropology of Lowland South America. Medical Anthropology Quarterly. New Series, vol. 10, n. 3: 347-372.); verõ yochi dos Marubo (Cesarino, 2011CESARINO, Pedro de Niemeyer. 2011. Oniska: poética do xamanismo na Amazônia. São Paulo, Perspectiva/; FAPESP.); “olho-alma” dos Trio (Rivière, 1997RIVIÈRE, Peter. 1997. Carib Soul Matter - Since Fock. Journal of the Anthropological Society of Oxford, vol. 28, n. 2:139-148.), entre outros. Os olhos abertos revelam a presença do duplo no interior do corpo - um importante índice de vitalidade. Esse duplo costuma se desanexar do corpo durante o sonho e tais afastamentos (temporários, no melhor dos casos) podem provocar o enfraquecimento da pessoa. Voltarei a este ponto.

Além dos duplos de origem celeste, os Ye’kwana mencionam outros aspectos da pessoa cujos nomes também são äkaato. Ao mesmo tempo que estão ligados ao corpo, estão “fora” dele, pois são suas “projeções” (Coelho de Souza, 2002COELHO DE SOUZA, Marcela Stockler. 2002. O Traço e o Círculo: o conceito de parentesco entre os Jê e seus antropólogos. Rio de Janeiro, Tese de doutorado, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.) ou “extensões” (Gongora, 2017GONGORA, Majoí Favero. 2017. Ääma ashichaato: replicações, transformações, pessoas e cantos entre os Ye’kwana do rio Auaris. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.). Esses duplos são “sombras”, “reflexos” ou “imagens” da pessoa visíveis em diversas superfícies: shii äkaato (duplo do sol); koijhai äkaato (duplo da noite); na’kwa’ka äkaato (duplo da água); fekuudeaka äkaato (duplo do espelho) etc. As fotografias de uma pessoa, por sua vez, são denominadas de chääkato (seu duplo) e as imagens em vídeo são chamadas de chäkaato ajäiyajä (seu duplo agarrado).

Os destinos pós-morte desses duplos são diversos. O duplo do sol retornará ao sol, morada de Wanaadi, e a sombra que se projeta sobre o chão à noite será devorada por Nuunä (lua), um ser canibal. A imagem refletida nos cursos d’água ficará com Wiyu, designação genérica dos donos dos mundos aquáticos e subaquáticos, entes não-humanos agressivos. O duplo refletido nos espelhos viverá junto com Odo’sha, gêmeo de Wanaadi e seu maior rival. Já os duplos agarrados pelas máquinas de fotografar e filmar, ficam aprisionados nesses suportes, o que traz sérias implicações aos Ye’kwana, especialmente, quando são capturadas imagens de pessoas sábias.6 6 No doutorado, explorei a problemática do registro audiovisual entre os Ye’kwana, especialmente, as implicações cosmopráticas de gravar os cantos rituais. As parafernálias de gravação capturam os duplos da pessoa e, assim, podem roubar seus conhecimentos. Tais registros são como dispositivos de dispersão da vitalidade e da sabedoria da pessoa, produzindo enfraquecimento e esquecimento (Gongora, 2017 Capítulo 14).

OS DESCAMINHOS DO DUPLO

Da perspectiva ye’kwana, a experiência humana é um arranjo instável, um horizonte aberto a múltiplas configurações. A excessiva fragmentação da pessoa em outros domínios cósmicos, pelas viagens empreendidas pelos duplos, a torna fraca (fäduje’da), doente (kädäijhato) e, em último caso, pode levá-la à morte (wäämanä). Taylor (1996TAYLOR, Anne-Christine. 1996. The Soul’s Body and Its States: An Amazonian Perspective on the Nature of Being Human. In: The Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 2, n. 2: 201-215.) observou entre os Achuar que a doença e a morte são momentos de um mesmo processo e a diferença entre eles é apenas uma questão de grau, já que não dizem respeito a estados ontologicamente distintos. Tal consideração pode ser estendida ao caso em análise.

O sonho (wäneetönä) é o efeito da saída do duplo, como já observaram Barandiarán (1979BARANDIARÁN, Daniel de. 1979. Introducción a la Cosmovisión de los Indios Ye’kuanaMakiritare. Caracas, Universidad Católica Andrés Bello, Instituto de Investigaciones Históricas, Centro de Lenguas Indígenas.) e Guss (1980GUSS, David M. 1980. “Steering for Dream: Dream Concepts of the Makiritare Indians of Venezuela”. Journal of Latin American Folklore. vol. 6, n. 2: 297-312.). Ambos registraram o uso do termo adekato para se referir à experiência onírica, que é a viagem do duplo. A palavra assemelha-se a adheekato ou ayeekaato cuja tradução seria “teu duplo” (adh/ya(ä)kaato; 2ª p. sg.duplo). O termo äkaato emerge nos discursos em sua forma no genitivo e, por isso, creio que a designação encontrada por esses autores seja uma destas construções. Guss afirma que o sonho é “um flerte noturno com a morte e não é exagero dizer que entre os Makiritare [Ye’kwana] sonhar é uma questão de vida e morte. Uma vez fora de seu corpo, o akato corre inúmeros riscos de captura e destruição” (1980: 304).7 7 As traduções de citações em língua inglesa ou espanhola são minhas. Estar atento aos sonhos é, portanto, precaver-se com os descaminhos do duplo.

Toda doença (kädäi) é efeito de uma predação que geralmente ocorre sob a forma da captura do(s) duplo(s) da pessoa pelos odo’shankomo8 8 Odo’sha é a origem dos diversos seres agressivos existentes na terra que são designados genericamente de odo’shankomo (-komo, marca do plural nominal). , agentividades não humanas agressivas comandadas por Odo’sha -gêmeo terrestre de Wanaadi que, desde tempos primevos, busca subverter, controlar ou estragar as ações do demiurgo celeste. À medida que a captura abrange todos os duplos da pessoa, sua força vital se vê ameaçada. A recuperação do doente dependerá invariavelmente do retorno dos duplos dispersos alhures, os quais deverão ser trazidos de volta por meio de cantos de cura (kädäijhato ewankä’näjöödö). As ações desencadeadas pelos cantos do pajé (föwai) ou do dono de canto (acchudi edhaajä) dizem respeito, entre outras coisas, à construção de caminhos para que os duplos perdidos ou aprisionados do doente consigam voltar revitalizados ao corpo da pessoa (Gongora, 2017GONGORA, Majoí Favero. 2017. Ääma ashichaato: replicações, transformações, pessoas e cantos entre os Ye’kwana do rio Auaris. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.: 141).

O estudo de Lima (2005LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um peixe olhou para mim: o povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo, Editora Unesp e ISA; Rio de Janeiro: NuTI.) sobre os Yudjá (Rio Xingu) traz paralelos interessantes para pensarmos o caso ye’kwana. Ao narrar uma experiência onírica, os Yudjá se referem a ela usando o termo ’ï’anay de (“na condição de ’ï’anay”). A autora observa que ’ï’anay designa a coletividade de espíritos dos mortos, conforme demonstra o seguinte comentário de um Yudjá:

“Nós nos tornamos ’ï’anay; dormindo, vamos andar-pãpã9 9 Lima observa que os Yudjá descrevem o sonho de uma pessoa comum como “irreal” e qualquer ação nesse contexto é marcada com o morfema -pãpã (“andar-pãpã”, “ver-pãpã” etc.). No entanto, a noção yudjá de irrealidade é outra: “o irreal não é pré- nem aquém- mas pós- ou além-real” (2005: 260). no caminho dos ’ï’anay, nossa alma vai andar no caminho dos ’ï’anay. (...) Quando estamos dormindo nossa alma lá longe se torna ’ï’anay - o sono parece a partida de nossa alma para longe ao morrermos, nossa alma acha-se lá longe e vê os ’ï’anay” (Lima, 2005LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um peixe olhou para mim: o povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo, Editora Unesp e ISA; Rio de Janeiro: NuTI.: 258).

O sonho yudjá é uma “modalidade tênue de morte” à medida que conduz a alma da pessoa ao caminho dos mortos, propiciando encontros com gente já falecida. A passagem do estado de vivente para o estado de sono (’ï’anay de) é vista como um gradiente no qual, de um lado, está a “preservação da integridade pessoal” e, de outro, um horizonte aberto ao “fracionamento da pessoa”, cujo extremo é a morte. Com o distanciamento paulatino da alma,“uma quantidade de alma-princípio vital” se perde e “pode seguir [se] perdendo progressivamente até que a alma-duplo10 10 Lima (2005) emprega o termo “duplo” para enfatizar a relação de exterioridade da alma, o grau máximo de fragmentação da pessoa. se integre às suas novas relações, acostumando-se à sua nova vida, e a pessoa, nesta vida, morra para os seus” (ibidem: 259).

Meus interlocutores, ao descreverem o sonho, também estabeleceram analogias com a morte.11 11 Para outros exemplos ameríndios da conexão entre sonho e morte, ver Shiratori (2013) e Vianna (2016). Kadeedi, interlocutor e parceiro de tradução, disse que, no sonho, “a pessoa fica sem pensamento, como morto”. O entendimento de que o sonhar é estar “sem pensamento próprio” (töwasejjeka) remete à imbricação entre o duplo do olho, a personitude, a vitalidade e a sabedoria da pessoa. Também encontrei comentários inversos: “a pessoa morta é como se estivesse dormindo”. Seja morto ou dormindo, notamos um “movimento cromático” (Vianna, 2016VIANNA, João Jackson Bezerra. 2016. Notas cromáticas sobre os sonhos ameríndios: transformações da pessoa e perspectivas. Revista de Antropologia, vol. 59, n. 3: 265-294. DOI 10.11606/2179-0892.ra.2016.124820
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) relativo ao “fracionamento da pessoa” (Lima, 2005LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um peixe olhou para mim: o povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo, Editora Unesp e ISA; Rio de Janeiro: NuTI.). A morte é o grau máximo, é a saída definitiva dos duplos. Com relação ao sonho, há uma variabilidade no que diz respeito aos graus de afastamento do duplo.

Barandiarán analisou os sonhos ye’kwana nos seguintes termos: “são experiências reais, vividas durante a viagem, enquanto o corpo estava como morto” (1979: 94). Observou ainda que um parente, ao ver alguém adormecido dando demonstrações de que algo não vai bem alhures, deverá acordá-lo imediatamente para afastar o perigo iminente e, em seguida, aplicar em seus olhos uma infusão preparada com uma planta capaz de afugentar seres invisíveis malfazejos que estão sempre à espreita. O fogo aceso próximo às redes é outra medida protetiva durante a noite, período particularmente perigoso aos humanos - como se verá.

As paisagens cósmicas são povoadas pelos odo’shankomo, entes não-humanos de natureza deletéria que “possuem determinações humanas fundamentais, seja no plano de sua forma corporal básica, seja no de suas capacidades intencionais e agentivas” (Viveiros de Castro, 2006VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2006. A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos. Cadernos de Campo, n. 14/15: 319-338. DOI 10.11606/issn.2316-9133.v15i14-15p319-338
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: 325). A sua presença torna a experiência humana instável e arriscada: essa miríade de seres invisíveis faz da vida um jogo de deciframento dos indícios que uma pessoa comum é capaz de ver ou alguém dotado de uma visão excepcional, como o pajé.

Os odo’shankomo, normalmente, não são vistos pelos humanos, mas quando o são, assumem formas humanas (sotooje, “como humano”) ou animais (por exemplo: madoje, “como onça”). O vocábulo sotooje aparece em descrições de sonhos ou encontros insólitos, geralmente, em locais distantes da aldeia, quando se vê um desconhecido com aspecto humanoide que não sabe ao certo se é humano. Dizer que um ser é “como humano” (sotooje) não é o mesmo que dizer que é humano (soto). O sábio Luís Manoel Contrera esclarece esse ponto: “Você sonhou que encontrou alguém igual a uma pessoa, que é como um humano; esse é Odo’sha, como um humano outro (sotooje mädä aneja)” (Gongora, 2017GONGORA, Majoí Favero. 2017. Ääma ashichaato: replicações, transformações, pessoas e cantos entre os Ye’kwana do rio Auaris. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.: 255, nota 207). É semelhante aos humanos, mas é outro (aneja). No pensamento ye’kwana, a alteridade máxima remete a Odo’sha, o gêmeo malévolo. Ele é a origem dos diferentes seres não-humanos que são agressivos aos humanos.

Viveiros de Castro (2011VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2011. O “Medo dos outros”. In: Revista de Antropologia, vol. 54, n. 2: 885-917. DOI 10.11606/2179-0892.ra.2011.39650
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) nota que o medo entre os povos amazônicos está associado à condição de incerteza gerada pelo encontro solitário na mata com uma alteridade radical que poderá assumir o ponto de vista dominante da relação, resvalando na metamorfose do sujeito humano. Ao ser capturado pela perspectiva de outrem, é desumanizado e vira outro, um não-humano, um morto para os seus. Para os Ye’kwana, como para muitos povos, os sonhos são experiências semelhantes a essa, pois o duplo ou a alma “está à mercê do olhar objetivante de Outrem” (Lima, 2005LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um peixe olhou para mim: o povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo, Editora Unesp e ISA; Rio de Janeiro: NuTI.: 337), abrindo frestas para o “fundo de virtualidade pré-cosmológica”, condição em que “o humano e o não-humano, o visível e o invisível trocam de lugar” (Viveiros de Castro, 2006VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2006. A floresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos. Cadernos de Campo, n. 14/15: 319-338. DOI 10.11606/issn.2316-9133.v15i14-15p319-338
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: 326). O sonho traz instabilidade à vida de uma pessoa à medida que é exposta a situações em que pode perder o controle da perspectiva do sujeito, ou seja, da sua condição humana.

Nas ontologias perspectivistas, como a dos Ye’kwana e dos Yudjá, não há um mundo unívoco cindido em domínios estanques (humanos/não-humanos; visível/ invisível; aparência/essência; realidade/ilusão). Ao contrário, há uma multiplicidade de mundos em que relações divergentes entre o eu e outrem estão postas, seja como atualização do virtual seja como contraefetuação na forma de um devir-outro (Viveiros de Castro, 2002bVIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2002b. “O nativo relativo”. In: Mana - Estudos De Antropologia Social , vol.8, n. 1: 113-148. DOI 10.1590/S0104-93132002000100005
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; 2007). Como bem pontuou Lima, tudo o que existe no mundo, existe para alguém e, portanto, “a realidade é o que o ponto de vista afirma” (1999: 48).

WANAADI SONHAVA BEM

Contam os sábios ye’kwana que Wanaadi, o demiurgo celeste, era um grande xamã (föwai), como as primeiras pessoas que ele fez surgir. A ontologia destes seres demiúrgicos é um paradigma para os pajés (föwai) e donos de canto (acchudi edhaajä), cujo modo de ação é expressão dessa potência originária. As pessoas demiúrgicas eram capazes de engendrar seres e coisas através de sua própria sabedoria (sejje). Sentadas em seu banco (mude), pensavam ou cantavam, com seu maracá (madaka), e sopravam a fumaça do tabaco (kawai) sobre algo, geralmente, um cristal (Gongora, 2017GONGORA, Majoí Favero. 2017. Ääma ashichaato: replicações, transformações, pessoas e cantos entre os Ye’kwana do rio Auaris. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.; Civrieux, 1997CIVRIEUX, Marc de. [1970] 1997. Watunna - An Orinoco creation cycle. Austin. University of Texas Press.). A agentividade do sopro dos xamãs primordiais é, frequentemente, associada à fumaça do tabaco que, como notou Cesarino (2014CESARINO, Pedro de Niemeyer. 2014. “A voz falível - ensaio sobre as formações ameríndias de mundos”. In: Literatura e Sociedade, Departamento de Teoria Literária-USP, vol. 19, n. 19: 75-99. DOI 10.11606/issn.2237-1184.v0i19p76-99.
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), atua como um “transformador cósmico” no mundo ameríndio.12 12 O tabaco é uma planta diretamente associada à força criativa de Wanaadi e dos xamãs ye’kwana. Ela ocupa um lugar privilegiado nas práticas xamânicas ameríndias devido à sua capacidade de transpor barreiras entre mundos e afetar significativamente as redes de relações que os constituem. Entre os Ye’kwana, o sopro de sua fumaça conduz a força agentiva do xamã e é a principal forma de agir sobre os seres e as coisas - seja criando vida ou resgatando vitalidade, seja provocando envenenamento e morte, como se verá. Ver em Russell e Rahman (2015) contribuições recentes sobre a centralidade do tabaco nas práticas dos povos das terras baixas da América do Sul.

No tempo originário, sonhar era uma forma de pensar e de provocar intencionalmente transformações no mundo, originando pessoas, paisagens, plantas, instrumentos, alimentos, objetos. Sonhar também era um modo de conhecer outros mundos e se comunicar com os habitantes dessas paragens. Nos trabalhos de campo, ouvi constantemente a frase: “Wanaadi sonhava bem”.

No princípio, todo pensamento sonhado de Wanaadi acontecia de forma idêntica no dia seguinte,durante a vigília.Entretanto,não tardou para que essa configuração fosse alterada por Odo’sha, também conhecido como Kaajuushawa, o gêmeo antagonista das histórias verdadeiras (wätunnä) do povo Ye’kwana. Odo’sha procurava imitar as ações de Wanaadi para estragá-las. Nessas narrativas, é comum encontrarmos descrições de embates entre os gêmeos sob a forma de duelos de pensamentos ou de sonhos. Civrieux registrou a seguinte história entre os Ye’kwana do rio Cunucunuma (Venezuela):

Wanadi sentou-se silencioso e calmo, sem comer ou fazer qualquer outra coisa. Apoiou seus cotovelos sobre os joelhos e sua cabeça sobre as mãos. Ele estava apenas pensando, sonhando. Sonhando. Foi dessa forma que Wanadi fez tudo. “É isso que sonho”, ele diria. “Estou sonhando que há fartura de alimento”. Nenhuma comida surgiu. Odosha estava bem na sua frente. Ele não desejava nada daquilo. Começou a sonhar mal. Respondeu a Wanadi com o mal. “Eu sonhei: temos mandioca”, disse Wanadi, sonhando. “‘Este é o meu sonho’”, contestou Odosha. “Muita fome”. Ele retrucava com más intenções. (Civrieux, 1997CIVRIEUX, Marc de. [1970] 1997. Watunna - An Orinoco creation cycle. Austin. University of Texas Press.: 30).

Na passagem, Wanaadi e Odo’sha disputam o controle sobre a natureza dos sonhos e os seus efeitos na vida desperta se serão benéficos (aashicha) ou deletérios (konemjönö). Quem vence esse duelo é Odo’sha: no lugar da fartura, surge a fome. Durante a pesquisa, encontrei uma história semelhante a essa registrada por Civrieux. A seguir, apresento excertos de um diálogo entre dois conhecedores ye’kwana sobre a interferência de Odo’sha no sonho de Wanaadi e as implicações disso para a futura humanidade.13 13 O registro do diálogo foi feito em Fuduuwaadunnha, em 2014, com tradução minha e Kadeedi

Luís Manoel Contrera Mä’dä Kaajuushawa könkonemai mädä wäneetönä. Awa’deene könä’jaakä ke daane wädöaanä aashicha wäneetönä könä’jaakä tönnedö wädödö. Chäänönge yänetödö könä’jaakä. Tadawaaju wä-dödö. Mä’dä köneikumei. Kaajuushawa [Odo’sha] estragou o sonho de Wanaadi. Primeiro sonhava bem, com a chegada do filho. Ele sonhava direito, sonhava que fazia o seu trabalho. Foi Kaajuushawa que desviou o caminho Yääje awa’de inhataaje najaanä, aashicha najaanä awa’deene. Mädääje yeichö mädä janhone yää wadeekui, töweiye mmaja, yää ai maane mötää-jätöi mädä töwänetööe madö yaawä. Então, no começo, era bom, era certo. Era através daquele fio de Wanaadi que você andava enquanto sonhava. Anennhaja äwäänetöa’dö tänäämö tänä, kone’da äwäänetöa’dö, akiyano ke kene’tädökomo yääjönka? Agora você sonha que vai para lá, um lugar distante e desconhecido, e come carne de caça. Assim você está sonhando ruim. A gente chama akiyano14, né? Mädä ai käämanäato mä’dä eetä sammane mä’dä Odo’sha chäjui yeiyajä. Maadä samma kötaato eduuwa aminche’da käämanäato ooje ännene. Unwa’da, aminche’da. Määtä samma töwö na. Akuuwena innha’da töwö na. Através do fio, a gente anda no céu de Odo’sha. Anda por aqui mesmo. Hoje em dia, a gente caminha por lugares que não são distantes. Não vai mais para lá [céu de Wanaadi], fica aqui perto. Odo’sha está aqui perto, não está lá no Akuuwena [lago celeste]. Raimundo Manoel Rodrigues Oshono aashicha wäneetönä töweiye nadea, yää-jönka? Konemjönö töweiye mmaja? Aakene iyä aashicha wäneetönä töweiye nai yaawä? Qual sonho é bom? Também tem sonho ruim, não é? Como é um sonho bom? Luís Manoel Contrera Naadöjedea yeichame töwö Kaajuushawa ninhaakudäädö aashichane wäneetönä könä’jadöje, iyanhe wäneetönä äse taminhäka, kanaawa taka, ättä tamä. Kaajuushawa estragou. Antes sonhava bem mesmo, sonhava com caçada, construção de canoa, casa redonda. Raimundo Manoel Rodrigues Äne’käämö wänetötädö mädä kanaawa taka? O que é sonhar com a construção de uma canoa? Luís Manoel Contrera Akaadö könä’jaakä fenaadä Wanaadiwä, akaadö ke, töwadefä’e köna’jato akaadö nöngato awä täiyedö Wanaatu akä. Antigamente, Wanaadi sonhava que cavava madeira. Contava a seu cunhado Wanaatu que, no sonho, cavava uma canoa Aakene äwäänetöi, wainhäjö? - O que você sonhou, meu cunhado? Yääje kanaawa taka wäänetöi. - Sonhei que fazia uma canoa. Yääje akaadö äwääne’kai ke tönekwä’jä’e könä’jaakä. - Então, sonhou que cavava [disse Wanaadi]. Yääje chäänönge na. - Isso mesmo [disse Wanaatu]. Chäänönge mmaja wa’shadi taminhaka wääne-töi, mma amäädö wäänetöi. - Também sonhei que caçava uma anta e construía uma casa. Kaajuushawa janhone yaawä sejjeke könädöi yaawä tönekwä’jä’e könädöi yaawä määyä naadö käwaakä. Kaajuushawa já havia crescido, tinha inteligência para entender a fala deles e responder. Igual a esse daqui [Luís indicou uma criança que nos acompanhava]. Raimundo Manoel Rodrigues Mä’dä nöngato könajäntäi yaawä? Assim como ele? Assim que começou a responder? Luís Manoel Contrera Könajäntäi yaawä, äjinhamo yäämadö äwääne’kai, aanö yäämadö äwääne’kai, ayadudu äwääne’kai, awäämadö äwääne’kai. Foi assim que começou. “- Você sonhou com a morte da tua mulher. Sonhou com a morte da tua mãe. Sonhou que cobria a cova dela. Sonhou com tua morte - [disse Odo’sha]. Äse taminhaka. - Caçada de um animal - [disse Wanaadi]. Äjinhamo wäämadö äwääne’kai ännedö wäämadö äwääne’kai. - Você sonhou com a morte da tua mulher. Sonhou com a morte do teu filho - [disse Odo’sha]. Yainhe fenaadä köna’jaakä yääje wäänetöi che. Antigamente, acontecia igual ao que era sonhado.

Mais uma vez, a disputa entre o demiurgo e seu irmão gêmeo gira em torno do “ponto de vista dominante” da relação entre sonho e vigília (Viveiros de Castro, 2011VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 2011. O “Medo dos outros”. In: Revista de Antropologia, vol. 54, n. 2: 885-917. DOI 10.11606/2179-0892.ra.2011.39650
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). Ao interferir no diálogo entre Wanaadi e seu cunhado, Odo’sha “estragou o sonho de Wanaadi” que era, até então, bom (aashicha): modificou o percurso do sonho (“desviou o caminho”) e interrompeu o acesso do sonhador a lugares celestes, como o lago Akuuwena, um reservatório de todas as forças vitais e morada de pajés e donos de canto primordiais.

A configuração do mundo terrestre é expressão da vantagem de Odo’sha sobre os desígnios de Wanaadi, que retornou à morada celeste depois de várias tentativas de se livrar do irmão. O gêmeo antagonista continua atrapalhando a vida de todos os nascidos nesta terra. Estes, ao dormirem, têm os seus caminhos oníricos controlados por Odo’sha que, através de um fio (wadeeku), os conduz às suas emboscadas.

Os sonhadores comuns não caminham nos domínios celestes do demiurgo, ao contrário, “caminham perto”, nas cercanias da plataforma terrestre (no “céu de Odo’sha”), e por isso os sonhos se tornaram ruins (konemjönö). Como veremos adiante, mesmo as experiências oníricas consideradas “boas” não são comparáveis aos sonhos dos pajés e donos de canto. Segundo o tuxaua de Fuduuwaadunnha: “só föwai sonha bem, gente normal, não”.

O lugar privilegiado que Wanaadi e Odo’sha “ocupam na mitologia coincide com o dinamismo que o par dá ao pensamento ye’kwana em um nível mais geral” (Gongora, 2017GONGORA, Majoí Favero. 2017. Ääma ashichaato: replicações, transformações, pessoas e cantos entre os Ye’kwana do rio Auaris. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.: 56). Toda diferença é concebida nos termos das relações de oposição e rivalidade existentes entre eles e, nesse sentido, a ontologia ye’kwana está fundada nesse regime de diferenciação. Odo’sha subverteu os sonhos do demiurgo e a experiência onírica tornou-se o avesso do que sucede com a pessoa desperta. E o avesso é sempre oposto aos intentos benévolos do demiurgo: é expressão de sofrimento, adoecimento e morte.

Odo’sha protagonizou outras inversões no processo cosmológico. O surgimento da noite e da morte são eventos diretamente relacionados à sua agência deletéria e remontam ao início dos tempos, quando matou a mãe de Wanaadi. Antes, a luz existia de forma perene e não havia morte. A partir dessa primeira morte, a terra começou a girar, voltando-se durante o período noturno à morada de Odo’sha e gerando escuridão (Gongora, 2017GONGORA, Majoí Favero. 2017. Ääma ashichaato: replicações, transformações, pessoas e cantos entre os Ye’kwana do rio Auaris. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.: 55; Ibidem: 60). À noite, todo cuidado é pouco. Civrieux registrou outra versão dessa história (wätunnä). A noite era guardada secretamente na chakara de Wanaadi, um recipiente onde guardava seus instrumentos e substâncias xamânicas. Um dia, essa caixa foi aberta por seu sobrinho que, induzido por Odo’sha, deixou a escuridão escapar (1997: 25-26).

O surgimento do sono (wetu) também resulta de um desmando de Odo’sha. Ele é responsável por provocar o estado de sonolência por meio de um envenenamento diário. Segundo as exegeses ye’kwana registradas em campo, o desejo incontrolável de dormir sensação de cansaço e sono é efeito da aspiração da fumaça de um cigarro ou de um rapé que, todas as noites, os odo’shankomo preparam e introduzem nas narinas dos humanos.

A primeira pessoa a dormir nesta terra foi Känewa, um auxiliar de Odo’sha. Ele começou a dormir no momento em que a escuridão invadiu este mundo. Contam meus interlocutores que Känewa tinha um tabaco (kawai) próprio cujo nome no léxico específico dos cantos é yamasaku kawaichö. Ao acender o cigarro, a fumaça se espalhou por todos os lados, contaminando os seres com a letargia do sono. Com o sopro envenenado de Känewa, os humanos passaram a dormir.

Após esse evento inaugural, surgiram outras pessoas que, como Känewa, ajudam Odo’sha a envenenar os humanos através do uso de tabaco, provocando o sono. Segundo Luís Manoel Contrera, esse tabaco é “temperado” com o miolo do osso de outro auxiliar de Odo’sha, chamado Wadena, tornando-se uma composição altamente tóxica por conter fragmentos de um defunto 15 15 O cadáver de uma pessoa é tóxico e perigoso (amoijhe), por isso os Ye’kwana evitam tocar o corpo de um morto. O contato com o defunto contamina a pessoa, torna-se suja ou intoxicada (tänwadooto). Para ser desintoxicada, precisará atravessar um longo período de isolamento, resguardos e rituais (Gongora, 2017: 262)

Kadeedi descreveu da seguinte maneira a sensação de sonolência resultante desse envenenamento: “Aí fica gostoso deitar, aí dormiu bem dormido, tipo morto, bem gostoso. Não tá acordando, por isso wetu [sono] é muito gostoso”. Luís Manoel contou que, além do cigarro feito com o tutano de um não-humano, há um rapé feito com a planta akudaja (não identificada) que provoca sono nas pessoas. Akudaja é uma planta utilizada pelos pajés, no entanto a planta usada pelos odo’shankomo, também considerados poderosos xamãs, é de outro tipo: é akudaja konemjönö - uma planta semelhante, mas de natureza ruim, danosa.

Com o surgimento de Odo’sha, inaugurou-se um modo de agir simétrico e inverso à agência do demiurgo: é idêntico, mas deletério. Diferentemente da potência benéfica contida no sopro xamânico de Wanaadi, responsável, por exemplo, pelo engendramento das primeiras pessoas, vemos em Odo’sha o oposto. O sopro daqueles que agem sob o seu comando transformou a natureza das coisas por meio do envenenamento, gerando vulnerabilidade e risco de morte. Por ação de Odo’sha e suas gentes, os humanos, toda noite, sentem sono e dormem. Desarmados, os seus duplos se lançam em mundos eminentemente perigosos.

Hoje, dizem meus interlocutores, “a gente sonha ruim”. As pessoas comuns, quando dormem, não são capazes de controlar os seus duplos (äkaato), que costumam andar pelas paisagens terrestres, onde o encontro com os odo’shankomo é corriqueiro. Apenas os duplos dos pajés e donos de canto - denominados dhamodedö16 16 Dhamodedö é formado por: dh- (y-) marca de 3a pessoa para nomes + amoode raiz nominal (transformação) + -dö sufixo de posse nominal. A tradução literal é “sua transformação” (Gongora, 2017: 45). (“sua transformação”) - são controlados à distância, são suas extensões alhures, seus ajudantes durante as ações rituais.

O regime ontológico dos “duplos-transformação” dos xamãs ye’kwana espelha-se na relação de Wanaadi com seus duplos auxiliares, também denominados dhamodedö e igualmente compreendidos como desdobramentos do demiurgo (Gongora, 2017GONGORA, Majoí Favero. 2017. Ääma ashichaato: replicações, transformações, pessoas e cantos entre os Ye’kwana do rio Auaris. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.). Para Civrieux, dhamodedö refere-se a “um espírito mensageiro ou duplo que é concebido como um akato e pode ser controlado e dirigido, um poder que somente o huhai [föwai] e o próprio Wanadi possuem” (1997: 194). Guss observou que os seres demiúrgicos não tinham duplos äkaato, mas dhamodedö - como os pajés ye’kwana:

Em contraste com o passivo e incontrolável akato [sic] da pessoa comum, o damodede [sic] é uma alma independente que pode ser dirigida à vontade. Sempre que seu dono desejar, pode ser removido do corpo e enviado ao sobrenatural. (Guss, 1990GUSS, David M. 1990. To Weave and Sing - Art, Symbol and Narrative in the South American Rainforest. Berkeley, University of California Press.: 52).

pajé (föwai) e o dono de canto (acchudi edhaajä) são os únicos capazes realmente de sonhar bem e por isso são considerados sábios. Seja no sonho ou durante as ações xamanísticas, só eles se comunicam com seres celestes e transportam os duplos dhamodedö aos céus de Wanaadi, lugares de vitalidade e sabedoria. Além disso, controlam os trajetos de seus duplos excorporados em outros mundos e são pouco suscetíveis aos ataques promovidos por Odo’sha tendo em vista suas tecnologias para se proteger nesses deslocamentos.

O FIO DO DUPLO E A INVERSÃO DO SONHAR

Wanaadi estava sonhando bem legal. Sonhava assim, que matava algum bicho, anta e veado, e quando amanhecia, ia caçar e matava a caça dele. Aí Kaajuushawa [Odo’sha] atrapalhou o sonho dele, trocou. Kaajuushawa falava para Wanaadi: “Sua mãe vai morrer amanhã, sua mulher vai morrer...”. Aí Wanaadi não gostava da palavra dele. Aí não quis mais ficar aqui [na terra] e por isso foi embora [para o céu].

(...) Foi aí que ele trocou. Você tem aquele wadeeku [fio/caminho], mas ele troca o seu wadeeku, por isso que a gente sonha ruim. Ele transforma o wadeeku das pessoas, por isso que a gente sonha ruim. É… Kaajuushawa troca mesmo.

Antigamente não era assim, tinha pajé para afastar os odo’shankomo. Hoje, quando você sonha que está matando algum bicho, isso faz mal para gente. Aí não pode sair de casa, fica dois dias dentro, e depois, no terceiro dia, você sai. Aí Odo’sha, que estava esperando no caminho, já foi embora. (...) Hoje em dia, como não tem mais pajé, se você for sair no mato, é muito perigoso, tem cobra, onça. (Luís Manoel Contrera, Fuduuwaadunnha, 2014).

A fala do sábio, traduzida por Kadeedi, contém pontos centrais para compreendermos as implicações do sonho na vigília da perspectiva ye’kwana. No tempo das origens, o demiurgo sonhava com uma ação (caçada de um animal, por exemplo) e, no dia seguinte, ela se replicava no estado de vigília (caçada de um animal). Havia, então, uma continuidade entre a experiência onírica e a desperta. A interferência de Odo’sha alterou essa relação, dando origem à descontinuidade entre o sonho e a vigília. Sonhar com a caçada de um animal ao invés de anunciar um bom dia para caçar, passou a ser o prenúncio da morte de um parente. Uma caçada com flecha durante o sonho inverte-se na vigília e a pessoa torna-se alvo da flecha de outrem: correrá o risco de ser picada por uma cobra. Da perspectiva do dono das cobras (invisível aos humanos), a picada é o efeito de sua flechada.

Outro aspecto central na exegese de Luís Manoel é a forma como Odo’sha produziu e ainda produz tal transformação: “troca o seu wadeeku, por isso que a gente sonha ruim”. A pessoa humana não acessa os mundos celestes de Wanaadi, pois o caminho (wadeeku) da experiência onírica foi alterado pelo rival do demiurgo. Para entendermos por que as pessoas comuns “sonham ruim” será preciso nos atermos a um conceito implícito nessa exegese: wadeeku ekaato, fio ou caminho do duplo.

Wadeeku é uma palavra que, a depender do contexto enunciativo, pode significar algodão, fio ou caminho. Toda pessoa tem um fio invisível que conecta o duplo do olho a seu corpo. Ao dormir, o duplo do olho se desconecta da pessoa e é nesse momento de vulnerabilidade que Odo’sha manipula o fio, alterando o caminho do duplo de forma a conduzi-lo às suas armadilhas em lugares distantes dos domínios celestes de Wanaadi. Wadeeku ekaato, o caminho que liga o duplo à pessoa, pode ser perdido a depender dos eventos ocorridos nesses deslocamentos oníricos.

Uma vez Kadeedi explicou-me a noção de wadeeku ekaato de uma forma que me fez pensar sobre o que seria, da perspectiva ye’kwana, uma teoria da intuição. Contou que, mesmo na vigília, quando uma pessoa caminha, o seu duplo (äkaato) anda sempre na frente. Podem ocorrer situações em que o fio do duplo ou o duplo da pessoa encontra-se com um ser ameaçador, como uma onça ou o duplo/fio do duplo desse animal (não-humanos também têm duplos e seus respectivos fios). Nesses encontros perigosos, a pessoa humana (que ainda não chegou ao local por onde o duplo e o fio passaram) tem uma súbita sensação ruim e pensa consigo mesma (mas quem pensa é o seu duplo alhures) que é melhor alterar o percurso, pois algo não lhe parece bem. “Intuitivamente”, afasta-se do perigo.

Nesta teoria da intuição, a experiência do duplo do olho antecipa situações que podem ameaçar a integridade da pessoa, como a captura de seus duplos por entes mal-intencionados e abundantes nas paisagens cósmicas. O fio do duplo parece ser o elemento constitutivo da pessoa que permite o acesso às reminiscências da experiência do duplo em outros tempos-espaços as quais emergem enquanto virtualidade durante a vigília.

Wadeeku ekaato é tanto a extensão da pessoa quanto o caminho que ela percorrerá em seguida. Acompanhando o trajeto do fio invisível, a pessoa refaz os passos já traçados pelo duplo.

A seguir, um relato de Luís Manoel, traduzido por Kadeedi, que explica essa noção tomando como exemplo meus deslocamentos entre as cidades e as comunidades ye’kwana.

Todo mundo tem wadeeku [fio/caminho]. Você pensa antes de ir embora, de ir para outro país: “Vou para Auaris”. Você não conhece aqui, mas já ouviu falar. Você pensa: “Vou para lá também, vou conhecer o povo Ye’kwana”. Aí seu wadeeku já foi para Auaris e é por isso que você chegou aqui. (...)

Quando vai a outra comunidade, o seu wadeeku já chegou na outra comunidade, mas você não o vê. É o seu espírito mesmo que leva o seu wadeeku. Primeiro, o espírito começa a caminhar, vai indo. Depois de dois dias, você chega. Quando você sair daqui da comunidade, você vai estar na pista de pouso e o avião chegando, mas o seu fio já vai estar em São Paulo. Seu espírito está esperando você lá na sua casa. Você amanheceu aqui e seu pensamento é: “Vou viajar agora para Boa Vista”. Aí seu espírito já foi à Boa Vista. (Luís Manoel Contrera, Fuduuwaadunnha, 2014).

Wadeeku ekaato é a ligação entre a pessoa e o duplo do olho, é a conexão que garante a vitalidade do corpo e o pensamento próprio. O fio do duplo também é o elo de conexão dos humanos com Wanaadi. Segundo as exegeses que registrei, o demiurgo sabe quando um humano está à beira da morte, pois nota a chegada do fio do duplo e do duplo do olho em sua morada celeste. Logo, o corpo na terra perde os sinais vitais e os demais duplos partem para os seus respectivos destinos pós-morte. Wanaadi é a origem (adaichö) da humanidade assim como é o seu dono ou mestre (ädhaajä).

É importante destacar que na ontologia ye’kwana todos os viventes, humanos e não-humanos, estão ligados às suas origens e mestres por meio de fios invisíveis igualmente designados de wadeeku. Esses fios manifestam as ligações existentes entre um dono (ädhaajä) e sua criação (äkönö). Observo que outros povos expressam de modo análogo a conexão entre os donos e seus xerimbabos, como entre os Wajãpi, para quem há um caminho (tupãsã) que conecta o demiurgo Janejar e os humanos (Gallois, 1988GALLOIS, Dominique Tilkin. 1988. O Movimento na Cosmologia Waiãpi: Criação, Expansão e Transformação do Mundo. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo (doutorado).).

Vimos que a intervenção perniciosa de Odo’sha (a troca do fio que conecta os humanos à Wanaadi), inverteu a configuração desejada pelo demiurgo. As experiências oníricas das pessoas comuns são predominantemente ruins, pois ao dormirem o fio do duplo é controlado por Odo’sha e, ao invés de se lançar nos céus de Wanaadi, é conduzido em percursos nos mundos governados pelo gêmeo antagonista.

ONIROCRÍTICA YE’KWANA

Relatar os sonhos aos parentes mais próximos, geralmente aos mais velhos, ou a uma pessoa sábia é uma prática importante para os Ye’kwana. Pela manhã, logo que desperta e encontra-se com um parente, a pessoa costuma ser indagada com a expressão: Aakene äwäänetöi? Como você sonhou? Então, conta a seu interlocutor se teve um sonho bom (aashicha wäneetönä) ou se o seu sonho é um alerta de morte (a’yano17 17 Segundo Reinaldo Wadeyuna, se diz Ta’yanookwe wäänetöi, kone’da (“Sonhei com prenúncio de morte, é ruim”) para referir-se a um sonho ruim. ) e faz um breve relato da experiência onírica. Essa conversa matinal pode se converter em uma orientação ao sonhador relacionada às implicações do sonho para a vida em vigília com recomendações práticas para os dias seguintes. Entre os Ye’kwana e outros ameríndios, o sonho enquanto experiência do duplo pode afetar de forma significativa a “experiência sensível da pessoa humana” na vigília (Lima, 1996LIMA, Tânia Stolze. 1996. O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi. In: Mana - Estudos De Antropologia Social, vol. 2, n. 2: 21-47. DOI 10.1590/S0104-93131996000200002
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).

Encontrei pouquíssima informação sobre os sonhos bons das pessoas comuns. Entre eles, meus interlocutores mencionaram: reunir-se com parentes próximos vivos; receber uma espingarda de cor avermelhada (caçada de veado na vigília); estar em uma multidão de pessoas de outros povos (caçada de porcão do mato na vigília).18 18 Observo que nesses dois exemplos de “sonho bom” a lógica invertida permanece: a vigília não é idêntica à experiência onírica. A diferença em relação aos sonhos ruins é que a virtualidade na vigília é de ordem benéfica e não deletéria. Em conversa recente, Reinaldo Wadeyuna foi categórico ao dizer que os sonhos mais comuns são os ruins - esses, são inumeráveis.

Geralmente, o sonho é um a’yano, noção que remete a um alerta de morte ou a algo ruim que pode acontecer com a pessoa ou alguém da família. A expressão também é usada para situações na vigília que são especialmente estranhas e por isso perigosas: encontrar no mato animais que raramente são vistos; escutar o canto de pássaros que raramente são ouvidos; ver um arco-íris a oeste; encontrar nos caminhos da comunidade uma cobra cega (nono aköödö). Wadeyuna conta que, quando coisas desse tipo acontecem, é sinal de que “Odo’sha apareceu” - pessoas vão morrer ou algo ruim pode surgir nos próximos dias. Para afugentar essa virtualidade deletéria, ações imediatas de proteção são tomadas, como o consumo de kasakidi (molho de tucupi com pimenta).

O sonho a’yano é um prenúncio de morte que pede atenção e precaução por parte do sonhador para que não repita os passos dados por seu duplo em outro tempo-espaço. Do contrário, a pessoa irá ao encontro dos odo’shankomo, o que poderá lhe trazer infortúnios, como adoecimento e morte. Para evitá-los, é essencial ater-se às reminiscências dos sonhos e conversar com os mais velhos para conhecer os riscos a que pode estar sujeita na vigília.

As considerações de Shiratori sobre a onirocrítica ameríndia vão ao encontro deste estudo sobre os sonhos ye’kwana. Essa noção remete a duas atitudes fundamentais: trata-se, de um lado, de uma reflexão especulativa sobre os futuros possíveis prefigurados nos sonhos e, de outro, de uma pragmática que se realiza na vigília e permite a manipulação dos eventos sonhados no sentido de efetivá-los ou negá-los (2013: 14; Ibidem: 69-70).

Para a autora, a onirocrítica ameríndia pressupõe a coexistência de tempos distintos, abertos e reversíveis e esse é um ponto central:

[T]odo sonho demanda uma ação específica, uma pragmática fundada na virtualidade da dimensão onírica. Não é pretérito, posto que permanece em curso, mesmo após o despertar, porém, sem constranger o sonhador se impondo a ele como um destino. (…) [N]o emaranhado temporal que entrelaça sonho e vigília, composto de diversas escolhas possíveis, a interpretação não é se submeter a um resultado previsto, mas moldar o próprio real (Shiratori, 2013SHIRATORI, Karen Gomes. 2013. O acontecimento onírico ameríndio: o tempo desarticulado e as veredas dos possíveis. Rio de Janeiro, Tese de Doutorado, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.: 130-131).

A onirocrítica ye’kwana funda-se nesse mesmo entendimento de que o sonho fornece conhecimentos parciais sobre a vida do duplo em outros mundos, que não é menos real que a vida desperta da pessoa,e transborda no tempo vivido em vigília como virtualidade. Especular sobre os sonhos é, entre os Ye’kwana, uma arte da precaução.

Diria que, para esse povo, os sonhos são menos divinatórios do que “antecipatórios”: na vigília, a pessoa pode vir a percorrer um caminho já trilhado por seu duplo. Se, como vimos, o sonho é a experiência do duplo, a sua lembrança é uma espécie de vestígio daquilo que sucedeu alhures e pode se repetir no plano da “experiência sensível da pessoa humana” (Lima, 1996LIMA, Tânia Stolze. 1996. O dois e seu múltiplo: reflexões sobre o perspectivismo em uma cosmologia tupi. In: Mana - Estudos De Antropologia Social, vol. 2, n. 2: 21-47. DOI 10.1590/S0104-93131996000200002
https://doi.org/10.1590/S0104-9313199600...
). Relembro que o fio do duplo (wadeeku ekaato) é justamente aquilo que liga a pessoa ao duplo do olho, elo que permite essa percepção parcial das situações vividas pelo duplo enquanto a pessoa dorme.

O encontro onírico com um parente falecido sinaliza uma proximidade excessiva entre o sonhador e o espectro terrestre do morto (äkaatomjödö, “ex-duplo”). O perigo dessa situação se deve ao fato de que o espectro, como relatam meus interlocutores, “é Odo’sha, não é mais gente”. Por meio dos sonhos, o espectro terrestre procura alimentar os vínculos afetivos com seus (ex)parentes e (ex-)amigos que, por sua vez, se esforçam para afugentá-lo dos espaços de convivência familiar para evitar que a sua presença incite novas mortes na (ex-)família. Os Ye’kwana realizam logo após a morte de um parente uma série de ações rituais para afugentar äkaatomjödö e proteger a casa e seus habitantes (Gongora, 2017GONGORA, Majoí Favero. 2017. Ääma ashichaato: replicações, transformações, pessoas e cantos entre os Ye’kwana do rio Auaris. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.: 99).

Um sonho ruim (konemjönö), nesse contexto, é aquele no qual o sonhador consome a cuia de chibé (wokö) ofertada pelo espectro do morto. O risco de morte relaciona-se ao compartilhamento do alimento com o falecido, marcando o início de sua transformação em um não-humano, em morto, um odo’shankomo19 19 Entre os Baniwa, uma pessoa pode adoecer se sonhar sucessivamente com os espíritos yóopinai e, ao ser gradativamente consanguinizada por eles, perece e morre. Segundo Vianna, “a morte é, nestes casos, concebida como a troca de parentes humanos por yóopinai” (2016: 280). (da perspectiva dos humanos).

Frequentemente, sonhar é lançar-se em mundos povoados por odo’shankomo e, nesse caso, remete a uma situação de morte iminente (a’yano) que deverá ser evitada na experiência desperta. Para tanto, o sonhador, seus parentes próximos ou toda a comunidade - a depender do sonho - precisará seguir um conjunto de recomendações, resguardos e cuidados. Após um sonho ruim, evita-se sair da aldeia e andar só. Geralmente, as medidas tomadas envolvem a execução de cantos, banhos e infusões de plantas medicinais, resguardos e uso de modificadores corporais com finalidades profiláticas, como as pinturas corporais, e o uso do etöödötoojo, objeto feito com cabaças pequenas (com plantas protetivas em seu interior) que ao serem manipuladas afastam os perigos no caminho.

A seguir, apresento uma sistematização preliminar de dados etnográficos sobre os sonhos que são especialmente perigosos para os humanos, as ameaças a serem evitadas na vigília e as precauções a serem tomadas nos dias subsequentes.

Quadro 1
Relações entre experiências oníricas e vigília na onirocrítica ye’kwana.

No quadro, estão alguns exemplos ye’kwana do “transbordamento do sonho na vigília” (Shiratori, 2013SHIRATORI, Karen Gomes. 2013. O acontecimento onírico ameríndio: o tempo desarticulado e as veredas dos possíveis. Rio de Janeiro, Tese de Doutorado, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.), evidenciando a ênfase cotidiana nos cuidados a serem tomados pelo sonhador durante os dias seguintes ao evento onírico. A autora nota que a “atividade onírica, em relação à vigília, não está no domínio dos fatos acabados, mas das possibilidades virtuais” e diz respeito a um diagnóstico de “ações engendradas que podem ou não se completar na realidade desperta, dependendo, pois, das escolhas e ações do sonhador” (ibidem: 69). A principal precaução a ser tomada na maioria dos sonhos a’yano listados é o resguardo no interior da comunidade para evitar um encontro solitário na mata ou no caminho da roça com seres não-humanos que, em circunstâncias críticas, se tornam anormalmente visíveis e assumem uma forma humanoide (sotooje).

A boa experiência do sonhador comum depende de práticas de proteção e afugentamento para controlar a “alteração onírica” (Vianna, 2016VIANNA, João Jackson Bezerra. 2016. Notas cromáticas sobre os sonhos ameríndios: transformações da pessoa e perspectivas. Revista de Antropologia, vol. 59, n. 3: 265-294. DOI 10.11606/2179-0892.ra.2016.124820
https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.20...
). As ações rituais realizadas cotidianamente na comunidade (execução dos cantos yacchuumadö) e as medidas profiláticas (resguardos, banhos e infusões com plantas, consumo de alimentos que trazem vitalidade e uso de etöödötoojo, tabaco, pimenta e tintas feitas com resinas perfumadas e plantas) permitem aos Ye’kwana viverem - e sonharem - bem a despeito dos desmandos de Odo’sha.

É notável a existência de inúmeras técnicas rituais voltadas à neutralização da influência danosa de Odo’sha e dos odo’shankomo que permeiam tanto a experiência cotidiana quanto as ocasiões que reúnem toda a comunidade, como os longos rituais (ädeemi). À título de exemplo, destaco o canto Wetuuje’da weichojo (“Para ficar sem sono”) que costumava ser realizado pelos participantes do ritual ädeemi para não caírem na letargia do sono, evitando o estado de vulnerabilidade característico dessa experiência. A seguir, alguns versos deste canto ensinado pelo sábio Luís Manoel.

Känewa wetui etanamadöje’da kätädemijhaato Wetuma wetui etanamadöje’da kätädemijhaato Awadha wetui etanamadöje’da kätädemijhaato Yamasaku kawaichö etanamadöje’da kätädemijhaato

Sono de Känewa, sem importunação, cantamos Sono de Wetuma, sem importunação, cantamos Sono de Awadha, sem importunação, cantamos Tabaco yamasaku, sem importunação, cantamos

Versos como estes também são cantados em momentos de aprendizado dos cantos rituais para afugentar os odo’shankomo, como Kanewa, Wetuma e Awadha, que insistem em importunar as pessoas com seus tabacos e rapés envenenados, trazer sonolência e atrapalhar o andamento das atividades humanas. Após a execução de outros versos desse canto, as pessoas adquirem capacidades de seres, como os urutaus, bacuraus e gaviões, que lhes permitirão passar longas noites em claro. Essa arte verbal é uma tecnologia absolutamente eficaz à medida que transforma o corpo da pessoa, dando-lhe novas afecções.22 22 Sobre os processos de incorporação de outras afecções, ver Gongora (2017 - Parte 3).

EPÍLOGO

Nos primeiros meses do trabalho de campo, certas configurações se repetiam no cotidiano da aldeia e algumas deixavam-me especialmente intrigada. Os encontros noturnos dos homens na annaka, espaço comunal, são um exemplo. Toda noite, adultos de Fuduuwaadunnha costumavam se reunir no local e, ao redor de uma mesa grande de madeira, passavam horas conversando sobre temas variados, fumando tabaco e tomando café - substância também usada para afastar o sono.

A cena recorrente era nuvens de fumaça de tabaco ocupando a annaka e um clima de sonolência que era entrecortado por conversas em tom baixo e risadas esporádicas. Achava curioso o fato de que os homens, nitidamente cansados, insistiam em permanecer ali, muitas vezes, cochilando em cima da mesa ou recostados nos bancos, ao invés de irem para suas casas dormir. Ficava com a sensação de que se tratava de uma espécie de luta contra o sono. Eu mesma, muitas vezes, embarcava nessa batalha e quando já não conseguia mais manter os olhos abertos, despedia-me do pessoal: kejata’täiye, “vou dormir”.

Mesmo nas reuniões em que decisões precisavam ser tomadas naquela noite, não havia pressa para definir os temas em debate e à medida que o tempo passava, a sonolência ganhava espaço e o peso das pálpebras aumentava. Assim que um homem despertava de um cochilo incontrolável, enrolava mais um cigarro para afugentar o sono e os odo’shankomo, pois a fumaça do tabaco cultivado nas roças ye’kwana tem finalidades curativas e protetivas. Entretanto, a luta contra o sono, uma hora ou outra, estaria perdida. Geralmente, por volta da meia-noite, o tuxaua encerrava a conversa e todos os presentes iam dormir.

Ao tomar conhecimento da história sobre o surgimento do sono (wetu), percebi que a ideia da “batalha contra o sono” (fruto da minha imaginação) poderia encontrar sentido no pensamento ye’kwana. Até então, não imaginava que a experiência humana, do ponto de vista de meus interlocutores, estivesse exposta a tantas interferências nocivas de Odo’sha e suas gentes. Trata-se, para as pessoas comuns, de uma batalha inglória contra as suas ações e por isso a centralidade do pajé e do dono de canto no manejo diário da vida.

As investidas deste gêmeo deram origem à noite, à morte e suas formas liminares, à descontinuidade entre sonho e vigília, ao sono e a um vasto conjunto de entes agressivos dispostos a capturar os duplos dos humanos. Se é perigoso viver nesta terra envenenada por Odo’sha desde tempos primordiais, sonhar é ainda mais arriscado.

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  • WHITEHEAD, Neil. 2002. Dark Shamans Kanaima and the Poetics of Violent Death. Duke University Press: Durham & London, Duke University Press.
  • 1
    Segundo o censo realizado, em 2011, pelo Instituto Nacional de Estadística/INE da Venezuela havia 7.997 pessoas pertencentes ao povo Ye’kwana. Com relação aos dados das aldeias ye’kwana, o mapa Território e Comunidades Yanomami Brasil-Venezuela (ISA, 2014INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL - ISA. 2014. Território e Comunidades Yanomami Brasil-Venezuela (Mapa).) registra 66 comunidades na Venezuela. No Brasil, as principais aldeias são: Fuduuwaadunnha e Kudatannha (rio Auaris) e Waichannha (rio Uraricoera).
  • 2
    Em sua etnografia, Guss registrou seis duplos (1990GUSS, David M. 1980. “Steering for Dream: Dream Concepts of the Makiritare Indians of Venezuela”. Journal of Latin American Folklore. vol. 6, n. 2: 297-312.: 49).
  • 3
    Guss (1990GUSS, David M. 1980. “Steering for Dream: Dream Concepts of the Makiritare Indians of Venezuela”. Journal of Latin American Folklore. vol. 6, n. 2: 297-312.: 50) encontrou as seguintes denominações - transcritas com a grafia que adotei em minha pesquisa (Gongora, 2017GONGORA, Majoí Favero. 2017. Ääma ashichaato: replicações, transformações, pessoas e cantos entre os Ye’kwana do rio Auaris. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.): ayenudu akano äkaato (duplo dentro do teu olho) e adheenö akano äkaato (duplo dentro do teu coração).
  • 4
    Ao segmentar o termo, temos: y- (marca de posse pessoal para 3° pessoa) + do’ta (‘meio’) + - (sufixo de posse). Do’ta também designa o tronco do corpo humano e iye yo’tadö, a parte interna ou o âmago de uma árvore (Gongora, 2017GONGORA, Majoí Favero. 2017. Ääma ashichaato: replicações, transformações, pessoas e cantos entre os Ye’kwana do rio Auaris. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.: 86).
  • 5
    Ao segmentar o termo, temos: y- (marca de posse pessoal para 3° pessoa) + do’ta (‘meio’) + - (sufixo de posse). Do’ta também designa o tronco do corpo humano e iye yo’tadö, a parte interna ou o âmago de uma árvore (Gongora, 2017GONGORA, Majoí Favero. 2017. Ääma ashichaato: replicações, transformações, pessoas e cantos entre os Ye’kwana do rio Auaris. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.: 86).
  • 6
    No doutorado, explorei a problemática do registro audiovisual entre os Ye’kwana, especialmente, as implicações cosmopráticas de gravar os cantos rituais. As parafernálias de gravação capturam os duplos da pessoa e, assim, podem roubar seus conhecimentos. Tais registros são como dispositivos de dispersão da vitalidade e da sabedoria da pessoa, produzindo enfraquecimento e esquecimento (Gongora, 2017GONGORA, Majoí Favero. 2017. Ääma ashichaato: replicações, transformações, pessoas e cantos entre os Ye’kwana do rio Auaris. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo. Capítulo 14).
  • 7
    As traduções de citações em língua inglesa ou espanhola são minhas.
  • 8
    Odo’sha é a origem dos diversos seres agressivos existentes na terra que são designados genericamente de odo’shankomo (-komo, marca do plural nominal).
  • 9
    Lima observa que os Yudjá descrevem o sonho de uma pessoa comum como “irreal” e qualquer ação nesse contexto é marcada com o morfema -pãpã (“andar-pãpã”, “ver-pãpã” etc.). No entanto, a noção yudjá de irrealidade é outra: “o irreal não é pré- nem aquém- mas pós- ou além-real” (2005LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um peixe olhou para mim: o povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo, Editora Unesp e ISA; Rio de Janeiro: NuTI.: 260).
  • 10
    Lima (2005LIMA, Tânia Stolze. 2005. Um peixe olhou para mim: o povo Yudjá e a perspectiva. São Paulo, Editora Unesp e ISA; Rio de Janeiro: NuTI.) emprega o termo “duplo” para enfatizar a relação de exterioridade da alma, o grau máximo de fragmentação da pessoa.
  • 11
    Para outros exemplos ameríndios da conexão entre sonho e morte, ver Shiratori (2013SHIRATORI, Karen Gomes. 2013. O acontecimento onírico ameríndio: o tempo desarticulado e as veredas dos possíveis. Rio de Janeiro, Tese de Doutorado, Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro.) e Vianna (2016VIANNA, João Jackson Bezerra. 2016. Notas cromáticas sobre os sonhos ameríndios: transformações da pessoa e perspectivas. Revista de Antropologia, vol. 59, n. 3: 265-294. DOI 10.11606/2179-0892.ra.2016.124820
    https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.20...
    ).
  • 12
    O tabaco é uma planta diretamente associada à força criativa de Wanaadi e dos xamãs ye’kwana. Ela ocupa um lugar privilegiado nas práticas xamânicas ameríndias devido à sua capacidade de transpor barreiras entre mundos e afetar significativamente as redes de relações que os constituem. Entre os Ye’kwana, o sopro de sua fumaça conduz a força agentiva do xamã e é a principal forma de agir sobre os seres e as coisas - seja criando vida ou resgatando vitalidade, seja provocando envenenamento e morte, como se verá. Ver em Russell e Rahman (2015RUSSEL, A.; RAHMAN, E. 2015. The Master Plant: Tobacco in Lowland South America. London, New York: Bloomsbury.) contribuições recentes sobre a centralidade do tabaco nas práticas dos povos das terras baixas da América do Sul.
  • 13
    O registro do diálogo foi feito em Fuduuwaadunnha, em 2014, com tradução minha e Kadeedi
  • 14
    Akiyano pertence ao léxico específico dos cantos ye’kwana e refere-se a algo ruim, à morte de alguém. A tradução dada por Reinaldo Wadeyuna foi “lugar de morte”. Seu equivalente na língua cotidiana seria konemjönö (ruim, feio, deletério). O verbo akiyanoomadö, derivado dessa raiz, significa “matar”.
  • 15
    O cadáver de uma pessoa é tóxico e perigoso (amoijhe), por isso os Ye’kwana evitam tocar o corpo de um morto. O contato com o defunto contamina a pessoa, torna-se suja ou intoxicada (tänwadooto). Para ser desintoxicada, precisará atravessar um longo período de isolamento, resguardos e rituais (Gongora, 2017GONGORA, Majoí Favero. 2017. Ääma ashichaato: replicações, transformações, pessoas e cantos entre os Ye’kwana do rio Auaris. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.: 262)
  • 16
    Dhamodedö é formado por: dh- (y-) marca de 3a pessoa para nomes + amoode raiz nominal (transformação) + - sufixo de posse nominal. A tradução literal é “sua transformação” (Gongora, 2017GONGORA, Majoí Favero. 2017. Ääma ashichaato: replicações, transformações, pessoas e cantos entre os Ye’kwana do rio Auaris. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo.: 45).
  • 17
    Segundo Reinaldo Wadeyuna, se diz Ta’yanookwe wäänetöi, kone’da (“Sonhei com prenúncio de morte, é ruim”) para referir-se a um sonho ruim.
  • 18
    Observo que nesses dois exemplos de “sonho bom” a lógica invertida permanece: a vigília não é idêntica à experiência onírica. A diferença em relação aos sonhos ruins é que a virtualidade na vigília é de ordem benéfica e não deletéria.
  • 19
    Entre os Baniwa, uma pessoa pode adoecer se sonhar sucessivamente com os espíritos yóopinai e, ao ser gradativamente consanguinizada por eles, perece e morre. Segundo Vianna, “a morte é, nestes casos, concebida como a troca de parentes humanos por yóopinai” (2016VIANNA, João Jackson Bezerra. 2016. Notas cromáticas sobre os sonhos ameríndios: transformações da pessoa e perspectivas. Revista de Antropologia, vol. 59, n. 3: 265-294. DOI 10.11606/2179-0892.ra.2016.124820
    https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.20...
    : 280).
  • 20
    As últimas quatro linhas trazem dados de Guss (1980GUSS, David M. 1980. “Steering for Dream: Dream Concepts of the Makiritare Indians of Venezuela”. Journal of Latin American Folklore. vol. 6, n. 2: 297-312.).
  • 21
    Kanaimä é um ser não humano dos mais temidos entre os Ye’kwana. Movido pela vingança, esse espírito matador é certeiro e feroz. Os ataques violentos de Kanaimé também são registrados entre povos da região circum-Roraima, ver Whitehead (2002WHITEHEAD, Neil. 2002. Dark Shamans Kanaima and the Poetics of Violent Death. Duke University Press: Durham & London, Duke University Press.).
  • 22
    Sobre os processos de incorporação de outras afecções, ver Gongora (2017GONGORA, Majoí Favero. 2017. Ääma ashichaato: replicações, transformações, pessoas e cantos entre os Ye’kwana do rio Auaris. São Paulo, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo. - Parte 3).
  • CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA:

    Não se aplica.
  • FINANCIAMENTO:

    A pesquisa contou com financiamento do CNPq entre abril de 2012 e fevereiro de 2013 (Processo 141506/2012-1) e entre março de 2013 e março de 2016 foi financiada com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processo FAPESP 2012/23866-0).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    03 Maio 2021
  • Aceito
    25 Maio 2022
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