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PROBLEMAS INVERSOS MAL COLOCADOS EM QUÍMICA

ILL-POSED INVERSE PROBLEMS IN CHEMISTRY

Resumo

What is an ill-posed inverse problem? The answer to this question is the main objective of the present paper and the pre-requisite to follow the material requires only elementary calculus. The first mathematical formulation of an inverse problem, due to N. H. Abel, together with the fundamental work by Jacques Hadamard, are explored at the beginning of the paper. A prototype system is used to consider the regularization concept. Three numerical methods, the Tikhonov regularization, the decomposition into singular values and the Hopfield neural networks, applied to remove the singularity are examined. General aspects of the ill-posed inverse problems in chemistry with emphasis in thermodynamics and a set of general rules for other areas of science are also analyzed.

Keywords:
inverse problem; ill-posed problem; regularization; Hopfield neural network


Keywords:
inverse problem; ill-posed problem; regularization; Hopfield neural network

INTRODUÇÃO

O que são problemas inversos mal colocados? Problemas inversos mal colocados são importantes em química? O que faz um problema inverso ser mal colocado? Por que o estudante de graduação provavelmente nunca lidou com problemas inversos mal colocados? Uma apresentação didática dessas respostas, enfatizando a importância de problemas inversos mal colocados em química e em ciências de forma geral, será abordada.

Retirar alguma informação de dados experimentais é um problema inverso. Por exemplo, obter uma seção de choque de colisão de forma teórica ou experimental seria um processo direto, enquanto retirar a energia potencial da seção de choque experimental seria um problema inverso. Fica evidente que ao lidar com problemas inversos o cientista tem de estar familiarizado com o problema teórico direto relacionado e com a natureza do experimento realizado. Mas é preciso reconhecer que ao tratar com dados experimentais tem-se que respeitar a existência do erro experimental, muitas vezes desprezado ou mesmo filtrado numa primeira análise.

Problemas inversos na presença de erros experimentais são denominados problemas inversos mal colocados.11 Tikhonov, A. N.; Goncharski, A. V.; Ill- Posed Problems in the Natural Sciences, Mir Publishers: Moscow, 1987. O primeiro problema inverso resolvido foi provavelmente elaborado por Eratóstenes entre 276-196 a.C, mas é preciso deixar claro que não existe consenso sobre esse ponto histórico, e por vezes esse fato é atribuído também a Archimedes.22 Groetsch, C. W.; Inverse Problems: Activities for Undergraduates, Mathematical Association of America: Washington, 1999. Entretanto, a primeira formulação matemática e consciente de um problema inverso foi desenvolvida por N. H. Abel em 1826.33 Abel, N. H. Em Oeuvres complètes de Niels Henrik Abel; Sylow, L.; Lie, S., eds.; Cambridge University Press: Cambridge, 2012, vol. 1. O trabalho de Abel, apesar de não considerar erros experimentais, foi essencial no desenvolvimento da teoria de problemas inversos, pois indicou um caminho matemático e rigoroso para se lidar com tais problemas.

Em 1923, Jacques Hadamard formula as condições para um problema inverso ser mal colocado,44 Hadamard, J.; Lectures on Cauchy's Problem in Linear Partial Differential Equations, Yale University Press: New Haven, 1923. condições essas que serão discutidas. Diretamente relacionado com essa definição de Hadamard observa-se que problemas inversos mal colocados envolvem também a remoção de uma singularidade. Técnicas especiais que removem essa singularidade serão apresentadas, com maior ênfase no estudo de redes neurais recorrentes, devido a sua importância na aplicação em problemas inversos. Uma revisão de problemas inversos mal colocados em termodinâmica será discutida, evidenciando a importância do estudo de tais problemas em química.

NIELS HENRIK ABEL, 1826

Em um artigo publicado em 1826,33 Abel, N. H. Em Oeuvres complètes de Niels Henrik Abel; Sylow, L.; Lie, S., eds.; Cambridge University Press: Cambridge, 2012, vol. 1. Abel formula o problema da tautocrônica como se segue. Considere uma curva BDMA qualquer na qual observa-se um ponto (ou um anel) que cai livremente sob a ação da gravidade. O problema proposto por Abel consiste em: sendo dado o tempo de queda em várias alturas, pode-se determinar o formato da curva BDMA?

Figura 1
Figura original usada por N.H. Abel 33 Abel, N. H. Em Oeuvres complètes de Niels Henrik Abel; Sylow, L.; Lie, S., eds.; Cambridge University Press: Cambridge, 2012, vol. 1.

Portanto, sendo medida a função t(h), t sendo o tempo de queda nas várias alturas h, pede-se o formato da curva. O problema direto é relativamente simples. A conservação da energia ao longo da curva s fornece mgy + mgx, com as quantidades tendo seu significado usual. Essa equação pode ser rearranjada na forma, +

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com s' = 55 Gorenflo, R.; Vessella, S.; Abel Integral Equations: Analysis and Applications, Springer-Verlag: Berlin-Heidelberg, 1991. como por exemplo em espalhamento clássico inverso.66 Alves, M. O.; Oliveira, J. M.; Lemes, N. H. T.; Braga, J. P.; Int. J. Quantum Chem. 2012, 112, 3141. . A equação integral de Abel representa, de forma genérica, uma enorme variedade de problemas diretos e inversos em ciências,

JACQUES HADAMARD, 1923

O passo decisivo para um entendimento mais geral de problemas inversos foi dado por Jacques Hadarmard em 1923,44 Hadamard, J.; Lectures on Cauchy's Problem in Linear Partial Differential Equations, Yale University Press: New Haven, 1923. trabalho em que introduziu o conceito de problemas inversos mal colocados. Problemas inversos mal colocados em química, física, medicina, e em ciências de forma geral, são problemas em que a solução pode não existir, não ser única ou não ser contínua em relação à informação inicial. Se essas três condições são satisfeitas, o problema é denominado de bem-colocado. Não é difícil perceber que essas três condições estão associadas com a presença do erro experimental, o que será evidenciado por três exemplos simples.

O fator de compressibilidade, Z = pV = nRT, qual seria a força entre as partículas? A não existência de força, ou seja um gás ideal, é a resposta fornecida. De certa forma um estudante já sabe fazer um problema inverso, apesar de ser bem colocado. Se um pequeno erro experimental, for considerado, digamos Z = 1,1, e se a mesma pergunta for feita ninguém irá responder que se trata de um gás ideal. Mas, se esse erro estiver dentro do erro experimental pode-se ainda ter o gás ideal como resposta, apesar dela, em geral, não ser fornecida pelo estudante. Esse exemplo simples evidencia que o erro experimental é sempre desprezado em considerações teóricas. O problema proposto ainda encerra uma outra resposta, pois se a temperatura é a de Boyle pode-se ainda ter pV = nRT para um gás real. Tem-se aqui uma das condições de um problema mal colocado. A resposta pode não ser única., expressa a relação entre pressão, volume e temperatura. Num primeiro curso de termodinâmica é difícil encontrar um estudante que não responda corretamente à seguinte pergunta: se

O espalhamento de duas partículas num campo central ilustra a segunda condição de um problema ser mal colocado. O ângulo de espalhamento máximo nesse caso vale 1800, quando o choque for frontal, correspondendo ao parâmetro de impacto igual a zero. Se numa medida experimental obteve-se esse ângulo igual a 1850, pergunta-se: qual a energia potencial que forneceria 1850? O leitor um pouco familiarizado com a teoria de espalhamento responderia que tal potencial não existe.

A terceira condição de um problema ser mal colocado pode ser exemplificada considerando-se a integral, ƒ(y)dy = g(x) para o caso especial em que f(y) = 1 e, consequentemente, g(x) = x. Se a derivada de g(x) no ponto x = y é calculada, isto é, f(y) = 1. As consequências de um erro experimental podem ser analisadas nesse exemplo puramente matemático. Se, devido ao erro experimental, a quantidade a ser derivada fosse, por exemplo, gerro = g(x) + χ(x), em que χ(x) representa o erro experimental, é fácil observar que não se obteria a derivada igual à unidade. Também é natural esperar que se χ(x) → 0 então gerrog(x), propriedade que chamamos de continuidade. No entanto, mesmo com esse erro pequeno as derivadas seriam funções oscilantes, com amplitudes que podem ser grandes dependendo da natureza mal-colocada do problema. Portanto, quando o erro na solução é maior que o erro no dado inicial, dizemos que a solução não é contínua. Observe que tomar derivadas numéricas é um processo bastante comum em química, como por exemplo, em cinética química ou quando filtros são usados para suavizar uma função., recupera-se

O entendimento de existência, unicidade e continuidade é um pré-requisito para o entendimento adequado de problemas inversos mal colocados. Estudar um problema em que a solução não existe, não é única ou não é contínua certamente é um desafio em química e em ciências. Como o próprio Hadamard provocou em 1923,77 Wing, G. M.; Zahrt, J. D.; A Primer on Integral Equations of the First Kind: The Problem of Deconvolution and Unfolding, Society for Industrial and Applied Mathematics: Philadelphia, 1991.inexperienced people will not handle this kind of problem.

EQUAÇÃO INTEGRAL DE FREDHOLM

A equação (1) é um caso particular da integral de Fredholm de primeira ordem,

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A interpretação dessa equação, para os propósitos do presente artigo, deve ser a seguinte:

  1. A função f(y) representa uma entrada;

  2. A transformada, núcleo da transformação, K(x,y), um operador sobre a entrada; e

  3. A função g(x), a saída do processo.

Para entender os problemas que aparecem quando se tenta inverter uma equação integral de Fredholm de primeira ordem, protótipo de uma classe de problemas inversos lineares na forma integral, pode-se tomar uma equação desse tipo com solução conhecida. A equação integral de Fredholm,88 Riele, H. J. J.; Comput. Phys. Commun. 1985, 36, 423.,99 Braga, J. P.; J. Math. Chem. 2001, 29, 151.

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com a < y < b, foi escolhida como protótipo e servirá de base teórica e numérica para o entendimento de problemas reais. Nesse caso a entrada, a saída e a transformação são conhecidas,

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Sabendo-se a saída e o que causou essa saída, pergunta-se qual a entrada. O resultado esperado nesse problema inverso, a função f(y), é então conhecida. A representação da equação integral numa forma algébrica é o próximo passo para resolver esse problema. Isso deve ser feito escolhendo-se uma base adequada, como por exemplo, uma base quadrada ou uma base de Legendre.1010 Leon, S. J.; Linear Algebra With Applications, 8th ed., MacMillan: New York, 1990. A precisão da representação está relacionada com o tamanho dessa base, de dimensão n. Após transformações algébricas adequadas,99 Braga, J. P.; J. Math. Chem. 2001, 29, 151. chega-se a uma expressão da forma,

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com ƒRn, gRm e KRm×n, indicando as dimensões dessas três quantidades. A equação algébrica terá duas dimensões a serem consideradas, uma relacionada com essa representação e outra com o número de dados experimentais, m. Numa primeira discussão considera-se o caso hipotético em que o número de dados experimentais é igual à dimensão da base. Portanto, pode-se tentar a solução do problema inverso simplesmente fazendo-se ƒ = K-1g. Assim procedendo, para m = n =32 numa base quadrada, encontra-se o resultado da função ƒ como na figura 2. A função ƒ(y) =m não será igual a n, deve-se procurar a solução que satisfaça o critério de mínimo quadrado, ou seja, representada no gráfico aparece como se fosse um valor constante igual a zero, completamente mascarada pelo resultado obtido pelo operador inverso. Numa situação mais real, em que

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Figura 2
Resultado invertido usando o critério dos mínimos quadrados (linha pontilhada) juntamente com o resultado exato (linha contínua)

Entretanto o resultado obtido para ƒ é idêntico ao da Figura 2, pois não se pode mudar o posto (rank) de uma matriz simplesmente somando as suas linhas, como em KTK.

Qual a origem desses resultados tão discrepantes? Para o caso particular apresentado pode-se analisar, de forma bem mais restrita, o determinante da representação para KTK ou para K. Nesse caso tem-se, para m = n = 32, det(K) = 10-40, praticamente zero. Para n = m = 64 calcula-se det(K) = 0.0. Portanto existe uma singularidade no cálculo da matriz inversa que depende do inverso do valor do determinante. Obviamente que a solução desse problema existe, mas certamente terá de envolver conceitos adicionais de álgebra.

MÉTODOS NUMÉRICOS PARA REGULARIZAÇÃO

Técnicas numéricas especiais devem ser desenvolvidas para tratar de problemas inversos mal colocados. A transformada pode não ter inversa, como ilustrado, e mesmo quando houver os possíveis erros em g, mesmo o da discretização numérica, serão enormemente amplificados. Até aproximadamente 1996, dois eram basicamente os métodos usados para se resolver um problema inverso: a regularização de Tikhonov11 Tikhonov, A. N.; Goncharski, A. V.; Ill- Posed Problems in the Natural Sciences, Mir Publishers: Moscow, 1987. e a decomposição em valores singulares.1010 Leon, S. J.; Linear Algebra With Applications, 8th ed., MacMillan: New York, 1990. Na regularização de Tikhonov remove-se a singularidade adicionando-se uma informação extra ao problema original, como por exemplo, a procura da solução de norma mínima. Na decomposição em valores singulares essa singularidade é removida usando-se os dois espaços vetoriais básicos da álgebra linear, um relativo aos dados de entrada e outro relativo aos dados de saída. De acordo com o teorema fundamental da álgebra1111 Strang, G.; Amer.Math.Monthly 1993, 100, 848. esses espaços são ortogonais e complementares. Trabalhando-se no sub-espaço adequado, encontra-se a solução desejada do problema inverso. Uma comparação detalhada desses dois métodos, usando a equação (3) como modelo, aparece na referência.99 Braga, J. P.; J. Math. Chem. 2001, 29, 151.

Entretanto, tanto na regularização de Tikhonov quanto na decomposição em valores singulares é necessário um passo empírico, no qual são computados o peso da restrição ou o tamanho do sub-espaço. Um outro método mais poderoso, usando redes neurais de Hopfield,1212 Hopfield, J. J.; Tank, D. W.; Biol. Cybern. 1985, 52, 141. será apresentado com mais detalhes no presente trabalho. Esse método foi estendido para problemas lineares e não lineares1313 Lemes, N. H. T.; Borges, E.; Braga, J. P.; J. Braz. Chem. Soc. 2007, 18, 1342., sendo mais robusto do que a regularização de Tikhonov ou a decomposição em valores singulares. Redes neurais artificais, no presente contexto, são programas numéricos que simulam o funcionamento do cerébro. Por conseguinte, esses programas são capazes de aprender, no sentido de otimizar, sobre um problema formulado.

A rede neural de Hopfield1212 Hopfield, J. J.; Tank, D. W.; Biol. Cybern. 1985, 52, 141. mostrou-se a mais apropriada, pois pode-se tratar indistintamente problemas lineares e não lineares. Como na regularização de Tikhonov ou na decomposição em valores singulares procura-se também a solução que satisfaça o mínimo de E = Φ(ƒ) = || - g ||2, com a condição de que t deve ser associado com o conceito de tempo de aprendizado. A restrição ƒi = ƒ(ui(t)), em que ui(t) é o estado do neurônio i. Com essas dependências desenvolve-se, < 0. Aqui fica evidente o conceito de aprendizado em redes neurais: o erro do objetivo do problema sempre irá decair. O tempo < 0 só é satisfeita se adicionalmente assume-se uma função ativação, análoga ao impulso nervoso, reforçando assim a analogia com redes neurais. Essa função ativação é matematicamente descrita por

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Um passo importante nas redes neurais é prosseguir com a analogia com a biologia, assumindo que a função ativação ƒ sempre aumenta com o estado do neurônio isto é, equação (8) conduzem a, < 0 e > 0. Essas duas restrições, > 0, ao serem usadas em na

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em que i = 1, 2, ..., n, n é o número de neurônios no sistema e também o número de equações de Hopfield. A resposta desejada é obtida pela solução desse sistema de equações diferenciais acopladas, denominadas equações de Hopfield. Observe que em nenhum momento a inversa do operador foi requerida. À medida que o tempo de aprendizado avança, os neurônios vão se adaptando para obter a solução desejada.

O resultado invertido do problema apresentado na equação (3), usando-se as redes recorrentes com n=32 e uma condição inicial igual a ui = 0, ou seja, nenhuma informação, é apresentado na figura 3 para um tempo de aprendizado de t = 2 e na figura 4 para t = 16000. Observa-se que à medida que a rede aprende sobre o problema formulado, o resultado melhora. Essa garantia é única das redes neurais de Hopfield, pois as equações (8) foram obtidas sujeitas a essa restrição, isto é, Figura 4 que esse aprendizado se estabiliza, tendendo para = 0, refletindo que a rede neural não tem mais nada a aprender sobre o problema. Uma característica muito importante de redes reside nesse fato. Se a condição inicial é a exata, então não há nada a aprender. Portanto, uma condição inicial adequada pode resolver o problema com um aprendizado mais rápido. < 0. É também claro pela

Figura 3
Resultado invertido com redes neurais para t = 2 (linha pontilhada) juntamente com o resultado exato (linha contínua)

Figura 4
Resultado invertido com redes neurais para t = 16000 (linha pontilhada) juntamente com o resultado exato (linha contínua)

EXEMPLO NUMÉRICO

Um protótipo interessante para ilustrar o uso da rede de Hopfield em problemas mal colocados constitui-se na análise da solução de um problema linear Ax=b, na forma

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O posto da matriz A é completo e o determinante da matriz A é dado por ε. A solução obtida pelo cálculo da inversa, xcal = A-1berr, é expresso como

(11)

em que berr representa os dados de entrada com erros da ordem de |α|. Observe que existem dificuldades numéricas para o cálculo da inversa quando det(A)= ε é próximo de zero.

A norma do resíduo, para a solução obtida a partir do cálculo da inversa, é dada por

(12)

e tem a mesma magnitude do erro em b. Por outro lado, a norma do erro, para esta solução, é dada por

(13)

Como pode-se observar a norma do erro na solução é maior que a norma do erro introduzido em b por um fator ε. Quando o sistema é aproximadamente linearmente dependente, isto é, |ε| ≅ 0, a norma do erro cometido em xcal diverge. O cálculo da inversa não é apropriado para a solução do problema (10), quando erros são introduzidos em b. Por exemplo, usando a equação (11), com ε=10-2 e α=10-1, obtém-se x=[-9,10], enquanto o valor esperado é x=[1,0].

Entretanto, pode-se encontrar uma solução adequada usando-se a rede de Hopfield, equação (8), que para um problema linear tem a forma

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em que ui=tanh-1(xi). Essa equação pode ser resolvida usando-se as técnicas usuais para solução de sistema de equações diferenciais ordinárias, tal como o método de Runge-Kutta.

Com a equação (14), usando como valor inicial x=[0,0], obtém-se x=[0,9988, 0,0462], mostrando como a rede de Hopfield trata adequadamente o problema mal colocado.

PROBLEMAS INVERSOS EM TERMODINÂMICA CLÁSSICA

Os problemas inversos em termodinâmica clássica, para a equação de estado, envolvem a expansão virial,

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com as variáveis tendo o seu significado usual. Para sistemas com simetria esférica e usando a termodinâmica estatística clássica, a relação entre a energia potencial Ep e o segundo coeficiente do virial é dada por,1414 Braga, J. P.; Físico-Química - Aspectos Moleculares e Fenomenológicos, 3ª ed., UFV: Viçosa, 2013.

(16)

Portanto, este é um problema inverso não linear.

Por analogia com a equação (2) escreve-se,

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Esse é o tipo de problema a ser abordado na inversão de dados de fator de compressibilidade. Nesse caso a temperatura T e a coordenada R representam as duas variáveis independentes x e y, respectivamente. Nesse ponto fica mais clara a natureza das dimensões m e n. O número de pontos, n, para representar a integral está relacionado com a coordenada R, enquanto o número de dados experimentais está relacionado com a variável m. Dificilmente ter-se-ía m = n, isto é, a precisão da representação igual ao número de dados experimentais, enfatizando a discussão já apresentada. O problema direto é relativamente simples, mesmo para o caso não linear. Vários exemplos são trabalhados na biografia.1414 Braga, J. P.; Físico-Química - Aspectos Moleculares e Fenomenológicos, 3ª ed., UFV: Viçosa, 2013. Por exemplo, se Ep(R) = 0 é substituído na equação (16), retira-se B(T) = 0 e pV = NkBT. Por outro lado o problema inverso, mesmo bem colocado, não é trivial.

A primeira tentativa de se retirar alguma informação microscópica do segundo coeficiente do virial foi feita por Lennard-Jones em 1924,1515 Jones, J. E.; Proc. R. Soc. Lond. A 1924, 106, 463. usando um potencial da forma Ep(R) = λn / Rnm / Rm, conhecido hoje como o potencial de Lennard-Jones. Neste trabalho os parametros λn e λm foram determinados usando-se uma combinação gráfica com o uso de variáveis universais. Na verdade essa proposta consistia num ajuste gráfico, o que não pode ser considerado como um problema inverso.

Em 1959 Keller e Zumino,1616 Keller, J. B.; Zumino, B.; J. Chem. Phys. 1959, 30, 1351. tratando a energia potencial como variável, reescreveram a equação (16) na forma,

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com

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Para o caso do potencial puramente repulsivo, situação aproximadamente válida para altas temperaturas, obtém-se Δ(Φ) = RL3(Ep), permitindo que se determine de forma única a função Ep(R) de dados do coeficiente do virial. Propondo uma função analítica para B(T), Jonah and Rowlinson1717 Jonah, D. A.; Rowlinson, J. S.; Trans. Faraday Soc. 1960, 62, 1067., em 1960, foram capazes de determinar a energia potencial. Esse método, importante para a época, é certamente limitado, pois assume-se um ajuste para o segundo coeficiente, filtrando assim os erros experimentais.

Maitland e Smith1818 Maitland, G. C.; Smith, E. B.; Mol. Phys. 1972, 24, 1185. transformaram a equação de Keller e Zumino numa forma matricial, com posterior aplicação de um método proposto por Bellman e Kalaba.1919 Bellman, R.; Kalaba, R.; Dynamic Programming and Modern Control Theory, Academic Press: New York, 1966. Apesar de o método ter sido aplicado somente a potenciais repulsivos o trabalho de Maitland e Smith representa uma primeira abordagem de um problema inverso mal colocado aplicada à equação de estado, já que dados experimentais foram tratados como um primeiro passo. Dados do segundo coeficiente do virial foram gerados, pela equação (16), utilizando-se um potencial repulsivo na forma, Ep(R) = Ae-aR, com A = 0,2 keV e a = 4,20 Å, aproximadamente adequado para o sistema He-He. Para temperaturas na faixa de 500K - 1500K e com erros em B(T) da ordem de 1% obteve-se o potencial desejado, usando-se a regularização de Tikhonov e a decomposição em valores singulares.2020 Lemes, N. H. T.; Braga, J. P.; Belchior, J. C.; Chem. Phys. Lett. 1998, 296, 233. Em ambos os casos recupera-se o potencial, dentro do erro esperado. O critério de norma mínima e do tamanho do espaço foram utilizados nos métodos teóricos discutidos. O trabalho, apesar de usar dados simulados e um potencial aproximado, foi importante para futuros assuntos na mesma linha de pesquisa.

As redes de Hopfield foram utilizadas pela primeira vez, em um problema inverso mal colocado em química, para o sistema HeNe.2121 Braga, J. P.; de Almeida, M.; Braga, A. P.; Belchior, J. C.; Chem. Phys. 2000, 260, 347. Ainda na mesma linha investigativa do primeiro trabalho,2020 Lemes, N. H. T.; Braga, J. P.; Belchior, J. C.; Chem. Phys. Lett. 1998, 296, 233. com dados simulados e potencial modelo, o uso das redes recorrentes mostrou-se um método mais estável e robusto em relação aos erros experimentais quando comparado com a regularização de Tikhonov ou decomposição em valores singulares.2020 Lemes, N. H. T.; Braga, J. P.; Belchior, J. C.; Chem. Phys. Lett. 1998, 296, 233.

A transformada de Keller e Zumino1616 Keller, J. B.; Zumino, B.; J. Chem. Phys. 1959, 30, 1351. fornece uma estratégia para obtenção do potencial de curto alcance de forma única. Entretanto existe um ambiguidade para o potencial de longo alcance pois tem-se Δ(ƒ) = RL3(Φ) - RR3(Φ). Assumindo RL conhecido e usando a decomposição em valores singulares e dados experimentais, obteve-se 2020 Lemes, N. H. T.; Braga, J. P.; Belchior, J. C.; Chem. Phys. Lett. 1998, 296, 233.,2121 Braga, J. P.; de Almeida, M.; Braga, A. P.; Belchior, J. C.; Chem. Phys. 2000, 260, 347. o coeficiente de dispersão do sistema Ar-Ar. Essa primeira fase para tratar problemas inversos mal colocados relacionados com a equação de estado é caracterizada pelo uso da equação de Keller e Zumino, com dados simulados. O potencial foi sempre obtido em duas partes. Entretanto, o passo definitivo para uma análise global desse problema inverso foi dado em 2003. 2222 Sebastião, R. C. O.; Lemes, N. H. T.; Virtuoso, L.; Braga, J. P.; Chem. Phys. Lett. 2003, 378, 406.

Em 2003, foi dado o primeiro passo para um tratamento geral de redes neurais, aplicadas indistintamente a problemas lineares ou não. Usando a equação (11), dados experimentais em conjunto com redes recorrentes, obteve-se o potencial global da interação Ar-Ar. O potencial obtido é o mais adequado na literatura para aquela propriedade, pois foi invertido de dados experimentais. Uma comparação foi feita com outros potenciais mostrando a qualidade do potencial invertido. O presente trabalho também originou a apresentação de um algoritmo global para qualquer problema inverso mal colocado desejado,2222 Sebastião, R. C. O.; Lemes, N. H. T.; Virtuoso, L.; Braga, J. P.; Chem. Phys. Lett. 2003, 378, 406. que foi aplicado a diversos problemas inversos mal colocados em química, como em espectroscopia2323 Borges, E; Lemes, N. H. T.; Braga, J. P.; Chem. Phys. Lett. 2006, 423, 357., ressonância magnética nuclear2424 Sebastião, R. C. O.; Braga, J. P.; J. Magn. Reson. 2005, 177, 146., aniquilação de pósitrons2525 Viterbo V.; Braga J. P.; Braga A. P; Almeida M.; J. Chem. Inform. Comput. Sci. 2001, 41, 309. e cinética química.2626 Lemes, N. H. T.; Borges, E.; Braga, J. P.; Chemom. Intell. Lab. Syst. 2009, 96, 84.,2727 Menezes, D. C.; Borges, E.; Torres, M. F.; Braga, J. P.; Chem. Phys. Lett. 2012, 548, 85.

ASPECTOS GERAIS DE PROBLEMAS INVERSOS

Não existe uma limitação para a aplicabilidade de problemas inversos mal colocados em química. Vários exemplos foram fornecidos, mas o assunto encontra espaço também em outras áreas, como por exemplo em geofísica,2828 Parker, R.L., Geophysical Inverse Theory, Princeton University Press: New Jersey, 1994. astrofísica,2929 Hedmana, M. M.; Burnsa, J. A.; Hamilton, D. P.; Showalterd, M. R.; Icarus 2012, 217, 322. teoria de controle,3030 Warren, W. S.; Rabitz, H.; Dahleh, M.; Science 1993, 229, 1581.,3131 Bryson, A; Ho, Y.; Applied Optimal Control: Optimization, Estimation and Control, CRC Press: Washington, DC, 1975. espalhamento quântico inverso,3232 Newton, R.G.; Inverse Schrödinger Scattering in Three Dimensions, Springer-Verlag: Berlin-Heidelberg, 2012.,3333 Lemes N. H. T.; Braga J. P.; Alves M. O.; Costa E. M, J. Mol. Model. 2014, 20, 2317. física médica3434 Börgers, C.; Natterer, F.; Computational Radiology and Imaging: Therapy and Diagnostics, Springer: New York, 2012. e economia.3535 Horowitz, J. L.; Annual Review of Economics: Ill-Posed Inverse Problems in Economics 2014, 6, 21. Independente da área em que se estuda um problema inverso, tem de se estar atento para os seguintes pontos comuns:

  • Conhecimento experimental do processo a ser estudado;

  • Preparado para um modelamento matemático;

  • Conhecimento do processo direto, teoria e os métodos numéricos envolvidos;

  • Qual tipo de informação é desejada?

  • Preparado para desenvolver seu próprio algoritmo.

Uma hierarquia entre os dados tratados é algo comum e deve ser respeitada. Por exemplo, não se espera que um potencial obtido do coeficiente do virial seja adequado no cálculo da seção de choque. Mas o oposto é certamente verdade. Médias são feitas na termodinâmica, perdendo-se assim informação importante sobre o potencial. O dado mais refinado, apesar de não ter uma medida experimental direta, é a fase de espalhamento, como abordado na bibliografia.3333 Lemes N. H. T.; Braga J. P.; Alves M. O.; Costa E. M, J. Mol. Model. 2014, 20, 2317.

CONCLUSÕES

Uma abordagem geral sobre problemas inversos mal colocados foi apresentada. O protótipo de um problema inverso linear foi discutido, após uma introdução histórica sobre o assunto. Foi evidenciado que são necessárias técnicas especiais, que removam uma singularidade, para tratar de problemas inversos mal colocados. Três dessas técnicas foram apresentadas de forma geral, com ênfase em redes neurais de Hopfield. Uma aplicação específica em termodinâmica foi apresentada, para exemplificar problemas em químicas, indicando, em termos gerais, como o problema deve ser abordado em outra área do conhecimento. A discussão apresentada evidenciou que os fundamentos de problemas inversos são válidos em qualquer área das ciências e que o problema inverso tem de ser feito com dados experimentais. Além disso, uma falta de informação experimental não pode ser substiuída por um artifício matemático e as decisões importantes são feitas com informações insuficientes. Portanto, é sempre desejável a colaboração com o cientista experimental na área em que o problema inverso é tratado. É importante observar que, na verdade, todo cientista que trabalha em um problema direto terá um problema inverso associado, pronto para ser resolvido. Espera-se que o presente trabalho, apresentado de forma tão didática quanto possível, motive o leitor a explorar a área de problemas inversos mal colocados.

AGRADECIMENTOS

Gostaríamos de agradecer ao CNPq, à CAPES e à FAPEMIG pela ajuda financeira.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Ago 2016

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2015
  • Aceito
    08 Mar 2016
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